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Discurso de posse

Tanto sonhei, que aqui estou, assomando pela primeira vez a esta tribuna, a mais ilustre do País. Meta e Meca, desafio e santuário dos homens de Letras e do espírito, todos aqui se veem compelidos a debruçar-se sobre o passado.

Cada qual olha o caminho percorrido, não tanto para aferir o problemático espaço de uma láurea, mas o fatigado tamanho de uma luta. Sinto-me como o jovem Sérgio ao ouvir o pai, à porta do Ateneu, na descrição de Raul Pompeia. “Vais encontrar o mundo... Coragem para a luta”. Permiti, senhores acadêmicos, que o novo confrade dedique esse exórdio aos anos de formação e sonho, peregrino que atinge a porta do templo e olha para trás, na comoção da própria chegada.

Nascido no Rio de Janeiro, em Pilares, filho de imigrantes judeus que ao Brasil chegaram num período em que o mundo tragicamente tomava contato com a intolerância e o ódio, conheci os surpreendentes labirintos da pobreza, da falta de perspectiva, do pão incerto, da incerta vida. Nada mais justo, pois, que, neste momento, o mais alto da minha vida, peça a vossa complacência para a saudade e a gratidão.

Na pessoa de meus pais, que da terra estranha fizeram um espaço seu, construindo um lar, formando família, transformando a dor da perda das raízes, destruídas pela violência, na esperança da conquista, na figura deles vejo o exemplo da coragem, do trabalho e do amor à vida, legado único, mas bastante, dos cinco filhos, que jamais esqueceram o preço de tão grande herança.

Garoto pobre, logo senti à minha volta o encanto e a magia do meu Rio de Janeiro. Cedo, ainda, ouvi o apelo de suas vocações maiores: o Jornalismo e o Magistério. Mal saído da adolescência, fui trabalhar em Manchete como repórter e revisor e ali conheci a figura patriarcal de Adolpho Bloch – cujo nome pronuncio com respeito e sentimento. Amando a Imprensa, o rapaz modesto nunca deixou de amar a Escola, o Ensino e chegou à conquista da cátedra, por concurso público, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ney Cidade Palmeiro, João Lyra Filho, Haroldo Lisboa da Cunha e Francisco Alcântara Gomes Filho foram mestres e amigos dessa hora importante.

Ao referir-me aos meus pais e irmãos, à minha mulher Ruth, inexcedível em amor e dedicação, a meus queridos filhos Celso, Andréia e Sandra, à minha família, a meus mestres e incentivadores, àqueles que apostaram em mim e de mim fizeram o que sou, sinto-os ainda mais perto nesta noite que vossa bondade preparou para o novo companheiro e que também lhes pertence.

Vivemos numa época em que é pouco o tempo para a reflexão capaz de permitir elaborar o novo. Cada vez mais fragmentadas, as ideias não duram senão quinze ou vinte anos. Antientrópicos por excelência, os meios de comunicação de massa diminuem-lhes a força, a circunscrição, a originalidade.

Hoje, temos a divulgação acelerada e, portanto, a tradução e a traição. O problema da imortalidade, do novo e do velho, do discípulo e do mestre, é bastante antigo. Homero não foi o criador da Ilíada ou da Odisseia, nem tampouco Ésquilo o de Prometeu. Eles apenas emprestaram ao mito a sua letra. A Eneida bebe na obra de Homero e faz de Virgílio um exemplo de assimilação da Cultura Grega pelos romanos.
   
   
O POVO DO LIVRO
   
Nesse quadro de aproximações e intercursos nos vem à lembrança a denominação de serem os judeus “o povo do livro”, o que é fruto de duas interpretações lisonjeiras: a de terem produzido o Livro, ou seja a Bíblia; e a de serem obcecados pelos livros, de um modo geral.

A tradução grega da Bíblia foi extraordinário acontecimento, quer na história judaica, quer na história espiritual do mundo greco-romano. Em torno dessa tradução, há uma vasta literatura. A lenda mais difundida é a que consta da Carta de Aristeu, datada de Alexandria, no século II a.C. De acordo com ela, o Rei Ptolomeu II Filadelfo, ao saber da existência e do grande valor dos livros sagrados judaicos, providenciou-lhes a tradução, para que figurassem na biblioteca real, onde já se encontravam as produções literárias de todos os povos.

