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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. OSÓRIO DUQUE-ESTRADA

MEUS Senhores,

Conferindo-me a honra de ser admitido no vosso grêmio e de suceder nesta Casa a um dos maiores e mais aclamados vultos da literatura brasileira, mal reparastes, sem dúvida, quanto esse gesto largo e magnânimo era no mesmo instante sobrepujado por uma impiedade ainda maior que a vossa benevolência: a do temeroso encargo, que implicitamente me impusestes, de vir hoje aqui analisar o valor, a significação e a influência da obra literária de Sílvio Romero.

Certo, não serei eu quem vos haja de responsabilizar pelo que possa vir a suceder; mas fio que me não condenareis, tampouco, se, pela primeira vez entre vós, se justificar aquela sentença tão ironicamente contida no célebre verso de Musset:
Nu comme le discours d’un académicien

O cometimento, que se me afigura quase insuperável, e sobremaneira me desconcerta e atordoa, vai, mais uma vez, por à prova a indigência das minhas energias intelectuais; e desmentiria de modo cabal e flagrante a justiça dos vossos sufrágios, se, em verdade, não houvessem estes obedecido mais ao intuito de galardoar apenas uma existência de labor e de sacrifício, consagrada quase toda ao culto da língua e ao progresso intelectual da nossa terra, que ao de recompensar e aplaudir os minguados méritos do literato e do artista, tão desprovido de títulos quanto de ambições. Nem me iludo sequer, a tal respeito, e bem sei que a coroa, que a vossa longanimidade me conferiu, é muito mais de carvalho que de louro; mais o prêmio concedido, aos lutadores pugnazes, aos combatentes não arrefecidos na peleja, que o símbolo real do triunfo e da glória, com que era de uso outrora cingir a fronte iluminada dos verdadeiros sacrificadores de Apolo.

E assim devia ser, e nisso apenas se havia de cifrar a generosidade do vosso gesto, porque, solicitado e atraído por outros pendores, há muito desertei o bando daqueles ingênuos pescadores de lua, de que nos fala Rostand.

Agradecendo, antes do mais, a insigníssima honra que me concedestes, mas pedindo permissão para não manifestar grande surpresa e maravilha diante de uma graça que eu próprio solicitei, exoro de vós a mesma complacência para o desempenho, por força modestíssimo, de uma tarefa que tresdobradamente se me afigura superior às minhas forças, tão grande é a responsabilidade, tão temerária a empresa, tão arriscada a aventura de querer fazer ressaltar, ainda a largos traços, a representação de um perfil, que, por muito complexo e muito fugidio, ninguém pode ainda fixar ou reproduzir, senão apenas em parte, ou de maneira muito imperfeita. Com exceção da de Laudelino Freire, que disse com isenção e franqueza o que pensava e sentia, e da de Samuel de Oliveira, prestes a sair à luz, todas as outras críticas da obra de Sílvio Romero têm sido invariavelmente de adversários ou de aligados, nos quais é vezo antigo o apedrejar para destruírem, o destruir para vencerem, ou o incensar para serem também divinizados.

Ouvi-me, pois, ao menos com o favor e a simpatia que o assunto está requerendo.
Eu, de mim, prometo fazer o possível para não abusar muito da vossa paciência, e, em relação a uma cousa, quero desde logo tranqüilizar-vos, fazendo sinceros votos para que possa o exemplo frutificar no futuro, já que, infelizmente, nem sempre tem sido essa a pauta e a norma do passado: – são, como vereis (ou melhor, como não vereis), profundas e substanciais as minhas divergências no que respeita a algumas conclusões adotadas pelo escritor ilustre a quem tenho a honra não direi de substituir, mas de suceder nesta Casa; lamento, por outro lado, o seu desamor à boa linguagem e o desmanchado do estilo, que definitivamente o exclui da nobre raça dos Sainte-Beuve, dos Brunetière, dos Taine e dos Renan; refugo, por inaceitável, o exagerado de suas generalizações no que concerne à integração dos três fatores étnicos que concorreram para a formação da nossa nacionalidade; em pouquíssima conta tenho a sua produção poética original; mas tudo isso, ainda que muito para assinalar uma grande restrição no coro dos louvores exaltados, não diminui em mim o respeito que devo à sua memória, e a admiração que consagro ao seu elevado valor; nem me levará, tampouco, a imitar uns tantos exemplos diante dos quais muito facilmente se poderia supor que, em nossa terra, nem só no domínio da política, senão também no das letras, se inveterou a balda de perfilhar e seguir certos processos abissínios...

Há, para isso, além de outros, um motivo pessoal de sentimento: foi o morto venerável quem dirigiu e guiou os meus primeiros passos na carreira das letras, escrevendo o prefácio para o primeiro livrinho de pecados poéticos que publiquei, há exatamente trinta anos, no mês de outubro de 1886.

Acresce que não cabe fazer aqui o que a crítica ainda não fez lá fora. E mais: que em toda uma obra imensa, de cerca de sessenta volumes, e através da qual se patenteia a personalidade de um extraordinário polígrafo, que foi ao mesmo tempo crítico, filósofo, orador, polemista, etnólogo, historiador, jurista, poeta, professor, sociólogo e panfletista, há, evidentemente, a par de grandes lacunas e defeitos, que lhe desprimoram a beleza, outros tantos predicados e qualidades que bastam para tornar a memória do publicista benemérita não só dos louvores como até mesmo da gratidão e dos aplausos da posteridade.

A muita gente, que vai ouvir ou ler este discurso, seguramente se lhe há de aguar o sabor, desde que aí não depare o que a mais injustificável expectativa fiava nele encontrar: um trabalho de análise exaustiva da personalidade e da obra literária de Sílvio Romero.

