TERRITÓRIOS VIZINHOS
Habitamos territórios vizinhos. Ciência e criação são portas contíguas dando acesso ao horizonte sempre esquivo do mistério humano.
Temos também em comum a persistência em desvendá-lo. Esse mistério que nos cega à medida que insistimos em lhe bater à porta. E que nos impulsiona, contudo, a estabelecer parceria com ele, em busca da matéria da qual emergem o princípio da vida, o fogo do alento. Um princípio muito acima da compreensão científica, do empenho teológico, da desmedida imaginação humana.
São muitas as similitudes que nos enlaçam. Para conhece-las, é mister seguir as pegadas que fomos deixando ao acaso da história. Elas têm nomes, fundamentos, enredos, vinculam-se às mais caras utopias.
Sob a tutela de tantas afinidades, que me seja dado homenagear neste momento a aventura do espírito que há muito preside a Academia Nacional de Medicina. Uma instituição que tem sabido conjugar o saber consagrado, e o conhecimento ainda por se fazer, com rara pertinácia. Uma postura intelectual que bem justifica o elogio que lhes faço, quando recolho, comovida, a homenagem que esta Casa presta à Academia Brasileira de Letras.
Uma celebração que tem sua razão de ser no fato de estarmos cumprindo nosso 1o Centenário. Exatamente 100 anos de marcante presença na alma do Brasil. Uma homenagem provinda de mãos tão experimentadas quanto as vossas, na investigação da dor, do prazer, da compaixão. Nas manifestações do humano que passam, porém, pelos caminhos incontornáveis da criação.
Nossas Academias têm ainda em comum pertencer a uma estirpe de instituições que, por muito anos, sustentaram a civilização brasileira. Pilares da vida social e cultural, elas imprimiram ao cotidiano do país as marcas de seus sonhos, de suas inquietudes, tratando de incorporar às suas matrizes o que, fora delas, parecia marginal, merecedor de amplo resgate social e cultural.
Convictas, ambas as Academias, de que somente tradição e memória, legados dos nossos predecessores, e referências vivas, podem de fato assegurar a continuidade da esperança e dos gestos inventivos. Sobretudo da imaginação, quando posta a serviço da prosperidade do coração e da inteligência.
Semelhantes estatutos são, e serão sempre, o melhor fundamento sobre o qual construir os interrogantes do futuro.
Isso ocorrendo enquanto formos capazes de resistir a uma modernidade que apresenta, como tese de convencimento, seu atrevimento arbitrário, sua reação às diferenças, sua ostentação em face da miséria.
A ciência médica tem sido companheira do homem desde tempos imemoriais. Na prática da medicina, misturam-se, aliás, os mais complexos sentimentos. São raros os ofícios que
encostam tão de perto na dor dos homens, reconhecem-lhes as aflições, os medos, suas lentas agonias.
Vizinho da vida e da morte, e levando acesa na bagagem a sua lanterna, o médico alicia e anima o outro a viver. Empenha-se em trazê-lo à terra, em assegurar-lhe etapas por si inaugurais, como a do crescimento, a da maturidade, a da senectude.
Muitos desses passos, à beira mesmo do vestíbulo da existência, amparam-se na diligência, no engenho, na sua devoção. E induzem-nos esses passos a pensar que o esboço do
homem, no horizonte mesmo de sua complexa anatomia, parece seguir a régua, o compasso, a imaginação da medicina.
Protagonista da história secreta de um Brasil que se forma à sombra do nascimento e da morte, esse médico, excedendo em muito os limites do ofício, registra as contrações da
vida e da dor.
Em seus 150 anos de existência, a Academia Nacional de Medicina vem cumprindo os desígnios de seus fundadores e dos sucessores, que lhes seguiram. Obrigou-se, em sua
inatacável respeitabilidade, a confrontar-se com o desafio da pesquisa, a sustentar seu julgamento sobre as políticas de saúde em nosso país.
A Academia Brasileira de Letras, que aqui represento, alimentou-se, ao longo do último século, dos predicados estéticos e morais sonhados inicialmente pelos jovens, que tinham Lúcio de Mendonça à frente. Jovens que nos liberaram a dizer que nascemos líricos, nômades, pobres, mas apaixonadamente comprometidos com a defesa da língua. Esse sistema de sons e de símbolos que, sob o escudo da representação, alcança a eloquência dos homens. Essa língua que, atuando como contraforte, atravessa o Brasil, enriquece-lhe o cotidiano, alarga-lhe a faixa da fantasia, fecunda-lhe a paixão pela liberdade e pelo pensamento.
Tendo à frente Machado de Assis, como Presidente, e Joaquim Nabuco, como Secretário-Geral, nossa Instituição foi inaugurada no dia 20 de julho de 1897. Na tribuna, sob
o impulso renovador dos moços, um Machado de Assis amadurecido, e seus ilustres companheiros, acreditaram na excelência daquele ato cosmopolita e universal. Um ato que
ganhava especial repercussão por ter Machado de Assis como Presidente. Um escritor cuja obra já embrenhara-se definitivamente pelo universal, sem hesitar ele, por isso, em face da história, em devotar espírito e tempo à instituição recém-instalada no Brasil.
Aqueles 40 homens, integrando a nova Casa, tinham o instinto a grandeza e da pertinácia. A despeito das vicissitudes, dos desalentos eventuais, propunham-se a alinhar o Brasil na esfera da língua. Havia que despertar na consciência da nação a convicção de ser a língua patrimônio inestimável. Sobretudo frente a uma língua tão voraz, multiplicadora e plástica quanto a lusa. Pronta a pôr em marcha o sentimento poético, quando a poética da existência ameaça fragilizar-se. A narrar antes de ser preciso contar. Uma língua na qual se ama, quando a paixão nos surpreende. E que registra os matizes da poesia, o discurso da prosa, tão logo a vida fala, chora, capta os ruídos da ascensão e do declínio humano. Uma língua que faz da emoção do cotidiano uma comovida epopeia.
Esses fundadores intuíram, como nós mais tarde, que, enquanto se defendia o uso pleno e agônico da língua, estava-se a preservar o dizer da cultura, as palavras que assinalam a interminável viagem do homem pelo mar do seu destino.
É forçoso acreditar que essa língua lusa, além do encargo de permitir a comunicação entre os humanos, tem o privilégio insubstituível de estruturar o pensamento. De ser o instrumento primeiro de afirmação da nossa humanidade, do estar no mundo de uma determinada civilização.
Fazemos parte de um contingente de seres que enfrenta os dissabores de uma realidade enfeitada de mágicas, de propostas alienantes. Sujeitos a uma guirlanda de seduções que nos convoca a encenar o cotidiano segundo desígnios meramente utilitários. Como seres do espírito, cabe-nos resistir à tentação fáustica de enveredar por caminhos que desafiam a ética, o conceito do homem e de Deus. Cabe-nos, sim, combater a onipotência da imaginação e da vaidade com o humanismo do convívio, do respeito às ideias, que nossas respectivas Academias tão bem encarnam.
SENHOR PRESIDENTE, SENHORES ACADÊMICOS,
Agradecemos, comovidos, a homenagem que prestam à Academia Brasileira de Letras, por motivo do nosso I Centenário. Se Machado de Assis e os demais 251 acadêmicos aqui estivessem, decerto reforçariam comigo este sentido agradecimento