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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alberto Faria

RESPOSTA DO SR. ALBERTO FARIA

SENHOR Gustavo Barroso.

Antevejo que sem substância nem sal pareça, a muitos críticos do tempo d’agora, nosso diálogo desta noite festiva. E de certo o é numa parte, a de quem segue o leader da conversa, menos apercebido que ele da erudição acadêmico-francesa. Não importa. A própria obrigatoriedade temal, já de si mesma escusa bastante a ambos, também devera neutralizar o ácido à crítica, de seu turno invariável no processo hostil. A mazela da repetição, sempre alegada contra os imortais, sendo comum aos públicos censores dos respectivos discursos (não raro imortalizandos, a breve passo), dá-lhes igual direito à zombaria: uns e outros, entrefitando olhos maliciosos, apenas fazem lembrar o risonho encontro dos harúspicos, que a antiguidade ingênua cria ledores de boa fortuna alheia, nas palpitantes entranhas das vítimas abertas. Mas, esqueçamos desdéns postiços a velar ambições bem humanas; digo assim, porque considero tais as da compra de sonhos por glórias, na feira de vaidades que é o mundo.

Vós, Sr. Gustavo Barroso, falastes como convinha de Alcindo Guanabara e D. Silvério Pimenta, daquele com simpleza e graça áticas, deste com austeridade e magnitude romanas, escapando ao moteto de velho dizedor, para taxar pessoa cuja conversação lhe parecesse balofa e insulsa: Homo sine latinitate et græcitate. Entretanto, receio que alguém, na confusão de espírito e letra, imagine estou a increpar-vos mansamente, per antiphrasis ou conversio sermonis, a abundância do latim dispendido, como aparato gozoso de substituir aqui a um mestre na língua ciceroniana...

Mas antes de tratá-los a primor, buscastes ferir-vos e ferir-nos, de leve embora, com alfinetes alados, ou asas de espinho, aliás estrangeiros à Casa de Maribondos, precursores das louras Abelhas de ferrão. Anedotas em revoada, melhor talvez, revôo de epigramas longínquos, pedem comentos algo retificativos, atenuando vosso gesto de Benjamim acadêmico, por isto mesmo álacre e bulhento. E há de perdoá-los o coração de moço, que tanto se orgulha da amizade desta velhice, isenta de quaisquer invejas.

Depois de aludirdes a jocosas pegas de cara, no grêmio que nos serviu de modelo, qual a do bispo de Blois a Clermont de Tonnerre, autoridade prelatícia de outra diocese, por ele quase excomungado literariamente, na insinuação de Tácito francês; citastes o invento do escrutínio maquinal, atribuído a Charles Perrault, que só os contos de fada celebrizariam, para aconselhar-nos, com sarcasmo tolhiço, o uso das bolas brancas e bolas pretas. E acedestes linhas avante, sobre a afirmação de nunca haverdes seguido o exemplo de um dos Montesquious, grato a vários de nossos confrades, zombadores da Academia até a hora desta abrir-lhes o seio: que “este é mais acolhedor do que parece”. E que “Os Mézerays, que votam, por sistema, contra toda a gente, em geral são raros, e não há Cérbero que se não adoce à vista de um bolo de mel”.

Desagrave-se a memória do sucessor de Voiture, tão injustamente apreciável, através da referência demasiado sintética. Sobrevivendo ao invento de Perrault década e pico, lançava, sempre uma bola preta na urna. Descoberto e inquerido, afinal, respondeu, explicando o protesto singular: “C’est pour laisser à la Postérité un monument de l’indépendence de 1’Académie dans les élections.”
As escolhas eram então a sabor do rei, manancial perene de humilhações. Baste um só caso a desenhar o servilismo da época. Em 1683, tendo elegido a Academia o príncipe dos fabulistas modernos, Luís XIV, que a este não perdoava o devotamente afetuoso a Fouquet, vetou o ato daquela; mas, ao cabo de seis meses, permitindo-lhe revalidá-lo, mediante um segundo escrutínio, dava o motivo aos delegados da ilustre companhia: “Vous pouvez recevoir La Fontaine; il a promis d’être sage.”

Se Mézeray não houvesse falecido, pouco antes, teria o desgosto de votar contra o poeta, pintor de campos e animais, visto como nem o mel da poesia, que flui em música adormentadora até das próprias feras, era capaz de iludir a vigilância a dito Cérbero.

Oxalá conte nossa corporação maioria absoluta de membros semelhantes, quando o Acaso improvisar no Brasil um Luís XIV de goiabada. Tiranos de alma e espírito... nem de fruta e açúcar!
Enganastes-vos, mais certo, enganaram-vos, Sr. Gustavo Barroso, no que concerne ao eclesiástico Furetière, assim arrolado entre grotescos: “...segundo alguns historiadores, empalmou folhas impressas do Dicionário da Academia e, iludindo a boa-fé do chanceler de França, obteve privilégio de publicação da obra, sendo expulso da nobre companhia”. Divergem historiadores de minha estante, mostrando-se favoráveis ao acadêmico, de mais graça que unhas no controverso affaire. A redação inicial do léxico referido fora confiada a Vaugelas, saboiardo aceito no grêmio pela fama de falar bem francês; mas que não ativava o labor, a despeito de pensionado com 2.000 libras, dando ensanchas à Musa gaiata de Bois-Robert:

Depuis six ans dessous l’F on travaille
Et le destin m’aurait bien obligé
S’il m’avait dit: Tu vivras jusqu’au G.

O prior de Chaisne empreendeu fazer, por conta própria, outro léxico, melhor no intuito e na traça; e, desde logo, ferveram ciúmes, que acabaram por eliminá-lo dali em 1685, após 23 anos de permanência benéfica. Combatente de rija têmpera, escreveu em prosa e verso contra a Academia, formando seus libelos dois volumes tirados à luz postumamente. A Fureteriana, de grande curiosidade, encerra plano e escorço de um poema alegórico e tragiburlesco, em seis cantos, intitulado Os partos da Academia. A primeira edição do dicionário desta é de 1696, quatro anos posterior ao traspasse de Furetière e dois ao aparecimento do respectivo léxico em letras de molde. Releva notar que os compiladores do Dicionário de Trevoux aproveitaram-se de todo seu trabalho lexicográfico, deveras precioso, sem uma única vez citar-lhe o nome...

Eis aí as vicissitudes de um remoto homem de letras, em vida suspeito de expoliador e depois de morto expoliado. Não as lembro para recomendar-vos cautela, porque vossos inimigos jazem confundidos e vossa obra é inconfundível.

Condensando o ardil da eleição de Antonio Scacciati, o morto-vivo da Academia Romana, conforme à macabra facécia de Hoffmann, rendestes-nos graças pelos sufrágios definitivos antes que vos finásseis (de mentira também... já se vê). Percebe-se que floristes de riso uma queixa, decorrente de três tentativas menos felizes; mas a negaça de alguns colegas nossos, afinal congregados para deferir-vos a porfiosa palma, apenas significava desejo de apurar-vos a paciência, virtude mais que rara na mocidade.

