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Osório Duque-Estrada

                     CROQUIS

                                             A Alberto de Oliveira

O caso terás lido, com certeza,

Da mulher de quem diz a história rara

Que, tomada de súbita tristeza,

Petrificada e extática ficara...

 

Níobe era o seu nome, e tão formosa

Tão sedutora aos homens se mostrava,

Que à mesma Via escura e dolorosa

O coração de todos arrastava...

 

Mas um dia, - implacável lei da sorte! -

Do seu perverso amante desprezada,

Viu-se ferida pela mão da morte

E em bruta e inerte pedra transformada...

 

A alma do poeta, triste e dolorida,

- Árido campo onde uma flor não medra,

Lembra aquela mulher, que assim ferida

De estranha mágoa, transformou-se em pedra.

                                (Flora de maio, 1902)

 

                                ZAGALA

É cedo ainda; à brisa que farfalha,

Passas, na asa sutil de um sonho brando,

De vara em punho e de chapéu de palha,

Pelos campos alegres passeando...

 

À velha moda, então, de Pã, me calha

Seguir-te, a furto; e um cálamo cortando,

Dele vou, à manhã que os sons espalha,

Cantos de amor num pífano soprando...

 

Da agreste frauta aos trêmulos arpejos,

Digo-te terna e doce brandamente

Quanto nutro em quimeras e em desejos...

 

E adormeces ao som dos ais tristonhos,

- Linda zagala dos meus doces beijos,

- Leda pastora dos meus pobres sonhos!

                                (Flora de maio, 1902)

 

                         PAISAGEM

Quão longe estamos do viver de outrora!

Como enublaste o sol daquele dia!

Já nem posso, sequer, dizer-te agora

O que a cada momento eu te dizia.

 

No entanto, fulge a primavera; Flora

De ricas, novas galas se atavia,

E borda a rósea túnica da aurora

Que, da áurea porta do Oriente, espia...

 

Na tela deste sonho, que ressumbra

A frescura de um bosque, eu vejo a imagem

Deste verão de amor que me deslumbra;

 

É o mesmo céu, a mesma ideal paragem;

Só a saudade põe uma penumbra,

Um crepúsculo triste na paisagem...

                       (Flora de maio, 1902)

 

           MINHA MUSA

Presa ao êxtase suave

De uma tristeza sem par,

Minha Musa é como uma ave

Que anseia apenas voar...

 

Chega às paragens secretas

Do desespero e da dor

E aonde vão as inquietas

Asas do beijo e do amor...

 

Faz um batel pequenino

De pandas, purpúreas velas,

E, num clarão matutino,

Ascende ao céu e às estrelas!

 

Com elas fala e conversa

Da alcova dos arrebóis

E desce tranquila, imersa

Na luz de todos os sóis.

 

Vive, filha, neste mundo,

Mas vai ao céu onde moras,

E mergulha no profundo

Mar Vermelho das auroras...

                   (Flora de maio, 1902)

 

                      VELHO TEMA

Fatigado viajor, que do deserto,

Ledo, percorre o areal que o sol castiga,

Busca um pouso na terra, onde se abriga,

Vendo as sombras da noite que vem perto.

 

Assim também, - ó minha doce amiga! -

Em meio ainda do percurso incerto,

No teu regaço, para mim aberto,

Fui repousar, exausto de fadiga...

 

De uma planta fatal, que em meio à trilha

Em flores perfumosas se desata,

Bebe a morte o viajor que o sonho pilha...

 

Assim teu beijo a vida me arrebata

- Beijo que guarda como a mancenilha

O mesmo aroma que envenena e mata!

                     (Flora de maio, 1902)

 

                                    RUÍNAS

Pisa as ruínas do altar profanado e sem lume,

Minh’alma! Faz-te mal beber inda os fulgores

Desta página azul, tão cheia de perfume

Como o moital de um bosque onde rescendem flores...

 

Quebra as aras da fé, despedaça as redomas,

Santa, que um novo céu no olhar guardas oculto:

Não é mais o meu verso a caçoila de aromas

Com que outrora exaltei as glórias do teu culto!

 

Teu corpo ideal, de deusa, em seu domínio encerra

Tantas constelações, que nem cabe em meu verso;

Desertaste do céu para pisar a terra,

E ao amor e à poesia abriste outro Universo.

 

Novos sóis a ígnea e flava escuma flamejante

Dardejam no esplendor dos teus olhos profundos...

Mas eu, crente, hoje ateu, fujo ao clarão vibrante

Desse incêndio voraz que há de abrasar dois mundos!

 

Não posso, acaso, ir só cumprir o meu fadário

Das mortas ilusões de pé sobre os escombros?

- Pois será como o teu, Senhor, este Calvário,

E tão pesada a cruz que hei de levar aos ombros?

 

Só pode a ave que sofre o exílio do seu ninho,

- Desterro atroz e igual ao que tenho sofrido -

Dizer esta tortura, espinho por espinho,

E esta mágoa contar, gemido por gemido!

 

Deixa-me agora só! Alma na treva alçada

Como um pobre reptil à borda de um penhasco,

Não me firas - por Deus! - da mesma luz dourada

Que o Saulo converteu na estrada de Damasco!

