DISCURSO DO SR. GUSTAVO BARROSO
SENHORES Acadêmicos.
Preferia ser recebido nesta Casa da maneira diversa da que é posta em prática na posse solene dos acadêmicos eleitos. Preferia ser recebido em silêncio, sem que me obrigassem a elogiar aqueles que me precederam na cadeira de Joaquim Caetano e sem que um nobre acadêmico fizesse de público a crítica de minha obra literária. Porque, a meus olhos, esta parece tão desvaliosa que é demasiada generosidade alguém ocupar-se dela; porque, a meu espírito, aqueles a quem sucedo se apresentam entre tão vistosas galas de inteligência e de alma, que me não sinto bastante apto para apreciá-los com a agudeza e o brilho que exigem.
Mas o regimento nega-me o prazer excelente da obscuridade, forçando-me a ouvir, sem protestos, o bem que, porventura, de mim seja dito e a fazer o panegírico dos ilustres mortos. Proefulgebant eo quod non visebantur.
As recepções acadêmicas, com aparato e discursos protocolares, são muita vez verdadeiros castigos, em que o recipiendário serve de alvo à ironia cruel de quem o recebe. Deveis lembrar-vos do maligno discurso do padre Caumartin, recebendo o bispo de Noyon, a que Saint-Simon perversamente alude, e da pesada zombaria de Marmontel, elogiando La Harpe. Nem vos quero falar de exemplos nossos, que são recentes e demasiado semelhantes, senão mais maldosos. Felizmente, estou livre deste susto, pois não podia ser mais agradável a meu espírito e a meu coração a escolha, feita pela mesa, daquele que me vai responder, cuja simpatia intelectual e cuja amizade profunda são dos títulos de que mais sinceramente se orgulha minha mocidade.
Manda a praxe que, na minha posição, o indivíduo aparente a maior modéstia possível. Não vos asseguro ter tanto quanto apregôo; todavia, posso afirmar que não penso como Charles Perrault, delicioso narrador de contos de fadas, que fez tornarem-se públicas, de secretas que eram, as sessões da Academia Francesa, e, cumprimentado pelos confrades, após seu belo discurso, exclamara:
– Se o achais bom, é sinal de que agradará ao mundo inteiro!
Nenhum de nós, confessemos, possui tão alta fé no juízo da ilustre associação a que pertence, e longe de mim tal pretensão, máxime diante desta assembléia, florida de senhoras, as quais, na opinião de Frederico Masson, são “exímias em distinguir, louvar e criticar”. No tempo do bom Perrault, bem avisados andavam os imortais furtando-se à sua crítica perigosa. Aí por 1671, não se lhes permitia comparecer às solenidades acadêmicas, e, segundo o Journal de Dangeau, elas somente começaram a freqüentar a Academia trinta anos mais tarde.
Charles Perrault, que nos encantou a meninice com as histórias da Gata-borralheira e da Bela Adormecida, era desses inovadores comuns a todas as academias, inclusive a nossa. Se dele herdamos o uso das sessões públicas, de que muitos gostam e poucos condenam, achando que a Academia deve ser o Jardim Fechado dos poemas orientais, infelizmente, não adotamos sua melhor invenção: a máquina de escrutínios, com quarenta bolas brancas e quarenta pretas. Não me atrevo a falar-vos de seu feitio e funcionamento, pois nunca a vi, e o próprio que a fabricou assim se lhe refere em suas memórias: “difícil de explicar e facílima de compreender”. Lamento, porém, que não seja aplicada em vossas eleições, senhores Acadêmicos: dar-vos-ia menos trabalho votar por máquina e talvez contribuísse para melhores escolhas...
Olhando o público que convidastes, contemplando vossas fardas e casacas, acordam-me na memória as palavras dum dos melhores historiadores dos Quarenta de França:
Há dois séculos, a Academia, renovando-se, deu, assim, mais ou menos quinhentas representações duma peça de dois personagens que, se não é sempre igual, é, pelo menos, sensivelmente, a mesma... Não há teatro que não inveje tal êxito, obtido com tão pouca despesa, tão diminuta gente e meios tão restritos.
