Pronunciado por motivo da homenagem que o Pen Clube do Brasil prestou a Nélida Piñon, por motivo de sua eleição para a presidência da Academia Brasileira de Letras, em dezembro de 1996.
A FIDALGUIA DAS IDÉIAS
Há muito freqüento esta Casa. A casa do espírito e da cordialidade. A morada que aceita discórdias, mas promove, entre seus membros, as afinidades eletivas, as coincidências éticas e intelectuais. Um centro onde se albergam os seres que se colocam sob o primado de um humanismo que não quer e não pode fenecer. E que, embora tenha muitas vezes sucumbido às obscuras noites do arbítrio e da prepotência, sempre tem alento para regenerar-se e de novo ocupar o âmago desta alma nossa, sofrida e sensível.
Aqui estamos nós em torno da mesa e das palavras, apressados em renovar a fidalguia dos gestos e o prazer das idéias. Enaltecidos por celebrar um mundo que pretendemos gentil e denso, capaz de assegurar-nos, no entanto, e a cada amanhecer, que, contrário a tantas evidências, não fazemos parte de uma espécie prestes a extinguir-se. E que, sob o amparo dessa confiança, orgulhamo-nos de integrar a uma raça que, a cada ano, como agora, dá seguidas provas de resistir, de acumular os traços essenciais de uma cultura em torno da qual gravitamos irremediavelmente apaixonados.
Revestidos, pois, dessa convicção, recusamos aquelas mutações, ameaças que lesam, empobrecem as reservas de uma civilização que veio o homem acumulando desde os primórdios de sua misteriosa gênese. Sob o impulso, então, desta noite tão aprazível, bem podemos reforçar nossa crença na arte, em que, por sinal, nossas histórias estão narradas. Proclamar nossa irrestrita adesão à liberdade de pensar, de falar, de sonhar. Nossa solidariedade aos que padecem injustiças, perseguições, vítimas diárias de tantas iniqüidades sociais. Acentuar nossa devoção às palavras, que há muito amamos. À língua que, nascida dos estábulos, das feiras populares, das instâncias humanas, não cessa de fazer sangrar o coração do homem. Ao verbo que, por força de sua origem espúria, dispensa com brio atestados ideológicos, simetrias estéticas, para melhor circular entre as criaturas. Todas as palavras, enfim, que trazem consigo, como nobre insígnia, as benfazejas marcas que deitam raízes na própria condição humana.
Enaltece-nos saber, hoje, e no passado, que o Pen Clube dispensa seus membros de ostentar emblemas sociais e galhardias econômicas. Requer ele de nós, e apenas, que nos ocupemos da arte de inventar, de fabular, das rubricas soltas e à deriva da cultura, da reflexão intelectual. Exige que consideremos a casa do outro como extensão da nossa própria morada. E que a palavra do vizinho, metáfora aguda, seja respeitada como se fora o arfar advindo do nosso mesmo verbo.
Senhor Presidente, senhoras e senhores: grata pela generosa homenagem que ora me prestam por motivo de minha eleição para a Presidência da Academia Brasileira de Letras. Sob a proteção deste grato encontro é um prazer para mim exaltar a presença dos membros do Pen Clube do Brasil, assim como as excelências dos frutos da terra que ora compartimos. Este sal, este açúcar, este vinho que animam nossos devaneios e fortalecem o convívio. Permitam-me que, ao lhes desejar um feliz 1997, renove, junto ao espírito de cada conviva, minha crença nesta humanidade onde cabe inteiro, indivisível. o esperançoso coração humano. Muito obrigada.