Volvidos quarenta e um anos, meu caro João de Scantimburgo, eis-nos, de novo, à porta de uma grande Casa de Cultura. Mas que diferença espantosa! Entrais, agora, para ser armado cavaleiro das Letras Nacionais, recebendo a justo título colar e espada, o que muito se harmoniza com vosso feitio de monarquista convicto, passando a pertencer ao mais alto cenáculo da inteligência brasileira.
No fim da década dos quarenta, ao contrário da serena visão que tendes hoje do passado, o que surgiu à nossa frente era o futuro incerto de três dezenas de jovens amantes de Platão e de Aristóteles, os quais, atendendo a meu apelo, se dispuseram a travar árduo combate para assegurar ao Brasil o lugar que lhe competia no diálogo das ideias universais.
Quanto sorriso maldoso, quantas demonstrações de comiseração tivemos de afrontar, alvejados com a alcunha de “filosofantes”, que, com a confiança irônica própria da juventude, achamos melhor recebê-la para dignificá-la. E tornamo-nos os filosofantes de um Brasil irresignado com o melancólico e tradicional papel de admiradores incondicionais ou de simples comentaristas de textos concebidos alhures.
Pode-se dizer que, até então, a Filosofia no Brasil havia sido mais obra de autodidatas solitários, desde o Padre Feijó com seu rústico Cadernos de Filosofia até o espiritualismo romântico de Gonçalves de Magalhães, desde o bravio Tobias Barreto, depois catalogado na Escola do Recife, até o ensimesmado Farias Brito. Faltava-nos um diálogo brotado na imanência de nosso próprio viver histórico, sem o qual as nações não alcançam maturidade.
O que queríamos era uma instituição na qual os pensadores nacionais pudessem se realizar, cada um segundo seus pendores pessoais, mas unidos todos pelo mesmo ideal de correr o risco de não sermos simples destinatários passivos da última verdade trazida da Europa pelo último navio.
Sem rompermos amarras com a tradição filosófica ocidental – o que teria sido estulta petulância –, o que almejávamos era demonstrar, como procurei fundamentar em vários escritos, que até mesmo no ato de sermos influenciados havíamos revelado algo da alma nacional, em virtude da prioridade conferida a estes e não àqueles outros temas universais, em função de nossas circunstâncias. Quereis um exemplo? Muito se fala da influência dominante do Positivismo no Brasil, mas vai nisso um grande erro. E que há o grave equívoco de confundi-lo com a Filosofia Científico-Positiva, que, esta sim, dominou a nossa elite pensante, desde o último quartel do século passado até a Primeira Grande Guerra, culminando numa cosmovisão ético-evolucionista baseada em um conjunto de ideias do mesmo Comte, em sua primeira fase, de Haeckel, de Stuart Mill, de Spencer e tantos outros, com aplausos de homens de letras como Renan, Anatole e Taine. Ora, num País marcado pelo dogmatismo da escolástica conimbricence e que não vivera os três momentos da dúvida caracterizadora do espírito moderno – a dúvida metódica de Descartes, a alada de Voltaire e a crítica de Kant –, a Filosofia Científico-Positiva exerceu um papel bem diverso do desempenhado na Europa, constituindo, a seu modo, a nossa necessária e benéfica experiência crítica. Por ser, porém, parcial e incipiente, iria provocar natural reação, cujo fim foi superar a autossuficiência cientifista, abrindo campo a uma visão humanista da Cultura.
Não creio sejam extemporâneas tais divagações filosóficas numa Academia que contou, entre seus mais ilustres membros, pensadores polêmicos e aguerridos como Sílvio Romero e Graça Aranha, assim como inteligências serenas, mas não menos convictas, como as de Clóvis Beviláqua, Ivan Lins e Alceu Amoroso Lima. Nem se pode esquecer a Filosofia que lateja no âmago dos escritores do bruxo de Cosme Velho, sempre presente em qualquer de nossas atividades espirituais. E, aqui, abro um parêntese para lembrar que, hoje em dia, outro bruxo de Cosme Velho também ama a Filosofia...