Não há dois séculos, porém, há mais de vinte anos fazeis o mesmo. O Sr. Alberto Faria e eu repetimos, em vossa presença, pela trigésima quinta vez, salvo engano, idêntico diálogo, mais ou menos teatral. Vede que me sobravam razões para desejar a proteção discreta do silêncio.
Além disso, como tratar convenientemente da obra e pessoa dos homens eminentes que, antes de mim, vos fizeram melhor companhia, se exercer a crítica me faz medo? Apesar de Flaubert classificá-la como a décima Musa e Anatole France profetizar que acabará absorvendo a arte, há uma velha anedota que tilinta seus guizos em minha memória e me desassossega. Mais vezes têm razão as anedotas do que os filósofos.
Grande pintor e crítico de estética, após ter desenvolvido aos discípulos atentos e maravilhados, perante um quadro de Rafael, suas formosas e complicadas teorias sobre a arte cristã do Renascimento italiano, em geral, e a do divino Sanzio, em particular, murmurou intimamente desconfortado:
– Se Rafael me ouvisse, talvez nada entendesse!
Por que não ter o direito de pensar o mesmo a respeito daqueles a quem minha crítica, ignorante, ou pretensiosa, poderá envolver em conceitos descabidos, emprestar intenções que jamais lhes passaram pela mente, dar-lhes idéias que nunca possuíram, ou fazer-lhes até mais graves injustiças?
Não basta ter sido eleito pela Academia para se ficar dono de todos os conhecimentos humanos. Essa escolha não se parece com os puxões de orelha dados pelo arcanjo Gabriel a Mafoma, após os quais ele ficou sabendo ler e muitas cousas mais. Ela não implica o dom da sabedoria, que não é nenhuma fruta do bem e do mal. Portanto, é lícito ao escolhido duvidar do próprio mérito. Quem lhe dirá que não foi eleito por acaso, como Henri Meilhac, ao qual o autor da Vie Littéraire se referiu em deliciosa página, comparando a Academia com o céu, onde se chega por diversas vias, tanto pela Graça como pela Justiça? Qual o eleito que poderá afirmar tê-lo si do pela segunda e não pela primeira? Quem lhe assegura que sua eleição não foi daquelas “más escolhas necessárias”, produtos da “fraqueza humana” dos imortais, sem as quais “sua infalibilidade seria odiosa”, daquelas eleições que “desarmam a inveja”?
Certo, a distinção não é prodigalizada e bem raros o logram. Daí seu alto valor, pois lhe não quadra o conceito de São Jerônimo: Quamvis clarus honor vilescit in turba. Tanto assim que os desejosos dela não poupam esforços para obtê-la. Forçosamente, conheceis quanto se lutava para penetrar naquela clara e alegre academia veneziana dos Granelleschi, guardada nas Memórias de Daniel Forsetti e relembrada por Filipe Monnier, apaixonado cronista da cidade dos Doges. Não vos será também estranha a história, contada por Hoffmann, de Antonio Scacciati, cirurgião e pintor, que, a fim de fazer parte da Academia Romana, lançou mão de curioso ardil. Salvador Rosa, seu amigo íntimo, fê-lo passar por morto. Como os mortos nos parecem sempre melhores e maiores do que os vivos, apagadas invejas e competições, a Academia resolveu elegê-lo, às instâncias do protetor apesar de defunto, como honra insigne. Mal se findava o escrutínio, e o falecido se apresentava, vivo, bolindo, a tomar posse da Cadeira!...
Se me obriga o costume à modéstia, também me aconselha a gratidão. Esta, para convosco, é maior e mais sincera do que a outra. A fim de obter vossos sufrágios não me obrigastes a morrer, que já não é pouco. Se mais de uma vez bati em pura perda à vossa porta, resta-me o consolo de que nunca me inscrevi sozinho e sempre tive fortes adversários a combater. São infinitamente mais saborosas as vitórias difíceis.