Tal empresa não a pretendo eu realizar, e isso por vários motivos, sendo naturalmente o primeiro a minha reconhecida incapacidade para levá-la a bom termo.
Além deste, porém, salientarei ainda mais dois: a impropriedade da ocasião, casada à natureza do assunto, e (por mais estranha que possa parecer a confissão) a absoluta falta, que sempre notei no meu espírito, de toda e qualquer tendência para as cogitações e sutilezas da psicologia e da crítica – assuntos em que me reconheço e acuso quase completamente jejuno.

Impróprio me parece o lugar e ocasião, porque é supérfluo lembrar qual teria de ser, por natureza, a aridez e monotonia de um discurso copiosa e catedraticamente enfartado com lardos de erudição, tanto mais impertinente ao caso e ao momento quanto, ao falar de um morto ilustre e de um companheiro querido que se perdeu, mais natural será esquecer-lhe os defeitos, para melhor fazer avultar as qualidades, dando assim à oração mais o caráter encomiástico e apologético do que propriamente o de estudo e de julgamento.

Bem sei (e na negativa formal e peremptória de tal pressuposto baseio o segundo motivo da minha escusa) que a expectativa de outro propósito procura achar fundamento no fato aparente de haver eu também exercido a crítica durante um lapso de tempo já bastante considerável. Mas o fato é, como acabo de dizer, apenas aparente. A verdade é que não sou nem nunca tive, sequer, a veleidade ou a preocupação de ser crítico. Pelo que haja feito e pela influência que porventura tenha logrado exercer na repressão do contrabando literário em nossa terra, nos últimos dez anos, limito-me a aceitar, mui modesta e gostosamente, o único título que com razão e justiça já certa vez me foi pinturescamente conferido por um dos mais afiados escritores da nova geração: o de guarda-noturno da literatura brasileira.

Para o exercício dessa função meramente policial, para não dizer profilática, bastou-me uma única habilidade: a de converter a pena de escritor em apito de vigilante.
Ora, desnecessário é dizer-vos quanto a política e o apito são, em toda parte, instituições odiosas...
Não vos direi, tampouco, o que é a crítica no Brasil, nem os percalços que colhe o temerário incumbido de tais serviços de expurgo, numa terra como a nossa, feracíssima, e na qual, a cada passo, a cada hora e a cada canto, como bem dizem os versos do vosso glorioso confrade,
Brotam poetas e mais poetas,
Bananas e mais bananas!

Rezam antigas crônicas, do tempo da Revolução Francesa, que a condenação de Camille Desmoulins à guilhotina foi principalmente devida ao ódio de Saint-Just, implacável no seu ressentimento desde o dia em que, ainda bisonho poeta provinciano, vira alguns versos de sua lavra julgados com pouca benevolência pelo fogoso tribuno das alamedas do Palais Royal.
Transportai para aqui esses dois personagens de tragédia; reduzi-lhes a estatura intelectual, e tereis, pouco mais ou menos, a mesma situação dramática em que se poderão encontrar um autor de registros literários e um poeta de Mato Grosso ou de Goiás.

Não quero falar agora do despeito, filho do ódio que não cansa, nem do quanto custa sopear a cólera dos agressores garraios, que investem obstinada mas canhestramente, só conseguindo em verdade acutilar a sintaxe e cozer a algaravia indigesta e o farelório da sua meia-língua de bárbaros em salgalhadas de solecismos.

Vós os conheceis de sobra e talvez melhor do que eu, pois que, acolhendo-me ao vosso seio e concedendo-me a honra de vossos sufrágios, bem claramente manifestastes o intuito, não de glorificar o escritor, que nada vale, mas de condecorar as cicatrizes que se divisam cosidas no corpo do soldado... ou melhor, do guarda-noturno.

Feito este já longo preâmbulo, à guisa de explicação e de escusa, creio que é tempo de vos dizer alguma cousa, acerca de Sílvio Romero e dos seus sessenta volumes.
Três processos há, bem diversos, mas não inconciliáveis, para se fazer a crítica de um escritor: o de Sainte-Beuve, ampliado por Taine, e que consiste em divisar o autor através da obra; o preferido por Sílvio, que procura deduzir o meio e a sociedade através do autor e da obra; e o de Edmundo Scherer, que forceja por surpreender o homem no meio da vida comum, ilustrando o estudo com a referência dos episódios e as anedotas mais características da personalidade e do temperamento do autor. A este último chamava Sílvio a história pinturesca, viva e anedótica dos escritores.

Não pretendo realizar obra maciça e completa de dissecação e de análise percuciente, mas esboçar apenas e muito ao de leve um perfil; usarei, pois, simultaneamente dos três processos, pondo assim por alguns momentos o auditório em comunicação, com o homem, primeiro, e, a seguir, com a sua obra.

O HOMEM

Sílvio Romero nasceu aos 21 de abril de 1851, na vila do Lagarto, em Sergipe, e era filho de um português do Norte, André Ramos Romero, e de D. Maria Vasconcelos da Silveira Ramos Romero, também de procedência lusitana.

Estas duas circunstâncias biográficas – naturalidade e filiação – têm, no caso, acentuada importância, por haverem concorrido como fatores diretos e decisivos para a formação da sua personalidade literária, conforme foi por ele mesmo acentuado em trechos de autopsicologia, que deixou estampados em meia dúzia de prefácios e na resposta que deu a vários pontos de certo questionário referente à sua vida e obra de pensador. Vejamos cada uma delas.

Entre os característicos da terra natal foi o próprio Sílvio quem primeiro assinalou a prodigiosa fertilidade em inteligências, pelo sol, pelas águas, pelo céu, pelas auras, pelos horizontes e, ainda mais, pela seleção natural das origens de sua população, o que não impede que, pela oposição da exigüidade territorial, tenha suportado sempre o pequenino Sergipe a compressão absorvente da Bahia e de Pernambuco, dando em resultado, como fruto da reação natural, o espírito de rebeldia e de independência manifestado pelos seus homens de maior estatura moral.

