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João de Scantimburgo

EXCURSUS FINALIS

Qual a psicologia do povo brasileiro, de que a política deve ser uma expressão? Apontamos, no curso desta obra, os defeitos, os vícios, os males emanados do sistema político, implantado em 1889. Quem compulsar as coleções dos jornais - e eu o fiz muitas vezes -, da proclamação da República aos nossos dias, só encontrará críticas aos governos, indigitados, pelos autores dos comentários, dos editoriais, como ineptos, desservidos de eficácia, mal amparados na mediocridade mais alarmante. Não é, contumazmente, contra o governo, o brasileiro. Não se assemelha ao espanhol da anedota, mas há uma razão para ser ele preferencialmente da oposição, embora paradoxalmente situacionista. Dizia Paulo Prado que um dos traços do brasileiro é o adesismo. Procuramos demonstrá-lo nas páginas deste livro. O "barão" de Itararé, o impagável Aporeli, já gracejava que no Brasil nem só os selos aderem. Uma das expressões lugar-comum mais usadas neste país é o "hipoteco solidariedade incondicional" a quem está no poder, e nada mais lugar-comum do que as "manifestações de apreço", assinalando a ascensão e as nomeações de pessoas que até à véspera não mereceriam um cumprimento de urbanidade de centenas de aderentes. Todos querem ter razão; todos querem ser atendidos; todos querem ser nomeados para algum cargo; todos se queixam de não ser lembrados; todos, enfim, conduzem a vontade no sentido de seus imediatos interesses. É o Brasil. É a psicologia do povo brasileiro. Quem formou e como se formou essa mentalidade? Somos conduzidos por nossas idéias, dizia Maurice Blondel, mais do que as conduzimos, "et c’est de justice, parce qu’elles entrent dans le determinisme qu’a choisi la volunté et contribuent à em developper les consequences". De onde, porém, vieram as nossas idéias? Somos por elas conduzidos, sim, na imensa procissão nacional, que marcha na história. Mas, quem no-las herdou? optamos, politicamente, pelos candidatos que nos podem ser úteis de alguma forma. Até mesmo o mais obscuro dos eleitores - o eleitor da imaginária, modorrenta Itaoca de Monteiro Lobato - dá seu voto em termos do que é útil, seja para sua comodidade no dia da eleição, seja para formar um elo com o chefe político ou de cabo eleitoral do município onde vota. Quando pretendemos que o voto seja útil, desejamos que o seja por intermédio das categorias sociais, ao contrário do partidarismo democrático, que o envolve de utilidade imediatista. Daí, a crise na qual bracejamos. Pretende João Camillo de Oliveira Tôrres, em carta que me escreveu - datada do domingo da Santíssima Trindade de 1967 -, que o brasileiro segue, inconscientemente, a filosofia de Duns Scot, a inteligência servindo a vontade. Para o Doutor Sutil, só a vontade é a causa da volição na vontade. Nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate. A influência de Duns Scot na formação cultural dos séculos XIV e XV, segundo Émile Brècher, foi muito grande, embora sua nomeada não tenha igualado a de Santo Agostinho e Santo Tomás. Onde, porém, a meu ver, parece acertada a tese de meu amigo correspondente, é se estudarmos o parentesco entre a filosofia de Duns Scot e a de Avincena, estabelecido por Etiènne Gilson, para quem a marca de voluntarismo, na filosofia scotista, emana da influência muçulmana, porém - acentua - num sentido inverso do que é entendido. "Não é o Deus da religião muçulmana que sugeriu a Duns Scot reivindicar para o Deus cristão os plenos poderes duma liberdade sem limites, mas o Deus preso à necessidade grega dos filósofos árabes que provocaram a reação cristã no pensamento de Duns Scot." Da penetração scotista-muçulmana na Espanha à sua transferência para a América Ibérica, o movimento obedeceu à tendência natural na marcha do pensamento. Quem observa o comportamento ibérico verifica que ele é voluntarista, como já estudei em outra obra - O destino da América Latina -, radicado na vontade, sem ser, embora, a meu ver, antiintelectualista. O conflito entre inteligência e vontade no Brasil tem causado os maiores transtornos em política. Reconhece o homem brasileiro os erros que se lhe apontam e, no entanto, os segue. Firma-se em convicções, em petições de princípio, em premissas falsas, embora concorde em que deva abandoná-las. Quem estuda, como fiz, a história política brasileira, vê-se diante desse convite à interpretação scotista da nossa história. Não é a inteligência que comanda, mas a vontade, à qual ela serve. As mudanças que se vão operando na concepção de vida do homem brasileiro, no seu comportamento, nas suas inclinações, nas suas preferências, nas suas opiniões, nos seus julgamentos, nas suas adesões, não foram, ainda, tão profundas, nem tão extensas, que nos levem a esperar dele outra atitude em face da nossa problemática política, senão a que procurei estudar neste livro. Embora para o fabulista Trilussa La filosofia é una scienza con la quale o senza la quale il mondo rimane tal e quale, o homem é animal filosófico. O Brasil, a história política brasileira, o comprova, pela influência que um filósofo, desconhecido provavelmente da maioria dos estudiosos brasileiros, exerceu e ainda exerce, por efeito de repercussão, nas instituições políticas brasileiras. Como poderemos operar a reforma da mente do homem brasileiro, é "outra história", que já não cabe neste livro. Ficará para outro, se Deus mo permitir.