Meu único mérito talvez seja nunca ter seguido o exemplo de Montesquieu, que tantos de entre vós acompanhastes: zombar da Academia até o dia de entrar em seu seio. Este é mais acolhedor do que vulgarmente parece. Os Mézerays, que votam por sistema contra todo o mundo, são geralmente raros, e não há Cérbero que se não adoce à vista de um bolo de mel.
O vezo de motejar da Academia, a fim de chamar-lhe a atenção e mesmo forçar-lhe as portas, não escapou à arguta observação de Piron, o do epitáfio célebre, que só não foi dos Quarenta, por oposição do rei a seus desejos, mas para quem seu patrono obteve, em compensação, a gorda pensão anual de mil e duzentas libras. Quantos candidatos derrotados aqui, dos que expõem sua pobreza com os olhos na ficha de presença, não levantariam as mãos para o céu, se os patronos que os abandonam nas refregas lhes obtivessem dos poderes públicos indenizações semelhantes? Piron, que já íamos esquecendo, escreveu, a propósito de tais mofas, este epigrama:
A quoi ressemble en nu point
Votre illustre compagnie?
Vous ne vous en doutez point,
Messieurs de l’Académie:
À la grande confrérie,
Plus grande à Paris qu’ailleurs.
D’elle nos mauvais railleurs
Font d’un ton de petits maîtres
Cent contes tous des meilleurs;
Puis finissent par en être...
Sou o terceiro, desde a fundação desta eminente e respeitável Casa, que tem a honra de sentar-se na Cadeira número dezenove. Protege-a o nome austero de Joaquim Caetano da Silva, nascido no Rio Grande do Sul, em 1810, e falecido na vizinha cidade de Niterói, em 1873. Educado em França, formado em Medicina pela famosa faculdade de Montpellier, trouxe para o Brasil sua cultura clássica e científica, que pôs ao serviço da pátria, na época difícil da Regência. Lente do Colégio Pedro II, e, depois, diretor, continuou sua vida de profundo estudioso até entrar para o serviço diplomático, no qual defendeu o país nas questões de limites das Guianas. Seu admirável livro L’Oyapoc et l’Amazone foi a fonte principal em que se abeberou um de nossos maiores estadistas na ultimação da luta secular de fronteiras, iniciada na epopéia ardente das monções e das bandeiras. Soberano atestado de esplêndida erudição e alto patriotismo, esse livro prolongou no presente a ação de Joaquim Caetano no passado.
Deixando a diplomacia, em que fora grande advogado do Brasil, exerceu os cargos de Inspetor Geral da Instrução e Diretor do Arquivo Público. Cegou nos últimos anos de vida. Não poderia haver tortura maior para quem, como ele, vivera dos livros e para os livros. Eis, em rápidos traços, o perfil da notável figura nacional, sobre quem o erudito Acadêmico que me recebe já fez estudo completo e que reduziu a migalhas certos historiadores de jornal, sem estilo, sem gramática e sem verdade, em má hora preocupados com a personalidade de nosso antigo Encarregado de Negócios na Holanda.
O primeiro defensor de nossos limites patrocina a cadeira mais que honrosa, dada, ao fundar-se a Academia, ao primeiro de nossos jornalistas, Alcindo Guanabara, cuja luminosa inteligência nos seduz, tanto quanto o fundo de tolerância de sua alma, mau grado frias aparências de cepticismo, nascido talvez do ambiente político em que viveu.
Cuvillier-Fleury aconselhava, em crítica, preferir o homem ao escritor. Muitos julgarão, no caso de Alcindo, preferível o contrário, estudar o escritor, deixando de parte o homem. Pessoalmente o conheci e admirei. Guardo de seu convívio ilustre uma lembrança suave. E prefiro vê-lo por ambas as faces. Vindo de entre humildes, nunca a estes esqueceu. Palavras, gestos, atitudes, atos, todo ele acolhia bem e melhor servia quem dele precisasse. Havia em sua alma uma luz de bondade natural destinada a apagar-lhe os grandes erros.