Foi mandada uma delegação a Jerusalém, com o fim de solicitar ao sumo sacerdote a designação de uma comissão de eruditos, capazes de traduzir a Torah para o grego. O sumo sacerdote enviou a Alexandria 72 estudiosos. Alojados na Ilha de Faros, começaram o seu trabalho. Cada um dos 72 sábios fez a tradução independentemente dos demais, e todos os dias eles se reuniam para cotejar as traduções já feitas e redigir o texto final. O trabalho dessa comissão abrangeu o Pentateuco e foi executado em 72 dias. Do número de tradutores, resultou o nome Septuaginta, pelo qual é conhecida a tradução grega (Bíblia dos Setenta). Nos séculos seguintes, essa tradução representou um fator de relevo universal na fermentação ideativa que levou à crise ético-religiosa do Velho Mundo. Sem a Septuaginta, a Europa não se teria tornado cristã, pois foi ela o instrumento de combate ao mundo pagão.

Nossa civilização nasceu do “cosmo literário” representado por esses professores silenciosos cuja voz passou a ser o próprio livro.

Ele, diálogo ou forma de relacionamento, no dizer de Jorge Luis Borges, nos traz, pela letra de Gilberto Freyre (Os Começos da Literatura Israelita na América, Uri Zwerling, 1936), mais um depoimento do percurso judaico, em seu amor ao livro:
   
...a Literatura Israelita na América parece que desabrochou no Recife. Pelo menos, afirmou-se aqui. Era talvez de judeus do Recife, aquele escrito, sobre questões litúrgicas, dirigidas ao Rabi Sahbathai, de Salônica, que Kohut considera ‘o primeiro vestígio de Literatura Judia na América’. No século XVII, sob o domínio holandês, o Recife esteve cheio de talmudistas e de poetas judeus, cheio de sefaradins ilustres: Aboab da Fonseca e Rafael de Aguillar, entre outros. Jacob de Andrade Velosinho, judeu cuja fama de médico se tornou europeia, no século XVII, nasceu no Recife. Tão importante era a congregação de judeus desta cidade, que Menasse ben Israel, o grande rabino e sábio de Amsterdam, dedicou um seu trabalho a alguns membros da mesma congregação.

   
É esta comunidade israelita, hoje de cento e cinquenta mil almas, presente em nosso País, que dá efetiva e relevante contribuição ao desenvolvimento econômico e sociocultural brasileiro. Ela guarda sempre, no seu espírito, as palavras com que Agnon esperava comparecer, lá no alto, diante do Trono do Julgamento: “Eu tentei seriamente, muito seriamente, preservar da destruição a herança do Senhor.”
   
   
NARCISOS DO SÉCULO XX
   
Hoje, as palavras ecoam nas palavras, como os antigos mitos nas ideologias. Narcisos do século XX, encarando os meios de comunicação de massa como extensões nossas e, portanto, ficando sem possibilidade de reflexão, fechamo-nos e tendemos à morte. No entanto, essa propensão à narcose e à necrose é contrabalançada pelo nosso Outro. Eco, a ninfa, fecunda Narciso, injetando nele um sopro de vida. Por isso, o saber humano não morre. É a entropia positiva, atuando e equilibrando a entropia negativa da comunicação.

O cinema englobou o Romance, o Jornal e o Teatro. A TV incorporou o Cinema e provocou mudanças importantes e profundas na programação radiofônica. A Pintura foi atingida pela Fotografia e, na Literatura Brasileira da atualidade, vê-se muito do estilo da reportagem. Mas todos continuarão subsistindo e coexistindo, de uma forma ou de outra, durante um tempo maior ou menor, porque o homem será sempre capaz de, utilizando a técnica do cruzamento, obter um novo momento de verdade, obter a revelação, despertar da narcose, liberar-se do torpor.

Surge esse momento inaugural do educar, do comunicar, do civilizar – jogos de fascinação entre mestre e aprendiz, permanente tensão entre um saber adquirido no intercurso; entre uma verdade originada e uma verdade a originar-se; entre o imobilismo, o pretérito, o acúmulo e o movimento, e o presente, o fazer-se; entre vida e morte, entre Eros e Tânatos.

Mas ninguém é só mestre ou só discípulo. Todo processo educacional, de comunicação ou civilizatório, implica perda e aquisição, estrangulamento e revitalização, corrosão e construção, ainda e já.

A SUCESSÃO
   
Um dos vossos – Levi Carneiro – costumava distinguir antecessores e antepassados. Os primeiros seriam aqueles que vieram antes de nós, sem que haja entre eles e o novo acadêmico a identidade profunda, que faz do elogio um reconhecimento de parentesco, no plano do espírito. Os antepassados, para Levi Carneiro, são os espíritos afins, as almas consanguíneas, os mestres que passaram pelo caminho que vamos trilhando e que nos precederam nas surpresas e no gosto da mesma escalada.