Vosso imediato predecessor andava pelos 37 anos de idade, apenas três além dos que contais, quando publicou a Vida de D. Viçoso, onde se oferece à meditação dos moços, como ele era e vós sois o período redondo: “É a caridade virtude de seios mais abertos que se pode imaginar. Enquanto as outras intendem com algum particular objeto, como a paciência em sofrer, a temperança em conter-se, a fortaleza em não acobardar-se aos perigos, a clemência em perdoar, só ela juntamente sofre, modera-se, arrosta, perdoa, e executa por cheio o que as mais acabam por partes divididas.” E folgo, Sr. Gustavo Barroso, que tenhais expresso autoconsolatoriamente, há pouco, aquilo que em termos próximos exprimiu, quarenta e seis anos faz, o sacerdote modesto: “Parece que a bondade das empresas neste mundo se pode avaliar pelo peso das contradições que encontram, e dizer que tanto melhores são, quanto maiores montes de obstáculos lhes apresentam os homens.”

Pois foi ao autor desse livro de filosofia moral e prática, na aparência de simples perfil descritivo de um varão benemérito, livro admirável em seu gênero e sem par no Brasil, que elegemos de consciência, quando já resvalava na campa entreaberta, não ao nobre prelado marianense, pese embora a irritados e irritantes expoentistas afirmá-lo eu, com a franqueza habitual e o habitual destemor de responsabilidades.

Destinada a puras cogitações literárias, como refúgio único à aristocracia do talento, neste país democratizado até à medula, a Academia não deve ser praça de expoência de coisas estranhas a seu objetivo, e menos pode ser circo dos expoentes de coisa nenhuma. Diversos são os lugares que convém, aliás honestamente, no genuíno sentido do vocábulo, a exclusivos guieiros de política, urdidores de diplomacia, técnicos de guerra, curas de almas, ou de corpos, artistas de indústria, intermediários de comércio (ainda mesmo o de livros, que arma dinheirosos em Mecenas). Dos grandes senhores, indebitamente entrados à Academia Francesa, dizia Scudéry “n’avoir de plume qu’au chapeau”. E, mais áspero, de Bussy, o conde, incluindo na sátira aos ricos de haveres, mas pobres de espírito, chamava-lhes sots de qualité.

A idéia de nossa imortalidade fictícia, que tantos ambicionam sem condições para fruí-la, pode exprimir-se com palavras de um moderno e atual, aplicáveis aos fundadores desta Casa:

Ils répètent à la démocratie, vraiment trop sourde, que la vie n’est pas possible sans le rêve, qu’aimer ce qui est beau c’est déjà être bon; qu’échapper à la prise des besognes serviles c’est commencer d’être heureux; que fixer, par le sortilège de l’art, un moment entre deux éternités, c’est presque vaincre la mort...

Outros sagraram bispo e arcebispo ao já venerando D. Silvério Pimenta; nós apenas consagramos nele o escritor clássico. Nem nos requerera apoio, alegando achaques, prestes a finarem-no; porque, nesse caso, era também o de responde-se-lhe, como Duclos a Bougainville: “Não está em nós dar-vos a extrema unção.” E Bougainville, academizado mediante o embuste da má saúde, ainda teve nove anos de vida experta, mais quatro que o pseudo trôpego cardeal Peretti, após a transfiguração no árdego papa Xisto V...

Se o houvéssemos acolhido sem aquele título legítimo, conquista da mocidade, assentando-o na cadeira por Alcindo Guanabara criada, debaixo da égide de Joaquim Caetano; a jovens cultores da prosa e do verso, mais cheios de olhos que cauda de pavão, olhos acesos em muita cobiça para tudo ver aqui, lícito seria soprar-nos aos pavilhões auriculares, com dorido carinho, o apólogo de Olivier Patru: “Un ancien grec avait une lyre, à laquelle se rompit une corde d’argent, et la lyre perdit son harmonie.”
Vós, moço e escritor, Sr. Gustavo Barroso, deveis prezar duplamente vossa significativa investidura, para ajudar-nos a manter o doce convívio intelectual, jamais bafejando a pretensão de intrusos, que levariam à ruína a casa fundada sob os auspícios de Machado de Assis, o qual nunca foi, ou quis ser mais, nem menos que – homem de letras: de boas letras, ajunte-se distintivamente.

Volvendo à obra capital do “Padre Silvério”, que Aureliano Pimentel colocou entre os “primeiros prosadores portugueses” (brasileiros da língua portuguesa, diria eu por evitar equívoco), reproduzirei duas linhas da autoridade citada, com endosso da de Macedo Soares, ao tempo da edição príncipe: “O estilo tem os mesmos atrativos que o do célebre e admirado autor da Vida do Arcebispo D. Fr. Bartolomeu dos Mártires.” Efetivamente, cotejados os monumentos congêneres, ressalta uma eqüipolência de valores artísticos, denunciativa de assimilação completa, assim no meneio da idéia, como no sabor da vernaculidade, pois que o segundo não é mero decalque do primeiro. A frase natural daquele, emparelhando com a espontânea deste, longe está de impressionar como remendo de fina púrpura em grosso burel. Mas a semelhança é tamanha, que em ambos se nos depara até a freqüência de um mesmo galicismo, aliás encontradiço também nas páginas do recipiendário de hoje... A que monta isto, porém? D. Francisco Manuel de Melo socorre-nos com a delicadeza da resposta, em crítica elegante a um belo produto coevo: “Acham-se contudo, por todo este livro, uns leves descuidos, que eu comparo aos sinais do rosto das formosas, os quais, sendo em alguma maneira defeitos, servem de lhe acrescentar a gentileza.”

Escrevinhadores carregados de preguiça mental, que são a imensa maioria dos gazeteiros da decadência, preferiram aclamar o antiste êmulo de Fr. Luís de Sousa, louvando-se de outiva no crédito dos filólogos que mencionei, a lerem-lhe o tomo repleno de interesse social, político e religioso. Não descuriosa, porém, seria sua atitude, se avisados fossem de chistes manifestos, em vez de rabugens presumíveis, no correr dessa narrativa de trabalhos apostólicos, onde facilmente achastes, Sr. Gustavo Barroso, “episódios suaves como o do Arcebispo e o pastorinho”, do monge lusitano, que perfuma numerosas antologias.

Para que se avezem a estimá-lo darei, a seguir, o engodo de um par de anedotas características, ali topadas:

A primeira vez que saiu em visita geral do bispado, achando-se a poucas jornadas de Mariana, no lugar chamado Pinheiro, acertou de consultar a seus padres qual deles pregaria ao povo; parando a dúvida entro dois, se havia de ser Luís Antônio dos Santos, ou José de Araújo Saragoça, este para se desencarregar no outro alegou que, por ser mais prático e autorizado, lhe competia, dizendo com referência a sua escusa: Ubi est major, cessat minus, em lugar de Ubi est major, cessat minor, como pedem as leis da concordância gramatical, ao que acudiu o Sr. Bispo com este espirituoso reparo: “Com o que assim se põe neutral?”, aludindo juntamente à esquivança de pregar e ao erro de gramática. Riram-se à grande os circunstantes, e mais se riram porque o bom padre não deu pelo erro, nem pela correção; e o Sr. Bispo, sem insistir, dissimulou jeitosamente o caso, e passou a conversação para outra matéria.