Alcindo Guanabara foi um homem de letras que o jornalismo prendeu em suas garras e atirou para as lutas cruentas da política. Estas nunca mais o largaram. Quem ler sua conferência sobre a Dor, quem meditar suas formosas palavras acerca desse maior agente da marcha do mundo (“omnis creatura ingemiscit et parturit”), concluirá que, no conferencista, se amostra claramente o estofo de um grande literato. E ainda o bom gosto literário que preside a seus inúmeros e brilhantíssimos discursos, dentro e fora do parlamento, ou artigos de imprensa.
Há a considerar, mais, na personalidade de Alcindo, uma feição diversa daquelas que têm sido estudadas. A do talento multiforme lhe reconhecem todos; a de suavidade da alma deísta e generosa, mais crente e esperançosa do que se afirmava, lhe entreviu com sua doce simplicidade meu saudoso antecessor. Resta a de seu espírito construtor, na ordem dos fenômenos jurídicos, sociais, políticos, econômicos e financeiros, que se palpa nos trabalhos avulsos dessa natureza. Esse homem não praticava suas teorias, mas dava-as aos outros douradas pelo brilho de sua inteligência poderosa.
Apolônio de Tiana, o grande mago dos tempos idos, após longa e grave discussão com Doutores e Teólogos, na Biblioteca de Alexandria, chegou-se a uma janela de onde se avistava toda a tumultuária e brilhante cidade dos filósofos e das seitas. Tinha na mão pedaços de papiros e pergaminhos em que escrevera notas, no ardor das disputas cabalísticas e metafísicas. Alguns antagonistas o acompanhavam. O mágico ilustre estendeu a destra para o espaço solheiro abriu-a e soltou os papéis que a enchiam. Eles espalharam-se no ar, revoluteando, e um a um foram-se transformando em alvas garças, que desapareceram no azul em todas as direções. Aos circunstantes espantados o iniciado disse:
– São as minhas idéias que se vão mundo em fora. Elas hão de pousar em qualquer parte e aí construir seus ninhos.
Relendo a obra jornalística, jurídica, social e parlamentar de Alcindo Guanabara, estes últimos dias, fiquei a pensar que ele, apesar de ser um teórico, dos que mandam fazer o que dizem e não o que fazem, realizou no Brasil o lindo milagre de Apolônio de Tiana. Não se negam asas a suas idéias e elas irão pousando mais hoje, mais amanhã, aqui, ou ali.
Não estou aqui para dizer-vos muito da vida e obras desses antecessores afastados, sim para louvar as daquele que ocupou o lugar imediatamente antes de mim. Tão diversas as três individualidades: o médico erudito, escritor, austero e patriota digno; o jornalista combativo, parlamentar teórico e político fácil; e o pastor de almas, sacerdote virtuoso, estilista clássico, por amor natural ao verdadeiro e ao belo, não por luxo, ou vaidade.
Nem sempre é conveniente falar de eclesiásticos nas Academias de que fizeram parte. O padre dado às letras pertence a uma espécie à parte, um tanto perigosa. Imagine-se o vexame de quem, na Academia Francesa, quisesse publicamente ocupar-se de alguns de seus membros que pertenceram à Igreja. Tomasse, por exemplo, o padre Genest, que Sainte-Beuve chamou “filho de parteira como Sócrates”, que, antes de entrar para aquela alta corporação, fora alquilador, bufarinheiro, formado na Inglaterra. Secretário do Duque de Nevers e vigarista; ou o “suave libertino” Francisco Timoleão de Choisy, grande deão da catedral de Bayeux, prior de Saint-Gelais, de Saint-Benoit de Sault e de Saint-Lo de Ruão, que em menino os pais vestiam de mulher, acostumou-se a isso e, já velho, fechava-se num quarto para ficar à vontade, de saias; ou o padre Furetière, prior de Chaisne, de agitadíssima existência, que, segundo alguns historiadores, empalmou folhas impressas do Dicionário da Academia, e, iludindo a boa fé do chanceler de França, obteve o privilégio da publicação da obra, sendo expulso da nobre confraria; ou, então, ainda outro expulso da mesma, Carlos Irineu Castel de Saint-Pierre, clérigo, o mais terrível espírito de contradição do mundo, que pegava a um sujeito para ir teimar com ele todas as manhãs, a fim de ter apetite, e que atacou pela pena e pela palavra a memória de Luís IV, o grande protetor da Academia.
