Sr. Arnaldo Niskier,
entrais nesta Casa, ocupando a Cadeira 18, na vaga do nosso tão querido e saudoso Peregrino Júnior.
Cadeira número Dezoito: Como o sabeis, Sr. Arnaldo Niskier, o número 18 tem um sentido muito especial na tradição hebraica. O dezoito representa a palavra Chai, cujo significado é vida. Vida, senhor acadêmico, símbolo e desafio, fonte de esperança e força, mormente para Vós que entrais aqui assim jovem – tão jovem que pareceis um rapaz à nossa senioridade. Vida, palavra que, para vós, se traduziu sempre em estudo, trabalho, excelência.
Filho de imigrantes, proclamais que o sois. Filho de judeus poloneses, fugidos à maré montante do nazismo que, já no início da década de trinta, assolava a Europa Central.
No Brasil, escolheram os vossos pais, como morada, um modesto subúrbio carioca – o bairro de Pilares. Lá onde nascestes.
E a circunstância de nascerdes filho desse tipo especial de imigrantes, tornados apátridas por ação de inominável tirania, como que vos fez mais brasileiro do que os outros brasileiros de raízes antigas, mais brasileiro do que os que vivem tranquilos na certeza dos seus direitos e privilégios de cidadania, sem jamais conhecerem o medo e o risco de perdê-los.
Já vós, consciente da perda e dos riscos sofridos por vossos pais, como que vos dissestes a vós próprio, desde criança:
“Esta terra é minha, e eu sou dela, pátria e abrigo, a quem terei que honrar e servir por dever espontâneo de amor e por inalienável direito de nascimento.”
Esse rumo, esse voto de devoção, nunca o deixastes de seguir até hoje, Sr. Arnaldo Niskier.
Sabendo, pelo testemunho dos vossos pais, como as suas velhas raízes europeias foram arrancadas pelo furacão nazista, plantastes aqui as vossas raízes novas; e, assim, a dúbia, jamais plena cidadania que a vossa família perdera na Polônia, nunca vos fez falta.
Assumistes totalmente o Brasil, vossa terra do berço; assumistes o Brasil no seu todo e o Rio de Janeiro em particular: sua história, suas tradições, suas vivências.
Assumistes a vossa condição de brasileiro e carioca – sois mesmo um dos chamados “cariocas da gema” – praticando e fruindo tudo a que como carioca tínheis direito. Estudando em escola pública, batendo bola em pelada, torcendo fanaticamente pelo América (circunstância que, como vascaína, eu deploro – mas ai, ninguém pode mesmo ser perfeito!), tostando na praia, namorando no cinema, dançando nos clubes, curtindo carnaval, praticando esportes. Nesse capítulo dos esportes, brilhastes especialmente no basquete e na natação, disputando em competições e acumulando vitórias e medalhas cujo número passou de meia centena.
Estudante secundarista e universitário, tomastes sempre uma parte muito ativa, com característica dedicação juvenil, nos movimentos acadêmicos: chegastes a presidente do Diretório Acadêmico e a presidente do DCE da vossa Universidade.
Menino e rapaz pobre, essa convivência íntima com o povo da vossa cidade, essa experiência de abrir caminho com os próprios pés, essa escalada – às vezes dura – não vos deixou frustrações nem amarguras. Foi antes uma escola de bem viver, uma descoberta permanente e enriquecedora.
Adulto, por fim, já assentado na vida, constituístes, ao lado de Ruth, essa bela família brasileira cujo amor invocastes em palavras de comovente ternura nas primeiras linhas do vosso discurso.
Mesmo através de um rapidíssimo escorço biográfico, poderemos verificar que, à medida que a idade de adulto vos chegava, ia crescendo em vós uma intensa consciência dos problemas brasileiros e o correspondente interesse por resolvê-los.
Jornalista desde a adolescência, não vos bastou o uso cotidiano da Imprensa para canalizar em plenitude a vossa paixão de cidadão prestante. Procurastes ofício ainda mais exigente que o do jornal e vos entregastes de corpo e alma ao Magistério.
