Para dizer-vos, Sr. Miguel Reale, do alto apreço que vos consagra a Academia Brasileira de Letras, ocorreu-me a frase de Latino Coelho na Oração da Coroa: – “Não me enleia o faltar-me o que contar de ti e dos teus; enleia-me o não saber por onde começar.”
Talvez, por isso, vi meus dedos suspensos diante do teclado da máquina de escrever, enquanto procurava, na lógica dos vossos sucessos, a lâmpada com que pudesse ver melhor os caminhos que, até agora, percorrestes.
Não bastava conduzir-me pelo que inspirava a nossa amizade, cimentada na Congregação da Faculdade de Direito de São Paulo, uma vez que é de meu dever também acatar aquilo que de mim exigem as regras tradicionais deste Sodalício.
Reconheço que, apesar disso, não me diminuiu o temor de ser retórico, ao enfrentar, entre os méritos literários, o mundo filosófico e jurídico, tendo em conta o que me prelecionou Roland Barthes, a propósito do orador que, segundo ele, se apresenta à plateia na situação de quem se deita no divã da análise, para ser psicanalisado pelos que o escutam...
O recurso à luz e à cor, para realçar minhas palavras, busquei-o, de empréstimo, em vossas meditações, que se referem à harmonia entre a razão e a fantasia e mostram o calor humano que estava, para muitos, imperceptível, por trás da máscara severa de Fernando de Azevedo!
É que proclamastes, ao propósito do recurso ao fortuito, que “uma das virtudes dos homens de letras, a dos poetas em particular, é a percepção das linhas que só a fantasia vislumbra”. Realmente, o pintor expressa-se pela cor e o músico pelo som, enquanto que a palavra, em sua opacidade, não consegue cor nem som e só se ilumina quando existe aquela “caixa de cores da sensibilidade”, a que referistes em uma das vossas poesias.
A conciliação entre a razão e a fantasia é o que possibilita, mesmo nas épocas de grandes divergências, os homens de mãos dadas, como estamos todos aqui.
Essa preocupação de clarear as trevas perfaz uma longa viagem, que se avoluma no exemplo de Rimbaud, que, em sua angústia cinestésica, criou um alfabeto de cores.
Ao narrar a viagem de Luís de Camões, enfrentando as inclemências proverbiais, Aquilino Ribeiro diz que, diante do espetáculo a que assistia, Camões fez um curso de pintor do mar, bastando-lhe duas palavras para pintar a bonança e o carvoejamento das horas de borrascas.
Como possuís “a caixa de cores da sensibilidade”, conquistastes os postos de vossa consagração e mostrastes como Giambattista Vico compreendeu o papel do Direito no mundo da Cultura.
Podeis, portanto, ficar certo de que a Academia recebe o filósofo e o jurista que, em seus escritos, sempre mostrou ardente fidelidade aos valores estéticos e literários.
Na comunicação que fizestes, intitulada O Cristianismo e a Razão de Estado no Renascimento Lusíada, demonstrastes que D. João I teve um admirável teorizador de suas prerrogativas em João das Regras, formado por ensinamentos de Bolonha e que, com sua linguagem expressiva, fazia cair por terra a invocação do primado pontifício para adquirir feição pragmático-política, em favor da independência lusa.
Nunca deixastes de compreender o significado da Literatura, desde os primeiros passos de vossa carreira. Por onde andastes, as preocupações literárias sempre se mostraram.
Depois de procurar-vos em São Bento do Sapucaí, vossa terra natal, encontro-vos no Colégio de Nossa Senhora da Glória, em Itajubá, tempo em que ainda preferíeis os encantos silvestres, numa vida despreocupada e feliz, repartindo o tempo entre as aulas e as fugas para as margens pitorescas do Rio Sapucaí, na companhia de bandos irrequietos de garotos.
Na capital paulistana, vivestes durante oito anos sob o signo de Dante, embebendo-se no “dolce stil nuovo”. E foi, por esse tempo, que compusestes, com todo o fervor de adolescente, um soneto intitulado “Beatriz” que diz, num dos tercetos:
Talvez, vencida a selva em que vagueio,
venha encontrar a imagem da mulher
por quem no sonho tanto clamo e anseio.