Felizmente, digamos com orgulho, entre nós tais casos seriam raríssimos.
O clero brasileiro é dos que mais honram a Igreja Católica. Em toda a história clerical do Brasil, creio, não acharia São Pedro Damiano muito material para escrever um novo capítulo do seu Liber Gomorrhianus. E o nobre varão cingido pelos arminhos episcopais, que formou em nossas fileiras de homens de letras, honrou-as pela serena beleza do seu viver e pelo brilho de sua sabedoria.
Esta era tão grande, dizem, que em torno dela se criou um halo de lenda.
Corre mundo uma anedota, que repito com a intenção única de mostrar como vulgarmente se espalhava o renome do valor mental do Arcebispo de Mariana. Em grande reunião de altos prelados, na Cidade Eterna, um deles, esquecendo por instantes a humildade cristã, fez qualquer remoque acerca de Dom Silvério.
Um colega daquele que, quando vivo, iluminou o sólio arquiepiscopal da velha e nobre diocese mineira, pensando talvez na milagrosa Virgem do Puy, toda escura, que a tradição aclama Nigra sed formosa, numa ocasião em que Dom Silvério deu arras de seu notável saber, replicou ao irreverente:
– Niger sed sapiens.
Se remoque e réplica não se pronunciaram, a voz do povo, que é de Deus, criando essa história, proclama a sapiência de Dom Silvério.
Dele, em sua ação de pastor, pode-se dizer o que o Padre Martin, erudito cronista eclesiástico, disse de Carlos Allemand Lavigerie, apelidado Carlos o Magnífico, Cardeal de Cartago:
Recebera de Deus, para administrar a diocese, inteligência viva, penetrante, intuitiva, que rapidamente verificava necessidades, recursos, abusos e lacunas, e, na complexidade do presente, sabia adivinhar as exigências do futuro. Sua atividade, sempre alerta, suscitava as mais diversas obras, sem se deixar abater, ou diminuir por causa delas. Sua espantosa facilidade de trabalho prestava-se a todas as tarefas. Seus talentos de organizador achavam logo para suas criações formas quase definitivas. Sua decisão pronta, súbita, muita vez audaciosa, não recuava diante de empresa alguma julgada necessária, ou simplesmente útil. E, demais, sempre o perdão nos lábios, a seguir o rumo indicado pelo grande Inocêncio III: Misericordia superexaltatur judicio.
Eis aí a figura episcopal.
Olhemos, agora, o vulto literário. Esse nobre ancião teve entrada nesta Casa um pouco pelo principado da Igreja, pois as academias, aristocratas e conservadoras por natureza, carecem do prestígio das altas figuras sociais, e muito pelos livros, que os seus são lavrados em boa linguagem e no ouro mais puro dos sentimentos cristãos. Não sou daqueles que crêem; sou dos que duvidam; mas o cristianismo, em sua feição católica, me arranca sempre preitos de admiração. Penso profundamente na frase de Renan a Emilio Gebhar, em Atenas: “Leve-me ao Areópago. O rochedo de onde São Paulo falou vale mais para a história do que a tribuna de Demóstenes!”
