"Aventuras de um economista brasileiro"
"O Nordeste brasileiro, onde nasci e vivi até aos vinte anos, constitui o mais antigo núcleo de povoamento do Brasil. Após uma fase de prosperidade nos séculos XVI e XVII, a região conhece um longo declínio, o que explica que as estruturas sociais aí sejam mais rígidas que em qualquer outra área do país. A descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais lhe retirou a preeminência econômica, e a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro significou a perda da preeminência política. Na minha infância, no sertão, a política absorvia parte importante da vida dos chefes de grandes famílias: consistia essencialmente em rivalidades e conflitos, com apelo corrente à violência, entre famílias e grupos de famílias locais. As incursões de cangaceiros eram freqüentes. Histórias de violências povoaram a minha infância. Referiam-se mais a atos de arbitrariedade, prepotência e crueldade que a gestos de heroísmo à western.
Nesse mundo marcado pela incerteza e pela brutalidade, a forma mais corrente de afirmação consistia em escapar para o sobrenatural. Os grandes milagreiros existiam como legenda, mas também como presença. Não longe de onde morávamos, reinava o Padre Cícero. Quando eu tinha oito anos, surgiu um chefe político no estado, que convulsionou profundamente a vida de toda a comunidade: João Pessoa que, no espírito da população, fundia as imagens do chefe e do milagreiro. Eu ouvia crédulo, das domésticas de minha casa, as histórias desse homem que se disfarçava "numa pessoa qualquer" para praticar o bem nos bairros mais humildes. O assassínio brutal desse homem (exatamente no dia em que eu completava os meus dez anos) provocou uma tal angústia coletiva que ainda hoje não posso me recordar sem me emocionar.
Esses dados quiçá possam explicar a formação em meu espírito de certas idéias-força que considero como invariantes, das quais dificilmente poderia libertar-me sem correr o risco de desestruturar minha própria personalidade. A primeira é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva. (...) Das influências intelectuais que sobre mim se exerceram desde o ginásio, identifico três. Em primeiro lugar, a positivista, com a primazia da razão, a idéia de que todo conhecimento em sua forma superior se apresenta como conhecimento científico. Meu ateísmo, que cristalizara desde os 13 anos, encontrou aí uma fonte de justificação e um motivo de orgulho. A segunda linha de influência vem de Marx, como subproduto de meu interesse pela História. Foi lendo a História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, que me dei conta pela primeira vez de que a busca de um sentido para a história era uma atividade intelectual perfeitamente válida. A terceira linha de influência é a da sociologia norte-americana, em particular da teoria antropológica da cultura, com a qual tomei contato pela primeira vez, aos 17 anos, lendo Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. (...)
O desejo de vincular a atividade intelectual criadora à história será o ponto de partida de meu interesse pelas ciências sociais. Fixou-se no meu espírito a idéia de que o homem pode atuar racionalmente sobre a História. Cheguei ao estudo da economia por dois caminhos distintos: a história e a organização. Os dois enfoques levavam a uma visão global, a macroeconômica. Dessa forma, a economia não chegaria a ser para mim mais que um instrumental. Nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico. (...)
Minhas atividades de economista se desdobraram em três fases. A primeira compreende os anos que passei na CEPAL, que me permitiram um contato direto com os problemas do desenvolvimento na maior parte dos países latino-americanos. A segunda são os anos que dediquei ao Nordeste brasileiro, como planejador e executor da política de desenvolvimento da região nos governos de Kubitschek, Quadros e Goulart. A terceira são os anos de vida universitária, primeiro nos Estados Unidos, e em seguida, e mais prolongadamente, em Paris. Essas atividades, no que respeita à pesquisa, se desenvolveram em torno de três temas: o fenômeno da expansão da economia capitalista, o da especificidade do subdesenvolvimento e o da formação histórica do Brasil vista do ângulo econômico. O esforço para compreender o atraso brasileiro levou-me a pensar na especificidade do subdesenvolvimento. Convenci-me desde então de que o subdesenvolvimento é a resultante de um processo de dependência, e que para compreender esse fenômeno era necessário estudar a estrutura do sistema global: identificar as invariâncias no quadro de sua história. O desejo de compreender o meu próprio país absorveu a parte principal de minhas energias intelectuais no quarto de século transcorrido desde que escrevi a minha tese sobre a economia colonial brasileira. (...)
