O ESPELHO
Embrenhei-me na selva dos sentidos
à procura de um espelho
que me ofertasse paz e poesia
em ninho de tempo oculto.
Espelho só meu
sem mancha ou distorções
puro brunido ensimesmado,
de ver-me todo num bater de pálpebra,
a realidade numa só figura.
Procurei-o na terra do sem-fim
remota e noturna
onde tudo o que há principia.
Procurei-o nos desvãos das matas,
oculto sob as pérolas do orvalho
no filete de água que murmura
antecipando o reboar do oceano.
Procurei-o no sol, nas nuvens,
no voo errante das aves
na terra gorda que tudo absorve,
nas teias, nos ninhos, nas colmeias.
E o espelho foi surgindo no meu peito
à medida da angústia e da procura,
espelho igual aos demais espelhos.
LUZ INTERIOR
Não de luz, mas de sombra são meus versos,
humildes desajustados,
como quem vem de longe e se arreceia
de inesperado encontro.
A sombra é luz filtrada esmaecida
homóloga à vida interior reflexa
manso fluir de águas profundas
numa réstia de musgo e pedras brancas.
Não é à plena luz do sol a pino
mas quando ele se quebra no horizonte
que o espírito perplexo se inclina
e vê na sombra o que a luz lhe esconde.
COLUNAS DO TEMPO
Ardem meus pés na turfa da existência,
pés doridos de avanços e recuos,
nem há como atenuar a dor intensa
que é látego de nervos e perguntas.
Sinto-me planta um plátano partido
pés fincados no chão,
estaca lavrada e fria
relegada à beira do caminho.
É o que resta da vida em labirinto
esgalhada em mil aspirações,
vida barroca incerta e retorcida
à sombra de arabescos e ouropéis.
Como as colunas dóricas perduram!
Esguias retilíneas intocáveis
em sua heráldica forma para o alto,
sem frisos ou volutas perturbando
a serena ascensão vertical.
Quem já se lembra dos antigos ritos
à luz do templo - templo eleusínio
na secreta unidade da semente
donde brotam vitórias e derrotas
que são vaidade e cruz da espécie humana?
É tarde, é muito tarde!
Nem há mais púlpito ou monge que o proclame
para que as horas voltem à sua fonte
na comunhão dos homens e dos deuses.
A MEMÓRIA
Quando a existência chega a uma curva
que nada nos aponta no caminho
a glória conquistada fica turva,
a coroa ferindo mais que o espinho.
Ter saudade de erros e perigos
e até da injúria em horas desiguais,
é como repisar filmes antigos
sem gosto de viver tempos atuais.
O surpreendente em nossa trajetória
é percebermos, ao galgar um cume,
que só nos resta o espelho da memória.
Como é sombria essa luz do ocaso
quando a esperança toda se resume
no fruto amargo que nos der o Acaso!
MURO FINAL
Que pretensão de sermos uma ponte
entrelaçando gerações!
Que ilusão de sermos segmento
da sonhada trajetória!
Talvez sejamos contas de um rosário
de amor e morte
que os dedos trêmulos desfiam,
mal chegando até os lábios frios
o reprimido impulso de uma prece.
Com a saudade dos entes que perdemos
vamos tecendo os fios da existência
e de repente damos conta disso
como quem surpreende a própria idade
nas rugas ou nas mãos de um velho amigo.
Vivemos e, quanto mais os anos passam,
mais nosso ser é o ser dos encantados,
até chegarmos, peregrinos cegos,
junto ao muro das lágrimas iguais.
ASSIS
À clara luz do plenilúnio,
envolta no seu manto franciscano,
surgiu Assis ante meu olhos,
fonte de amor e de consolo humano.
Senti a mansidão do lobo
e a frescura da água em minha testa,
homens e coisas na unidade
espiritual da natureza em festa.
A muito custo reprimi o impulso
de me ajoelhar ao diálogo dos sinos
e me quedei, pálido de espanto,
não me ajoelhando com os peregrinos.
Não quis me ajoelhar naquela hora
que era a hora do amor e da piedade,
mas desde então vive de joelhos
minha alma insone em busca da Verdade.
ENSEADA
A suave alegria que toda tarde se renova ao abrir a porta de meu lar
o perfume instintivo guia oculto ao longo de meus passos
o chilrar de pássaros implumes vibrando no riso das crianças
a surpresa da mão trêmula quando descobre um ninho,
mistério infiltrado nas frestas do quotidiano abrindo um leque
de esperanças e cuidados
como a do marujo que, ao avistar a terra, vê-se preso de súbito temor.
Ciúme do bem que de tanto se esperar já é bem amado
as chaves hesitantes na mão trêmula
enquanto as sombras se agitam como palmas oscilantes ao vento
que risca o céu de signos, nuvens e mensagens.
Ensimesmar-se é então falar sem verbo
guiando-se o nauta só pela estrela rumo à enseada plácida e noturna
na intimidade côncava do tempo.
(Poemas da noite, 1960)