Na lista das obras de Dom Silvério, vem em primeiro lugar, como a mais antiga, a modesta Prática da Confissão, editada pela tipografia do Apóstolo em 1873 e pela livraria Garnier em 1892. Santa Teresa escrevia a um carmelita, achando que as mulheres não se conheciam bem a si mesmas para se confessarem direito e os padres não as conheciam suficientemente para ouvi-las bem. Era necessário educá-las e educá-los. Dom Silvério, como o dominicano Luiz de Granada, autor do Guia de los Confessores, fez esse pequeno volume para conduzir por florido caminho os que confessam seus pecados e os que os ouvem.
Seu melhor livro é a famosa Vida de Dom Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana. Relembra na linguagem e outros traços comuns a Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, de Frei Luís de Sousa, por certo leitura das preferidas pelo autor. Há nessa longa biografia episcopal episódios suaves como o do Arcebispo e o Pastorinho do frei português. Conta-se nessa obra, do berço à cova, a trabalhosa e santa existência de ilustre Bispo, que, de humilde aldeia portuguesa, saiu com a austera vocação que o levou à sombra heráldica do pálio, e, sem dúvida, às portas de ouro do Paraíso, por entre os espinhos de mui longa e fadigosa jornada.
No descrever as lutas em que se cobriu de glória o epíscopo marianense, Dom Silvério deixa adivinhar como, nos homens da Igreja, apesar do lume de fé que os guia, ou de serem verdadeiramente apostolares, se agita às vezes a alma sob vendavais. É a psicomaquia de Santo Ambrósio, a incessante luta espiritual de Santo Agostinho, dramatizada pela poesia clássica da era de Apuleio e Claudiano, a eterna história do cristão, cujo triunfo é a redenção da alma lutadora.
Às vezes, penso que crer, orar, ter fé, lutar assim, ou descrever a santa vida exemplificadora de outrem, são meios de se não sentir viver, de enganar a eterna monotonia da vida, essa mesmice que atira exploradores ao pólo e cientistas ao microscópio, fugindo ao tédio insuportável da repetição das mesmas tolices e tristezas que levaram Maria Baskhirtsheff ao desespero absoluto.
Não é fácil ler esse livro de Dom Silvério. Ele não agrada ao primeiro manuseio, nem abre portas hospitaleiras às primeiras palmas. Pode-se aplicar-lhe o que diz Luiz Bertrand das Confissões e da Cidade de Deus: “Precisa-se ter coragem e perseverança, para penetrar no dédalo desses textos eriçados, mas logo que se entra e acostuma ao edifício uma admiração nos invade, maior, pelo espírito que o habita. Sua face hierática se anima e ele sorri na harmonia forte das idéias e do estilo.” Eis como o livro se nos antolha e, após, nos agrada, visto pelo lado de dentro. Tem algo das catedrais. Somente do interior se vêm luzes e cores de vitrais e é preciso certa iniciação, pelo menos boa vontade, para entender-lhes o sentido oculto na ingenuidade aparente.
Lá dentro, ao observador leviano, eivado de cepticismos e incredulidades comuns, a alma do escritor parecerá, escrava dos cânones restritos e limitada às opiniões dogmáticas da Igreja. O mesmo não verá quem conheça a palavra do Apóstolo: Ubi spiritus Dei, ibi libertas. As almas escravas do Cristo, afirmam os católicos, são as mais livres. Sua servidão, juram, é a maior das liberdades. Sobretudo se a alma está serena, perante o Senhor, quando não sente o languorem animis, que Petrarca escreveu numa desolada oração à margem de um manuscrito de Cassiodoro, aquela voluptas dolendi, a que se refere São Tomás de Aquino como mal dos espíritos delicados.
Não se resume em tão pouco a bibliografia de Dom Silvério. Ele publicou, como simples sacerdote, essas duas obras e mais Resposta ao Discurso do Conselheiro Saldanha Marinho, A Morte de Minha Mãe e Peregrinação a Jerusalém. Como vigário geral e capitular da sua diocese, imprimiu quinze circulares. Como Bispo auxiliar de Dom Benevides, em Mariana, e titular de Cámaco, quatro circulares, seis pastorais, uma carta ao clero sobre a encíclica Sapientia christiana e a Tabella de emolumentos diocesanos. Como Bispo de Mariana, oito circulares e seis pastorais. Como Arcebispo, seis pastorais. Além disso, um sermão, duas orações, uma conferência e o discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras.