As circunstâncias que modificaram o curso de minha vida em 1964 somente em parte são responsáveis pela decisão que tomei de dedicar-me inteiramente à vida acadêmica. A participação indireta e direta que durante quinze anos tive na formulação de políticas convenceu-me de que nossa debilidade maior está na pobreza de formulações teóricas e de idéias operacionais. A esse vazio se deve que a atividade política tenda a organizar-se em torno de esquemas importados os mais disparatados. A linha de menor resistência do mimetismo ideológico tende a prevalecer. (...)
Se tivesse de, em poucas linhas, traçar o retrato típico do intelectual nos nossos países subdesenvolvidos, diria que ele reúne em si noventa por cento de malabarista e dez por cento de santo. Assim, a probabilidade de que se corrompa, quando já não nasce sem caráter, é de nove em dez. Se escapa à regra, será implacavelmente perseguido e, por isso mesmo, uma viravolta inesperada dos acontecimentos poderá transformá-lo em herói nacional. Se persiste em não corromper-se, daí para a fogueira a distância é infinitesimal. De resto, por maior que seja a sua arrogância, nunca entenderá o que lhe terá ocorrido."
"Aventuras de um economista brasileiro" (1972), em International Social Sciences Journal, vol. XXX, nº 1-2, 1973, Paris.
"A retirada"
"No dia 31 de março [de 1964], estava em meu gabinete quando, às 22h30, entrou um auxiliar para informar-me de que ouvira pela Voz da América que uma sublevação militar brotara em Minas Gerais, citando os nomes dos cabeças etc. Engoli o meu travo de humilhação, pensando que seria sempre pelos "irmãos do Norte" que tomaríamos conhecimento do que de importante acontecia entre nós. Várias confirmações chegaram em seguida. À meia-noite, um vigia subiu nervoso informando que militares haviam postado uma metralhadora diante do edifício da SUDENE. Saí do meu gabinete à 1h30 de 1º de abril, e a metralhadora havia sido escondida, pois eu não a vi.
Dirigi-me para casa, em Boa Viagem. A meio caminho, veio-me ao espírito, como uma faísca que subitamente deixa ver no meio do escuro, que tudo podia estar sendo decidido naquele instante. Em casa, eu seria facilmente preso e posto à margem de tudo. Disse ao motorista que desse meia-volta e se dirigisse ao Palácio das Princesas, sede do governo estadual. Lá encontrei um grupo de pessoas em torno do governador Miguel Arraes, que falava ao telefone. Às 3 horas, Arraes recolheu-se para repousar e, passadas as 4 horas, decidi ir até minha residência, onde vivia sozinho, tendo como única companhia um cachorro. Aqui e acolá cruzei tanques de guerra, mas em nenhum momento meu carro, de placa do governo federal, foi convidado a parar. Às 8h30 da manhã, estava de volta à cidade, dirigindo-me à SUDENE. (...)
Fui para casa e subitamente senti o peso de estar só. A solidão pode ser uma coisa rica, mas também terrificante. Quis arrumar papéis, ver as notas que estivera redigindo como um testamento intelectual. Mas tudo perdera sentido. Era como se um grande vazio se houvesse formado em torno de mim, repentinamente. Ocorreu-me ouvir música. Como uma túnica inconsútil, ela me foi envolvendo suavemente. Ouvi a cantata Alexandre Nevsky, de Prokofiev. Deixei-me embalar pelo elã de sua cavalgada, quase chorei na travessia do campo dos mortos, e respirei aliviado com o canto da vitória. Sem música, viver seria muito mais difícil.(...)
