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Miguel Reale

                 O ESPELHO

Embrenhei-me na selva dos sentidos

à procura de um espelho

que me ofertasse paz e poesia

em ninho de tempo oculto.

 

Espelho só meu

sem mancha ou distorções

puro brunido ensimesmado,

de ver-me todo num bater de pálpebra,

a realidade numa só figura.

 

Procurei-o na terra do sem-fim

remota e noturna

onde tudo o que há principia.

Procurei-o nos desvãos das matas,

oculto sob as pérolas do orvalho

no filete de água que murmura

antecipando o reboar do oceano.

 

Procurei-o no sol, nas nuvens,

no voo errante das aves

na terra gorda que tudo absorve,

nas teias, nos ninhos, nas colmeias.

 

E o espelho foi surgindo no meu peito

à medida da angústia e da procura,

espelho igual aos demais espelhos.

 

                     LUZ INTERIOR

Não de luz, mas de sombra são meus versos,

humildes desajustados,

como quem vem de longe e se arreceia

de inesperado encontro.

 

A sombra é luz filtrada esmaecida

homóloga à vida interior reflexa

manso fluir de águas profundas

numa réstia de musgo e pedras brancas.

Não é à plena luz do sol a pino

mas quando ele se quebra no horizonte

que o espírito perplexo se inclina

e vê na sombra o que a luz lhe esconde.

 

              COLUNAS DO TEMPO

Ardem meus pés na turfa da existência,

pés doridos de avanços e recuos,

nem há como atenuar a dor intensa

que é látego de nervos e perguntas.

 

Sinto-me planta um plátano partido

pés fincados no chão,

estaca lavrada e fria

relegada à beira do caminho.

 

É o que resta da vida em labirinto

esgalhada em mil aspirações,

vida barroca incerta e retorcida

à sombra de arabescos e ouropéis.

 

Como as colunas dóricas perduram!

Esguias retilíneas intocáveis

em sua heráldica forma para o alto,

sem frisos ou volutas perturbando

a serena ascensão vertical.

 

Quem já se lembra dos antigos ritos

à luz do templo - templo eleusínio

na secreta unidade da semente

donde brotam vitórias e derrotas

que são vaidade e cruz da espécie humana?

 

É tarde, é muito tarde!

Nem há mais púlpito ou monge que o proclame

para que as horas voltem à sua fonte

na comunhão dos homens e dos deuses.

 

                   A MEMÓRIA

Quando a existência chega a uma curva

que nada nos aponta no caminho

a glória conquistada fica turva,

a coroa ferindo mais que o espinho.

 

Ter saudade de erros e perigos

e até da injúria em horas desiguais,

é como repisar filmes antigos

sem gosto de viver tempos atuais.

 

O surpreendente em nossa trajetória

é percebermos, ao galgar um cume,

que só nos resta o espelho da memória.

 

Como é sombria essa luz do ocaso

quando a esperança toda se resume

no fruto amargo que nos der o Acaso!

 

                   MURO FINAL

Que pretensão de sermos uma ponte

entrelaçando gerações!

Que ilusão de sermos segmento

da sonhada trajetória!

 

Talvez sejamos contas de um rosário

de amor e morte

que os dedos trêmulos desfiam,

mal chegando até os lábios frios

o reprimido impulso de uma prece.

 

Com a saudade dos entes que perdemos

vamos tecendo os fios da existência

e de repente damos conta disso

como quem surpreende a própria idade

nas rugas ou nas mãos de um velho amigo.

 

Vivemos e, quanto mais os anos passam,

mais nosso ser é o ser dos encantados,

até chegarmos, peregrinos cegos,

junto ao muro das lágrimas iguais.

 

                  ASSIS

À clara luz do plenilúnio,

envolta no seu manto franciscano,

surgiu Assis ante meu olhos,

fonte de amor e de consolo humano.

 

Senti a mansidão do lobo

e a frescura da água em minha testa,

homens e coisas na unidade

espiritual da natureza em festa.

 

A muito custo reprimi o impulso

de me ajoelhar ao diálogo dos sinos

e me quedei, pálido de espanto,

não me ajoelhando com os peregrinos.

 

Não quis me ajoelhar naquela hora

que era a hora do amor e da piedade,

mas desde então vive de joelhos

minha alma insone em busca da Verdade.

 

                                      ENSEADA

A suave alegria que toda tarde se renova ao abrir a porta de meu lar

o perfume instintivo guia oculto ao longo de meus passos

o chilrar de pássaros implumes vibrando no riso das crianças

a surpresa da mão trêmula quando descobre um ninho,

mistério infiltrado nas frestas do quotidiano abrindo um leque

de esperanças e cuidados

como a do marujo que, ao avistar a terra, vê-se preso de súbito temor.

 

Ciúme do bem que de tanto se esperar já é bem amado

as chaves hesitantes na mão trêmula

enquanto as sombras se agitam como palmas oscilantes ao vento

que risca o céu de signos, nuvens e mensagens.

 

Ensimesmar-se é então falar sem verbo

guiando-se o nauta só pela estrela rumo à enseada plácida e noturna

na intimidade côncava do tempo.

                                                                          (Poemas da noite, 1960)