A influência mesológica da fonte nativa, inculcada por Taine como elemento preponderante na constituição mental dos indivíduos, concorreu poderosamente para a formação do espírito e das tendências intelectuais de Sílvio Romero, não só refletindo nele a beleza e a doçura de certos painéis da natureza física, perenemente acesa e dourada pelas galas de perpétua primavera, mas ainda lhe infundindo na alma a paixão nacionalista e a curiosidade instintiva pelas investigações posteriores, principalmente no terreno do folklore e das tradições populares. O convívio íntimo com os trovadores anônimos, e o espetáculo contínuo dos reisados, cheganças e bailes pastoris, a par das mais belas festividades do culto católico, celebradas na poética e pequenina igreja do Lagarto, cedo lhe deixaram sulcos de impressões inapagáveis, e concorreram para determinar de futuro o largo roteiro das suas lucubrações e preferências espirituais. Do pai, muito inteligente e dotado de pronunciada acuidade satírica, herdou Sílvio (é ele mesmo quem o afirma) de envolta com os germens da bonomia folgazã, adquirida por via materna, as mais acentuadas tendências de analista, de crítico e de psicólogo.

O trato cotidiano com certa mucamba de estimação, incumbida de velar pela sua meninice e a quem chegou a tributar segundo amor filial, quase tão forte como o primeiro, incitou-lhe, por outro lado, o sentimento religioso, que nunca mais se lhe obliterou de todo, induzindo-o, pelo contrário, a ter sempre a religião na conta de uma das criações fundamentais e irredutíveis da humanidade.
Outras notas referentes à escola primária e aos estudos preparatórios, realizados aqui, no Rio de Janeiro, concorrem ainda para determinar e explicar as origens da sua vida espiritual, encetada, pouco tempo depois, em Pernambuco, aos dezoito anos de sua idade.

Da ação exercida por um e outro daqueles fatores é ainda o próprio Sílvio quem nos fala desta maneira:

“O Brasil na descrição de Rocha Pita ficou sendo o meu Brasil de fantasia e sentimento; a poesia de Camões (refere-se principalmente aos Lusíadas) ainda hoje é uma das mais elevadas manifestações da arte no meu ver e sentir, e, com o seu ardente amor da pátria, fortaleceu o meu nativismo.”

No estudo dos preparatórios recebeu ainda a influência direta de vários mestres que lhe despertaram a paixão pelas letras, a curiosidade para a metafísica alemã, especialmente para a doutrina de Kant, e o conhecimento (através das tórias germânicas) da Filosofia da História assentada em bases etnográficas.

A leitura de um trabalho de Emile Lavelly acerca dos Niebelungen, de um ensaio de Pierre Lerroux sobre Goethe, e do livro de Eugène Poitou, sob o título de Filósofos franceses contemporâneos, acabaram de acentuar e firmar a diretriz definitiva do seu espírito nas tortuosas veredas do folklore, da crítica religiosa, da mitologia, de etnologia, das tradições populares, da crítica literária e da filosofia.

É em princípios de 1868 que Sílvio Romero se transfere de novo para o Norte, onde pouco depois o vemos surgir na vasta arena iluminada em que pela primeira vez se tem de exercitar a sua extraordinária compleição de atleta e de lutador. Esse brilhante cenário espiritual é a Faculdade de Direito do Recife. Antes, porém, de abrir o velário, descortinando o palco onde se iniciaram as suas primeiras e ruidosas façanhas de combatente, quero ainda revelar o homem através das manifestações mais expressivas da sua vida íntima, vulgar e terra-a-terra. São traços esses quase sempre seguros e que parece denunciarem e retratarem os escritores de todas as escolas e matizes.

***

Não é grande a coletânea de facécias, anedotas e ditos agudos que consegui reunir, para dar uma pequena idéia da sua bonomia e oferecer-vos um padrão aproximado da rudeza e simplicidade daquela alma tabaroa, tão ingênua quanto fielmente retratada nos quase sessenta volumes da sua obra; mas fio que bastará esse pouco para espelhar, ao menos em parte, a personalidade do grande publicista.

Hei de referir os casos, procurando guardar a linguagem desmanchada, e muitas vezes de calão, que costumava empregar o autor dos Ensaios de crítica parlamentar. Deturpá-la intencionalmente, com a preocupação infantil de a não fazer destoar da linha empertigada, hierática e um tanto convencional desta solenidade, fora tirar-lhe, por uma complacência caprichosa, a feição original e característica, errando lamentavelmente o alvo que viso neste momento, isto é, o de aplicar um processo de crítica literária que procura explicar a obra pelo homem, ao contrário de outros que procuram lobrigar o homem através da obra. Erro imperdoável seria, com efeito, sacrificar a verdade e a natureza, tirando a esta o caráter de espelho e de fiel refletor de uma individualidade, só por mal compreendido e mal interpretado amor das convenções. Igual seria, no despautério, o escrúpulo de quem, escrevendo certa comédia destinada a uma sociedade de escol, emprestasse a personagens plebeus a linguagem repolida e a compostura discreta de indivíduos de outra estirpe mais alta, bem postos e bem nascidos.
Deixemos, pois, falar o homem como ele falava, porque é isso exatamente o que caracteriza e justifica ao mesmo tempo o desalinho do seu estilo, a irreverência das suas atitudes e a sinceridade da sua obra. Veremos, então, que, mais uma vez, o estilo é um desdobramento da personalidade do escritor.