E, a seguir, lendo o Convívio e De Monarquia, e frequentando as aulas, na Faculdade do Professor Vicente Rao, nunca mais deixastes de lado a definição que Dante concebeu do Direito.
E ainda no Colégio chegastes a pedir ao vosso mestre de Literatura que vos dispensasse dos deveres semanais para dedicar-vos a um trabalho de maior envergadura. Como recordais, escolhestes estes pomposos temas: “Beatriz e a teologia”, “Dante e o homem moderno”.
Dante, nessa ocasião, foi, principalmente, um despertar, porque o estudante que se devotava, num precoce diletantismo emocional, à obra do divino poeta, era também aquele que escrevia sobre Álvares de Azevedo e o byronismo e que, numa associação estudantil, fazia, em 21 de abril de 1929, uma conferência sobre Cláudio Manuel da Costa.
Preparado para o vestibular de Medicina, filho de médico que sois, fostes desviado dessa carreira pelas mãos do destino, que, numa tarde, vos conduziu ao Largo de São Francisco, onde estava a morada espiritual de vossa vida.
Evocastes esse episódio quando, em 1964, recebestes o prêmio do Grande Júri do Moinho Santista, no Salão Nobre da Faculdade de Direito de São Paulo, que vos apareceu como “o cerne vivo da tradição e da perseverança no trabalho e uma lição viva do Direito”.
A Faculdade foi o primeiro laboratório de vossas aspirações e de trabalhos de maior fôlego. Ainda estudante, escrevestes sobre a crise da liberdade, quando falastes da influência de Marx e do socialismo e mostrastes o quadro clínico da crise social e política, que se distendia. Depois de apreciardes o valor negativo das ditaduras – o fascismo com a média burguesia e a ditadura do proletariado com o bolchevismo –, sustentastes que tudo isso representava sintoma diverso de um mesmo desequilíbrio. E terminastes o vosso estudo dizendo:
Apareceram então, como sói acontecer nos períodos de crise “os gênios” anunciadores da morte da liberdade. Uma fórmula insinuante foi logo criada para encobrir a realidade de mil motivos políticos e religiosos, enquanto os ditadores europeus e americanos pareciam dar razão aos que proclamavam que o grande morto era a liberdade.
Observadores superficiais viam apenas a última fase de uma crise longa e davam gritos de alarma. Mas, como escrevestes: “[...] a reação liberal já se iniciava e ganhava, cada vez mais, terreno. Quem observar, sem preconceitos, a vida social moderna”, dissestes, “há de concordar, com Rosselli, que ‘o socialismo torna-se liberal e o liberalismo se socializa’”.
Foi assim se desenhando o vosso perfil intelectual, traçado pela Poesia, pela Filosofia e pelo Direito. Nessas três linhas vincular-se-iam as diretrizes de vossa vida, chancelada pela competência e pelo desprendimento.
Continuais uma tradição desta Academia e não provocais a surpresa que confessou Oliveira Lima, ao receber Artur Orlando.
É que, de início, na Casa de Machado de Assis houve fartura de bacharéis, como nas Faculdades de Direito do Recife e de São Paulo abundaram os poetas.
Basta que tenhais em conta que o nome de Franklin Távora, que fulgura no espaldar da vossa Cadeira, é o de um escritor que, antes de compor O Cabeleira, já tinha passado pelos estudos de Direito e tentado a Advocacia. Clóvis Beviláqua, de quem traçastes um retrato magnífico, foi uma doce figura humana, notável em sua devoção à Literatura, à Filosofia e ao Direito. E a ele se deve, realmente, a abertura de um novo capítulo da nossa História jurídica, com o seu projeto de Código Civil, como acontece agora convosco, ao supervisionar, durante seis anos, a elaboração do atual projeto.
Fora de dúvida que o Direito está, como a Filosofia, ligado aos segredos da linguagem e, não raro, ele se arrisca a esvaziar-se na lei mal redigida, notadamente nos períodos de convulsão e anarquia, quando aí é que devia firmar-se como certeza.
Haja vista o que diz Leopoldo Tomiatti, da Universidade de Ferrara, ao vê-lo germinando entre suor, lágrimas e sangue para tornar-se atuante no dispositivo legal. E dá exemplo de Frederico Barbaroxa que, esquecido das pompas do poder, curvava-se, reverente, diante de quatro doutores, que falavam, impecáveis, a linguagem jurídica!
