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Gustavo Barroso

SANTA

A Alberto de Oliveira

E eu? Cega, sozinha neste mundo de

Deus? Que há de ser de mim?

 

COELHO NETTO: Sertão

Novembro. Andava-se já em seca brava. As águas tinham fugido. Entre os arbustos ressequidos terreavam mouchões de felga quistosos e nus, de onde o vento levantava à tarde uma poeirada de oiro.

Aos solavancos duros, o meu cavalo fatigado descia a última rampa da serra do Pereiro. Pela lomba íngreme, marcada de antigas aluviões erodentes, aqui e ali pungam touceiras enfezadas de arbustos espinhosos. A estrada sarjava de vermelho a terra desnuda, sem fiapos de gramíneas, com esqueletos de árvores. Só muito alto, onde havia mais frescura, azulesciam matos. A planície erma do sertão enchia-se da nevoaça das queimadas, acinzentando-se com o cair do dia. Para o poente esbatia-se uma amarelidez de crepúsculo. Alto, o céu era cinzento, deserto e tranqüilo como a paisagem. Um parecia refletir o outro. Todos os tons que durante o dia o sol esbraseara abrandavam-se, desmereciam: eram cinzento-pérola as capoeiras abertas, branco-cinza as extensões queimadas, azuladas as serranias que fugiam no horizonte, empastadas de bistre e sépia as várzeas que se ermavam e que se confundiam à distância. Raros sons quebravam a uniformidade do silêncio. Mais raros vultos moviam-se na tristeza monótona do cenário.

Finda a ladeira esconsa, a terra estéril retalhava-se nos barracos das enxurradas antigas. Sombras adensavam-se, confundindo-se, nos anfractos das pedreiras. Às vezes, dominando o carrascal morto, dormitava na quietude do espaço uma canafístula sempre viva, decotada a foiçaços.

Detive-me numa volta do caminho, à porta duma choupana arrincoada, que se aninhava na orla da selva despida de folhas. O terreiro era espanado e limpo pela vassoura e pelo vento. Surgiam-lhe em torno, adoidadamente, grandes casas de cupim, dum amarelo de ocre. Escurecia. Luzeluziam pirilampos. Sopros ainda fracos do aracati refrescavam a calidez da soalheira passada, que se desprendia do solo maninho em emanações de mofo. Arejos mais fortes levantavam pó. Aquele vento do litoral que toda a tarde invadia o sertão pelo vale do rio Jaguaribe, chegava tarde por aquelas alturas. Era longa a sua viagem benéfica da costa às faldas do Pereiro.

Bradei à porta:

- Oh! de casa!

Apareceu uma cabocla forte e esperta, com dois filhinhos a se agarrarem nas dobras amplas de sua saia de algodão listrado. Rumorejou afável que desapeasse, prendesse o cavalo à tacaniça e entrasse.

- A casa é sua, moço.

Estava só com os filhos. Era noite, mas o marido ainda roncava pelos ermos, em busca das vacas moribundas nos rincões ásperos da serra, onde subiam, sequiosas, esfomeadas, migrando da planície estéril à cata de sombra, de comida e de água. Lá, nada também encontrando, morriam de inanição e de miséria. Às vezes os seus gemidos vinham até a casa, roucos, sinistros, pausados, numa distância de aflição, num soluçar de desesperança. Os gaguejos fracos dos bezerrinhos pareciam ate choro de crianças. Ouviam-nos o dia todo. À tarde diminuíam. De noite apagavam-se. Então guaxinins e raposas andavam a guaiar, sandejando pelas quebradas. Os pobrezinhos tinham acabado de sofrer.

Em setembro o vento levara as últimas folhas secas. Mas nas abas das serrotas acamavam-se as pastagens suculentas e amareladas. Era grande o cuidado com elas. Ficavam longe da estrada. Não havia perigo de fogo pelo descuido dum comboeiro fumador. No entanto, como por castigo, havia pegado fogo o pasto do Zacarias, meia légua adiante, e os carcarás, catando bichos grelhados no braseiro, trouxeram nas garras garranchos inflamados que deixaram cair no capinzal seco. O incêndio lavrou. Ficou destruído o último alimento do gado infeliz.