Ao longo de quase noventa anos de tradição acadêmica, ocuparam esta Cadeira, além do Fundador José Veríssimo (1857-1916), sob a glória do Patrono João Francisco Lisboa (1812-1863), o Barão Homem de Melo (1837-1918), o folclorista e humanista Alberto Faria (1869-1925), os poetas Luís Carlos (1880-1932) e Pereira da Silva (1876-1944), além do escritor, jornalista e professor Peregrino Júnior (1911-1983).

Neles pensando, encontro, ao mesmo tempo, antecessores e antepassados. Identifico-me com vários pontos de seu pensamento, especialmente quando demonstram uma prolongada militância educativa. Verifico em todos, sempre, uma preocupação comum, o que nos torna íntimos: o futuro das novas gerações, o que, afinal, a partir do próprio número 18 da Cadeira – chai, em hebraico, vida –, é um compromisso com a perenidade.

João Francisco Lisboa foi um pioneiro na defesa da Cultura Indígena. É um dos grandes prosadores da Língua Portuguesa. Suas ideias ecoavam, por certo, em José Veríssimo, ao escolhê-lo Patrono da Cadeira. Ao ler as obras do Timon maranhense, quando estudante no Ceará e em São Paulo, e ao fazê-las adotar quando inspetor da Instrução Pública do Município Neutro, Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo – o Barão Homem de Melo – mantinha com o texto daquele escritor o convívio a que tinha direito, como um dos valores clássicos da nossa Literatura.

Deixar um legado às gerações futuras, agindo sobre seus contemporâneos, transformando-lhes os espíritos, fazendo-os atuar num sentido diverso, tirando-os da acomodação e impondo-lhes a própria marca – outra não era a intenção de João Francisco Lisboa quando escreveu:

No nosso País, vê-se de um lado a negação absoluta do direito revolucionário, proclamando-se de outro a sua extensão e aplicação de um modo não menos exagerado. Os doutores da seita de conservação e centralização, no excesso de seu zelo, vão até supor, como os doutores Sangrado e Tirte-Fora, que se o doente lhes morre, ou pelo menos definha a olhos vistos, é só à míngua de copiosas sangrias ou por não guardar uma rigorosa dieta de todas as iguarias liberais. Os da escola liberal, por seu turno, atacam uns a instituição da realeza, e outros a forma falsa e complicada no nosso governo misto, queixando-se todos da decadência, corrupção e falácia, e clamando por uma mudança ou reforma mais ou menos radical. Estes reformadores divergem não só no alcance das suas reformas, senão ainda nos meios de realizá-las, pelas armas, ou pela propaganda; – pelos meios prontos e violentos, ou pelos lentos e pacíficos. Exageração, abuso e falsa doutrina por toda a parte!
   
Não posso deixar de referir-me ao seu ensaio sobre A Vida do Padre Antônio Vieira, enriquecido por uma prosa incomparável, especialmente quando descreve o jesuíta diante da sentença com que a Inquisição tentava condená-lo à reclusão e ao silêncio. De Vieira, ressalta a defesa dos direitos humanos em nossa sociedade.

Hoje, ao retomar do Patrono as palavras, dispo-as do tom polêmico e reflito sobre elas, tornando-o presente na oportunidade de minha travessia.
   
   
JOSÉ VERÍSSIMO
   
Nesta chamada, em que a identidade e também a diferença desenham o pensamento do homem brasileiro, gravam o contorno do nosso caminho, busco José Veríssimo, primeiro ocupante da Cadeira. E encontro o jornalista militante que não amou a vida de jornal, o crítico severo, o Severíssimo, no trocadilho de tantos, que não poupou o sempre louvado Coelho Neto e o seu Rei Negro; que, elegendo como ex-libris a inscrição Pelo Nome, procurou segui-la, não deixando, mesmo em razão da amizade, sair-lhe fácil o elogio.

Vejo-lhe a preocupação com a Literatura Brasileira, já então, segundo ele, “a expressão de um pensamento e um sentimento que não se confundem mais com o Português e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa”.

Lembro-lhe a participação corajosa no Congresso Literário Internacional, realizado em Lisboa, difundindo o que era nosso e recebendo do governo português a Ordem de Cristo.

Rememoro-lhe o trabalho sobre o Homem de Marajó, apresentado no X Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica, em Paris.