Muitos mestres de Direito Romano asseguram que um dos segredos do seu sucesso, transpondo os séculos, reside no fato de os jurisconsultos, em suas diversas fases, nunca dispensarem o auxílio de César e Tito Lívio, de Salústio e de Apuleio, de Plutarco e Sêneca, de Quintiliano e Propércio.
É o que valoriza em vossa obra de legislador, porque sempre tivestes cuidado com a linguagem jurídica, que não pode ser como a do pássaro de Anna de Noialles, que gorjeia no verão e não canta mais...
Ao receberdes a medalha Teixeira de Freitas, conferida em 1968 pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, mostrastes como o Direito, solidário com a vida, pode assegurar a realização do ser como pessoa. E acrescentastes:
Não penseis que me iludo reivindicando o primado do Direito, num mundo que parece ter olhos e ouvidos voltados para os técnicos da automação e da Cibernética, dos computadores e das naves interplanetárias. O que vos digo é bem mais simples e achegado às contingências humanas: Toda e qualquer conquista no plano das máquinas e das ferramentas, por mais sutil e revolucionária que seja, só adquire significação real para o homem através do Direito, que penetra no solo da vida.
Dos artigos que escrevestes para a Folha de S.Paulo, quero salientar os que tratam da teoria antropológica da espera, fruto da vossa meditação sobre a espera e a esperança. E ao que se refere ao diálogo, no qual fazeis referência a Hölderlin, para quem a experiência do homem e dos deuses começou pelo diálogo, e citais Heidegger, quando proclama que nós, os humanos, somos um diálogo.
Como o homem encontra o seu ser na linguagem, a realidade histórica não pode deixar de concentrar-se no diálogo. E bem claro deixastes que ele não se confunde com a mera troca de palavras, porque pressupõe tanto a liberdade de falar como a intencionalidade de ouvir.
Nada impede, portanto, no vosso conceito, a virtude da solidão, que é um dos segredos das personalidades robustas, capazes de resistir à massificação descaracterizadora.
Não esqueceis, desse modo, de um tema discutido desde a antiguidade e que se tornou predileto do Romantismo. Em nossos dias, tomou ele novas proporções, no jogo dialético da vida moderna. Entre muitas atitudes, que impressionam, está a de António Nobre, que acentuou as suas características emocionais em seu livro Só. Viu-a como a expressão de abandono, pois é o momento em que o homem se sente desvalorizado diante dos mistérios da vida. Na realidade, António Nobre tinha medo da solidão como uma criança. Quem lê sua correspondência descobre que essa é a sua maior tragédia de pobre doente incurável, precocemente ameaçado pela morte. Ela cresceu, em sua alma, como um desespero. E, em suas crises de tuberculoso, distante dos seus, pedia socorro como se estivesse em últimos instantes, e só chegava a acalmar-se, refeito dos terrores, ao ouvir, pela janela de seu quarto, entrar as múltiplas vozes da rua barulhenta.
Contudo, a vossa solidão é mais um recolhimento.
O que louvais é a solidão, remédio para a nossa época, uma fórmula conventual de defender a personalidade ameaçada pela pressão espetacular do meio coletivo.
Conforme escrevestes:
A verdadeira solidão, aquela da qual o homem anda tão necessitado, é a que faz compreender e valorizar as relações entre o próximo e o distante, aquela solidão já configurada por Santo Agostinho: Nolis foras ire; in te ipsum redi; in interiore hominis habitat veritas.
E a vossa atitude é, curiosamente, um misto de recolhimento e de vida pública, quando revelais as características do vosso caráter com o que mantivestes o privilégio da lucidez, que define o intelectual como um servidor do espírito, mesmo num cenário em que o público aprecia mais a novidade do que a verdade.
Em 1949, fundastes, corajosamente, o Instituto Brasileiro de Filosofia e, em seguida, promovestes a realização de congressos, como ainda, com redobrada coragem, fundastes a Revista Brasileira de Filosofia, mesmo sabendo dos sucessos da banalidade.