***

O Sílvio de 1885 a 1888 – época em que mais intimamente convivi com ele nas práticas do Colégio de Pedro II, onde fazia então o meu curso de bacharelado em letras, – era, já naquele tempo, a irreverência personificada. Ao entrar na sala de aula assumia sempre as mesmas e invariáveis atitudes: sentava-se na cátedra; estirava negligentemente as pernas; bufava de calor; dizia-se afrontado pela dispepsia, e desapertava ao mesmo tempo o colete, as calças e a linguagem.
Veio daquele tempo o sestro, que lhe ficou, de deturpar os nomes dos desafetos e justapor alcunhas e antonomásias burlescas ao apelido dos antagonistas com quem contendia. Nunca mais perdeu o gosto de farpear autores; nem esse ardor desrespeitoso e combativo da juventude se lhe arrefeceu depois com a idade provecta.

Os vultos mais conhecidos eram exatamente os mais varejados pela incontinência do polemista: Teófilo Braga era Mane Teófilo; Valentim Magalhães, o Coringa; Felisbelo Freire, Macaco Beleza; Rosendo Muniz Barreto, Horrendo Muniz; e outros e outros...
Sílvio gozava então, no colégio, de grande prestigio, adquirido no concurso de Filosofia, em que distanciara todos os candidatos. Muitos anos depois afirmava ainda que naquele certamen só uma cousa o impressionara: “a lógica de ferro do conselheiro Nuno de Andrade”.

De 1886 para 1887 ajudei-o algumas vezes a corrigir as provas do fogoso panfleto Uma esperteza, que ele acabava de escrever contra o Senhor Teófilo Braga.
Advertindo-lhe eu que, em certo passo da obra (na qual acusava o escritor lusitano de haver feito vinte incursões nos seus trabalhos), não ficaria mal um comentário grotesco, à imitação dos que havia posto em todos os outros capítulos do livro, retorquiu-me tomando da pena: – “Achas? Pois então lá vai canalhice...”

E escreveu à margem das provas:

Conta bem, Mane Teófilo,
Conta bem, que vinte são...
Arrecolhe esse pezinho
Da conchinha de uma mão!

Certa vez, lia o mestre, em círculo de amigos, um trabalho que pretendia publicar no dia seguinte. Em dado lugar, período havia iniciado incorretamente por esta construção: – “Não sinto-me com forças para responder...” Samuel de Oliveira, que era do grupo, chamou-lhe a atenção, observando: – “Olha essa colocação promocional, que vai, com certeza, provocar a sanha dos gramáticos...”
Sílvio retrucou de pronto, com aquela inflexão de voz abemolada que punha quase sempre nas suas tiradas: – “Eu bem sei que a negativa atrai o oblíquo, mas vou deixar a cousa assim mesmo, que é para mexer com os demônios!” E desatou uma daquelas risadas cascarronas em que, alma e corpo, tudo nele bamboleava, em contorções adultas de Gavroche.

Na Faculdade de Direito foi assim que anunciou, certa vez, da porta de entrada, um ligeiro incômodo de saúde, que o impedia de professar a lição: – “Não dou aula: hoje estou muito burro para falar, e vocês ainda mais burros para me compreenderem.”

Na mesma Faculdade:
Fora prestar exame um irmão de Raimundo Correia. Ciente do parentesco, ordenou-lhe o examinador: – Recite “As Pombas!”
O moço obedeceu. Terminada a recitação, acrescentou Sílvio:
– Estou satisfeito!
O candidato foi aprovado plenamente.

Sílvio residiu algum tempo em Juiz de Fora, onde cultivou amizade com o poeta Belmiro Braga, desde então o seu dedicado secretário. Aproveitava depois, como portadores, todos os conhecidos de Belmiro, e nas cartas missivas que lhe escrevia, daqui ou de alhures, chamava-lhe sempre: – “Belmirinho, flor agreste e perfumada.”
Em certa vez, passeavam de bonde os dois amigos quando repentinamente Sílvio mandou parar o veículo e mudou de lugar. Interpelado pelo companheiro, expandiu-se assim: – “Pois tu não viste aquela mocinha magricela, com aquele pescocinho fininho e ingurgitado? Aquilo é de matar um homem, minha Nossa Senhora!”

Dias depois, no teatro, aconteceu sentarem-se os dois por trás de uma guapíssima e formosa rapariga. Sílvio chamou a atenção do companheiro, dizendo indiscretamente em voz alta: – “Belmiro, repara-me neste pescoço moreno... No Norte chama-se a isto cangote cheiroso!” A vizinha, risonha, mas ruborizada, deu duas voltas à écharpe e o pescoço desapareceu...
De outra feita havia grande aglomeração à porta de um cinema. Interpelado, um circunstante explicou: – “Este homem (era um músico) comprometeu-se a tomar parte no nosso benefício, e recusa-se agora, por imposição da mulher, de quem tem medo!”

Sílvio chamou de parte o medroso e deu-lhe um abraço, dizendo: – “Amigo, aqui estou eu – um velho que já casou três vezes – que só tenho feito até hoje o que as minhas mulheres têm querido. Deixe-os gritar: não há marido que não tenha medo da mulher!”

Uma ilusão de psicólogo, muito significativa, porque explica outras no domínio da literatura e da crítica: Sílvio entreteve-se, uma vez, a conversar durante horas a fio com dois italianos, que logo pareceram suspeitos ao olhar desconfiado e perscrutador de Belmiro. Despedindo-os, ao cabo da longa prática, disse o Mestre: – “Que duas pérolas! Quanta ingenuidade! São incapazes de matar uma mosca!” Belmiro apurou depois a identidade dos personagens: eram dois facínoras que acabavam de sair da cadeia, onde haviam cumprido sentença por crime de homicídio.

***

Muitas horas não bastariam (e que belo capítulo de psicologia para futuros biógrafos!) se eu quisesse reproduzir aqui os principais comentários escritos a lápis por Sílvio à margem dos livros que lhe passavam pelas mãos! Cheguei a ver assim rabiscados mais de duzentos volumes. Palavras rebarbativas, frases de grosso calão, expressões de meiguice, injúrias, imprecações, louvores, interpelações, remoques, tiradas líricas, epítetos pejorativos, exaltações encomiásticas, versos satíricos, apupos, declarações de amor, apóstrofes, chalaças... de tudo encontrei à margem das folhas e naquele talho de letra aberta e esparramada que todos vós conheceis.