Dom Silvério escreveu muitas poesias religiosas em latim, publicadas esparsamente.
Alguns dos trabalhos acima enumerados e outros novos foram reunidos e publicados em volume o ano passado, sob o título Cartas Pastorais. Nela, seu estilo de acentuado sabor clássico e a unção religiosa a mostrar a todos, carinhosamente, paternalmente, o caminho do bem, a dizer-lhes, como no Deuteronômio: Audi, Israel... et narrabis ea filiis tuis...
Dom Silvério Gomes Pimenta, Arcebispo de Mariana, membro da Academia Brasileira de Letras, Comendador da Coroa da Bélgica, de Cristo, e da Rosa, Conde Palatino, nasceu a 12 de janeiro de 1840, em Congonhas do Campo, que eu vi há uns quatorze anos engalanada e ruidosa em dias de jubileu, com a rua principal, tortuosa e lamacenta, descendo para a ponte do rio e subindo do outro lado até o Santuário.
Estudou Humanidades no colégio local, descarnado casarão, que ainda deve existir, de chagadas paredes de taipa emolduradas de madeiros. Dali saiu sabendo bem francês, geografia, sobretudo latim, e mais algumas disciplinas para o seminário de Mariana, em 1855, sendo no ano seguinte, com dezesseis de idade, escolhido professor de latim do mesmo estabelecimento, em cujo corpo docente se manteve até 1890!
Recebeu a tonsura clerical a 10 de abril de 1857; as quatro ordens menores a 20 de fevereiro de 1861; o subdiaconato, três dias mais tarde; o diaconato a 21 de abril de 1862; e em Sabará, a 20 de julho do mesmo ano, a sagrada ordenação de presbítero.
Por morte de Dom Viçoso, em 12 de julho de 1875, elegeram-no vigário capitular. Em 1877, exerceu o cargo de vigário geral do bispo Dom Benevides. Em 1878, o governo imperial o nomeou arcipreste da catedral de Mariana, e o Santo Padre, prelado doméstico. Em 1887 foi elevado a protonotário apostólico.
No dia 2 de junho de 1890, recebeu de Sua Santidade o Papa Leão XIII as honras de Bispo titular de Cámaco e a nomeação de auxiliar de Dom Benevides. Foi sagrado a 31 de agosto, em São Paulo. Morto Dom Benevides em 1896, foi pelo consistório de 7 de setembro desse ano nomeado bispo de Mariana, sendo feito arcebispo pela elevação da diocese, dez anos mais tarde.
Escolhido sucessor de Alcindo Guanabara, tomou posse da Cadeira a 28 de maio de 1920.
Faleceu cristãmente às seis horas da tarde do dia 30 de agosto de 1922, com oitenta e dois anos de idade.
Ao ser recebido na Academia Francesa, o velho Flourens afirmava sentir alegria e dor ao mesmo tempo: alegria pelo seu triunfo e dor ao pensar que fora conseguido à custa da derrota dos outros candidatos, tão merecedores da honra, senão mais, do que ele. Agitam-me as mesmas sensações: alegria da vitória que me permitistes alcançar e dor da certeza que tenho, neste discurso, de ser flecha caída aquém, ou além, do alvo. Por isso, munindo-me da necessária soma de humildade cristã, que a sombra augusta de Dom Silvério há de inspirar-me generosamente, parafraseio o bispo Possidius de Guelma, primeiro biógrafo de Santo Agostinho: “Peço à caridade dos que pacientemente me ouviram unirem suas ações de graças às minhas bênçãos ao Senhor por me ter dado forças para, bem ou mal, terminar esta empre