Encontrara-se o Sr. Bispo com um português, e pode ser filho da mesma terra, ou de suas vizinhanças. Alegrou-se muito o homem com a visita de tão ilustre patrício, e, como era natural, caiu a conversação sobre as cousas de sua terra, e se prolongou largamente. Entretanto, chegou à casa um pobre campônio, que trazia alguma dependência com o prelado; e, estando este a praticar com outra pessoa, na sala, se pôs a esperar, fora da porta, até que o primeiro despejasse e ele pudesse entrar; de maneira que, sem ser visto, ouviu toda a conversação dos dois interlocutores. Fazia o português grandes encarecimentos de sua terra, louvava o clima, exaltava o solo, engrandecia os homens, e punha tudo acima das estrelas; até que, num arroubo de entusiasmo, exclamou: “Enfim, Sr. Bispo, dizer que nossa terra é terra por onde Jesus Cristo andou em pessoa, e cá por esta não veio.” A este ponto não se pôde mais conter o camponês e, de fora, acudiu com a sua, dizendo: “É foi bom que cá não viesse.” Admirou-se o Sr. Bispo de uma tal proposição, tão pouco da religiosidade mineira, e perguntou por que assim falava. Então confirmou o interruptor seu dito com esta resposta: “Sim, senhor; foi bom que não viesse cá, porque, se viera, não acharia quem o crucificasse, e ainda hoje estaríamos sem a redenção.” Com esta resposta atalhou-se e desconsertou-se tanto o português rebolão, que, sem proferir mais palavra, foi despejando a sala, e o rústico teve ocasião de entrar, e tratou com o prelado o negócio a que vinha.

A agudeza do matuto, com a redenção, vale a de D. Viçoso, com o neutral, pelo que bem se aviriam, no trato do negócio...
Mas tornemos a nossos mortos queridos a fim de recompor-lhes os louros das coroas, meio amarfanhadas por mãos descaroáveis. D. Silvério Pimenta assim procedeu, ao transpor os umbrais da Academia, fazendo o elogio de Alcindo Guanabara. Mediante extratos de ótimas orações, que ele produzira dentro e fora do Congresso Nacional, esmerou-se em provar-lhe o sincero deísmo. Era o basta peremptório à anedota, da incoercível língua farpada de um Marcial indígena, representando o jornalista a indagar, de quem lhe encomendara um artigo, para folha de Semana Santa, se devia escrever pró, ou contra Cristo? Impresso o discurso de recepção, quiseram lobrigar nas entrelinhas a própria defesa do autor, furtando corpo à mácula de haver preenchido a vaga de um ateu. Com a íntima força da caridade, que definira à maravilha, o príncipe de igreja sorriria, indulgente, a este respingar despeitoso dos tisnadores, ante o fracasso da empresa malédica. Análogo proceder tivestes, Sr. Gustavo Barroso, compenetrando-vos da frase de Aristófanes, aplicada a sátrapa asiático: “O homem é cousa frágil, exposta a todos os acidentes”, frase essencialmente verdadeira e mais de cristão que de gentio. Por isso, não hesitastes em dizer, com inteira justiça, da pessoa de Alcindo Guanabara: “Vindo de entre humildes, nunca a estes esqueceu.” “Havia em sua alma uma luz de bondade natural, destinada a apagar-lhe os grandes erros.” Não só confirmadora, mas também explicativa de vosso asserto, que tão de raiz se casa com o de D. Silvério Pimenta, é a biografia do extinto ilustre, cujo pálido bosquejo ousarei tentar agora, aliás sem o ilusório intuito de fazer dele um varão de Plutarco. Mesmo porque admitirmos desabusado conceito do panfletário Courier, o biógrafo antigo, faria Pompeu ganhar a batalha de Farsália, se tanto lhe convisse à beleza da composição...

Alcindo Guanabara nasceu, aos 19 de julho de 1865, na freguesia de Guapi-Mirim, município fluminense de Magé, em que exerciam o magistério seus pais legítimos, Manuel José da Silva Guanabara e Júlia de Almeida da Silva Guanabara, formados pela velha Escola Normal de Niterói.
A infância e a meninice decorreram-lhe ali, em São Fidélis, Monteverde, Paraíba do Sul e Mangaratiba, aonde a sorte instável levava os dois professores, cujas agruras apenas atenuavam o afeto recíproco e a esperança no filho.

Nesses lugarejos, ou pouco mais disto, recebeu dos progenitores a instrução primária, terminada no último, aos 13 anos de idade. E entregou-se logo a pequenos labores, remuneráveis, quer ensinando a outros menores o aprendido, quer executando trabalhos manuais na medida das escassas forças físicas.
De 1878 a 1889, ainda em Mangaratiba, adquiriu rudimentos de latim, ministrados pelo vigário local, a quem ajudava à missa. Ouvindo-o recitar a Epístola, quando lá oficiou, estando em visita pastoral, D. Pedro Maria de Lacerda, que o supôs propenso à vida eclesiástica, ofereceu-se para custear-lhe a educação religiosa. Agradecendo ao bispo o generoso oferecimento, escusou-se de não aceitá-lo.
Mudada a família para Petrópolis, foi admitido gratuitamente, como aluno interno, num colégio de boa fama, o de José Ferreira da Paixão. A fim de compensar, de algum modo, o auxilio, desempenhava as funções de bedel, assumindo em 1882 a regência de uma aula de matemáticas elementares. Aí, em 1883, concluiu os estudos secundários.

Mal se fixara na bela cidade serrana, empolgou-lhe o espírito juvenil a obra de Charles Dickens, que muito havia de influir em sua vida. Rodados treze anos, estando em Portsmouth, visitou a casa onde nascera o “maior escritor que produziu a Inglaterra no século XIX”. E acudiu-lhe nítida aquela vigorosa impressão, que descreveu num soberbo capítulo das Memórias (inéditas), assim rematado:

Foi aos quinze anos que, tendo lido Pickwick Papers e David Copperfield, acendeu-se em mim a curiosidade ardente de conhecer intimamente o criador dessas páginas, e devorei a biografia que Foster lhe traçou. Compreendi a força do escritor: o segredo dela residia na capacidade de trabalho e no método que nele punha. Desde então, minha preocupação de menino foi imitar Dickens; não, certamente, o glorioso Dickens romancista, mas o ignorado Dickens trabalhador...

O incipiente colaborador do Avante, de Petrópolis, viria a ser no jornal o que Dickens, repórter parlamentar do Morning Chronicle, só logrou sê-lo no livro, por temperamento pessoal de artista.
Em 1884 matriculava-se na Faculdade de Medicina, do Rio de Janeiro, pelo desejo de ser doutor, – “o que toda a gente, mais ou menos, é nesta terra”, – conforme diria ao arrepiar carreira. Exigüidade pecuniária, concorrente a impecer-lhe a conquista do diploma, forçou-o à contingência de empregos ínfimos, porteiro do Jockey-Club e, a seguir, inspetor disciplinar no Asilo dos Meninos Desvalidos, sob a direção do Dr. Daniel de Almeida.

Quando estudante das matérias da segunda série do curso médico, uma circunstância momentânea, mas reveladora de verdadeira vocação, descortinou-lhe novo horizonte, acima do qual não tardaria a brilhar como estrela de primeira grandeza: o aparecimento, em 20 de março de 1886, d’A Fanfarra, “órgão acadêmico”, tendo-o no posto de “diretor”.

Num escrito analisando o regulamento da escola superior, censurava-se o Ministro do Império. O Dr. Daniel de Almeida fez sentir a Alcindo Guanabara que, a continuar com o nome no cabeçalho da folha, não poderia permanecer na casa por ele dirigida. Não hesitou em deixar o Asilo, sem embargo do que A Fanfarra morreu do mal de sete dias...