Acho o prosador atento, objetivo na sua prática realista, ao fazer o registro das cenas da vida amazônica. Mas me identifico, sobretudo, com o homem interessado nos problemas da Educação Brasileira, que criticava a sobrecarga dos nossos programas escolares; que se batia por um ensino normal melhor e mais adequado; que lutava contra o abuso de uma “erudição gramatical impertinente e, ao cabo, inútil” e valorizava a aquisição linguística por intermédio da leitura, a introjeção dos padrões de nossa Língua, através do falar, do ouvir, do ler e do escrever; que se batia por um ensino prático das Ciências, numa visível defesa do verdadeiro método científico.

José Veríssimo trabalhou no Pedagogium, criado pelo governo federal em 1890. Sua lição inaugural, que recolho da Revista Brasileira de 1.º de junho de 1895, assim termina:
   
Todos os países cultos dão à Pedagogia, no seu ensino oficial, ou particular, um digno lugar. Nos Estados Unidos como na Alemanha, ela não é só ensinada nos estabelecimentos destinados especialmente ao preparo profissional dos mestres, mas professada nas Universidades. A França, que a tinha já nas suas escolas normais, criou há poucos anos cadeiras de Pedagogia nas suas Faculdades de Letras. E, se países tais – e de todos os países de alta cultura se poderia dizer a mesma coisa – possuem uma longa tradição pedagógica que tem como que derramada em seu ambiente a preocupação da Educação e de seus métodos, julgam útil e proveitoso sistematizar nas escolas, nas Faculdades e nas Universidades a arte da Educação, parece-me que errados andamos tratando-a nós, que nada daquilo temos, com a desconsideração com que a tratamos.
    
O grande crítico literário queria com isso significar o seu apreço à prioridade da Educação, como se estivesse dando razão a Emerson. Quando lhe perguntaram a partir de que momento se deveria cuidar da educação de uma criança, o pensador americano respondeu: “Cem anos antes de seu nascimento!”

HOMEM DE MELO
   
Da mesma preocupação com a Escola, participou o segundo ocupante desta Cadeira, Homem de Melo, professor que foi de História Antiga e Idade Média do Colégio Pedro II e de História Universal e Geografia no Colégio Militar. Não se limitando a ensinar, a repetir o que diziam os compêndios, pesquisou e escreveu Estudos Históricos BrasileirosA Constituinte perante a HistóriaExcursões Geográficas e outras tantas obras, as quais bem demonstram o espírito científico de quem é apontado como um dos quatro grandes beneméritos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Se suas lições, hoje, não encontram eco, porque evoluiu a pesquisa histórica, porque outras fontes foram encontradas, porque são diversos o ponto de vista e o momento, o texto de Homem de Melo é extrato de uma época e seus mapas jamais deixarão de ser um marco na Cartografia Brasileira.
 
Partidário de uma Educação permanente, focaliza o homem em sua totalidade, imerso em sua problemática existencial, onde os aspectos biológicos e sociais são importantes, da mesma forma que são relevantes aqueles que dizem respeito à história de vida de cada um, que se realiza independentemente de alguém estar ou não na escola. Não posso deixar de considerar como parte de uma verdade o conceito tradicional de Educação de Homem de Melo naquele que seria o seu discurso de posse nesta Academia:
   
A nós, professores, cabe o desempenho de uma das mais altas funções sociais. Somos nós, os estudiosos sedentos de saber, que penetramos além nos séculos, perscrutando os segredos da Ciência: recolhemos o patrimônio da civilização universal e o transmitimos, como um depósito sagrado, às novas gerações, que preparamos e educamos com a nossa palavra.
    
    
ALBERTO FARIA
   
O discurso do presente não pode ignorar o do passado. É como se tece o futuro. Por isso, de uma angulação diversa, sem buscar a ótica do dominador, mas procurando os saberes populares, Alberto Faria, sucessor de Homem de Melo na Cadeira 18, também pesquisou a tradição. O interior de São Paulo, onde aos quatorze anos já fundava um jornal, A Alvorada, cultivou-lhe o amor pelas coisas simples, pelo saber do povo, pelo nosso folclore, que, mais tarde, iria registrar nas suas Aérides, nas Acendalhas e na sua permanente colaboração em almanaques. Como José Veríssimo, teve Alberto Faria amor pelas coisas brasileiras e estudou os nossos escritores. Entre eles, o Patrono da sua Cadeira na Academia Paulista de Letras, Luís Gama, o “Orfeu da Carapinha”, numa valorização não só do negro, como principalmente da Sátira, estilo por vezes marginalizado pela Crítica. No projeto demolidor dos versos de Luís Gama, lamentou Alberto Faria a influência de Xavier Novaes, que, no seu entender, vinha enfraquecê-los.