Com essa insigne autoridade, representastes o Brasil em vários Congressos, recebestes o título de doutor Honoris Causa pela Universidade de Gênova, Presidente da Sociedade Interamericana de Filosofia, Diretor da Coleção Estante Brasileira, da Editora Grijalbo, membro da Comissão de redação do Arquivo de Filosofia Social e Jurídica, de Mainz, além de terdes exercido vários cargos e comissões de alta responsabilidade, em São Paulo e no País.
Faz pouco tempo que deixastes, pela segunda vez, a Reitoria da Universidade de São Paulo, onde vivestes o clima propício ao vosso espírito e onde os vossos empreendimentos de ordem material e cultural venceram as dificuldades de um povo sem tradição universitária. E as vossas seguras inovações já estão produzindo benéficos resultados.
A Universidade é o suporte vital da cultura de um povo e, como dizeis, é uma exigência de todos, dentro de um sistema de diferenciações, que nunca deverá artificializar-se num catálogo de receitas para todos os problemas... Porque se assim o fosse seria seu recinto ocupado sem esforço, para que a gestação das Ciências se efetuasse como um parto sem dor!
Ela, ao contrário, reclama, para manter seus projetos e sua capacidade criadora, uma reforma de mentalidade, com o desprezo pelo suntuoso e pelo supérfluo. Servindo a todos, não deve subordinar-se jamais ao critério da fabricação em série, quando se pode confundir, como receia André Bel, “a leitura da Divina Comédia com a do Pato Donald”.
Da vossa rota, traçada entre cargos e encargos, de vossas leituras e viagens, cresceu a vossa autoridade para enfrentar, com olhos de ver, os problemas universitários.
É que sois um dos pensadores mais fecundos de nosso tempo. Cada um dos vossos livros mostra a riqueza do vosso pensamento.
Conheço-os quase todos, a começar pelo Estado Moderno, dotados sempre da maior densidade cultural, como Formação da Política Burguesa, O Capitalismo Internacional, Atualidades de um Mundo Antigo, Fundamentos do Direito, Teoria do Direito e do Estado, A Doutrina de Kant no Brasil, Horizontes do Direito e da História, Filosofia do Direito, Pluralismo e Liberdade, Parlamentarismo Brasileiro, até O Direito como Experiência e Teoria Tridimensional do Direito e, afinal, com caráter didático, as Lições Preliminares de Direito.
Valho-me desta lista incompleta, para acentuar que o fundamental em vossa obra de jurista está no conceito da “tridimensionalidade do Direito”, que assegura, de uma forma inteiramente nova, uma imagem exata do corpo em que palpita a vivência jurídica – como fato, valor e norma.
A experiência jurídica é que vos leva a essa conclusão sui generis, porque, em nada é comparável à experiência das Ciências chamadas Naturais.
Nesse tudo que não é tudo, corporificastes a vossa profissão de fé na compreensão do humano, que vos conduz a encontrar no homem o valor-fonte de todos os valores, pedra de toque da legitimidade dos governos.
O Direito, com seus suportes filosóficos, ao serviço intemerato da vida, é uma espécie de pulmão, com o qual o homem e a sociedade respiram e renovam suas energias.
Com rara felicidade, definiu o vosso pensamento o Professor Domenico Coccopalmerio, em seu trabalho introdutório à versão italiana de O Direito como Experiência, onde ressalta a repercussão internacional de vossa filosofia.
Os mesmos aplausos recebestes nos estudos de Luiz Legaz Lacambra, da Universidade de Madrid, de Luís Recaséns Siches, da Universidade do México, e de Felice Battaglia e Luigi Bagolini, da Universidade de Bologna.
Em 1966, saiu a público um número da Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, dedicado, conforme decisão unânime de sua Congregação, ao vosso jubileu na cátedra. Os grandes nomes do Direito e da Filosofia compuseram a lista dos colaboradores desse número. E nele se encontra, em seus termos, a fundamentação da láurea Honoris Causa, que recebestes da Universidade de Gênova.
Pelo que consta desse volume, se pode avaliar melhor ainda a vossa dedicação ao estudo. É que, realmente, a vossa atividade se desdobra e se multiplica nessa incansável luta pela verdade jurídica.
Nas contínuas investigações que fizestes, encontrastes o pensamento de Tobias Barreto, que enfrentou, com as dificuldades de seu tempo, os problemas que vos são caros.