Aqui vai um exemplo. Em certo livro de Filosofia que me foi mostrado ainda há pouco, lêem-se os seguintes dizeres lançados por Sílvio:
– “Basta ver o estilo: florestal umbroso da Filosofia, colimação altruística, perecer pela fugacidade, valorização anímica, douradas suposições que panejam alicerces, etc., etc. Tudo isso só na introdução... É uma zebra!”

É assim constante e invariável o diapasão da invectiva; nem há como sofrear a linguagem, porque sempre e irrefreavelmente se desboca...
Tais conceitos eram aproveitados e incluídos no primeiro trabalho de crítica, onde não raro se acusa certa eiva de paixão, que lhe desluz a eqüidade, porque, ainda mesmo analisando só escritores de tal qual merecimento, ora os alteia às culminâncias do gênio, ora os rebaixa de todo ao raso da mediocridade.

Bem avaliareis a importância de tais depoimentos, como traços capazes de delinear um perfil, naturalmente reproduzido e estampado na sinceridade da sua obra.
Sílvio era por natureza o tipo a que vulgarmente se chama homem chão, de alma límpida e rasgada, inimigo das convenções e das atitudes contrafeitas. Repugnavam-lhe as aperturas do cerimonial e da pragmática. Em casa, ou na rua, expandia-se livremente, muitas vezes aos gritos, pouco lhe importando a opinião do mundo que para ele não existia, fora dos domínios da literatura. E não variava: observei-lhe os mesmos gestos e as mesmas exclamações no meio do rumor confuso e vasto da Avenida, ou em doce passeio, à noite, pelas praias de Copacabana, onde se ouve, em surda cantilena, a eterna monodia do mar, sempre roleiro e queixoso. Era capaz de sair sem chapéu, e recebia a quem quer que fosse de modo igual: estirado na rede, fumando cigarros e tomando notas de um livro cuja leitura só a muito custo interrompia.

Não quero dizer que fosse selvagem: tinha um feitio próprio, que não procurava contrariar; não respeitava fingidamente a sociedade; não fazia, tampouco, por afrontá-la, porque não cogitava, sequer, da sua existência; era rude, sem ser grosseiro; irreverente, sem premeditação; desabotoado e agreste, sem cálculo nem artifício. A franqueza e a sinceridade eram nele predicados que sempre andavam parelhos.

Decorria daí a falta de preocupação com os atavios, a ordem e a justa medida, que são a graça, a leveza e o perfume do estilo, pouco se lhe dando que a linguagem saísse airosa ou desmanchada, e que a sua prosa aparecesse em público tal como ele próprio seria capaz de aparecer: despenteado e em pantufos.

Não era, pois, um esteta: não seria capaz de murmurar com fervor religioso a “Oração na Acrópole”, nem de repetir com enlevo o “Hino de Apolo”, cantado em Delfos pelo divino Homero. Não compreendeu, por isso, as intenções e as sutilezas da obra fina e repolida de Machado de Assis, nem lhe foi dado admirar, com a alma de um ateniense, o aticismo dos escritores que souberam sempre guardar o prumo perfeito na elegância, na sobriedade, na atitude, no gesto e na linguagem. Aplaudiu, às vezes, iludido, ou por simpatia e piedade, figuras de terceira e quarta ordem – donde resultou fazer com alguns líricos esganiçados e sem fagulha de inspiração o que diz o autor do Cancioneiro alegre, que fizera certo empresário de Lisboa, exibindo como cantoras, à luz da ribalta, algumas senhoras portuguesas que mais pareciam destinadas a apregoar nas esquinas o belo par de melancias...

Tal era Sílvio. No fundo, um coração de anjo: condoía-se facilmente dos próximos, quando a miséria ou a dor os salteava, e, se a muitos infortúnios não podia acudir com a própria bolsa (porque nunca amealhara fortuna) era, contudo, incansável e solícito em lhes procurar a triaga, solicitando, recomendando, diligenciando. Nisto nunca punha pregão de benemerência, nem fazia, tampouco, alardes e azoaras; antes adotava sempre em tais casos a conduta retraída e discreta dos verdadeiros semeadores do bem.

Mais uma anedota, para terminar a série:
O irmão de Sílvio (Joviniano) convidara alguns rapazes de letras para o regalo de uma canja, em certo domingo, na sua residência. No dia aprazado lá foram ter os convivas; mas o distraído Joviniano viera para a cidade, licenciando o cozinheiro. A casa foi, contudo, invadida; comprou-se uma galinha na vizinhança, e ao poeta Emílio de Meneses foi cometido o encargo de preparar o acecipe, que toda a companhia saboreou com bastante alegria e ainda maior apetite. Choveram reparos à censurável conduta do hospedeiro, e entretanto surgiu da horta e penetrou na sala do repasto uma formosa e repolhuda cachopa com os trinta anos de Balzac na pele e um grande molho de cenouras na mão.
Aos ruidosos aplausos da irrequieta companhia, juntou Sílvio este comentário oportuno: – “O patife do Joviniano tinha-nos prometido uma canja completa e, afinal, só concorreu com a hortelã!”
 
O ESCRITOR

Sílvio pertence à 2.a fase da Escola do Recife (1868-1876) e é, nessa época, ao lado de Tobias Barreto, Inglês de Sousa e raros outros, esforçado paladino e apóstolo na prédica e propaganda dos novos ideais científicos; cabendo-lhe, porém, papel principal na reação formidável que se operou naquele mesmo tempo contra o romantismo poético e literário. A essa fase revolucionária deu ele a denominação de crítico-filosófica, querendo assim caracterizar a passagem do ultra-romantismo de Lamartine e do ecletismo de Cousin para as modernas idéias do espírito científico em poesia, do evolucionismo em crítica histórica e literária, das influências étnicas como base para o estudo das produções mentais e, finalmente, da nova orientação filosófica, já profundamente operada na Europa, na segunda metade do século XIX.