DOIS POETAS
   
Se, na ânsia da imortalidade, passaram por esta Cadeira homens preocupados com a Política, o Ensino, a Crítica Literária, a busca de nossas raízes, jornalistas todos, também teve ela dois poetas: Luís Carlos e Pereira da Silva. O primeiro, racionalista, mestre nos versos decassílabos e no alexandrino e, dentro desse rigor, pintando a paz sertaneja, os horizontes de Minas, delineando os fatos domésticos, refletindo sobre a existência humana. O segundo, na linguagem de alusão e mistério do Simbolismo, criando uma atmosfera de transcendência. Numa prova do espírito eclético e democrático por que sempre se pautou esta Academia, a Cadeira 18 reuniu Luís Carlos, branco, descendente da Condessa de Belmonte, camareira-mor do Paço Imperial, neto e filho de doutores, e Antônio Joaquim Pereira da Silva, filho de carpinteiro, coroinha na Capela da Conceição, estudante do Liceu de Artes e Ofícios e da Escola Militar, no seu destino de criança pobre, para quem a igreja, a escola pública, o ensino profissionalizante e o Exército eram os únicos espaços educacionais possíveis. Luís Carlos, no seu descritivismo neoparnasiano, e Pereira da Silva, na sugestão de seus versos simbolistas, pesquisaram a alma humana e se imortalizaram na medida em que, hoje, lendo seus versos, neles percebemos uma inquietação que também é nossa.

E, não sendo poeta, me encontro nesses dois antecessores, pelo que de universal e atemporal traduzem. Mas neles me acho também pelo amor à técnica que um demonstrou e pelo início de vida que o outro viveu, pois passei por vicissitudes semelhantes.

É verdade que essas coincidências não tornam ninguém imortal, mas fazem o companheirismo, o cum panis, o provar do mesmo pão, que assemelha os homens no itinerário em que a morte física é a única certeza.
   

PEREGRINO JÚNIOR
   
Esse companheirismo, também como educador, encontro-o em Peregrino Júnior, filho de professor e ele mesmo apaixonado professor universitário. Suas palavras sobre o papel da Universidade, ditas em 1940, quando andava eu pelo Jardim de Infância do Instituto de Educação, revelam pelo Magistério um sentimento do qual sempre partilhei:
   
A situação do Ensino não permite a timidez hesitante do conformismo, nem as atitudes estéreis de negação ou de resistência passiva. Todos têm o dever de cooperar para que o ensino universitário entre nós melhore progressivamente nos seus quilates culturais, quer dizer, no sentido perpendicular da profundidade e da altura. Para isto, poderemos contribuir decisivamente todos nós, professores, se nos lembrarmos de que o professor moderno deve exercer, no organismo universitário, aquela prodigiosa função hormonal de que nos falava Marañon. É exatamente esta a função mais importante do professor: a função estimuladora, que leva o espírito do estudante os excitantes específicos do entusiasmo, da fé, da confiança e do interesse científico. Sem esses hormônios espirituais, o ensino universitário será vão e precário: poderá preparar autômatos o máquinas especializadas; não formará, jamais, médicos, pesquisadores, nem homens para o trabalho da Cultura. Além de tudo, o problema da disciplina nada perde nessa orientação: ao contrário, a disciplina que nasce do respeito mútuo e da mútua estima é uma disciplina mais humana e mais sólida, porque emana de um ato gratuito de aceitação e de cooperação. É esta a disciplina voluntária que não humilha nem compromete a dignidade humana, porque deriva simplesmente da hierarquia do trabalho. É a ela que eu desejaria que todos na Universidade se subordinassem, no interesse da nossa harmonia moral e do entendimento pedagógico dos nossos cursos.
   
Esse texto, além do pensamento de Peregrino Júnior sobre Educação, mostra sua dimensão humana, que se reflete no contador de histórias, em que sobressaem o espírito crítico e o bom humor, de que flui uma certa ternura.

Foi com esse estilo que ele se tornou diretor da Escola de Educação Física da Universidade do Brasil (hoje UFRJ).

Para Rachel de Queiroz, sua grande amiga desde 1939, quando veio morar no Rio, Peregrino, diferente do paroara nordestino, trouxe outra espécie de ouro da Amazônia: a descoberta da beleza da terra, do mistério do grande rio, que até então só se conhecia literariamente como “inferno verde”.