Porém, no seguinte mês já obtinha um lugar na Gazeta da Tarde, mediante apresentação de Marinho de Andrade a José do Patrocínio. Entrou juntamente com Figueiredo Coimbra, achando no corpo de redatores o Sr. Luís Murat e Raul Pompéia. O chefe dos quatro deu-lhe uma tesoura, breve substituída por uma pena, troca de instrumento que importava em honra, falha de maior proveito material. Qual a causa? Encarregado apenas de fazer a mala de São Paulo, num dia de parede da redação, por falta de pagamento, escrevera toda a Gazeta, com surpresa dos colegas e alívio de Serpa Júnior, cuja gerência manquejava, como ele próprio. Nem a subseqüente faina de Aranha Minor nas Teias de aranha, tessitura de fios por vezes luminosos, os primeiros de uma glória em alvorada festiva, lhe valeu acréscimo de renda... monetária: 60$000 mensais, somente, até dezembro!

No mesmo ano, tanto A Semana, de Valentim Magalhães e Filinto de Almeida, como A Vida Moderna, de Artur Azevedo e Luís Murat – revistas em que resplendiam os estetas do tempo, cujos remanescentes pessoais a Academia Brasileira de Letras abriga, – contaram-no entre os colaboradores distintos. A atestar-lhe a capacidade de imaginação e a elegância de estilo, guardam as páginas de uma, na “Galeria do elogio mútuo”, o perfil de Soares de Sousa Júnior e o soneto “Vamos, senhora, percorrer o Egito”; as de outra, as prosas diversas “Rubores”, “Amor”, “Lirismo”, “O Louco”, “Solus”, “On revient...” e o soneto “Na Índia, existe egrégia divindade”.

Novo Baco, adolescente, ele não só invadira, mas conquistara a Índia, enramado de pâmpanos e florido de rosas...

Após essa consagração literária, funda, com Moreira Sampaio, o Novidades, em 25 de janeiro de 1887, para o qual leva as queridas Teias de aranha, de comentário quase sempre bizarro aos casos vulgares. Mas, passando a servir interesses dos conservadores, com a bandeira de partido a flutuar nas ameias do poder, a 25 de março inicia, sob o pseudônimo de Nestor, simulando velhice experiente, a secção grave “Notas políticas”, quotidiana também. Nesta faz-se polemista destro, enfrentando bravamente o Prudhomme negro da Gazeta da Tarde e demais corifeus do Abolicionismo, já na rota da vitória definitiva. Além disso, desentranhava-se em artigos de vário assunto, multiplicando noms de plume. Dias houve de escrever dois e três, afora os principais, tendo aquelas assinaturas, ou nenhuma. E era ainda Marcelo, na crônica, Diabo Coxo, nas críticas humorísticas, Mefisto, nos contos e fantasias, com a energia e a verve habituais, sem sombra de cansaço intelectual na fluência dos períodos. Os editoriais versando finanças, pela soma de conhecimentos da especialidade, chegaram a ser atribuídos ao Conselheiro Francisco Belisário, Ministro da Fazenda. Completara-se o jornalista, desde então julgado emérito.

Tamanho prestígio ganhou, até mesmo advogando a causa antipática da Escravidão, que nem o vento de 13 de maio de 1888, fonte de entusiasmo patriótico borbotado ruidosamente, lhe desacreditou o cálamo, transferido logo depois ao Diário do Comércio e, em 1889, ao Correio do Povo, para a campanha democrática, triunfante a 15 de novembro.

Proclamada a República, elegeram-no membro da Constituinte, representando a província natal. E, partícipe na elaboração da lei básica, de maneira profícua, o parlamentar aumentou o renome do jornalista.

Não tinha mais que 25 anos, idade comum a estréias na vida pública.
Dissolvido o Congresso, por efeito do Golpe de Estado de 3 de novembro de 1891, protestou contra o ato violento do Marechal Deodoro da Fonseca, elevado à curul presidencial contra voto seu e de outros partidários de Prudente de Morais, elementos históricos sob a chefia de Francisco Glicério. Restabelecida a Legalidade, continuou deputado até o fim da primeira legislatura (1891-1893).
De 1891 a 1892 colaborou no Jornal do Commercio, conservando grata lembrança dessa passagem, asserenadora de espírito algo irrequieto. Num discurso de 17 de outubro de 1908, pronunciado em honra do grande órgão, assim se exprimia, olhos volvidos para a quadra distante e saudosa:

Desculpai-me, Senhores, se vos estou traçando do jornalista um perfil, que se dissera de um profeta antigo. Eu bem sei que, na hora atual, há diferenças sensíveis entre o jornalista da moda e o de que vos falo; mas, peço-vos, não esqueçais que vos disse que eu tenho o culto do passado e o respeito da tradição. La France, disse algures Victor Hugo, est toujours à la mode en Europe. Como as viagens são rápidas, seja-me lícito acrescentar que o está também aqui, fornecendo-nos, a um tempo, chapéus cloche e tipos novos de jornal. Vem-nos de lá o padrão do jornal que se prende às pessoas e abandona as idéias, mais cioso do ruído do que da influência, despido da túnica dos ideais para outra mais aderente do que a que matou Hércules, e mal cobertos do bournous da reclame, a cujas abas arrastam as más paixões e os vícios da turba. Vem-nos também de lá o tipo de jornalista, que foi, creio eu, Émile Faguet, que descreveu como um senhor sem talento, nem saber, sem idéias, nem gramática, dotado apenas do que ele chamou “bom senso” e qualificou como “virtude eminentemente medíocre”. Quão longe estamos da época em que o sábio Littré se preparava para o jornalismo, passando três anos no National, de Armand Carrel, a fazer extratos de jornais estrangeiros!

Três lustros após, se vivesse ainda, para honra da classe, que não diria ele, feito homem de letras, – como Quintino Bocaiúva, Ferreira de Araújo e José do Patrocínio, inspiradores imediatos e mestres constantes, – na escola do verdadeiro jornalismo, o dos grandes ideais de liberdade e justiça!
Nomeado superintendente geral de imigração na Europa, em princípio de 1893, parte sem demora, com a esposa e dois filhinhos. O movimento da esquadra, aos 6 de setembro, robustecendo a guerra civil, meses antes travada nos pampas, malograva todo e qualquer esforço atrativo de colonos. E o Marechal Floriano Peixoto, cunctator vigilante, aproveitando-lhe a estada no estrangeiro, incumbe-o de uma compra de torpedeiras, negócio assaz glosado pelos adversários. Desse ano, cheio de acontecimentos, é seu opúsculo, de propaganda nacional, La République Brésilienne.

Regresso em 1894, toma assento na Câmara dos Deputados, eleito representante do Distrito Federal, para a segunda legislatura (1894-1896). E escreve a História da Revolta, inserta nas colunas do Comércio de S. Paulo, a qual se reeditou em livro. Anonimamente saída à luz e de paixão sensível, muitos a suspeitaram obra de florianista sabido em técnica naval, quiçá marinheiro agaloado. Todavia, a quem haja de balancear opiniões, para julgamento consciencioso da época e da luta, cumpre ler o testemunho da parte interessada.