(A crise da República presidencial, 1969)

 

O BRASIL E O FUTURO

Nunca o futuro esteve tão presente, como em nossa época. Se não tivemos, ainda, uma invasão de marcianos, tivemos, vê-se, uma invasão de profetas, que procuram decifrar o futuro ou antecipá-lo, com muitas elucubrações. Se devemos, os contemporâneos que ainda não perdemos a fé, temer pelo mundo, é porque a mecanização do espírito, a desespiritualização da técnica, a crise do homem, de sua crença das bases de seu amor, de sua angústia diante do insondável mistério, que o traz suspenso em face da imensidão de Deus, serem forças poderosas, sobretudo quando usam os veículos de comunicação de massa para difundir o mal.

Que me conste, foi o filósofo Maurice Blondel o primeiro a usar o vocábulo prospectiva. "Pensamento ou característica do pensamento, enquanto orientado no sentido do futuro." 2 Seu discípulo, Gaston Berger, lançou-o, porém, em circulação, fora dos limites estreitos dos meios filosóficos e ele adquiriu logo maioridade e autonomia. Que é, porém, a prospectiva? É a ciência que tem como objeto preparar o futuro, a fim de que o homem não seja deixado ao acaso. Sem se desabrigar do providencialismo, que atuam na história, a prospectiva vale-se da liberdade do homem, para que ele não marche no futuro por tateamentos. A prospectiva nos ajuda, portanto, a marchar de encontro ao futuro, com relativa segurança, desde que as leis superiores do espírito sejam observadas pelas sociedades, inclusive nos períodos de mudança, como este, do após-guerra e da ansiosa expectativa pelo advento de novos tempos. Vamos, todos nós, entre descompassos, tentando reparar os nossos erros, com a ajuda da prospectiva, que, bem usada, é uma esperança. Pela prospectiva estamos habilitados a estender longos telescópios no vetor do futuro, se se fundar ela nos sólidos alicerces do passado.

Cremos que o nosso projeto humano para as sociedades humanas se inclina para um sistema político onde as impurezas da história e a cupidez do homem tenham menos peso do que nas sociedades de grandes desníveis, como a maioria delas, nesta altura do século. Cremos que, nessa linha, a fé no Deus uno e trino; a educação proporcionada a todos, o uso dos direitos às liberdades da pessoa, a elevação do padrão de vida dos povos pela ampliação da sociedade de consumo, podem libertar o homem e, com ele, a terra. A era tecnológica está pondo ao alcance das sociedades contemporâneas uma cópia de bens com a qual não contaram as sociedades dos séculos anteriores e, mesmo, as de uma parte deste. Não negamos que a miséria campeia, ainda, sobre a face da terra e que sua extinção é tarefa sobre-humana, com os recursos de que dispomos. Mas, pela ciência da prospectiva, ou pela experiência dos fatos, do processo que têm diante dos olhos, dos exemplos e dos oferecimentos da tecnologia, as sociedades contemporâneas já sabem como organizar seu futuro e alcançar os mesmos benefícios da civilização e da cultura, dos quais outras gozam.