Atravessava pela última vez a porta daquela instituição que surgira e adquirira fama mundial sob minha direção. Era muito mais do que uma agência administrativa. Graças a ela, emergira o Nordeste como entidade política. Tudo tivera de ser disputado palmo a palmo. Nunca me ocorrera pensar que a Operação Nordeste tivesse um ponto final tão melancólico, com seu comandante saindo subrepticiamente, em meio a pessoas que, temendo comprometer-se, evitavam cumprimentá-lo. (...) As prisões se multiplicavam, como se estivesse sendo executado minucioso plano adrede preparado para desmantelar toda a capacidade de resistência da sociedade civil. Dedicava-me a ler coisas sem conexão com o presente. Caiu em minhas mãos o livro de Albert Camus, La Peste, que li com forte emoção. (...) Tirava os olhos do livro de Camus e via a cidade invadida por roedores enormes, a deslocar-se com grande rapidez, despejando no ar gases pestilentos. Foi nesse estado de espírito que ouvi pelo rádio a leitura dos atos institucionais que excluíam da vida pública um grande número de cidadãos. Entre os nomes que constituíam o pelotão de frente, figurava o meu. Cassado de direitos! Proibido de ocupar-se da coisa pública! Processo secreto. Provavelmente, a acusação fora a mesma feita a Sócrates: perverter a mocidade! (...)
A situação no Rio de Janeiro era constrangedora. Muitos amigos estavam nas prisões ou asilados em embaixadas. E os encontros fortuitos nas ruas podiam ser embaraçosos, pois muita gente não queria ser vista (fotografada, se dizia) na companhia de um "cassado". Decidi então aceitar um convite do Instituto latino-americano de planejamento econômico e social, ligado à CEPAL, par pronunciar uma série de conferências em Santiago do Chile. Um contrato de três meses que me daria tempo para tomar pé na nova realidade e encaminhar decisões a mais longo prazo. (...) Em poucos minutos, meu avião decolava rumo ao Pacífico. Sentira certa angústia ao cortar o último vínculo com o mundo que por tanto tempo dera sentido à minha vida. Dedicara anos a organizar minha fantasia, na esperança de um dia transformá-la em instrumento de ação a serviço de meu pobre e desvalido Nordeste. Agora, essa fantasia estava desfeita, desmoronara como uma estrela que se estilhaça. Era como se uma enxurrada tudo houvesse arrastado. Subitamente, deparei à direita do avião o perfil altaneiro dos picos gelados dos Andes. Deixei-me levar pelo deslumbramento. Eram os vastos horizontes do mundo com seu sedutor canto de sereias. Senti ligeiro calafrio, como se meu adormecido espírito de cavaleiro andante fizesse sinais de despertar."
A fantasia desfeita, 1989
"Subdesenvolvimento e dependência"
"Uma observação mesmo superficial da história moderna põe em evidência que formações sociais assinaladas por grande heterogeneidade tecnológica, marcadas desigualdades na produtividade do trabalho entre áreas rurais e urbanas, uma proporção relativamente estável da população vivendo em nível de subsistência, crescente subemprego urbano - isto é, as chamadas economias subdesenvolvidas - estão intimamente ligadas à forma como o capitalismo industrial cresceu e se difundiu desde os seus começos. A Revolução Industrial - a aceleração no processo de acumulação de capital e o aumento na produtividade do trabalho, ocorridos entre os anos 70 do século XVIII e os anos 70 do século XIX - teve lugar no seio de uma economia comercial em rápida expansão, na qual a atividade de mais alta rentabilidade muito provavelmente era o comércio exterior. O efeito combinado do incremento de produtividade nos transportes - redução dos fretes a longa distância - e da inserção no comércio de um fluxo de novos produtos originários da indústria deu origem a um complexo sistema de divisão internacional do trabalho, o qual acarretaria importantes modificações na utilização dos recursos em escala mundial. Para compreender o que chamamos hoje em dia de "subdesenvolvimento" faz-se necessário identificar os tipos particulares de estruturas socioeconômicas surgidas naquelas áreas onde o novo sistema de divisão internacional do trabalho permitiu que crescesse o produto líquido mediante simples rearranjos no uso da força de trabalho disponível.