No parlamento não esteve inativo, muitas vezes erguendo a voz, sonora quando a bem da organização social, lacunosa e precária: uma delas em 1896, pela infância abandonada e delinqüente, cujo projeto de lei protetora no Senado, em 21 de agosto de 1917, ano menos dia antes de sua morte. Lamentável é que ainda não conseguisse o êxito almejado, a despeito do belo discurso justificativo, canto de cisne em que o sentimento piedoso do ex-coroinha de Mangaratiba transparece, de par com a magia reflexa do ex-bedel do Asilo dos Meninos Desvalidos. Nesse ano, como naquele, data do folheto Finances Brésiliennes, que Alcindo Guanabara elaborou para uso externo, contra a criação legislativa do aparelho defensor apenas alegaram despesa incomportável. Vige o argumento, solidário e mau, e considerarmos o olvido da providência, salutar no duplo aspecto moral e material. E os frutos desse esquecimento, adquirindo colorido rubro numa sazão funesta, podem dar realidade futura a escárnio pretérito, que ouvi em Campinas, minha terra adotiva.

O velho caboclo Chico Elisiário, sebastianista de quatro lombadas, para quem a “República seria muito divertida, se não fossem os muitíssimos impostos”, segundo as próprias palavras, uma ocasião procurou atalhar-me o entusiasmo dos 20 anos, no recenseamento que lhe fazia das compensadoras vantagens do novo regime: “Concordo com V., menino, concordo; mas, que diacho! concorde comigo um poucochinho, também: Nesta república ainda falta duas cousas, unicamente duas – garantia de vida e garantia de propriedade.” E o bom do caipira paulista, que em supercheria nada ficava devendo ao mineiro, talvez acedesse, se soubera um tico de francês: Au reste très bien... O aumento e a crescença da infância abandonada e delinqüente, cujo destino tanto preocupava o sociólogo legislador, podem vir a dar, relevai a insistência, razão ao Voltaire da roça, evocado num desgarro jornalístico a trair saudade de antigo ofício, ou vício.

Mas não só a tal miséria humana, irremediada e ameaçadora no coração do país, devotou-se o talento de Alcindo Guanabara, em magnânimos torneios verbais. Haja vista os discursos que proferiu, linda e comovedoramente, na fundação da Liga Brasileira contra a Tuberculose, 5 de agosto de 1900, ao inaugurar-se o respectivo Dispensário, 25 de maio de 1907, e, por último, numa festa celebratória da existência da mesma, 5 de agosto de 1908. Um benemérito dessa instituição, o mui querido Sr. Ataulfo de Paiva, autoridade nos assuntos de assistência judiciária e social, que em livro destacou superiormente a técnica daquele trabalho, de viva voz timbra ainda em recordar a zelosa solicitude do colega pelos fracos e enfermos.

O herói da tribuna, eclipsando não raro o herói da imprensa, de nenhum modo exorbitaria a repetir Boileau, mutatis, levemente mutandis:
Mon verbe, mal ou bien, dit toujours quelque chose.
Por erro de perspectiva, na cisão do Partido Republicano Federal, Alcindo Guanabara declarou-se infenso a Prudente de Morais, jugulador do militarismo nos primeiros alvoroços. Pelo República, combatia-lhe, sem ambages e de entuviada, a ação gradual e firme, a ponto de tornar-se suspeito de conspirador contra a ordem. Eis que surge o atentado de 5 de novembro de 1897, do qual sai ileso o sereníssimo presidente, mas a custa da vida do Marechal Carlos Machado Bittencourt e com grave risco da do General Luiz Mendes de Morais, ministro da Guerra e chefe da Casa Militar, vítimas do ex-cabo Marcelino Bispo, cuja insânia a ambiência do desregramento político fizera explodir. Começaram as batidas policiais, a que nem os parlamentares logravam subtrair-se, num estado de sítio autêntico. No dia 12, a bordo do Orellana, a levantar ferro para Montevidéu, são presos Alcindo Guanabara e Sr. Barbosa Lima, propalaram que disfarçados em frades barbadinhos... pela natural compostura fisionômica de ambos. Sofrem logo desterro para Fernando de Noronha, onde os presidiários se dizem fora do mundo. Mas, por não ser a ilha lugar destinado a presos políticos, o Supremo Tribunal Federal concedeu-lhes habeas corpus.

Na volta, como não bastasse ao desafogo de Alcindo Guanabara o resto da terceira legislatura (1896-99), estabeleceu ele A Tribuna, de programa desenvolvido numa página grande e cheia, manifesto de hostilidade ainda ao chefe da Nação e já de preparo à candidatura do sucessor, a quem apoiaria no curso de todo o governo (1899-1902). Findo o quatriênio, deu a prelo grosso tomo, intitulado A Presidência de Campos Sales. Estudo da situação reconstrutora de nossas finanças, graças principalmente ao funding-loan, aliás negociado na anterior, merece lido pelo historiador da República.
Purificando-se a chama partidária n’A Tribuna, que aparecera em maio de 1898, – dois meses antes de a Câmara dos Deputados negar, por 92 contra 85 votos, licença para serem processados Francisco Glicério, Alcindo Guanabara, Srs. Barbosa Lima, Irineu Machado e Torquato Moreira, – ali ressurgiu o literato do Novidades, sob novas máscaras, de arame, ou de seda: n’A Semana, travesso Scapin; n’O Dia, suave Pangloss... Cousa curiosa: esse homem, que todos reputavam um céptico, considerava-se um otimista! Com quem a verdade, inteira?

Talvez dela tivesse ele uma ilusão consoladora, refletida em sua generosidade inconteste. Ainda em 1901-02, na revista A Universal, firmou excelentes crônicas com os velhos pseudônimos de Diabo Coxo e Marcelo. O de Pangloss levou-o depois para alguns diários, entre os quais O País, a que prestou concurso brilhante até 1905, tendo aí advogado as providências financeiras que mais tarde se concretizaram no Convênio de Taubaté.

O período menos feliz, senão totalmente desastrado, do notável jornalista, absorvido por causa má, foi o da segunda Imprensa, onde o redator da primeira pouco lhe fez a honra da companhia. A vibrante campanha do civilismo, separando os dois atletas, fez que se dilatasse o prestígio de Rui Barbosa e minguasse o de Alcindo Guanabara, frio adepto de seu antagonista, Marechal Hermes da Fonseca. Esquecera-se ele de que no inflamável Forum da imprensa, especialmente da imprensa política, a autoridade triunfal vem da inspiração oportuna. Daí, o dizer Saint-Marc Girardin:

L’à-propos, en politique, est la rencontre que les passions font de la justice, car elles la rencontrent parfois. Seulement, entre les passions et la justice les entrevues sont courtes. Mais c’est dans ces moments-là qu’il est beau d’être écrivain, c’est-à-dire de deviner le sentiment public, de lui donner la voix et la parole, en y joignant l’accent de notre conscience, et d’entendre, dès le lendemain, ce sentiment agrandi par l’éloquence, retentir de toutes partes dans un immense écho. Je sais bien que cet écho ne redit pas le nom de celui que l’a éveillé; mais qu’importe qu’il ignore le nom, s’il répète la pensée, et s’il propage l’opinion? Le journaliste doit tenir à la puissance de sa pensée plus qu’à la célebrité de son nom.

Alcindo Guanabara divorciou-se da opinião pública, mais uma vez, alienando de si a simpatia até dos intelectuais. Dessa vez, porém, traumatizou-lhe moralmente a pena um mau olhado, o que constitui escusa plena, de certo, ao parecer de supersticiosos, seja a maioria dos homens, em qualquer grau de civilização...