Talento polimorfo, dotado de incontestável e incontida curiosidade. Tobias teve a audácia de inovar os estudos sobre a Filosofia do Direito, defendendo, como esclarecestes, a progressiva emancipação dos seres, em uma síntese superior. A cultura que vos aproximou de Tobias, também vos aproximou de Rui Barbosa, que vos aparece como uma modalidade do mundo filosófico. No estudo que fizestes de seu pensamento, como incorporado ao pensamento de seu tempo, encontrastes Rui, em frente ao Positivismo, compreendendo o Cristianismo, como o condicionador de todas as convicções.
Visto em seu radicalismo, Rui compreende a religião e a liberdade como o binômio de sua pregação, porque uma não pede subsistir sem a outra. E, quanto à obra política de Rui, assinalais sua prodigiosa atuação no começo da República, com sua firme e clara visão da solução federalista, para o meio brasileiro, enquadrada no sistema de nossas realidades. E isso porque só o federalismo pode conduzir o Direito para as distâncias brasileiras, desprotegidas e exauridas pelo esquecimento. Admiramos, então, como num país que ainda possui uma acanhada vocação filosófica como é o nosso, houvesse ainda quem cuidasse da Filosofia, como Tobias Barreto e seus discípulos, ou com a reação espiritualista, Farias Brito, sem nos esquecer que foi de braços abertos que muitos receberam as ideias de Augusto Comte.
Mostrais como o culturalismo aparece, sem maiores entraves, na Escola do Recife que, além de Tobias, nos deu, entre outros, Graça Aranha, Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua, cada um com o seu ponto de vista, pois, como acentuais, há uma divergência entre Sílvio e Tobias, porque o primeiro acha que a civilização é uma exterioridade, enquanto que o outro identifica a civilização com a própria Cultura.
Sois de opinião que o Brasil pensante é o resultado das características de um povo que formou sua consciência na metade do século XIX. Num país, que não passara pelo crivo de Voltaire, pelo ceticismo de Hume e mesmo pela crítica transcendental de Kant – os continuadores do impulso do Positivismo, lato sensu, atuavam sempre de acordo com as circunstâncias, em meio às guerrilhas filosóficas. Ao apreciarem as obras de Tobias Barreto e de Farias Brito, considerando legítimas apenas as características das teorias, tiveram o mérito de romper com a crosta da Filosofia professoral, “para não pensar, pensando alhures”.
Acentuais que, no seio desse movimento, se fortalece o edifício do Direito Político para afastar duas tendências contrapostas: aquela que chegou a negar o elemento jurídico do Direito Público e aquela que não reconhece outra realidade além da individual, com a destruição do conceito de Estado.
Formalizada a ideia do Direito, dentro do âmbito da Cultura, quando esta é ameaçada, o Direito e o Estado devem estar de prontidão. Cabendo ao Direito, de imediato, mobilizar-se, com todas as suas armas, para enfrentar essa crise.
É que a Cultura não caminha como as águas tranquilas e transparentes de um rio. Quase sempre encontra resistências oriundas da incompreensão e da ignorância.
Quando Copérnico concluiu que a terra estava no céu e que vivíamos no céu, já estávamos longe de nele viver! Em nosso tempo, como assinala Romain Gary, a Literatura tornou-se um traumatismo, porque nela aparece o caráter alucinatório do real. Joyce e Kafka estão aí para serem vistos, Kafka que se tornou um Cristo da incompreensão, cercado pela barbárie política.
Muito embora sejamos um país onde se refletem as consequências de uma civilização transplantada, esses dramas aparecem, de longe em longe, entre nós, como aconteceu, logo após a nossa independência, com o Professor Avelar Brotero, com a triste história de seu compêndio sobre Direito Natural.
Como evocastes, quando ainda se projetavam os nossos cursos jurídicos, Avelar Brotero, liberal convicto, deixava Portugal para pleitear, em nome de seu saber, uma cadeira, no que foi satisfeito, tornando-se o primeiro lente da Faculdade de Direito de São Paulo, onde proferiu sua aula inaugural em l.º de março de 1828.