A nossa hipótese central é a seguinte: o ponto de origem do subdesenvolvimento são os aumentos de produtividade do trabalho engendrados pela simples realocação de recursos visando a obter vantagens comparativas estáticas no comércio internacional. O progresso técnico - tanto sob a forma de adoção de métodos produtivos mais eficientes como sob a forma de introdução de novos produtos destinados ao consumo - e a correspondente aceleração no processo de acumulação (ocorridos principalmente na Inglaterra durante o século antes referido) permitiram que em outras áreas crescesse significativamente a produtividade do trabalho, como fruto da especialização geográfica. Este último tipo de incremento de produtividade pode ter lugar sem modificações maiores nas técnicas de produção, como ocorreu nas regiões especializadas em agricultura tropical, ou mediante importantes avanços técnicos no quadro de "enclaves", como foi o caso daquelas regiões que se especializaram na exportação de matérias-primas minerais. A inserção de uma agricultura num sistema mais amplo de divisão social do trabalho, ou seja, transformação de uma agricultura de subsistência em agricultura comercial, não significa necessariamente abandonar os métodos tradicionais de produção. Mas se essa transformação se faz através do comércio exterior, os incrementos de produtividade econômica podem ser consideráveis. Certo, o excedente adicional assim criado pode permanecer no exterior em sua quase totalidade, o que constituía a situação típica das economias coloniais. Nos casos em que esse excedente foi parcialmente apropriado do interior, seu principal destino consistiu em financiar uma rápida diversificação dos hábitos de consumo das classes dirigentes, mediante a importação de novos artigos. Este uso particular do excedente adicional deu origem às formações sociais atualmente identificadas como economias subdesenvolvidas.
Desta forma, o capitalismo industrial levou certos países (os que lideram o processo de industrialização) a especializar-se naquelas atividades em que métodos produtivos mais eficientes penetravam rapidamente, e levou outros a especializar-se em atividades em que essa forma de progresso técnico era insignificante, ou a buscar a via da alienação das reservas de recursos naturais não-reprodutíveis. A "lei das vantagens comparativas", tão bem ilustrada por Ricardo com o caso do comércio anglo-lusitano, proporcionava uma justificação sólida da especialização internacional, mas deixava na sombra tanto a extrema disparidade na difusão do progresso nas técnicas de produção como o fato de que o novo excedente criado na periferia não se conectava com o processo de formação de capital. Esse excedente era principalmente destinado a financiar a difusão, na periferia, dos novos padrões de consumo que estavam surgindo no centro do sistema econômico mundial em formação. Portanto, as relações entre países cêntricos e periféricos, no quadro do sistema global surgido da divisão internacional do trabalho foram, desde o começo, bem mais complexas do que se depreende da análise econômica convencional.
Aspecto fundamental, que se pretendeu ignorar, é o fato de que os países periféricos foram rapidamente transformados em importadores de novos bens de consumo, fruto do processo de acumulação e do progresso técnico que tinha lugar no centro do sistema. A adoção de novos padrões de consumo seria extremamente irregular, dado que o excedente era apropriado por uma minoria restrita, cujo tamanho relativo dependia da estrutura agrária, da abundância relativa de terras e de mão-de-obra, da importância relativa de nacionais e estrangeiros no controle do comércio e das finanças, do grau de autonomia da burocracia estatal, e fatos similares. Em todo caso, os frutos dos aumentos de produtividade revertiam em benefício de uma pequena minoria, razão pela qual a renda disponível para consumo do grupo privilegiado cresceu de forma substancial. Convém acrescentar que, tanto o processo de realocação de recursos produtivos como a formação de capital que a este se ligava (abertura de novas terras, construção de estradas secundárias, edificação rural etc.) eram pouco exigentes em insumos importados: o coeficiente de importações dos investimentos ligados às exportações em expansão era baixo. Exceção importante, constituiu-a a construção da infra-estrutura ferroviária, a qual foi financiada do exterior e assumiu parcialmente a forma de "enclave" produtor de excedente que não se integrava na economia local. De tudo isso resultou que a margem da capacidade para importar, disponível para cobrir compras de bens de consumo no exterior, foi considerável. As elites locais estiveram, assim, habilitadas para seguir de perto os padrões de consumo do centro, a ponto de perderem contato com as fontes culturais dos respectivos países.
A existência de uma classe dirigente com padrões de consumo similares aos de países onde o nível de acumulação de capital era muito mais alto, e impregnada de uma cultura cujo elemento motor é o progresso técnico transformou-se assim em fator básico na evolução dos países periféricos.