Não ignoramos que os oprimidos se revoltam, que os desesperados, milhões de inocentes que povoam a face da terra, clamam por pão, mas não ignoramos, igualmente, que não será avolumando a caudal da revolução universal que vamos resolver os problemas sociais, os problemas humanos, os problemas do homem em face de seu destino. Para revidar ao desafio do século, extinguindo a miséria, elevando o homem, as sociedades contemporâneas podem tombar no extremo oposto, e divinizar o consumo, como vem na sátira de Dunrrematt. O homem é o ser que pede mais, que quer mais do que o material. A civilização está posta à prova, em nossos dias. Vemo-la agônica, debatendo-se em estertores para sobreviver. Circulam em seu corpo toxinas fatais, como o esquecimento de Deus, o desrespeito à nação, o aviltamento da mulher, e outras. Mas sempre latejam em seu seio forças que podem salvá-la.

(Tratado geral do Brasil, 1971)

 

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

Dentre os problemas do mundo, que mais nos preocupam e nos aguilhoam a inteligência, o tempo situa-se num dos primeiros lugares. Se nos debruçarmos sobre ele, tentando aceitar o seu desafio, em breve nos reconhecemos incapazes de sondar-lhe o profundo mistério. Estamos no tempo, sabemos que, fisicamente, ocupamos um lugar no espaço, enquanto flui o tempo; pelos sentidos e pelo pensamento, percebemos o tempo, a cuja disciplina estamos sujeitos, mas não conseguimos dar-lhe uma definição que nos satisfaça e lhe seja adequada. A sua concepção tem variado, através dos séculos. O tempo do Timeu se ajustava às observações dos astrônomos. Para o sublime Platão todas as estrelas eram necessárias à criação do tempo. Já o imenso Aristóteles afirmava que o ser tem diversos aspectos sucessivos, enquanto o tempo se conserva uno. Se consultarmos o pensamento dos outros filósofos gregos, neles não encontraremos definições que nos bastem, nem mesmo ao estabelecerem, entre o tempo e a alma, as relações que só puderam ser aceitas com o advento do Cristianismo, e dos filósofos cristãos.

O problema é complexo. Que é o tempo? Como se define o tempo? O tempo prepara a eternidade. Mas a eternidade antecede ao tempo e o sucede. Possuímos a experiência do tempo, e não sabemos defini-lo. Santo Agostinho já dizia, com o peso da sua autoridade: "Se me interrogam sobre o tempo, sei o que ele é; se me questionam, já não sei mais." Tem sido, por isso, a passagem do tempo um dos fundamentos do evolucionismo. Sem dúvida, assistimos a mudanças e as sofremos. Neste exato momento os ponteiros do relógio se movem, e, com eles, o mundo. A vida, as idéias, as teorias, as doutrinas se acrescentam de novas contribuições, ou envelhecem, fenecendo, mesmo, de caduquice. Mas, nem por tudo evoluir, deixamos de ter um eixo, em relação ao qual a evolução não é universal; supõe uma referência a um ponto fixo, não evolutivo, razão por que consideramos indefensável a evolução criadora, segundo Bergson, se a tomarmos, com o filósofo, como um bloco maciço.

Operam-se transformações no mundo, porém, cada ser humano carrega dentro de si mesmo a sua história, o seu tempo, em vários estágios, que não se podem universalizar nem integrar-se numa totalidade única. Colocado, pois, o ser humano em face dos seres, no tempo, o Ser supremo reponta com uma realidade imperativa, convencendo-nos de que a evolução, as mudanças, as transformações são muito menos do que tudo quanto vemos e sentimos. Se o destino da pessoa fosse temporalizado, se fosse apenas coextensivo ao espaço, estaria em contradição com os seus constitutivos reais, que se ligam a uma ordem universal, de que o tempo e o espaço são tipos e antitipos. O horizonte da temporalidade não é, portanto, recuado pela evolução. O tempo existe; ele nos conduz à eternidade, ou somos conduzidos à eternidade, ultrapassando os seus horizontes.