Tendo redigido um compêndio sobre a matéria que ensinava, insistiu perante o Governo Imperial pela sua publicação. Alvo, entretanto, dos ataques violentos e descomedidos na Câmara dos Deputados, foi, afinal, julgado inadmissível nos cursos jurídicos, “devendo-se ensinar o Direito Natural por outro compêndio que melhor desempenhe a matéria”.
E, no vosso estudo “Avelar Brotero ou a Ideologia sob as Arcadas”, escrevestes: “Pode-se bem imaginar o que esse golpe representou para Avelar Brotero! Aceitando o repúdio de seu compêndio, Brotero parece ter perdido o tom jovial e confiante que animara o seu escrito.” Tornou-se um outro homem, sem atinar por que escandalizava a Câmara dos Deputados ao pregar a tolerância até para ateus!
Seja como for, o consórcio do Direito com as formas literárias sempre existiu, como ficou bem acentuado com as leituras diárias do Código Civil por Stendhal, numa época em que também se vivia de esperanças e de espera.
Na vossa oração como paraninfo de nossa Escola, prevenistes aos bacharelandos:
Voltareis a esta Faculdade e ela vos dirá de coisas novas e velhas. Se aqui fostes sonhadores, se tivestes a ventura de viver com Castro Alves e Álvares de Azevedo, os poetas, ou com Ribas e Pedro Lessa, os juristas, então podereis encontrá-los novamente; mas já será diversa a emoção; faltar-vos-á o sentimento de família que agora possuís, integrados, de corpo e alma, em uma convivência modelada, por forças afetivas e racionais.
E não deixais de fazer este comentário: “O mundo está sequioso de solidariedade, devendo esta começar no seio dos grupos mais ou menos moldáveis ao calor de uma Ideia. Já percebestes como andam vazios os corações do sentido cristão da fraternidade?”
Mas sabeis transmitir a convicção de que o homem, que constrói a máquina, que mostra na harmonia do seu ritmo uma precisão micrométrica sob o comando remoto, pode aferir a sua capacidade criadora, principalmente no campo jurídico, onde se depara a razão de ser da harmonia social.
Não posso deter-me na vossa comunicação ao III Congresso de Direito Penal, em São Paulo, quando mostrastes o que há de paradoxal na concepção do delito. Nem posso amiudar-me na apreciação daquilo que sustentastes numa tese enviada à Universidade de Coimbra, no centenário da abolição da pena de morte em Portugal quando assinalais, de forma impressionante, o interesse humano se imiscuindo no mistério da morte. Mas, não deixo de mencionar a vossa análise aos aspectos fisionômicos de nosso tempo, com o declínio do homem representativo, uma vez que tudo faz crer que a figura do líder político está cedendo lugar às “vedetas” do rádio e da televisão, do cinema e do futebol e, a seguir, com o cansaço das ideologias, convertidas no varejo das fórmulas simplistas de pseudossalvadores.
Quem conhece a vossa imensa produção intelectual descobre, desde logo, que a vossa sensibilidade é de longo alcance e chega a perceber os mais discretos movimentos do corpo social.
Nessa procura, sobe à tona a vossa sensibilidade de poeta que prestigia a espontaneidade das vossas meditações.
Porque é a fidelidade à Poesia que dá maior ênfase ao vosso pensamento. Com essa predisposição, aliás, foram os juristas acolhidos pela Academia Francesa, a começar pelo legitimista Berrier e, em nosso tempo, Maurice Garçon, saudado por André Siegfried, que atribuiu à imaginação do jurista fazer sorrir as aspas e poetizar os balanços.
É que a técnica jurídica usa do poder da ficção, pela qual o mundo do pensamento, como consequência de um gesto mágico, se transforma no real. Do lenço vazio, ante o público curioso, dele esvoaça a pomba da paz e da tranquilidade.
Um dos mais citados estudos de Kantorowicz é sobre os dois corpos do rei inglês. Como o rei não pode morrer, constrói-se a sua efígie que não morre. A distinção entre a dignidade pessoal do governante e a sua dignidade corporativa ou de função são resguardadas, conforme conceitos formulados por juristas italianos. E Coke, um dos mais celebrados do Direito na Inglaterra, observou que o rei, criação de Deus, é mortal; ao passo que o rei, criação do homem, é imortal. Assim, por ocasião dos funerais de Carlos VIII, a exibição de sua efígie, como expressão da dignidade da realeza, dava começo a uma ficção jurídica, que garantia sua continuidade.