Para nós, – falo agora em nome da coletividade, cuja presidência me delegou o gratíssimo encargo de receber-vos, Sr. Gustavo Barroso, – para nós, o que subsiste desse amável companheiro desde 20 de agosto de 1918 em peregrinação no eterno giro da matéria, desse jornalista a contrários modos apreciado, no trânsito fugaz da vida sublunar, é a lembrança de seu inegável espírito literário, bem semelhante ao vosso na inteligência do belo, espírito sobretudo essencial a nosso instituto.

“Como fonte de sentimentos patético, expressos em linguagem primorosa”, citou-lhe D. Silvério Pimenta A Dor, conferência de 9 de setembro de 1905; recorrendo a ela, achastes, vós, “em suas formosas palavras, acerca desse maior agente da marcha do mundo”, o “estofo de um grande literato”. Como exemplo de finura de gosto, justeza de medida e discrição emotiva, eu preferiria apontar o discurso de homenagem a Machado de Assis, na Câmara dos Deputados, em 30 de setembro de 1908. Mas um trecho da Tradição, pela oratória dezesseis dias posterior, é que o define, no ponto de vista da Academia, conforme disse há pouco, interpretando-lhe o sentimento e o pensamento:

Esse respeito do passado, esse amor à tradição, tenho-o eu, efetivamente, como a essência de toda a beleza e o fundamento de toda a liberdade. Não existe arte onde não se faz sentir a influência do passado. É de Brunetière a observação de que não há grande poeta, desde Homero até Hugo, que não tenha o espírito obstinadamente voltado para o passado, como se o respeito da tradição fosse a fonte inexaurível de toda a poesia. Ele é, por outro lado, o laço vital da humanidade: liga as gerações às gerações, fazendo-as solidárias na obra do progresso. É à luz do passado, menos crua, mais doce e, sobretudo, menos movediça, mais igual, que aprendemos a distinguir em nós o que há de egoísta e pessoal e a não reter em nós senão o que é eternamente humano.

O belo, o puro, o nobre, na literatura e na arte, não vêm a ser mais do que o respeito da tradição, através do crivo do temperamento do artista. O progresso moral e social da humanidade não é senão o desenvolvimento regular das verdades colhidas e fixadas pelas gerações que passaram. A própria pátria não tem outra expressão: não é senão o conjunto das idéias e dos sentimentos que as gerações que foram nos legaram para que as transmitamos às gerações que hão de ser.

Não é assim que sentis e pensais, também, Sr. Gustavo Barroso?
Responde-nos, pelo afirmativa, o próprio teor de vossa obra, caracteristicamente tradicionalista, não rotineira, no que tem de melhor.

Copiosa, extensa e progressiva, argúi milagre de talento, pois a produzistes rapidamente, antes da idade crepuscular, sem tempo para estudos repousados, andando aos saltos de terra em terra, a cambiar sempre posições, numa existência curta e afanosa.
Vossos traços biográficos enquadram-se numa lauda:
Filho legítimo do Sr. Antônio Filino Barroso e Ana Dodt Barroso, nascestes em Fortaleza, aos 29 de dezembro de 1888.

Bem cedo vos seduziram os prélios da imprensa, pois na terra natal fundastes, com Gil Amora, O Garoto, jornalzinho “crítico e rabelaisiano”, ao sairdes do Liceu (1906), e, só, O Regenerador, “órgão combativo e socialista”, ao entrardes na Faculdade de Direito (1907), redigindo em seguida o Jornal do Ceará, de bravia oposição política (1908-1909).

Aqui chegado em 1910, lecionastes Desenho, Geografia e História, no Ginásio de Petrópolis, até vos bacharelardes pela Faculdade Livre de Direito, em 1911.
De 1911 a 1913 fostes redator do Jornal do Commercio, trabalhando nas duas edições, da manhã e da tarde. Largastes esse cargo para exercerdes o de secretário geral da Superintendência de Defesa da Borracha, no Rio.
Voltastes ao Ceará em 1914, a fim de gerir a pasta do Interior e Justiça; deixando o governo, dirigistes o Diário do Estado.

Deputado federal pelo Ceará, na legislatura de 1915-1918, coube-vos um lugar na Comissão de Marinha e Guerra. No último desses anos fundastes, com o Sr. Paulo Silveira, o Brás Cubas, efêmero semanário de combate político.
Em 1919 partistes do Brasil secretariando a embaixada ao Congresso da Paz, chefiada pelo grande brasileiro Sr. Dr. Epitácio Pessoa; e, adido ao já eleito presidente da República, o acompanhastes nas visitas oficiais a Portugal, Estados Unidos e Canadá.

Ainda em 1919 assumistes as funções de inspetor escolar do Distrito Federal, trocadas em agosto de 1922 pelas de diretor do Museu Histórico Nacional, no desempenho das quais permaneceis.
À testa das revistas ilustradas Fon-Fon e Seleta, desde 1916 até o presente, não vos tem faltado lazer para colaborar em vários periódicos: Gazeta de Notícias, A Pátria, O Dia, O Jornal, Correio Paulistano, etc., etc.

Em vossa vida fecunda e brilhante, Sr. Gustavo Barroso, a política foi um episódio passageiro, sem conseqüências graves. E a imprensa, porque de boa hora só a freqüentais literalmente, já nenhum dano pode causar-vos. Das folhas cearenses aproveitastes apenas os contos regionais, formadores do volume Praias e Várzeas; do Jornal do Commercio saiu a maior parte das crônicas, a que se reuniram fragmentos de conferências e discursos, para a compaginação da Idéias e Palavras.
Qualquer desses livros, editados tardonha e respectivamente em 1915 e 1917, representaria uma “estréia auspiciosa”, na estereotipada frase dos noticiaristas. Sem dúvida interessantes ambos, mas não de acentuada concepção, ou forte relevo estilístico, podiam merecer até elogios de certos oficiais do mesmo ofício, a quem só desagradam superioridades na concorrência. Porém não quisestes aparecer como toda a gente, ou pior, como a mediocridade feliz, que escorrega para cima, visto não contrariar arranjos alheios... por amor dos próprios.

Em 1912 irrompíeis com a Terra de Sol, que trazia em si lume de vida, bastante a fazer-vos desde logo vitorioso, sob o pseudônimo de João do Norte, que vindes metamorfoseando de bioco em resplendor. Era uma obra de etnografia e folk-lore, refletindo agudamente misérias e grandezas de solo adusto, onde luta uma raça não desfibrada pelo cosmopolitismo. Vossas inatas qualidades artísticas, servidas por observação direta do meio físico e moral, conferiam-vos à pena um admirável poder descritivo. Grava-se-nos para sempre, na retina da memória, entre outras páginas, de vigor e colorido, a objetivadora de uma praga cearense, página que me não furto ao gozo de reler, gozo que desejaria comunicativo:

A avoante ou pomba de bando, como este último nome indica, é um pombo selvagem, pardacento, de pequeno tamanho, de arribação, estadeando aqui e ali, emigrando sempre, andando à matroca, numa alígera boêmia, que aparece em bandos numerosos e depois some-se. Deixa os ovos a chocar ao sol, de onde nascem novos bandos sem fim.