O fato que vimos de referir - e não seria difícil comprová-lo com evidência histórica - põe a claro que, no estudo do subdesenvolvimento, não tem fundamento antepor a análise em nível da produção, deixando em segundo plano os problemas da circulação, conforme persistente tradição do pensamento marxista. Para captar a natureza do subdesenvolvimento, a partir de suas origens históricas, é indispensável focalizar simultaneamente o processo da produção (realocação de recursos dando origem a um excedente adicional e forma de apropriação desse excedente) e o processo da circulação (utilização do excedente ligada à adoção de novos padrões de consumo copiados de países em que o nível de acumulação é muito mais alto), os quais, conjuntamente, engendram a dependência cultural que está na base do processo de reprodução das estruturas sociais correspondentes. Certo, o conhecimento da matriz institucional que determina as relações internas de produção é a chave para compreender a forma de apropriação do excedente adicional gerado pelo comércio exterior; contudo, a forma de utilização desse excedente, a qual condiciona a reprodução da formação social, reflete em grande medida o processo de dominação cultural que se manifesta em nível das relações externas de circulação."
O mito do desenvolvimento econômico, 1974.
"Da objetividade do economista"
"O conflito que alguns economistas brasileiros têm tido com os competentes teóricos do Fundo Monetário Internacional ilustra claramente esse problema da objetividade. Os economistas do FMI aceitam, como postulado, que nada é mais importante para um sistema econômico que um grau mínimo de estabilidade. Como todo postulado, este resulta de observações empíricas, feitas em países de estruturas relativamente homogêneas. Nessas estruturas, o crescimento econômico ocorre com um grau moderado de inflação. Ultrapassado esse grau, os critérios de racionalidade começam a falhar, reduzindo-se o crescimento ou aumentando o seu custo social. Em tais condições, a terapêutica para corrigir a inflação consiste, via de regra, numa redução do gasto público ou do investimento privado.
Ao tentar universalizar essas regras, os economistas do FMI cometem um erro de sérias conseqüências para os países subdesenvolvidos, tanto mais grave quanto decorre da aplicação de critérios supostamente científicos.
O centro da questão está em que postular a estabilidade é coisa distinta conforme se trate de estruturas desenvolvidas ou subdesenvolvidas. Postular a estabilidade nos Estados Unidos é postular o pleno emprego da mão-de-obra, ou seja, a utilização plena da capacidade produtiva. Ora, isso vem a ser, em última instância, postular o ritmo de crescimento máximo compatível com os princípios de convivência social aceitos naquele país. Evitar que a pressão inflacionária passe de certo ponto crítico, nos Estados Unidos, significa manter a taxa de crescimento em seu nível mais alto. Por outro lado, evitar qualquer colapso da procura efetiva significa defender um elevado nível de investimento. Assim, bastaria que os Estados Unidos conseguissem manter uma razoável estabilidade em sua economia para que a taxa histórica de seu crescimento aumentasse e possivelmente dobrasse. Podemos, portanto, afirmar que os economistas do FMI são plenamente objetivos quando pensam em termos de economia altamente desenvolvida. Objetivos em função dos princípios básicos que regem a vida norte-americana, quais sejam, lograr o máximo bem-estar social dentro do regime de livre iniciativa econômica.
Transplantadas para um país como o nosso, as deduções do FMI resultam ser muito menos objetivas. Não sendo possível pensar em termos de pleno emprego, a estabilidade passa a ser um problema estritamente de nível de preços. Ora, tidas em conta as flutuações da procura externa e a precária orientação dos investimentos, manter estável o nível de preços, sem outras medidas, pode custar desemprego permanente de parte da capacidade produtiva. Dessa forma, a estabilidade poderia ter um custo social mais alto do que a própria inflação. Transformar a estabilidade de meio em fim é colocar como princípio básico de convivência social a imutabilidade na distribuição de renda. Como isso não foi tornado explícito pelos economistas do FMI, temos de concluir pela falta de objetividade dos mesmos ao abordar nossos problemas, ou seja, pela falta de racionalidade com respeito aos juízos de valores básicos."
A pré-revolução brasileira, 1962