Seja como for, a Cultura, que é passado e futuro, que é espera e esperança, é sempre uma presença, sem a qual a vida fica destituída de sentido.
Mandastes inscrever, na torre central da Universidade de São Paulo, como o mais fecundo dos compromissos: “No universo da Cultura o centro está em toda parte.”
Ocorre-me, com esse lema, o céu imaginado por Plotino, no qual tudo está em toda parte, como o sol em todas as estrelas.
Há, por certo, uma ligação lógica entre os vossos pendores e os dos que ocuparam a vossa Cadeira. O nosso sempre lembrado Fernando de Azevedo preferia cultuar os encantos da Poesia, notadamente em seu mister pedagógico. Conheci-o bem de perto, muito embora fosse um homem distante. E nunca o vi senão entregue à análise dos problemas sobre a Educação no Brasil. Certa vez, na porta da Livraria José Olympio, em São Paulo, quando ainda moços, discreteávamos sobre acontecimentos políticos e literários, punha fim à nossa conversa, dizendo:
O que me faz, não raro, perder o sono é a interpretação que corre por aí de uma Educação na encruzilhada. Acho que a fórmula de Dewey, referente a uma Educação para uma civilização em mudança, pode perder seus benefícios, em mãos imprudentes, para dar lugar a uma Educação oportunista!
Carneiro Leão não ostentava veia poética. O que o fascinava era o comportamento social do homem. No livro que escreveu sobre Victor Hugo, fez uma citação que esclarece as tendências de seu espírito. Como eu lhe tivesse contado que a minha avó, residente em Porto Feliz, cidade distante e acanhada pela pobreza, chorara ao ler, nos jornais da Corte, a morte de Victor Hugo, Carneiro Leão, emocionado, empenhou-se em citar, nesse seu livro, o que lhe contara, por achar surpreendente que alguém, no século passado, chorasse pela morte de um poeta estrangeiro, numa terra ainda ao sabor do corriqueiro e da indolência.
De todos os que conquistaram a Cadeira 14, sois o mais confessadamente poeta, com os Poemas do Amor e do Tempo, uma revelação, para Fidelino de Figueiredo, que vos afirmou que “a Poesia e a Filosofia distinguem-se pela fisionomia, mas se alimentam do mesmo sangue”.
A verdade é que o vosso título de filósofo está comprometido pelo Direito e pela Poesia, concebendo o efêmero apenas como um brinquedo da verdade. E os vossos versos redobram-se na preocupação pelo destino humano, mas, para tanto dizeis:
Tudo depende do homem, que carrega n’alma
A caixa de cores da sensibilidade.
E como que sintetizando a singularidade do vosso íntimo, confessais:
Se eu fosse outro, se em mim pulsasse a vida
No empenho de experiências renovadas
Se não vivesse ilhado na prudência,
Fiel a um sonho que talvez me oprima;
Se em lugar de viver tão concentrado
No que sou, no que exijo, no que faço,
Se a luz do amor, de novo, me envolvesse,
Reconduzindo-me à raiz do ser;
Se olvidasse esse mundo de princípios,
Que são verdades para o meu orgulho,
De amor sereno e de verdade estrita,
Abrir-te-ia a ponte de meus braços,
Ó tu que me amas silenciosa e triste
E me queres assim, distante e frio.
Sr. Miguel Reale, trazeis convosco, em apoio de vossas afirmativas, a esperança, que sempre encheu de luz a vossa intrepidez de pensador.
A história do vosso pensamento parece acompanhar aquela aurora que o Padre Antônio Vieira celebrou no Dia do Santo Nascimento, quando as estrelas começavam a apagar-se no céu. É que procurais desvendar, mesmo nas noites sombrias do presente, um panorama em que possa surgir a criatura humana, na beleza milagrosa de sua existência, sem que sobre ela pingue a gota da baba de Caim, como no delírio de Brás Cubas. E a vossa presença, entre os acadêmicos, é uma festa para os vossos conterrâneos, amigos, discípulos, colegas e admiradores, para todos, enfim, que não perderam a esperança nos valores fundamentais da vida!
21/5/1975