Acompanhados desse espírito, penetramos os igarapés, banhamo-nos de verde, colocamo-nos sob o sol coado e ouvimos os ruídos da mata e do rio. Contando do homem amazônico e de seus costumes, Peregrino Júnior escreveu Pussanga (1929), Matupá (1933), Histórias da Amazônia (1936) e A Mata Submersa (1960), este último o que o próprio autor chamou de dívida de gratidão para com a terra que o acolheu na adolescência.

Na realidade, para o homem-menino-peregrino, a Amazônia foi o ingresso na Dor, aquela mesma Dor que opera a cisão e inscreve o homem na Cultura.

Embora, no conto “Buenolândia”, de A Mata Submersa, Peregrino Júnior diga que: “à luz morna da noite tropical, minha infância voltou, sorriu-me, com um perdão unânime, para todos os meus erros e debilidades, e envolveu-me num abraço manso, sem palavras...”, e que era preciso conhecer a Amazônia, “estuprá-la, dominá-la violentamente para poder possuí-la com amor”, também declarou ter sido nela que “o menino mofino, rapaz frouxo, homem sem disposição para a luta” reforçou “o caráter e endureceu a alma”. A Amazônia foi a sua aventura do mundo – a aventura da liberdade e da solidão.

Peregrino, como escritor, no plano das Letras puras, teve esta direção singular. Numa fase em que ainda predominava o esplendor verbal de Rui Barbosa e de Coelho Neto, vai ele buscar em Machado de Assis a afinidade natural do seu espírito. Escreve com sobriedade, tem o gosto da forma simples e é direto e objetivo como compete a um genuíno homem de jornal.

É ele, no início da sua vida literária, o escritor que sabe o que pretende. Adota o estilo que se ajusta ao seu temperamento e, nesse estilo, além de escrever os seus artigos, as suas reportagens e os seus comentários da vida social, produz contos admiráveis.

Euclides da Cunha e Alberto Rangel, seguidos de perto por um mestre esquecido, Raimundo de Morais, ajustaram o estilo literário à riqueza amazônica. O estilo opulento, derramado, por vezes torcido na sua expressão procurada, como que simétrico àquela região que Euclides definiu como a última página do Gênesis, ainda por escrever. Muitos mestres que vieram depois, como o citado Raimundo de Morais, autor de vasta bibliografia amazônica, moldaram-se pelo metro literário de Euclides. Citarei ainda um exemplo, mais próximo de nós: Alfredo Ladislau. E também o saudoso Osvaldo Orico, autor do Vocabulário de Crendices Amazônicas.

Convém não esquecer que a Literatura da Região Amazônica teria um mestre de outra linha, na prosa de José Veríssimo, notadamente nas Cenas da Vida Amazônica. A sobriedade estilística daquele que seria o grande crítico da obra machadiana, reconhecendo-lhe a preeminência no quadro geral da Cultura Brasileira, faria também seus discípulos, criando uma outra linha de escritores da região. Entre eles, Peregrino Júnior.

Ao transferir-se para o Rio de Janeiro e aqui continuar seus estudos de Medicina, Peregrino irá ser, na Santa Casa de Misericórdia, um dos grandes discípulos do professor Antônio Austregésilo, como o nosso Deolindo Couto, outro grande mestre, ao mesmo tempo que desdobra a sua atividade literária nestas duas direções: escreve contos e crônicas, além de reportagens e artigos de jornal. O cronista social retoma aqui a sua pena de comentarista malicioso e atento em cenário maior.

Em 1922, com o Centenário da Independência, o Brasil como que se debruça sobre si mesmo, na revisão do caminho percorrido, por um lado, e na prospecção do caminho que irá percorrer, por outro lado. Surge o Modernismo Literário, com repercussões imediatas na Academia. Daqui sairá o líder do movimento, na pessoa de Graça Aranha, e seu grande opositor, na palavra de Coelho Neto.

E é nessa oportunidade que Peregrino Júnior se faz o grande repórter do Modernismo. Não se limita a acompanhar a mudança de ordem cultural e social. Registra essa mudança. Objetiva e corretamente. E de tal modo que não se poderá recompor, hoje, a fase beligerante do Modernismo sem aludir ao que Peregrino Júnior recolheu nas suas primorosas reportagens.

A rigor, ele soubera ser modernista antes do Modernismo. Mas resguardando a sua independência pessoal. Não participou da liderança da Revolução, mas soube ser o seu cronista – fino, polido, imparcial.

Agora, perguntareis, com saudade natural de vosso admirável companheiro:

“E o Acadêmico Peregrino Júnior?”