Surge em bandos incontáveis, de milhares de milhares, escurecendo o sol como grandes nuvens sussurrantes, feitas do bater de muitas asas, que se abatem sobre o sertão prejudicando as plantações.
O lugar em que pousa um desses bandos chama-se pombal. Trinta, quarenta mil pombas descem numa varjota, perto de uma poça, onde estanquem a sede, para dar começo à postura. O chão fica coberto de uma alcatifa pardacenta, rumorosa, sempre agitada, com um incessante reboliço de asas que batem e bicos que escarvam e trituram, arrulam e gemem. As árvores adjacentes cobrem-se de pombas, toucando-se assim de folhas pardas, movediças, arrulantes, vivas... E dessas árvores para o chão, do chão para as árvores, para o céu, para a luz, para toda parte, constante e incessantemente partem, voltam, voam, tornam, pousam, avoejam. É um contínuo vaivém, um contínuo mover-se. As do chão lutam entre si, disputando espaço para se aninhar, empurrando-se, beliscando-se, esmagando-se, num sussurrar, num chiar, num farfalhar, num ruge-ruge... Comem vorazmente tudo que alcançam; e, à beira da poça de água, para beber, ainda é maior a luta e maior a confusão. Há pombas nas árvores, descansando, nos ares, a voar rumorosamente, pelo chão, em reboliço e atropelo, nos capinzais, nas pedras e nas moitas...

O chão por baixo vai ficando branco de ovos em imensa quantidade, esquecidos entre talos de gramíneas devoradas, ocultos entre seixos, caídos a esmo por toda a parte. Deles se apanhariam cargas e mais cargas. A gente ao passar, esmaga-os às centenas. E as inquietas avoantes parece que ficam durante a postura sem o sentimento do medo; movem-se, voam, empurram-se mas não se amedrontam, nem se espantam com gente, calhau, ou tiro.

Acorrem pressurosos ao pombal cães, gatos bravios, lagartos, raposas, guaxinins, cassacos, gaviões, punarés, cobras; todos os esfaimados, todos os salteadores e todos os gastrônomos. Começa a destruição; pombas estraçalhadas, devoradas, sangradas; ovos chupados, engolidos, espatifados. E elas nem procuram fugir, entregam-se aos carrascos, alheadas do perigo.
Quando o bando levanta o vôo denso, fica o chão liso, limpo, espanado de ervas e sementes, todo escarvado, esfuracado; as árvores quase peladas – como se já andassem em seca brava. O bico terrível da praga tudo ceifou. Aqui e ali um montão de penas, ensangüentadas, vai-se espalhando ao vento, revoluteando...

É o animado pinturesco de um escritor feito!
Mas essa mesma página, de gloriosa rutilância, que nem minha ruim leitura pode amortecer, foi pretexto à expansão da inveja, nos murmurinhos da calúnia emboscada. Um anônimo lembrou-se de que na obra de certo viajante inglês, ou de outro qualquer estrangeiro, havia referência a avoantes,* para logo forjar a chanfreta de um plágio, goro como d’As Pombas do Parnasiano. E um segundo ampliou a maleza obtusa, insinuando como de um Dodt toda a Terra de Sol, cujo manuscrito ficara ao neto, gralha de Fortaleza adornada com pena de pavão dinamarquês, aliás, espécie inédita. A última invencionice argúi velho cunho luso, pois o Eurico de Alexandre Herculano e as primeiras novelas de Rebelo da Silva, assim como os primeiros poemas de Almeida Garrett, saíram em original da gaveta de uns descuidosos parentes monges, consoante parvalhaços de além-mar. Se ninguém descobrira avô alienígena, ou tio frade ao Sr. Rodolfo Teófilo, para matraquear-lhe a infâmia no rastro, deve-o só o estimado baiano e romancista cearense, que antes de vós, Sr. Gustavo Barroso, descreveu a praga avoadora, a tê-lo feito, em estilo inferior...

Como replicastes, porém?
Soberbamente.
Destes a prelo Heróis e Bandidos (1917) e Ao Som da Viola (1921), desdobramentos da Terra de Sol, indubitavelmente de muita valia literária e científica. Ambos representam estudos psicológicos, tendo por objeto o homem naquela zona de assombros. Num – descreveis a vida do cangaceiro com a arte de encantador Merimée; noutro – analisais os cantores de sua gente com a perícia de metódico Bedier.
Intermediamente, apareceu A Ronda dos Séculos (1920), que está para nossa literatura como Les Trophées para a francesa, pelos contos eruditos e imaginosos, encerrados nas secções Antiguidade Oriental, A Grécia e o Oriente helenizado, De Roma ao Islam, Idade Média, Reforma e Renascença, Na era dos Descobrimentos, Época moderna e A grande guerra. Negar-lhes foros de originais, sob o argumento de versarem episódios históricos e fastos lendários, importaria em restringir a originalidade aos temas, patenteando inópia crítica. Qualquer deles é tão vosso, na feitura artística, como de Herédia são os épicos sonetos, embora inspirados geralmente em escritos de antigos e contemporâneos (Le Cydnus reproduz uma página de Plutarco e Sur l’Othrys outra de Dechamps). Os autores dos dois livros, de tanta semelhança no plano e na execução, em nada se diminuiriam se os epigrafassem com as palavras de Fr. Amador Arrais: “Confesso que as mais das iguarias com que vos convido são alheias, mas o guisamento delas é de minha casa.” Assim entendia a originalidade o Quinhentista, eco dos clássicos em geral.

Alargados os horizontes à visão, abrangendo assuntos universais, de todas as idades, desenvolveu-se-vos a capacidade imaginativa criadora, Sr. Gustavo Barroso. Essa obra cíclica, deveras emocionante, colocou-vos entre exímios ficcionistas da prosa, na língua portuguesa. Com ela vencestes na ficção, tentada em Praias e Várzeas, estreitamente regionalistas ainda.
Por isso não me surpreendeu, na Mula-sem-cabeça (1921), a beleza de duas novelas, a que empresta o título à pequena coletânea e a denominada Mapirunga. Pertencendo ao regionalismo, pelas figuras e local, como as irmãs distantes, já acusam realizações estéticas no gênero.

Enfiados ficariam os que na Casa de Maribondos, poucos meses atrás posta à venda, enxergaram sinal de decadência precoce do escritor, achando-lhe mesquinhos os “Contos”. Em vez deste subtítulo, meio impróprio, o livrinho devera trazer o de “Anedotário”, propriíssimo atenta sua significação: complemento necessário da obra folk-lórica. A malévola surdina de certos leitores, embora secretamente delicados com as reminiscências do ex-redator e ex-caricaturísta d’O Garoto, resultou de incompreensão crítica. Para os que vos conhecem, de trato pessoal e direto, nem as historietas, populares e picarescas, intercalares às facécias, tradicionais e inocentes, fariam recear extravio de gosto. Vossa educação é penhor de que, mau grado os atrativos pecuniários, jamais cultivareis a fruta malsã, com a qual se engalanam os altares de Pornéia, levantados à sombra de folhas inescrupulosas.

Preciosos a múltiplos aspectos, alguns desses volumes, em cuja lista se deve incluir o dos Uniformes do Exército (1922), justificam vossa entrada no Instituto Histórico do Ceará, na Academia de História do México, na Sociedade de Geografia de Lima, na congênere de Lisboa e na Sociedade de Tradições Populares de Basiléia. O dos Pergaminhos (1922), que cumpre juntar ao d’A Ronda dos Séculos, pela perfeita equivalência, legitima vossa admissão na Royal Society of Litterature da Inglaterra, correspondente na importância à Academia Brasileira de Letras.

E dispenso-me de falar do resto de vossa obra, porquanto esses títulos atestam de sobejo a justa irradiação de vosso nome.

*  *  *

Ab initio dissestes, Sr. Gustavo Barroso, que preferíeis ser recebido, nesta Casa, de maneira diversa da posta em prática, isto é: silenciosamente.