Agora por ali todo o solo estendia-se sáfaro, calcinado, negro, léguas e léguas. E a gente sentia, ao vê-lo, uma funda tristeza a subir do peito, uma ânsia, uma saudade de olhar grandes campinas muito verdes, com águas estremecidas, reluzindo.

Entrei na casinhola. O interior era mais que humilde. Presa ao tapume, a candeia de querosene oscilava. Sombras iam e vinham pelo teto enxalmado. Num raio de luz faiscava, às vezes, o bocal polido duma arma, pendurada às forquilhas bidentadas, ou palpitava em pingos brilhantes a pregaria grosseira duma mala de couro. A chaleira rumorava sobre uma trempe, entre labaredas desiguais. Estalavam garranchos ao fogo. Desprendiam-se centelhas, a espaços, em penachos e leques.

A mulher enxotou os filhos, bruscamente, para o quarto. Deu-me numa xícara de esmalte enodoado um pouco de café. Fui sorvendo-o a goles compassados. Ela encostou-se à ombreira do quarto em silêncio; e os caboclinhos vieram de novo agarrar-se-lhe às saias, curiosos, a espiar-me.

Fora já era noite fechada, escura como breu. Quase não se viam estrelas. As constelações apagavam-se, pestanejando. Fiz uma nova pergunta sobre a seca. A sertaneja suspirou e vagarosa, resmoendo aflições, descreveu-me toda a ferocidade da natureza e toda a valentia dos vaqueiros. "Deus até parece que não tem pena da gente", disse ela. Água, iam-na buscar a duas léguas, ladeira acima. Já haviam morrido as suas poucas cabeças de gado. As do patrão acabavam-se aos pares por dia. Andavam a comer a carne seca das ovelhas que tinham morto antes que a fome as levasse. Dia a dia a situação piorava. A luta já era desesperada. Os filhos do Joaquim Simeão, cansados de lutar sem proveito, tinham procurado o seu rumo. Estendeu o braço à toa como a indicar uma paragem longínqua, que mal entrevia na sua imaginativa rude, que mal podia compreender na curteza de suas idéias:

- Os Almazonas.

No terreiro riscou um cavalo. E o marido, um caboclo ossudo, alto, entrou, arrastando as esporas rudes, todo vestido de couro avermelhado, com as grossas costuras brancas de poeira.

A mulher explicou a minha presença. Sorriu hospitaleiro e bom, com um gesto largo de franqueza ostensiva. Foi tratar-me o cavalo. Era pouca a água, mas chegaria para o meu, cansado da viagem, e para o dele, tonto de varar a mataria garranchenta. Quase não tinha milho no paiol. O cercado, porém, guardava ainda um resto incolor de panasco, seco.

Ela começou a arranjar o "de comer". Novo silêncio encheu o copiar. Uma raposa vadia gaifonava ao longe, nos carrascais desertos.

O vaqueiro reapareceu. Sentamo-nos ao chão sobre um couro de boi e, calados, devoramos um alguidar de carne cozida n’água e sal, com pirão de farinha grossa. Os dentes às vezes rangiam, mastigando torrões de barro encontrados na farinha. Pela porta entrou, a fazer festas com a cauda troncha, os olhos verdes humildes e famintos, um cadelo esquelético. Acompanhava de perto, sofregamente, os ruídos todos da mastigação. Era o verdadeiro espectro da fome. Mas logo o vaqueiro ergueu o braço: Sai daí, Rompe-Nuvem! O mísero encolheu-se, levantou-se corcoveado e foi sentar-se mais adiante, à soleira, ofegando, com as riscas das costelas justalinheando-lhe os flancos murchos.

Tomamos café. O sertanejo dependurou minha rede a um canto da quadra. A mulher enrolou o couro, depois de o haver sacudido com força, e, raspando com a colher de estanho o alguidar de barro, deixou cair ao chão fiapos de carne, migalhas de pirão e ossinhos pequenos. O cão veio de rastos, encolhido e ávido, lambeu a argila demoradamente e ficou-se depois, para ali, a triturar os ossos nos dentes. De quando a quando soltava um rosnado lento advertência de estar disposto a defender o seu quinhão.