O destino dos modernistas foi chegar à Academia. E ela os acolheu na hora própria. Aqui chegaram, entre outros, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia. Peregrino veio no momento exato – para entoar o louvor do poeta Pereira da Silva, acolhido por Manuel Bandeira.

O Rio Grande do Norte é que ficou nele como a terra idílica, a infância, a idade do ouro. Dele extraiu as recordações mais poéticas: Natal, cidade lírica e linda na sua humilde paisagem provinciana é meu passeio ao mundo mágico da infância... E os banhos alegres e livres no sítio de meu avô na Rua do Morcego, onde cada cajueiro tinha um nome e cada coqueiro um dono...

No espaço da saudade, a terra natal não apresenta defeitos. Já a Amazônia foi para Peregrino Júnior, como disse Manuel Bandeira, “um caso clínico”. Ele não a vê com deslumbramento, mas com observação. Com os mesmos olhos, viu o Rio de Janeiro e, cronista social, registrou-lhe o movimento em Vida Fútil: o recesso dos salões literários, o surgimento do arranha-céu, a extinção da sala de visitas.

No entanto, a Crônica Social, para Peregrino Júnior, não foi mera obra do acaso. Seu estilo tinha algo de diferente – uma certa malícia corroendo a aura que não pudesse envolver uma domingueira, uma festa do set ou um salão literário. Era o olhar do homem nordestino, cauteloso e crítico, que o fazia ter saídas como esta, contada por Josué Montello no seu Diário da Manhã:
   
Corria em Belém a notícia de que o cronista social Peregrino Júnior, tendo caído do cavalo, havia fraturado o braço. Osvaldo Orico, seu velho amigo, foi visitá-lo no hotel em que então morava Peregrino e o encontrou, realmente, com o braço engessado, na tipoia. Não conteve a pergunta:

“Peregrino, como foi que você caiu do cavalo, se eu nunca soube que você praticava equitação?”

E Peregrino, depois de passar a chave na porta:

“Osvaldo, eu não caí do cavalo, caí da rede. Mas não ficava bem a um cronista social cair da rede. Não diga isso a ninguém. Fica entre nós.”
    
Afinal, acrescento eu, a rede era a montaria de Peregrino. Nela, ele se punha a sós consigo próprio, em viagens que só a memória e a fantasia podem empreender.

Espectador de uma sociedade que, segundo ele próprio, vivia com o coração e o pensamento em Paris, cujas “moças aprendiam História do Brasil e doutrina cristã, em Francês, no Sion, e a cujos homens as cocotes da Glória e do Catete ensinavam, na sua doce missão, não só a arte de amar, mas também a de beber e de comer, e ainda o gosto de falar Francês”, frequentou os salões literários onde o Parnasianismo ainda tinha vez.

Nele ecoavam, por certo, e conforme ele próprio afirmou, os autores lidos no Pará quando do seu contato com os mestres franceses. Verlaine, Mallarmé, Rimbaud se imortalizavam na medida em que sua linha de pensamento encontrava continuidade.

Desse diálogo entre os Peregrinos de dois tempos, surgiram ainda as Recordações de um Cronista Mundano Aposentado, que ele publicou no Correio da Manhã. O “rapaz de jornal” iluminava o ensaísta, como outra dimensão daquele espírito que mostrava afinidade com a Ciência, com o Magistério, com a Literatura.

Peregrino registrou e registrou-se, imortalizou e imortalizou-se. Lendo-se o seu mosaico, é possível levantar as linhas de um homem, de um tempo, de um pensamento.

Hoje, nesta tribuna que homens como Peregrino Júnior, Pereira da Silva, Luís Carlos, Alberto Faria, Homem de Melo e José Veríssimo honraram, sou compelido a procurar também os traços do meu percurso.
   

A FORÇA DA EDUCAÇÃO
   
Eles se harmonizam com a força da Educação e de todo o seu incomensurável elenco de virtualidades. Em nosso planeta finito, a imaginação humana é infinita. O avanço da Ciência e da Tecnologia coloca em xeque a posição do homem diante do mundo moderno. Sempre houve um componente técnico na natureza humana, da mesma forma que sempre coexistiram o instrumento e a linguagem. Se fosse necessário estabelecer uma ordem de precedência, diríamos que o Humanismo, no que ele representa de espírito perquiridor, de busca do ideal da realização humana, precede a Técnica, pois a ferramenta procede da palavra, do pensamento, da criação.