Ocorreu-me, ao ouvir-vos tal, uma anedota de vosso simpático Piron.
Quando ele esteve a pique de ser eleito, o acadêmico da mesa a quem incumbia saudar o recipiendário, tomando muito a sério a cerimônia, lembrou-lhe a conveniência de irem preparando os respectivos discursos.
– “Mon discours est tout fait, obtemperou Piron, et le vôtre aussi.
– Comment cela?
– Je me lèverai, j’ôterai mon chapeau, je dirai: Messieurs, je vous remercie de l’honneur que vous m’avez fait de m’admettre. Vous vous lèverez, vous ôterez votre chapeau, et vous répondrez: Monsieur, cela n’en vaut la peine.”
Infelizmente, aqui como lá, não se permite cena tão fugitiva.

De minha parte, seria suficiente, creio, apenas o que resta dizer, como resposta à passagem de vosso discurso, sem grão de incenso místico do mês de Maria, mas perfumada com a graça das rosas de maio:
Não basta ter sido eleito pela Academia para se ficar dono de todos os conhecimentos humanos. Essa escolha não se parece com os puxões de orelha dados pelo arcanjo Gabriel a Mafoma, após os quais ele ficou sabendo ler e muitas cousas mais. Ela não implica o dom de sabedoria, que não é nenhuma fruta do bem e do mal.

Do tópico, leve e florido, sai ziguezagueando a borboleta de uma ironia, a difundir o pó dourado e sutil das asas...
Sr. Gustavo Barroso, cavaleiro da Legião de Honra; oficial da Instrução Pública (de França), de Leopoldo II (da Bélgica), de Polônia Restituta, do Libertador (de Venezuela); comendador de San Tiago e de Cristo (de Portugal), de Santo Olavo (da Noruega), do Salvador (da Grécia), da Coroa (de Itália), do Sol (do Peru); Sr. Gustavo Barroso: os poderosos do mundo, culminantes na política de Monarcas e Repúblicas, houveram por bem enfeitar-vos, para o doce sacrifício da vaidade, colorido de fitas e reluzentes metais, que não raro matizam e iluminam peitos vácuos, ambulando insatisfeitos, ou insaciáveis, na mendicância diplomática de tafularias farfalhosas...

De mim confesso liso, sem intento de excoriar melindres, mas repugnando o espetáculo dessa promiscuidade exibitória, que não trocara por tantas veneras, de vós e poucos outros enobrecidas, uma única página dos Pergaminhos, autenticadores da natural e maior de todas as grandezas – a do intelecto.
E para terminar, à maneira de apólogo, que apólogos ilustram sempre, resenharei um deles, “O infante de Navarra”, a que pusestes de epígrafe o retratinho em água-forte, lavor do padre Antônio Vieira, na Palavra de Deus:

Raro príncipe se achará nos anais da Fortuna que, em toda sua vida, a experimentasse tão vária..., era manco de um pé, aleijado de um braço e naquela parte da cabeça padecia do mesmo defeito.
Na verdade, D. Afonso, bêbado e incontinente, sobre imbecil, cambaio e bracilongo, espavoria as mulheres que procurava agarrar, sem respeito de condição alguma. Ao ver-lhe os olhos travessos e cupidos, a nariga torta e monstruosa de verrugas, o queixo em bico e de barbicha arruivascada, todas debandavam a correr, como ninfas, à súbita aparição dum Córidon de chavelhos...
Observá-lo no encalço de uma importava em apanhar o flagrante de um quadro inteiro, digno da marca artística de Raimundo Correia:
O bode a persegui-la, e ela a fugir do bode!

O monarca seu pai, ídolo da gente navarresa, pela generosidade imensurável, acabrunhava-se na mágoa que lhe causava o monstrengo físico e moral. Mas, um dia logrou haver na corte, aonde mandara buscar de Sabóia, o miraculoso médico Simão Tadeu, que sanava quantos males imagináveis, “com três, ou quatro passes de magia branca, segundo os amigos, de magia negra, conforme os inimigos”. Foi uma festa nunca vista em Pamplona, a capital do reino, a que ele viera felicitar, metamorfoseando o filho ao desditoso D. Garcia.

Eis o que sucedeu junto ao palácio real, num palanque de estranho fausto cercado por clero, nobreza e povo, na ânsia comum do bem, que resultaria daquela cura perfeita:
“Simão, voltando-se para o príncipe, ergueu os braços, dos quais as mangas da sâmara escura tombaram, desdobradas como asas de morcego. Os redondos óculos de aro de ouro faiscaram e, ao povo, seu vulto pareceu crescer tanto no espaço soalheiro, que o barrete pontudo como que passava além do branco muro do Paço. Abaixou os braços, cobrindo o corpo do aleijão. Levantou-os e – oh, assombro! – ele amostrava a estatura normal de um homem, as bossas estavam aplainadas e tinham desaparecido os nós dos joelhos.”

Cessados os entusiásticos aplausos da multidão, emudecidas as chorumelas oficiais, reverentemente disse o forasteiro:
– Pronto, Senhor!
Emocionado e trêmulo, o rei balbuciou-lhe ao ouvido:
– Simão, ele era tão feio quanto mau. Deste-lhe a beleza, dá-lhe a bondade. Alisa-lhe a alma, como lhe alisaste o corpo.
Tadeu fez demorados passes. Um lume de bondade aureolou o rosto do moço.
D. Garcia, anelante, segredou-lhe, por último:
– Ele era horrendo, mau e estúpido. Agora, para completar tua milagrosa obra e aumentar minha gratidão, torna-o sagaz. É o melhor sonho de minha vida que verei realizado!
Porém, o outro volveu, desalentado:

– Impossível, Alteza! Meu poder não vai a tanto. Lede a Bíblia e meditai sobre os milagres de Cristo. Pecadores tornaram-se santos, legiões de demônios abandonaram as vítimas, monstros aformosentaram-se, enfermos recobraram a saúde e até mortos se levantaram da sepultura. Ele, que era Deus, nunca aos néscios fez ganhar espírito. Como quereis que eu, simples mortal, consiga o impossível. Ninguém cura, Senhor, a estupidez!

Bem vedes, do próprio reconto, parejando com a relativa impotência dos reis, agraciadores de quem lhes serve, a falibilidade, ou o limite da sabedoria, até mesmo nos mágicos que não somos... nem aspiramos a ser.

Nós, imortais de ficção, ainda que o fôramos de realidade, avantajando-nos assim ao mago Tadeu, também não poderíamos dar-vos, Sr. Gustavo Barroso, o que tendes, em alto grau, se acaso vos falecera à harmonia do conjunto, reflexa em tão bela estampa: o fulgor do talento, com o qual só a Natureza, verdadeira soberana do Universo, esmalta condecorativamente seus eleitos, para a curta e fatal parábola do berço ao túmulo. Porém quisemos quanto podíamos, que era proclamar essa qualidade superior, num momento de efusões puras, porque extremes de quaisquer vícios humanos. Daí, o estarmos reunidos em júbilo agora, a fim de saudar o triunfador de 8 de maio, mediante uma voz humílima de certo, mas fortalecida intimamente pela aprovação geral a estas palavras finais, em que a sinceridade deserta a ênfase:

Bem-vindo sois, jovem filho da terra de sol, banhada pelas verdes mares bravios, ao grêmio de nosso afeto, reparador de inclemências e confortante de injustiças!