Deixemos, todavia, tais cogitações para as reuniões periódicas do Instituto Brasileiro de Filosofia, que corajosamente ajudastes a fundar e onde exerceis as funções de secretário da Revista Brasileira de Filosofia, cujos 165 fascículos trimestrais, reunindo colaboração de pensadores de todas as tendências, constitui, fora de dúvida, o mais precioso acervo do pensamento nacional.
O que me move a tais lembranças é o propósito de realçar um dos aspectos mais simpáticos de vossa personalidade, que é o destemor com que sabeis defender ideias novas, afrontando todos os obstáculos, e, em campo oposto, trabalhar por ideias antigas se as julgardes ainda vivas no presente, como seria a que denominais de “democracia coroada”.
A rigor, não sei se, como consequência da idade, de uns tempos para cá já não sou capaz de distinguir entre o novo e o velho, ao verificar a atualidade de conflitos sangrentos por motivos de religião, de regionalismo ou de diferenças raciais, que julgávamos definitivamente superados, enquanto se consideram anacrônicos valores como os do patriotismo e do pundonor público e privado.
A propósito de patriotismo, jamais tivestes receio de proclamá-lo, cultivando-o mesmo com certo panache, com certo viés barroco (e ninguém mais do que eu admira o Barroco! que exorna vossas atitudes. Assim se deu quando se tornou obrigatório o estudo de Moral e Civismo em todos os graus de nosso Ensino, e dedicastes atenção especial a uma de vossas obras melhores, esse rico e minucioso Tratado Geral do Brasil, graças ao qual demonstrastes que é através dos valiosos ensinamentos de nossa História e do amor a nossos bens culturais que podemos formar jovens conscientes de seus direitos e deveres perante a Nação e não mediante uma fria cartilha com máximas de bom comportamento. Houve, nesse episódio, uma demonstração eloquente de quanto amais resolver os problemas da ação à luz dos conhecimentos teóricos.
A problemática da ação, prezado João de Scantimburgo, representa, a meu ver, o cerne de vosso ser pessoal, o que se manifesta em vossa atividade como jornalista e comunicador, por sinal que ocupando sempre postos de direção, à testa do Diário de São Paulo, do Correio Paulistano, doDigesto Econômico, da Rádio Bandeirante ou da Televisão Excelsior –, bem como em vossos estudos de História e de Filosofia.
Nenhuma profissão mais do que a de jornalista, máxime se empenhado na observação da vida política, exige tão viva correlação entre a teoria e a praxe, pois os acontecimentos cotidianos, no plano do governo ou do parlamento, em sua fuga contraditória e incessante, somente adquirem verdadeiro significado quando o crítico sabe penetrar em seu sentido ideal, isto é, na ideia que bem ou mal inspira os atos políticos. Quem deu exemplo incomparável dessa missão teórico-prática foi o Patrono desta Casa, o nunca assaz lembrado Machado de Assis das páginas aliciantes de O Velho Senado, onde o evanescente ganha a força da perenidade criadora.
Foi o amor à ação que vos atraiu para o gênero biográfico, quer ao retratar de corpo inteiro a figura realizadora do empresário José Ermírio de Moraes, quer ao procurar alterar a imagem de Camões, apresentado tradicionalmente como platônico, quando o considerais um fiel seguidor de Santo Tomás. Perdoai-me a divergência, pois para mim o excelso poeta não é nem tomista nem platônico, mas sim um homem do Renascimento, mas de um Renascimento à maneira lusíada, compondo em unidade inscindível empenhos práticos e exigências ideais, valores da Mitologia e do Cristianismo, graças à força transfiguradora da Arte.
