SAUDADES DE ANTÔNIO CALLADO
O mistério e a dor da morte só são comparáveis aos mistérios e às dores da vida. O mistério da morte invadiu hoje o teu corpo, Antônio Callado, como já o fizera a dor de viver.
O amor das palavras, contudo, ninguém melhor que ti nos legou. O valor do verbo que encontro agora tão frágil ante a tarefa de, com ele, e tão só com ele, tentar reviver a ti, a tua densa e opulenta biografia. Que pode afinal esse verbo, inquieto e fugaz, dizer de uma existência que, em confronto com as dificuldades da sua contemporaneidade, desdobrou-se em gestos e obras? Ambos ansiosos por afirmarem tua fidalguia, tua moral, tua coragem?
Hoje nos despedimos de ti, amigo Antônio Callado. Nós que contigo convivemos numa cotidianeidade às vezes banal, modesta, necessária, sem nos enganarmos jamais quanto ao privilégio de que desfrutamos ao longo desses anos de amizade.
Tivemos sempre, à mesa da vida, um erudito, um descobridor de mundos, um esteta inexcedível, um protagonista nunca omisso das lutas em defesa da liberdade.
A imortalidade que essa Academia te concedeu concedeste a ti mesmo bem antes de nós, para tal inscrevendo-se como modelo de uma geração de intelectuais que muito cedo encontrou o arbítrio como parâmetro de seu tempo. Face a ele, Antônio Callado, mantiveste a cabeça erguida, a palavra pronta, a calma certeza dos caminhos a percorrer. Onde tantos se perderam em descaminhos de submissão, soubeste afirmar o primado da honradez.
Nosso idioma, que foi teu companheiro inseparável, não tem neste momento utilidade maior que a de exprimir a gratidão de todos os brasileiros. Pois se minha pátria é minha língua no legado além-mar de Pessoa, nossa pátria, nossa língua, a terra espiritual que habitamos tiveram em ti, Antônio Callado, o amigo de todas as horas. Horas do romance, horas do teatro, do dia-a-dia de um jornalismo que ousou testemunhar, interpretar, influir nas concepções estéticas e éticas de uma época brasileira.
É o amor ainda da própria língua que te destina a abrir-se à criação maior, a enveredar pelas regiões do poético, em obediência ao ofício de inventar imaginários que vicejaram nos extratos múltiplos da alma brasileira. Dessa forma contribuindo para constituir o patrimônio espiritual da humanidade. Só a generosidade dos grandes artistas impulsiona um homem a aproximar os brasileiros - pelo esforço e genialidade do teu verbo - das suas faces ocultas de si mesmo, daquelas mais antigas, mais esquecidas, celebradas nas páginas clássicas de Quarup.
Callado, amigo, não conheceste economias na alma. Generoso, te ofereceste por inteiro ao ofício de escritor. Aceitaste os desafios mais ingratos, que são paradoxalmente os mais exaltantes, porque teu espírito, ávido de mundo, senhor de culturas várias, dispôs-se a todas oferecer ao mais anônimo dos teus leitores.
Quantos desses brasileiros terão pisado o chão misterioso do Xingu, compartido a tragédia do Vietnã. pela mediação amiga da tua inteligência e do teu sentido de aventura. Por essa mesma mediação, outros terão conhecido a permanência e a mobilidade dos valores, assim como terão reafirmado, sob inspiração de tua trajetória, o voto de confiança na história, na memória dos homens.
Esta Casa - a Academia Brasileira de Letras - se inspira nesses valores de permanência e recriação das artes que tão bem encarnaste.
Assim, ao vivermos hoje o luto da tua perda, ao despedirmos-nos de um filho amado, sofremos o mesmo luto que, sem dúvida, se abate sobre a cultura brasileira. E que nos autoriza a proclamar nosso reconhecimento a Antônio CalIado que entre nós espargiu esperanças, confiança no que de melhor o espírito humano emprestou a nossos destinos.
Gratos te somos, amigo. Que te seja grato para sempre todo o Brasil.
Repousa em paz, Antônio CalIado.