O POUSO DA MEMÓRIA
A Academia Brasileira de Letras há muito previra em seus estatutos a criação de um Centro de Memória. Hoje, precisamente, cumpre ela esta disposição estatutária. Inaugura, no ano do seu l" Centenário, o seu tão almejado Centro.
Implanta em seu coração cultural um território exclusivamente destinado a preservar as ocorrências humanas. A impedir que os vestígios, as lembranças e os documentos tecidos pela inteligência e pela propulsão criadora de tanto de seus membros efetivos submetam-se à ação dilapidora dos anos, à fugacidade pertinaz do cotidiano.
Desde seu nascedouro, há cem anos, esta Instituição elegeu a língua e a unidade literária brasileira como medidas de grandeza. Elegeu igualmente a história brasileira como marca de referência. Buscou confundir-se soberanamente com as oscilações e os percalços históricos, gravitou em torno de seus valores essenciais. Sobretudo deu ciência pública de não existir melhor pouso para sua índole utópica, para o cumprimento de seus ideais primevos, do que se integrar ao universo da memória. Esta irrenunciável memória que, difusa e múltipla, à cata de definições compatíveis com sua complexidade, registra e abona o Tempo dos homens.
Dela fiéis servidores, nós, da Academia Brasileira de Letras, avivamos nosso enredo coletivo debruçados sobre um passado permeado de arbítrios e versões contraditórias. E assim tem sido ao longo de uma história que nos levou a resguardar, intactos, fotos, originais, os livros que contêm nossas atas seculares, documentos que, retrocedendo nos anos, chegam até a metade do século XIX. E que, conquanto registrem, casualmente, aventuras havidas em torno da fundação desta Casa, em 1897, apontam também nossas idiossincrasias futuras, nossas lendas, aqueles caprichos hoje incrustados no imaginário da nação.
Submissos a tal memória, não nos furtamos ao juízo crítico advindo dela. Ao contrário, apegados às evocações, às efemérides que nos asseguram um passado afirmativo, aperfeiçoamos com os anos nosso temperamento cultural.
Este novo Centro, que se descortina ante nós, indica-nos a necessidade de armazenar a matéria inconsútil e enigmática com que se forja a memória. Fala-nos de uma substância que, tão logo materializada, arrasta em seu bojo aquela produção fabricada pela exaltada melancolia humana. Reconhece que as raízes dos seres brotam desse insondável manancial. E, ainda que quantas vezes nos acabrunhe, a memória alenta a imaginação, engendra quimeras. Arranca-nos da solidão para projetar-nos no universo dos homens. Ajuda-nos a romper, sobretudo, o molde da individualidade para tornarmo-nos múltiplos de nós mesmos.
Sob o aparato de intensa simbologia, este Centro de Memória força-nos a acreditar no passado. Recente ou longínquo, vizinho quase da árvore do bem e do mal, dele emergem os indícios que nos asseguram a condição de sucessores dos que nos precederam no Tempo.
Por vocação histórica, pois, damos passagem à memória, lhe cedemos zonas sombrias e luminosas. E, ungidos pelo espírito do sagrado, recolhemos seus escombros, sentimos pulsar o mistério da paixão humana. E não é certo que a memória mesma nos insta a rastreá-la. a lançar mão de seus recursos para melhor compreender a psiquê brasileira, parcialmente soterrada? E que é ela ainda que nos infunde a ilusão proveniente das vozes coletivas?
SENHORAS E SENHORES,
É forçoso investir no futuro da memória. Impedir que o brumoso destino consuma-se nas chamas apressadas de um presente desatento e imediatista. É mister dar combate às atribulações da realidade que desvalorizam a coleta incessante do engenho individual e coletivo.
Como brasileiros, cingidos a uma pátria faltosa. Descuidamo-nos de pungentes evocações nacionais. Desde sua gênese, o Brasil prescindiu daquelas evidências que teriam certamente exposto, em conjunto, o mosaico da nossa furiosa esperança, do amontoado caótico de nossos enigmas.
Esta sociedade negligente confiou que a salvaguarda da memória nacional se daria unicamente por meio dos artifícios inquietantes e sedutores do universo do inconsciente, do imaginário coletivo, da cartografia dos sentimentos, para com elas erigir o edifício da sua memória tangível. Esquecidos, então, de custodiar o mundo documental, o patrimônio histórico, as mais preciosas reservas artísticas da nação.
A Academia Brasileira de Letras opõe-se, no entanto, à desesperança e confessa que nunca esteve sozinha em seus sonhos acalentadores. Para tanto contou, desde que decidiu fundar este Centro de Memória, com o inestimável apoio da Fundação Banco do Brasil, uma Instituição à frente sempre das mais belas iniciativas culturais. Com quem logo estabeleceu uma nobre, elegante e magnânima aliança. Uma parceria que, para orgulho nosso, iniciou-se numa tarde desmedidamente chuvosa do mês de abril, em Brasília, graças à compreensão, à afabilidade, à lucidez do Dr. João Pinto Rabelo, seu ilustre Diretor Executivo.
Um homem a cuja presteza e visão progressista devemos a imediata adesão ao projeto. E que, em nenhum momento, tentou reduzir as dimensões do sonho que lhe estava sendo proposto. Ao longo de nosso fecundo convívio coube-lhe sempre se antecipar à história que ambos íamos forjando.
E multiplica-se ainda mais nossa alegria por ser esta uma Fundação vinculada ao Banco do Brasil, Instituição que, fundada pelo Príncipe-Regente, precedeu a Independência do Brasil. Não sendo ela, pois, meramente uma associação fiduciária, mas, sobretudo, uma fonte de bem-estar social.
Graças a esse precioso apoio cultural, estamos dotados com os recursos que a moderna tecnologia assegura para a guarda, conservação e difusão de nosso acervo. E podemos agora oferecer à comunidade um patrimônio composto basicamente de documentos textuais, iconográficos, fotográficos, relacionados com a história da Academia. Dar-lhes acesso a materiais impressos e audiovisuais, abrigados em salas e cabines ambientadas para esse fim, dotadas todas de equipamentos avançados, incluindo o acesso à Internet. Pôr ao alcance de todos o banco de dados, que detém, precipuamente, informações sobre escritores de língua portuguesa e suas obras, assim como o acervo, os espaços museológicos da Instituição, que deverão estar sob a sua responsabilidade.
Este Centro de Memória nasce também sob a guarda e os cuidados de primorosa guia. De alguém que não mediu esforços, não economizou sonhos, talento, devoção exemplar, para pôr em marcha o que precisava existir, sair da sombra, para ganhar plenitude. Maria Eugênia Stein é esta mulher, que, pelo seu trabalho admirável, associa-se à memória de nosso Centro. Agradeço-lhe, enternecida, o generoso empenho. A este agradecimento juntam-se outros nomes de devotados funcionários da nossa Casa.
As memórias deste dia feliz repousam agora em nós.
Aguardam que as decantemos lentamente. Afinal, somos os únicos a responder por elas. Assegurar-lhes por mais tempo sua permanência na Terra.