Por vosso amor à práxis, não é de estranhar que, ao estudar a História do Império no Brasil, vossa atenção tenha sido atraída para o exame do Poder Moderador, em livro que tivestes a gentileza de dedicar-me. É, penso eu, a nossa melhor análise sobre a repercussão das ideias do constitucionalista liberal franco-suíço, Benjamin Constant, nos domínios do constitucionalismo pátrio, demonstrando que, nas circunstâncias de risco que cercavam a existência de uma Nação recém-libertada e ameaçada de ruinosa dispersão – como a que perdera a América hispânica – a concentração de poderes nas mãos da autoridade monárquica, livre do tumulto das paixões partidárias, era o único modo de manter em equilíbrio tanto o arquipélago das províncias como os três clássicos Poderes do Estado. Soubestes, em suma, pôr em realce a ressonância de uma teoria orleanista, sem repercussão em suas terras de origem, mas paradoxalmente eficaz neste lado do Atlântico, o que confirma a tão conhecida lei sobre a heterogeneidade dos fins na tela da História.
Essa vossa atração pela práxis teve um resultado curioso, enfileirando-vos, muito cedo, entre os raros discípulos de Maurice Blondel, autor de um único livro fundamental, cujo título diz tudo:L’Action. Como deve ter sido grato ao vosso coração o encontro desse pensador singular que compõe com tanta originalidade os valores da ação e da transcendência! Viestes, assim, confirmar o antigo ensinamento de Fichte de que a Filosofia que se tem depende do homem que se é.
Permiti que vos diga, brevemente, em que consiste, no meu entender, a originalidade de Blondel, inconformado com o conceito de Deus-motor-imóvel da concepção aristotélica, incompatível com a ideia de criação que é contribuição por excelência da tradição judaico-cristã, a qual importa em amoroso movimento do Criador no sentido da criatura, como fonte de caritas, de amor transcendental. Se Deus é o fim absoluto, não pode deixar de ser, com efeito, o alvo perene da ação do homem, fundindo-se ação com transcendência. Assim interpreto Blondel, o mais transcendente dos cultores da ação, que tanto vos atrai, concebida, conforme bem o lembrais, como “itinerário para a autêntica plenitude”.
É sempre a problemática da ação que ainda vos leva a escrever livros dedicados ao “espírito paulista”, ou seja, a interpretar a razão comunitária e pioneira da gente bandeirante, desde os primórdios da colonização até a Semana de Arte Moderna, e essa admirável integração dos elementos alienígenas em sua vida social e política, lado a lado com paulistas de quatrocentos anos; ou, então, a procurar na cultura do café a razão de ser da expansão industrial de São Paulo, sustentando, de maneira original, a tese segundo a qual a cafeicultura teria sido um dos sustentáculos da unidade nacional, como base econômica, durante decênios, de nossos quadros institucionais.
Por fim, como era de esperar-se, vossa obra filosófica fundamental intitula-se A Extensão Humana – Introdução à Filosofia da Técnica, o que quer dizer da ação programada segundo ditames da razão para a realização de objetivos práticos. Compreendestes que foi a técnica que converteu o Mundo Moderno em mundo Contemporâneo, graças à sua força revolucionária e uniformizante, como o notou Heidegger, pois, ao mesmo tempo que estende os poderes do homem, condiciona-o à potencialidade das máquinas. E na ruptura técnica que podemos encontrar a causa maior do desmoronamento do chamado “Socialismo real”, quando os russos se aperceberam que, não obstante o pseudocientifismo socialista de K. Marx, não era possível haver duas estruturas paralelas e conflitantes de processo científico e econômico. A tecnologia, em suma, dissolveu a ideologia socialista, assim como converteu o Capitalismo em Capitalismo Democrático. Ora, em vosso livro, que é de 1970, já apontais os valores positivos e negativos da técnica, não escondendo vossas preocupações.
Mais não será necessário acrescentar, meu caro João de Scantimburgo, para demonstrar que, sendo, como sois, jornalista, pensador e amante dos estudos políticos e históricos, estais em condição de suceder a José Guilherme Merquior, o Álvares de Azevedo de nossa Filosofia, não somente por ter-nos deixado tão cedo, mas também pelas intuições e interpretações geniais com que penetrou no âmago de nossa Cultura, descortinando-nos os valores do futuro.