O que se busca é uma nova síntese que supere os antagonismos entre humanismo e civilização tecnológica. Nem o Humanismo é um fim em si mesmo, contemplativo e estático, nem a civilização tecnológica deve subjugar o homem, com suas ofertas desmedidas e, às vezes, desnecessárias. Pois, se não houver o equilíbrio, pode-se chegar ao que Claude Lévi-Strauss afirmou sobre as civilizações tropicais: “elas correm o risco de passar do estágio de carência para uma grande depressão, sem conhecer a opulência.”

Queremos chegar ao paraíso preconizado por Dieter Stolze no seu admirável Igual aos Deuses:
   
Ainda no fim deste século, poderemos conhecer a vida sem trabalho, um paraíso criado pela Ciência e pela Tecnologia, em fartura dourada, a Terra, com recursos para alimentar até 50 bilhões de pessoas, promoverá a recriação da vida vegetal e animal, a saúde eterna, e o homem conquistará o Universo em foguetes de fótons, indo a outros sistemas planetários.
   
Repetindo o Gênesis, o homem será como os deuses, conhecendo o bem e o mal. Este será o grande momento da revivescência do Humanismo na sua visão integral. E poderemos fazer como o salmista, no Antigo Testamento, dirigindo-se a Deus: “Nas tuas mãos está a minha sorte.”

Tudo dependerá da forma como se conduza a Educação. Segundo a UNESCO, ela deve preparar o indivíduo para adaptar-se à mudança e participar do desconhecido, para aprender a aprender, de forma que se torne apto a adquirir conhecimentos novos no curso da vida; aprender a pensar de forma livre e crítica; aprender a amar o mundo e torná-lo mais humano; aprender a expandir a sua personalidade através do trabalho criador e do lazer satisfeito. São os pontos essenciais de uma Educação verdadeiramente democrática e os compromissos de quem, como educador, deseja o melhor para o seu País.   

Senhores acadêmicos,
   
nesta longa sucessão de feitos que formam a tradição e o prestígio da Cadeira que agora venho assumir, como seu sétimo ocupante, uma grave lição é praticamente extraída dos numerosos exemplos que acabei de lembrar. Esta é uma Cadeira do Ensino, da Educação, da Literatura. Exige-se do novo acadêmico uma sintonia espiritual e moral com os seus antecessores, com aqueles que, nos dados do destino, vieram a ocupar a mesma Poltrona. Acredito que, ao postular meu ingresso nesta Casa e ao merecer a vossa consagradora aprovação, ficou marcado de parte a parte um compromisso maior.

O novo acadêmico aqui não procurou um oásis para descansar sua discutível glória, muito menos aqui se abrigou para adquirir um respeitável pretexto para depor amas e usufruir o ócio. Pela idade, pelo temperamento, pelos laços afetivos com o meu próprio passado, sou um homem que ama o trabalho, que nele encontra a compensação de todas as incompreensões humanas.

Não considero esta chegada à Academia o término da minha missão humana intelectual. Pelo contrário: é antes uma posição de primeira linha que me compromete, que me obriga a lutar ainda mais pelas causas que fazem parte do meu ideário e que, hoje, se harmonizam e se somam ao ideário da Academia Brasileira de Letras. Esta mesma Academia que aprendi a admirar através das incontáveis conversas, ao longo de mais de 20 anos, com o meu inesquecível companheiro de Manchete, escritor R. Magalhães Jr., a quem presto agora minha comovida homenagem.

Como homem de Comunicação e profissional do Ensino e da Educação, faço neste instante um pacto de trabalho com os senhores acadêmicos e com a comunidade intelectual do Brasil: não pleiteei uma glória estanque, mas um roteiro de luta. Por força de sua alta representatividade, a Academia Brasileira de Letras tem de ser, com os recursos científicos e tecnológicos de que hoje dispõe a humanidade, a memória viva da Cultura Nacional. Ela, que já nos deu o Dicionário e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, maratona que por si só constitui um galardão, certamente irá além, conduzida pela visão e a inesgotável capacidade de Austregésilo de Athayde, que sempre teve a noção perfeita do fato acadêmico.

Ao chegar, sinto muito mais do que glória e láurea – labor, missão e compromisso. Deus, que me trouxe até aqui, sabendo que continuo fiel à minha simplicidade e às minhas origens, há de continuar a iluminar-me os passos. É com amor que espero servir à Academia, correspondendo à vossa generosidade.

Para concluir, lembro estas palavras de Alcântara Machado: “Só em minha terra, de minha terra, para minha terra, tenho vivido: e, incapaz de servi-la quanto devo, prezo-me e amá-la quanto posso.”
   
Muito obrigado

17/9/1984