Este movimento sísmico abalou profundamente todos os domínios do pensamento, no terreno da Filosofia, do Direito, da Crítica, da história, da política e das instituições sociais.
Em 1868 pompeava ainda inabalada e vitoriosa no Brasil a velha filosofia escolástica da Idade Média, coada através do crivo do espiritualismo católico e do ecletismo conciliador e disparatado de Cousin.
No entanto, já muito mais de dois séculos antes estava firmada e triunfante a doutrina cartesiana que, assentando na razão os germes originários, tanto da ciência como da religião, procurara estabelecer entre elas o laço que as deve tornar ao mesmo tempo compatíveis e independentes.

Já dessa árvore frondosa, que alimentou a sede filosófica da Humanidade desde o século XVIII e conferiu ao seu genial autor a merecida láurea de verdadeiro criador da Filosofia moderna, haviam bracejado sucessivamente os ramos viridentes do racionalismo dogmático e objetivo de Spinoza, de Malebranche, de Leibnitz, de Locke e da chamada escola dos deístas, distinguindo as verdades físicas e as morais e não reconhecendo à causa primária nenhuma ação que possa contrariar as verdades mecânicas proclamadas pela ciência.

Já nessa mesma fonte se havia desalterado o gênio de Pascal, buscando no sentimento a razão superior e sutil cujos princípios, apenas vislumbrados, ultrapassam evidentemente os domínios do espírito geométrico.

Já do método de Locke, baseado na dualidade do conhecimento e da crença, nascera ainda o famoso sistema de Kant, que na própria constituição e no esteio da razão pura encontra as bases fundamentais tanto da ciência como da religião.

E já lhe haviam seguido os passos Fichte e depois Hegel, para quem ciência e religião não passam de momentos ou estágios necessários e logicamente sucessivos no desenvolvimento do espírito.
E, assim ainda, da concepção de Rousseau, que proclamara também a religião autônoma e independente da ciência, passara a marcha do pensamento pelas teorias do romantismo de Schleiermacher, e havia estabelecido o dualismo radical da ciência e da religião – dualismo que se viu depois atacado pela nova necessidade de um confronto entre as duas velhas rivais, e do qual resultaram: as novas doutrinas de tendências naturalistas, entre as quais o positivismo de Comte, o evolucionismo de Spencer e o modismo de Haeckel, e as de tendências espiritualistas, notadamente o dualismo de Ritschl, a dos limites da ciência, a Filosofia da ação e a Teoria da experiência religiosa, de William James.1

Já nessa época o espetáculo era o mesmo de hoje, assinalado por um ilustre filósofo; apesar de todas as lutas, permanecia a dualidade irredutível dos dois espíritos coexistentes: o espírito científico e o espírito religioso.

Seis séculos antes de Cristo já os diferenciara Confúcio, ao formular a célebre máxima que serviu de base a toda a sua doutrina: – “O cérebro caminha mais ligeiro que o coração... mas não vai tão longe.”
De quase nada disso houve até então notícia nos dois maiores centros intelectuais do país: no do Recife imperavam ainda o ecletismo de Cousin e o Romantismo de 1830, apenas rejuvenescido pelos surtos largos do condoreirismo de Victor Hugo; no de São Paulo, ainda em 1889, quando passei pela Academia, o que lá se professava eram as mofadas teorias de Taparelli e de Rosmini acerca da idéia de justiça revelada por Deus a Adão e Eva no Paraíso!

Ao ruído fragoso de toda essa imprestável cascaria filosófica e literária haviam sucedido já em França, na Inglaterra e na Alemanha o positivismo, o evolucionismo e o darwinismo em Filosofia; o naturalismo, o cientismo e o parnasianismo na poesia e no romance; o folklore; os novos processos de crítica e de história literária, e a transformação operada na intuição do direito, da política e das instituições sociais.
Foi na transplantação, propaganda e adaptação de todas essas doutrinas (embora errasse algumas vezes, depois, ao aplicá-las) que se distinguiu a ação benéfica de evangelizador e de apóstolo, exercida por Sílvio Romero.

Araripe Júnior, procurando assinalar a faculdade primacial, a tendência preponderante do espírito de Sílvio, não hesitou em afirmar que ele foi essencialmente um polemista. O Sr. Clóvis Beviláqua entende que na obra literária do escritor sergipano foi a polêmica mero incidente, e dá-lhe antes, como qualidade antitética daquela, a capacidade construtora, derivada de uma aptidão crítica predominante sobre todas as outras.

Estou, em parte, mais com este último, posto que o próprio Sílvio tivesse em grande conta o seu sempre alegado espírito de combatividade, e fizesse grande alarde do que acerca do mesmo proclamara Tobias, pretendendo, por isso, que na sua mão se transformava a pena em cutelo, e que com este, sem grande esforço, descabeçava os adversários.

A verdade é que foi exatamente aí que a sua obra se revelou mais imperfeita e rasteira: nela nunca jamais se viu luxuriar belezas e louçanias de estilo, avultando, pelo contrário, o cultivo assíduo de chascos e avanias, entremeadas de remoques e dictérios de pouco peso e decoro – donde resultava a miúdo, e ainda quando procurava o autor entrajá-la de roupas novas e domingueiras, sair-lhe a prosa entumescida de empolas e alagartada de plebeísmos. O estilo travava quase sempre, ao vibrar da sátira, que ressurtia pungitiva e mortífera; e só não fervia nem remoinhava, porque não era empeçado.
Não posso, pois, afirmar com Araripe que o ilustre sergipano tenha sido na essência um polemista; nem essa função, em que não raro o mais forte espírito se dementa, constituiu jamais um gênero especial de literatura, limitada, como é, na nossa terra, a simples desporto, em que só procura o leitor os pugilatos de idéias e de palavras, de modo que os escritos mais grávidos de injúrias são exatamente para ele os pratos mais regalados.