Nessa carreira, subistes desde o mais modesto ao mais alto escalão – de professor de Geometria a catedrático por concurso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fostes, aliás, o mais jovem professor catedrático do Brasil.
E quero crer que foi precisamente no Magistério que encontrastes o caminho predileto para os vossos talentos. Aliás, não vos bastou o limitado raio de ação alcançado pela cadeira de mestre: o trabalho na Imprensa vos ensinara que a palavra escrita vai mais longe e mais fundo do que até mesmo os mais sofisticados meios de comunicação da mídia eletrônica: e então começastes a escrever livros.
Livros onde se debatem os rumos, dificuldades e perspectivas da Educação, no Brasil. Onde se apontam as prioridades inarredáveis exigidas para o desenvolvimento do nosso sistema de ensino, em qualquer nível. Vinte e oito livros foram por vós publicados até agora, contendo análises, diretivas, programas, visando todos ao aperfeiçoamento da Educação Brasileira.
Vinte e oito livros (dois dos quais premiados por esta mesma Academia Brasileira de Letras, que hoje vos recebe como ocupante da Cadeira 18), vinte e oito livros – e tendes apenas 48 anos!
A natureza das vossas preocupações intelectuais logicamente vos abriu outros e novos caminhos, e daí o início da vossa carreira de homem público.
Foi normal, então, que as pessoas de Governo se apercebessem das vossas tão evidentes potencialidades, em matéria cultural, e cobiçassem a vossa colaboração naquela área específica.
Tínheis apenas 33 anos, quando fostes convidado pelo então Governador Negrão de Lima para ocupar a recém-criada Secretaria de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.
Desbravando área nova, sem modelo anterior a seguir, criastes o vosso próprio modelo e fixastes a doutrina de Ciência e Tecnologia da Cidade do Rio de Janeiro, identificando-a como pólo de alta sofisticação.
Entre outras realizações, criastes o Planetário da Gávea, visando a despertar o interesse dos jovens para a decifração dos enigmas do Cosmos, hoje, nesta era espacial, tema obrigatório de especulação e estudo.
Foram criações vossas, também, a Feira de Ciências, a Mostra Internacional do Filme Científico e o Prêmio Álvaro Alberto, destinado a trabalhos de pesquisa científica.
Ao iniciar-se o governo Chagas Freitas, novamente fostes convocado, desta vez para secretário de Estado de Educação e Cultura. Vossas realizações, nesse cargo, ainda estão presentes no espírito de cariocas e fluminenses.
Exemplo: a solução, que eu diria salomônica, para o grande movimento de greve dos professores do Estado, que recebestes como herança, ao assumirdes a Secretaria.
Outro exemplo: a volta do então banido ensino da Filosofia no 2.º Grau.
Outro: a reintrodução do ensino do Francês como língua moderna obrigatória.
Criastes mais de um milhar de novas salas de aula.
Criastes o Corredor de Educação Rural, com várias escolas agrícolas postas a serviço das populações do interior do velho Estado do Rio, cuja venerável tradição agrícola, matriz de opulência outrora, vem sendo tão tristemente abandonada.
Saindo do âmbito estadual, criastes a Maratona Escolar de Literatura, chamando a essa disputa intelectual os alunos de 2.° Grau de todo o País.
Notação especial merece o que realizastes como presidente da Fundação de Artes do Rio de Janeiro, a Funarj. Devolvestes ao Rio a sua condição meio esquecida de capital cultural do País, reativando, em inesquecíveis temporadas, o balé, a ópera, os concertos sinfônicos, quer na Casa que é especificamente deles – o Teatro Municipal – quer nos outros teatros e salas de concerto pertencentes à Funarj.
Homem do vosso tempo, é claro que não vos limitaríeis aos recursos tradicionais da revista e do livro, embora os viésseis utilizando com notória dedicação e competência, nas Empresas Bloch, onde começastes ainda adolescente. Assim, ingressastes na área sedutora da Comunicação Eletrônica. Sois o criador e responsável por um programa de entrevistas de altíssimo gabarito, durante o qual se discutem os problemas mais relevantes do momento nacional; e chamais a aparecer nas telas da TV Manchete, em milhões de lares brasileiros, a voz e a imagem de figuras de primeira magnitude, vindos das áreas da Cultura, da Política, das Finanças, da Tecnocracia.