A ciência e a técnica, com as suas descobertas, as suas invenções, os seus produtos, concorrem para atrofiar no homem as raízes do passado, erigindo o presente como um fim último do seu roteiro na Terra, esse domínio do tempo. Reconhecemos, angustiados, a dificuldade em que nos metemos, aventurando-nos pela vasta seara do tempo, onde tudo é incorpóreo. Sentimos o tempo, estamos-lhe sujeitos, sofremos, diariamente, a tirania das horas; vivemos enquadrados em compromissos, sobretudo no Ocidente e no Sistema Ocidental, pois só recentemente os povos médio-orientais, os povos do deserto, das caravanas sem pressa, vêm começando a aceitar as obrigações, que decorrem da inexorável tirania dos horários. Não é, também, o tempo uma intuição do nosso estado interior, como queria Kant. Os equívocos, os erros, as falsas interpretações dos Livros Santos; o poder do raciocínio e as indagações, desde os gregos até aos nossos dias, já envolveram, e muito, os conceitos do tempo e da eternidade na densa neblina da confusão. O milenarismo tem repontado em várias idades históricas, no curso do pensamento. Combateu-o Santo Agostinho, indigitando-o nos primeiros Padres da Igreja, os quais chegaram a atribuir à eternidade o caráter temporal, e a formar a imagem de um eterno - tempo. Invadem-nos dúvidas, como se vê, embora a esmagadora maioria da população do mundo, vivendo sujeita ao tempo, não se lhes dê conta, nem delas cogite no seu quotidiano.

Só terá sentido o tempo se admitirmos a eternidade. Limitando-se, exclusivamente, ao tempo, as filosofias da imanência não lhe encontrarão explicações. Daí derivarem - e aqui nos referimos ao gênero, - para extrapolações, que abicam na insuficiência, como se dá com o realismo crítico, o existencialismo marxista, e as várias formas contemporâneas de racionalismo. Heidegger, em nossos dias, foi um dos maiores representantes dessa genealogia filosófica, toda ela aplicada ao pensamento sem finalismo. A sua obra O ser e o tempo, que teve grande influência nos círculos universitários alemães da década de 30, a década do nazismo, foi elaborada para afirmar o horizonte definitivo da temporalidade. Prova e comprova, contudo, o mundo presente, que, circunscrevendo-se a um horizonte sem abertura, a temporalidade confina o ser no embaraço total. Todas as reflexões de Heidegger não vencem o círculo da imanência. Não se explica o ser pela temporalização, mas, pela conjunção do tempo com a eternidade. O "mistério dos seres itinerantes que nós somos", da bela expressão de Maurice Blondel, é o que deve ser considerado, se quisermos enfrentar, para vencê-la, a forte corrente das crises, de que o humanismo ateu é a toxina deletéria da nossa civilização e da nossa cultura.

A eternidade nos escapa; o tempo é, para nós, uma realidade misteriosa, mas temos de resolver o problema ou procurar resolvê-lo, se quisermos reconhecer um significado na vida. A humanidade verte o suor de erros multisseculares, acumulados em sua história. O futuro foi e continua sendo marcado de presságios. Como em todas as épocas da História, no entanto, aqueles que são protagonistas ou comparsas de seus dramas, não percebem claramente os acontecimentos que se vão encadeando nos elos desta imensa crise mundializada. Enfraquecida em seus rizomas sobrenaturais, pela dissolução da pessoa no tempo, a sociedade humana atravessa uma fase histórica, na qual os valores espirituais são suplantados pelos valores materiais, o infinito vai sendo vencido pelo indefinido, e o amor perde a imagem de reflexo do amor de Deus. O resultado dessa subversão de valores cifra-se em que o homem deste século não descobre um sítio onde possa repousar tranqüilo, pois o bem espiritual e o bem social estão minados nas suas bases pelo temporalismo milenar. Sem encontrar, por isso mesmo, o apoio da fé, o ser humano volta-se para a superstição, para os mitos nos quais espera achar, não só justiça, como, também, resposta aos seus anseios de paz. A superstição e o mito são, no entanto, apenas um esforço para captar o Absoluto nos limites da natureza. O progresso contínuo, a soberania da razão, o cientismo, o economismo, o socialismo, a arte subjetiva, a autonomia tecnológica, as ditaduras totalitárias, o liberalismo político foram e são superstições alienadoras, insinuadas na consciência do ser humano, dominando-o, ao parecer, irresistivelmente.

(...)

(João de Scantimburgo na Academia, 1977)