Poucas vezes tive a ventura de conviver mais demoradamente com esse jovem surpreendente, mas, em nossos encontros fecundos, jamais soube o que mais admirar nele, se a sua prodigiosa erudição, se o acume da inteligência na análise dos mais singulares problemas, sempre com admirável e compreensiva visão do todo. Foi a rara altitude de seu intelecto, sensível a todas as palpitações da aventura humana, e sobranceiro a todos os modismos filosóficos, artísticos e políticos – de que faziam ruidosa praça os medíocres e os fúteis – que lhe permitiu oferecer com segurança o diagnóstico de nossa época, não tendo tido necessidade da derrocada do muro de Berlim para iluminar-nos a rota essencial da História.
Polígrafo, como bem o qualificastes, deixa-nos Merquior um acervo de obras cujo sentido global somente poderá ser captado através de reiteradas análises, que porão em realce seus méritos de historiador das ideias; de crítico, ora entusiasta, ora severo, de obras nacionais e alienígenas; do demolidor corajoso de falsos ídolos, sem jamais deixar de aprontar o que neles pode haver de universalmente valioso, como o fez, por exemplo, ao examinar as figuras de Freud ou de Foucault; do hermeneuta profundo de nosso patrimônio literário, quando revela, como bem poucos o lograram, toda a riqueza de sua sensibilidade estética; e, para marcar sua solidariedade com o drama de nossa gente, o pesquisador das correntes políticas da mais palpitante atualidade.
Ao longo de nossa existência, vamos compondo nossos rosários de lembranças – seixos rolados de nossa existência coloquial – transfiguradas em contas inspiradas pelo afeto familiar, ou, então, pelas que a amizade consagra, com outras mais que o convívio intelectual seleciona e projeta no horizonte ideal de nossos propósitos. Merquior foi uma das contas mais preciosas do meu doce e saudoso enfileirar de imagens, as quais, afinal, acabam se fundindo à luz do amor, da amizade e da admiração espiritual. Ai dos que não sabem ir confeccionando, para sua alegria interior e a claridade das horas de solidão, o colar dos personagens mais representativos de sua vida espiritual!
Fique-nos, pois, a imagem de Merquior como um astro na galáxia de nossas recordações melhores, e, ao contemplá-lo, renovaremos a emoção de ouvir estrelas sentida pelo poeta maior do Parnasianismo, cujos valores estéticos ele soube isentamente assinalar no tempo, por nunca ter subordinado seus juízos críticos à periodicidade das escolas. É no seio das Academias que se apreende o sentido da real eternidade das Letras, não obstante o fluxo incessante das tendências literárias. É desse sentido de permanência estética, como intencionalidade perene de beleza sob infinitas formas, que provem a nossa tão incompreendida imortalidade, menos do sujeito que ama do que do objeto amado.
E, agora, Acadêmico João de Scantimburgo, ides registrar vosso nome no Livro-Tombo quase secular desta Casa, para fazer jus ao colar e à espada com que se conclui o ritual desta cerimônia. Nem sempre se atenta a seu significado simbólico, que cada um interpreta a seu modo, mas é preciso esclarecer-lhe a imagem.
Em verdade, passais a pertencer à auriverde Companhia oficialmente reconhecida como guardiã da Língua, o solo sagrado da República das Letras, sendo o colar o símbolo de fidelidade ao dever do bom combate em prol dos valores do Idioma, donde o singular uso da espada a serviço da Linguagem, o instrumento surpreendente que quanto mais se usa tanto mais de afia.
Com fardão, colar e espada, armado cavaleiro do Idioma de Luís de Camões a Fernando Pessoa, de Castro Alves a Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia, o trio de ouro de nossa Academia Paulista de Letras, e membros ilustres também da Academia Mater,
Sede bem-vindo!
26/5/1992
Impossibilitado de comparecer à Academia na noite da posse, o Acadêmico Miguel Reale indicou seu confrade Acadêmico Josué Montello para saudar, em seu lugar, o Acadêmico João de Scantimburgo.