Sob a vossa inteligente mediação, que sabe ir do profissionalmente cordial ao afavelmente irônico, mas tendo sempre como base de trabalho o conhecimento do assunto em pauta é o senso da boa direção no encaminhar dos debates, esses convidados tentam explicar o Brasil, reviver a memória do seu passado, estudar-lhe as vicissitudes do presente e analisar-lhe as perspectivas do futuro.
Pela vossa origem, pela tradição imemorial dos vossos antepassados, pertenceis a uma linhagem de homens e mulheres que sempre tiveram como padrão de vida a excelência.
Já que o fanatismo e o preconceito negavam aos judeus, por todo o universo da Diáspora, a vida normal dos outros homens – ou seja, o direito à posse e ao cultivo da terra, ao serviço das armas, às funções públicas, restavam-lhes, apenas, em todas as terras cristãs onde habitavam, o exercício do comércio e a dedicação ao estudo.
Aprofundando-se no estudo, alargando com arrojo os limites estreitos do mundo dos negócios, enobreceram os filhos de Israel essas atividades até então desprezadas por aquelas sociedades de rudes guerreiros, clérigos e camponeses.
Usando o melhor possível os seus talentos, tomando como padrão a excelência dentro das realizações que lhes estavam abertas, tornaram-se scholars, eruditos, sábios, filósofos, matemáticos, astrônomos, pensadores do melhor quilate. Brilharam nas artes liberais, especialmente como médicos e advogados.
Criaram as bases do comércio moderno, das modernas redes bancárias, de toda a estrutura financeira mundial.
Começada a era dos descobrimentos, lá estavam eles tomando a sua parte na aventura dos navegadores, logo peritos nas artes de marear, marcando presença e peso nos melhores centros de pilotagem do mundo de então – como, por exemplo, aquele que foi o maior de todos, a famosíssima Escola de Sagres.
Os novos horizontes, criados pelas descobertas, lhes abriam ares largos para o fôlego oprimido, terras virgens onde viver e ser livre.
Sr. Arnaldo Niskier, esta Casa, como a Casa do Pai, no Evangelho, tem muitas moradas.
Nela cabem os que cultivam todos os ramais da Cultura: os poetas, os ficcionistas, os historiadores, os filósofos, os filólogos, os jornalistas – e os professores, como vós.
Representam até mesmo os professores um tipo de certa forma onímodo, que penetra em todos os demais gêneros de atividade intelectual. Quantos, entre os quarenta da Academia, não fomos professores, em tempo parcial ou total?
Ouvi certa vez Afonso Arinos, que é poeta, jurista, memorialista, cientista social, historiador, político, indagado por uma moça repórter de como preferia ser chamado: se embaixador, ministro, senador, acadêmico – responder sem hesitação: “Prefiro que me chame professor.”
Entendia-se que o título de professor, para o Mestre Arinos, englobava – ou superava – todos os outros a que tinha direito.
Entre os acadêmicos que vos precederam na Cadeira 18, citastes, como professores também, José Veríssimo, Barão Homem de Melo, Alberto de Faria e o vosso antecessor imediato, o nosso sempre saudoso Peregrino Júnior.
Sim, professores de ofício temos tido muitos, na Academia, e eu vos poderia lembrar alguns dos mais ilustres, hoje mortos, que nestas Poltronas tiveram assento: recordaria poucos entre os muitos. Como por exemplo o grande Mestre Cândido Motta Filho, cuja vaga tive a honra de ocupar, na Cadeira 5, e mais um Carneiro Leão, um Fernando de Azevedo.
Vede, pois, Professor Arnaldo Niskier, que, vindo para cá, estais em boa companhia.
E nós, tendo-vos aqui conosco, posso vos garantir que nos sentimos também em muito boa companhia!
17/9/1984