Na alcova, a cabocla cantarolava, ninando os dois filhos. Na sala, o vaqueiro remendava as véstias de capoeiro rasgadas nos espinhos unciformes dos arbustos maus que nem a seca matava. Saí ao alpendre e acendi o cachimbo, olhando a noite escura. Passou-se algum tempo. Depois, ao longe, surgiu uma luz que cortou a treva direita ao rancho, com vagar, oscilando. Vinham dois vultos, um dos quais trazia uma lanterna envidraçada; já no alpendre distingui-os bem. Eram uma velha acurvada e rusguenta, apoiando-se a um bastão, e uma criancinha loura e triste. Deram-me boa-noite e entraram na casa, pouco se demorando. Saíram. E de novo a luz foi oscilando, a apagar-se pela escuridão afora.

Chamei o vaqueiro e indaguei curioso do que andavam a fazer aqueles dois entes fracos por noite tão negra, quando chocalhavam cascavéis de tocaia e uivavam raposas insofridas, aos bandos, esfaimadas. Então ele contou uma melancólica história de dor, de martírio e de abnegação.

Era o mais avaro e o mais rico fazendeiro daquelas redondezas o velho Chico de Paula, que ao morrer deixara aquela velhinha, sua mulher, dona de grandes fazendas, oiros, lotes de bestas parideiras, boiadas incontáveis, currais cheios de miunças, além do sitio da serra que era um "condado", onde a maniçoba abundava nos recostos dos morros e dos altos paus d’arco baixavam as nervuras dos cipoais, como antenas enormes. Fora sempre brutal e ríspido, humilhando-a tanto quanto judiava com seus acostados e serviçais. Ela não tinha voz para cousa alguma. O negregado mal lhe dava os meios de subsistência, restringindo, cúpido, semana a semana as despesas domésticas. Ralhava com todos, enfezado, a cada momento. A sua morte foi um alívio e nessa ocasião a pobre D. Maria, sua única herdeira, logo pudera ajudar a pobreza que a seca fora grande e a fome muita. Dessas esmolas fez repetidas vezes. As crises mesmo lhe davam prejuízos fortes. Pouco se importava. Parecia querer espalhar em benefícios aquela fortuna reunida por maldades. Teve a mania de criar todas as crianças abandonadas da ribeira. Umas eram órfãs, outras orfanadas pela necessidade dos pais ocultarem vergonhas. Sua casa foi um asilo. Cresciam ali como filhos e ao casarem recebiam um pequeno dote. A mulher do vaqueiro era uma dessas enjeitadas.

E não fazia só isso. Quem precisasse, poderia bater à sua porta. Era servido. De sua ilimitada bondade os maus se aproveitavam até para a explorarem.

Criara umas doze pessoas e sua fama já percorria o sertão do Cariri. Todo o mundo dizia que era santa e essa crença arraigava-se dia a dia na alma sofredora dos roceiros.

Com os anos empobrecera aos poucos. Um incêndio levou-lhe a casa da fazenda. As últimas terras que possuía amaninharam-se ao abandono. Reduzida à miséria, morava agora numa palhoça que o vaqueiro construíra na várzea. Teimava em ficar lá, desprezando os convites de vir para a casa dele. Ia em oito anos que criava aquela menina dum louro de milho fanado, enjeitadinha, a última talvez. Tinha setenta e oito anos de caridade e amor. Não suportava mais nos olhos enevoados a ardência do sol. Era obrigada a sair de noite, a procurar víveres nas casas dos que alimentara durante largos anos.

Ao partir, deixei-lhe uma esmola e nunca mais esqueci aquele heróico vulto de mulher sertaneja, nobre, doce, abnegada, fazendo frente às calamidades terríveis do seu áspero meio, abroquelada na sua virtude excelsa e na sua alma desprendida, que valia por uma instituição forte de beneficência.