Divirjo, porém, do Sr. Clóvis, não só quando enxerga na crítica propriamente dita a principal função exercida por Sílvio, como também quando lhe confere os predicados de filósofo, estribando-se no simples fato de haver ele discutido, entre outros pontos de detalhe, a lei dos três estados e a classificação das ciências de Comte e de Spencer, e bem assim a negação do caráter de ciência à Sociologia, de Tobias Barreto; ou quando alega a intitulada teoria da síntese bilateral do conhecimento; ou ainda esforço idêntico para harmonizar e fundir numa pretensa teoria do teleomecanismo universal a teologia de alguns filósofos e o mecanismo dos continuadores de Demócrito, de Epicuro e de Descartes.

E as minhas razões são estas, quanto à segunda parte: 1.a) criticar alheios sistemas não basta para dar a alguém foros de filósofo; 2.a) a classificação das ciências proposta por Sílvio é inaceitável e foi por ele próprio em parte repudiada: 3.a) a teoria da síntese bilateral do conhecimento é uma simples tentativa de conciliação da síntese subjetiva de Comte com a síntese objetiva de Spencer; 4.a) a pretendida teoria do teleomecanismo universal não tem originalidade, porque já foi, há muito, proposta por Hartmann.
Quanto ao primeiro ponto, divirjo ainda do Sr. Clóvis; prefiro reputar a História da literatura brasileira o que ela é realmente na sua primeira parte – trabalho de historiador e de etnólogo, em que avulta (como bem notou o crítico) a associação do espírito de generalização e de análise, e mais a interpretação especializada dos vários problemas de Sociologia, Filosofia, História, Lingüística e Etnologia, que lhe são inerentes, e cuja compreensão, apesar dos muitos erros cometidos, permitiu ao seu autor encontrar, pelos processos naturalistas de Taine e, sobretudo, da escola inglesa de Buckle, o fio lógico de orientação necessária para determinar, através de períodos vários e de várias escolas, a marcha do pensamento brasileiro durante mais de três séculos.

Essa é a parte capital da sua grande obra construtiva; todavia, mais pertence ao historiador, que ao crítico. A segunda parte, sim, é quase toda produto exclusivo da análise e da crítica: mas, infelizmente, de tal modo destoa da primeira que, analisando as duas separadamente, não hesitou o Sr. Laudelino Freire em erigir ao autor um monumento ao lado de um pelourinho.

Passo pelo orador, que Sílvio não foi, e pelo poeta, que não podia ser. Não eram essas as tendências mais acentuadas do seu temperamento. Escreveu poesias, como todo brasileiro o faz na quadra ardente da juventude; não foi, porém, como Castro Alves, ou porventura como Tobias Barreto, filho mimoso das Musas. À semelhança do que fez o Sr. Teófilo Braga na sua tentativa malograda, ideou apenas um belo quadro que ficou sem execução. Pretendeu orientar a poesia pela ciência; zombou, por isso, da tristeza dos poetas brasileiros sem advertir que ela se explica por causas étnicas e hereditárias, sendo mais filha legítima e carnal da musa saudosa e gemedora dos fados, que simples enteada do romantismo lamartiniano e do sentimentalismo impetuoso e atormentado de Byron e de Espronceda.

Com exceção penas de Tobias, fulminou todos os cantores românticos do tempo, ainda sem poupar os condoreiros, esquecendo-se de que o lirismo nunca teve acentos de tanta dramaticidade, nem arroubos de tanta eloqüência, como naquela última fase do Romantismo. Dela resta ainda um eco sonoro em cada fibra dos nossos corações; dele ouvimos até desprender-se um som misterioso, grandíloquo e vibrante, que é ainda a voz daquela impetuosa torrente de harmonia de que nos fala insuspeitamente o poeta dos Poemas bárbaros, e que, brotada do cérebro prodigioso de Hugo, há de ser ouvida sempre, por toda a eternidade, cantando e gemendo através dos séculos.

Para mim a principal benemerência do escritor sergipano reside na dupla feição de historiador literário e de folclorista, revelada esta última mui principalmente em sua prodigiosa contribuição de contos, cantos e tradições populares compendiadas em vários volumes.

Acrescentarei ainda a essas duas qualidades máximas a tendência nacionalista, ou, para melhor dizer, o brasileirismo, que se encontra constantemente patenteado e brilhando através de quase toda a sua obra imortal.
Neste particular e como orientador do espírito novo em todos os ramos da nossa atividade científica e literária (com exceção apenas do Direito) é superior ao próprio Tobias. Teve, pelo menos, influência maior e mais decisiva na marcha do pensamento nacional.

Andou muitas vezes separado daquele companheiro e, se já não estivesse banida a moda dos paralelos, resultaria, do que se tentasse entre os dois amigos, a certeza de que bem diversos eram os seus temperamentos e as suas aptidões.
Músico, poeta e idealista de talento, Tobias era mais uma organização de artista que de pensador e filósofo; na estesia poética, principalmente, embora não fosse uma figura de primeira ordem, deixava contudo a perder de vista o companheiro; mas na intuição científica, na adaptação das novas doutrinas aos casos concretos da nossa história, posto que algumas vezes derrotado no bom caminho, leva-lhe certamente a palma o seu mais fervoroso panegirista e biógrafo.

Com efeito toda a obra literária, pedagógica, jornalística e panfletária de Sílvio acusa e denuncia o intuito prático de encaminhar o povo brasileiro para a conquista dos seus ideais.
Não afirmo que houvesse acertado sempre, ao indicar os nossos males e ao apontar simultaneamente a medicina heróica do tratamento; afirmo apenas que consumiu mais de quarenta anos em repetir esse clamor patriótico, levantando no mesmo deserto em que ainda hoje se perde, com todas as suas advertências de prédica e de apostolado, a palavra formosa e sempre inspirada de Alberto Torres.

E é sempre assim: são, em nossa terra, os avisos patrióticos e desinteressados os que mais se desestimam, e os conselhos salutares e prudentes os que menos se têm por bons, ainda quando entendem diretamente com a mantença da nossa integridade. Conhecemos de sobra os nossos desatinos, mas vamos adiando sempre o remédio, para quando, talvez, não teremos mais tempo de os reparar. Parece que abnegamos, de todo, o patriotismo e o dever.

De Sílvio, porém, não se dirá que não soube prever, advertir e aconselhar. Nunca deixou de dizer bem rudemente a verdade; nunca forcejou por encontrar adjetivos açacalados para iludir ou dissimular a ignávia dos nossos costumes. Admira só que fizesse tão pouco fruto a semente tão largamente espalhada por esse espírito genuinamente representativo da nossa terra e no qual estuavam todas as energias indomáveis da natureza brasileira, onde, como já dizia José Bonifácio, na pedra isolada do vale, como no píncaro agreste da serrania, por toda parte Deus estampou o verbo eterno da liberdade antes de gravá-lo na consciência do homem.

Só nas Provocações e debates consagrou 56 páginas ao “Alemanismo no Sul do Brasil” – capítulo publicado em janeiro de 1908, isto é, quase nove anos antes da Grande Guerra, por um escritor que na Alemanha nunca teria sido preso como espia, e a quem a paixão pela cultura germânica havia granjeado o epíteto de teuto-sergipano.

E que páginas magistrais! Que copiosa argumentação! Que lógica irresistível! Que concretização de fatos! Que amontoado de provas! Que esmagadora eloqüência!
Mas ninguém o quis ouvir até hoje, porque, como ele mesmo o disse, numa frase sintética e ao mesmo tempo pinturesca e feliz, “é quase impossível falar a homens que dançam”.

***

Eis, em síntese, meus senhores, a significação do papel representado por Sílvio Romero, e a caracterização da sua personalidade literária no movimento mental da nossa terra durante os quarenta e seis anos em que se desenvolveu a sua prodigiosa atividade de publicista. Aí, fio que serão eternos e não caducos os mais belos e mais sazonados frutos do seu espírito.

A obra esplêndida que nos legou (a nós e ao Brasil) é um espelho da sua vida, que resplandece toda de uma grande beleza moral. Sílvio é um escritor que se pode combater e criticar; mas é um lutador que se respeita, uma inteligência que se admira, uma memória que se venera, um exemplo que deve ser imitado, um esforço e uma atividade que merecem ser glorificados, porque promanam das mais altas virtudes que inspiram a conduta dos sábios e pensadores; o desinteresse, a renúncia, o patriotismo e o amor dos grandes ideais.

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Tomo, enfim, posse da Cadeira que pertenceu a Sílvio Romero e que tem o nome glorioso de Hipólito da Costa – herança duplamente pesada e da qual decorre o piedoso encargo de não desdourar de muito um patrimônio que guarda duas memórias igualmente veneráveis.
Hipólito da Costa foi também no seu tempo figura máxima e primacial como orientador da opinião brasileira; goza, por isso, de inapagável renome, famigerado nas grandes lutas jornalísticas travadas em prol da independência do Brasil.

O que era a imprensa de um século atrás, os progressos assustadores que tem realizado e o ponto a que irá chegar, não poderá imaginar nenhum de vós, nem outrem quem quer...
E tem sido assim por toda a parte.

A verdade é que em tudo, mas principalmente em matéria de letras, são, realmente, assombrosos os progressos alcançados de então para cá, até mesmo em alguns países secundários, como a China, por exemplo. Dizem que há nesta cidade onde se observa espetáculo verdadeiramente maravilhoso: do seu milhão de habitantes, 50%, correspondentes a população masculina, são de concorrentes à láurea de poetas, jornalistas, doutores e futuros membros da Academia de Letras; os outros 50%, levados ao cômputo da população feminina, são de candidatas à matricula na Escola Normal...

Nada lhe falta para garantir a prosperidade de muitas instituições como esta; a eloqüência nacional é ali um fato acima de toda contestação; as gramáticas e os dicionários vendem-se pouco, mas, em compensação, os livros de poesia e os romances de fogo esgotam-se aos milheiros; Richeleu (como diria Camilo) faz metamorfose de Bethman-Holewg na crisálida dos seus melhores estadistas; e, certo, não faltará, na distinção requintada e na elegância moderníssima dos seus salões, muita madame de Rambouillet com voto decisivo, e incontestável autoridade, nos langorosos requebros do one-step, do tango e do maxixe.

Aqui há já um fato significativo e que nos deve servir de consolo: é o da concorrência (mais uma vez atestada por este brilhantismo auditório) que tem conseguido atrair nos últimos tempos as reuniões e festividades acadêmicas. O fenômeno é deveras animador e serve ao menos para provar que, em nossa terra, depois de Vieira, e em se tratando de letras e de cousas do espírito, já não é mais preciso o recurso de falar aos peixes...

Senhores! Mais uma vez, agradeço cordialmente a magnanimidade dos vossos sufrágios. Ufana-me sobremaneira o fato de ter tido entrada neste cenáculo e de poder contar-vos desde hoje por companheiros de jornada. Se essa forte razão, além de outras, não fora já de sobejo, bastaria para me tornar enaltecido e orgulhoso a lembrança de que vou pertencer daqui por diante a uma instituição que tem ao mesmo tempo a honra, a ventura e a glória de ser presidida pelo gênio de Rui Barbosa.