Tempos depois voltei àqueles lugares e na casa humilde do vaqueiro serviu-me água, vestida de luto, uma criança loura. Adivinhei naquela roupa de dó a morte da velhinha. O vaqueiro confirmou o meu presságio, dizendo-me que se finara placidamente, a sorrir, sem uma convulsão, sem um estertor, como soem morrer os justos e os santos. Até corria entre o povo que a terra não comeria o seu cadáver, preservadas as carnes mortais pela santidade eterna da sua alma...

(Praias e várzeas, 1915.)

 

MARIALVA SERTANEJO

Um touro grande, cor da treva, de aguçadas pontas ligeiramente recurvas. Chamava-se Azulão, como o pássaro do mesmo nome, que também e negro. Talvez o apelido lhe viesse dos reflexos espelhantes do pêlo à luz do sol, que às vezes davam levemente a impressão do azul. Animal bonito e, sobretudo, famoso. Conhecia-o de nome o sertão todo, como o mais terríivel e mocambeiro novilho dos que o coronel Paulo deixava amontados pelas senotas, a fim de prometer prêmios aos vaqueiros que os trouxessem mortos ou vivos, quando o tempo, a perseguição e a liberdade os tornavam verdadeiras feras.

Todos os anos, após a ferra do gado, o grande fazendeiro escolhia um novilhote entre os mais possantes e dava ordem para abandoná-lo nas catingas aos seus instintos. O animal ficava selvagem e ele tentava a vaqueirama das ribeiras próximas a dar-lhe caça. O vaqueiro que lhe trazia a "bassoura" do barbatão morto a tiros, ou o próprio pegado a laço derrubado a "mussica" recebia cinco patacões de velha prata portuguesa e divertia-se em grande festa, na fazenda, durante a qual os melhores cantadores o louvavam ao pé da viola. Havia quarenta anos que o coronel se dedicava a esse folguedo, começado logo que herdara as terras do pai, aos trinta de idade. Mas nunca espicaçara os sertanejos dos arredores atrás de bicho mais terrível que o Azulão.

Aquele touro bravo era o pior de que havia notícia nas tradições do sertão. Rápido como o pensamento e valente como as armas, já matara dois cavalos de campo e estripara um vaqueiro. O coronel Paulo prometera vinte patacões a quem o trouxesse vivo ao seu curral, cuja cerca de pau a pique, no alto dum teso, se mirava nas águas vagarosas do rio.

Dois vaqueiros irmãos, os melhores campeadores da região, Matias e Teófilo Sussuarana, puseram-se-lhe no piso, deram-lhe quedas e mais quedas nas várzeas para onde o tangeram e, depois de o fatigarem, o laçaram, trazendo-o para o curral, de madrugada, dificilmente, enleado em peias, de "máscara", e chocalho, para maior vergonha de sua denota.

Mal o dia amanheceu, preveniram o coronel que o Azulão estava ali. Saiu de casa radiante, os lábios vermelhos sorrindo entre as revoltas barbas brancas, e foi olhar a fera cativa, encerrada no menor dos currais de apartação, laivado o dorso negro de arranhões, olhos afuzilando por trás do couro cru da "màscara", escarvando o chão, enervado pelo continuo tinir do chocalho aviltante. E deu ordem para se convidar muita gente à festa que celebraria, desde a tarde até alta noite, o triunfo dos dois rapazes.

Horas depois, à sombra das árvores do terreiro, não havia mais lugar para amarrar cavalos. Celeremente se espalhara a nova da captura do animal e toda a vizinhança vinha ver o "fama" da ribeira.

O vento da tarde começara a rumorejar devagarinho na folhagem dos comarus e dos frei-jorges robustos, que circulavam o pátio, e a ardência do sol diminuíra, quando o cativo começou a dar sinais da terrível fúria. Passara o dia sempre escarvando o solo, porém embezerrado, acuado a um canto, olhos em brasa. Agora, não. Arremetia contra os "varaus" da porteira, agitava o "cupim", marrava a cerca, mugia lentamente, babava-se, estremecia todo, a complicada musculatura sacudida em crispações fugazes e violentas como descargas elétricas. E os olhares humilhantes de dezenas de vaqueiros, trepados nos moirões, excitavam magneticamente o animal prisioneiro.

O fazendeiro contemplava os progressos rápidos daquela raiva e, de repente, obedecendo ao seu temperamento estouvado e ardente, gritou:

- Duzentos mil-réis aos que pegarem o bicho a unha, dentro do curral!

A soma era por demais tentadora. Aqueles homens nunca tinham visto tanto dinheiro. Todos os olhos faulharam de cobiça. O vaqueiro da casa fez correr alguns paus da porteira, convidando sorridente:

- Vamos! Quem é homem para entrar?

O Azulão pareceu adivinhar o que contra ele se preparava. Recuou, bebendo mais, até o fundo do curral e ficou novamente imóvel, pontas em riste, sacudido pelos estremeções nervosos. Sentia-se do longe o fogo do seu olhar.

Os vaqueiros silenciosos, emocionados, olharam-no e não tiveram coragem de entrar. Então, o velho apregoou, sorrindo:

- Dou os mesmos duzentos mil-réis a quem o atacar peito a peito e o matar a faca!

Outra vez, o vaqueiro da casa fez o convite irônico:

- Vamos! Quem é homem para entrar?

Os vaqueiros levaram as mãos, maquinalmente, aos cabos das afiadas parnaíbas e logo as deixaram cair, sem ânimo de dar um passo. Os mesmos que o tinham perseguido e pegado no mato não ousaram mais que os outros. No campo, na primeira luta, o touro não tinha ainda a fermentada cólera de agora. Vendo aquela indecisão geral, o coronel encolheu os ombros e falou, com desprezo:

- Vocês são todos uns maricas! Súcia de medrosos!

Foi como uma chicotada que os vergastasse a todos, nas faces! Aqueles homens rudes, de rostos abaçanados sob os grossos chapéus de couro, não se atiraram ao insultador detidos pelo respeito feudal ao ancião, senhor da terra e do gado. Porém um, mais jovem e audaz, replicou:

- Se vosmicê não entra também, coronel, é tão medroso como nós.

O velho caminhava já para casa, em cuja alpendrada a mulher e a filha o esperavam para jantar. Deteve-se e fulminou o rapaz com um olhar formidável, arrancou do cinto do homem que lhe ficava mais próximo a comprida faca de arrasto e disse, serenamente, ao seu vaqueiro:

- Jerome, abra a porteira!

Fez-se grande silêncio. Ao fundo do curral, o touro negro arfava. E diante dos vaqueiros, respeitosamente descobertos, aquele homem de setenta anos de idade, de longas barbas brancas, penetrou sem medo no recinto temível!

A mulher e a filha deitaram a correr, gritando, da casa para os currais; mas, quando ali chegaram, já ele estava no meio do cercado, de faca nua na mão, olhando corajosamente o touro. Ninguém se atrevia a dar uma palavra. Pareciam suspensas as respirações e os arrulhos distantes das juritis ecoavam como gemidos fúnebres.

O Azulão distendeu a poderosa musculatura num salto felino sobre o fazendeiro, que evitou o bote, pulando de lado e golpeando-lhe com a faca o pescoço de aço. Num repelão, o monstro voltou à carga. Já o velho se encostava à cerca, defendendo as costas. Veio sobre ele numa investida delirante, não lhe dando tempo a esquivar-se. Houve um arrepio; depois, um grito de horror da assistência inteira.

O animal cravara as pontas finas no ventre do ancião, comprimindo-o de encontro aos moirões. Viu-se-lhe o braço nervudo erguer e abaixar a lâmina espelhante. Então, ficaram imóveis o homem e o touro.

Todos precipitaram-se no cercado e, quando se aproximaram do grupo petrificado, viram que o coronel estava morto, trespassado pelos chifres, cujas pontas fundamente se cravaram nos madeiros. Por isso, mantinha-se de pé o imenso corpo do Azulão; mas as pernas traseiras pouco a pouco cediam até que a vasta mole de carne e músculos abateu de vez. A facada do fazendeiro fora certeira e mortal: penetrara em cheio no cabelouro!

(Alma sertaneja, 1923.)