 

Foge de mim!... Do altar profanado e sem lume,

Quebra a pedra, minh’alma, e oculta-te aos fulgores

Desta página azul, tão cheia de perfume

Como o moital de um bosque onde rescendem flores...

                                 (Flora de maio, 1902)

 

                           CONTRASTE

Isa, não creias na felicidade:

Eu procurei-a, como um cego, e tanto

Que não sei por que choro esta saudade

Nem a razão por que estas mágoas canto.

 

Dá-me apenas um pouco de piedade:

- Soturno Hamleto de pesado manto,

Enchi de goivos toda a mocidade,

Todas as rosas orvalhei de pranto...

 

Entre os delírios vãos da fantasia,

Nunca sonhei com céu tão vasto e largo

Como o do beijo que me deste um dia;

 

Sinto, no entanto, o esquálido letargo

Que faz achar, em meio da alegria,

Amarga a vida, o sofrimento amargo...

                            (Flora de maio, 1902)

 

                              ZELOS

 Só tu conheces o secreto espinho

Que dentro d’alma me pungindo está.

                                   F. Varela

- “Versos a outra! É um poeta que não sente

O que escreve...” Isto dizes: entretanto,

Arde e queima o meu peito ansiosamente

Nestas estrofes úmidas de pranto!

 

A aurora desce pelos altos montes,

Dourada como os sonhos em que cismo:

- Quanta luz a banhar os horizontes!

- Quanta treva no fundo deste abismo!

 

Tantas e várias fantasias gero

Dentro do verso estrídulo e canoro,

Que já nem sei dizer quanto te quero,

Nem mais posso dizer como te adoro!

 

Essa que apontas como desejada

Não é do ideal de um poeta o Novo Mundo,

A imagem da beleza constelada,

A sombra, ao menos, deste amor profundo...

                               (Flora de maio, 1902)

 

                                   O REGISTRO LITERÁRIO

O “Registro Literário”, de que se formou quase todo este primeiro volume de uma série de três ou quatro em via de publicação, apareceu pela primeira vez no dia 14 de novembro de 1908, depois de um artigo que o justificou e no qual comecei preliminarmente por arrasar a tradução da Salomé, de Oscar Wilde, feita por Paulo Barreto, que escrevia então na Gazeta de Notícias, e era por esse tempo guia e porta-estandarte dos escritores da nova geração, sendo acolhidos e aclamados nas colunas daquele antigo diário carioca todos quantos em torno dele se grupavam.

O “Registro” nasceu, pois, da necessidade de reação contra o aviltamento a que havia chegado entre nós a crítica literária de jornal. Assim nasceu e assim se manteve até hoje, através de três fases, ou períodos, diferentes: a do Correio da Manhã (1908-1914); a d’O Imparcial (1915-1917); e a do Jornal do Brasil (1921-1924).

Nos arquivo dessas três fases (e muito principalmente no da terceira) foram respigados quase todos os capítulos de crítica e de polêmica ora reunidos no presente volume, tendo sido alguns modificados, ou resumidos, tanto no fundo quanto na forma.

                                                 [...]

Das pretensões que nutro no terreno da crítica literária dizem sobejamente os seguintes trechos do meu discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras:

“A verdade é que não sou, nem nunca tive, sequer, a veleidade ou a preocupação de ser crítico. Pelo que haja feito e pela influência que porventura tenha logrado exercer na repressão do contrabando literário em nossa terra, nos últimos dez anos, limito-me a aceitar, mui modesta e gostosamente, o único título que com razão e justiça já certa vez me foi pinturescamente conferido por um dos mais afiados escritores da nova geração: o de guarda noturno da literatura brasileira.

Para o exercício dessa função meramente policial, para não dizer profilática, bastou-me uma única habilidade: a de converter a pena de escritor em apito de vigilante.

Ora, desnecessário é dizer-vos quanto a polícia e o apito são, em toda parte, instituições odiosas...

Não vos direi, tampouco, o que é a crítica no Brasil, nem os percalços que colhe o temerário incumbido de tais serviços de expurgo, numa terra como a nossa, feracíssima, e na qual, a cada passo, a cada hora e a cada canto, como bem dizem os versos do vosso glorioso confrade.

                                            Brotam poetas e mais poetas,

                             Bananas e mais bananas!

                                               [...]

Não quero falar agora do despeito, filho do ódio que não cansa, nem do quanto custa sopear a cólera dos agressores garraios, que investem obstinada mas canhestramente, só conseguindo, em verdade, acutilar a sintaxe e cozer a algaravia indigesta e o farelório da sua meia língua de bárbaros em salgalhadas de solecismos.

Vós os conheceis de sobra e talvez melhor do que eu, pois que, acolhendo-me ao vosso seio e concedendo-me a honra de vossos sufrágios, bem claramente manifestastes o intuito, não de glorificar o escritor, que nada vale, mas de condecorar as cicatrizes que se divisam cosidas no corpo do soldado, ou melhor: do guarda noturno.”

                                                [...]

O “Registro Literário”, aceito e acreditado hoje em todo o Brasil e fora dele, continua, pois, com o mesmo programa, não obstante a revolução pregada por alguns desmoralizados cabotinos das letras; e prosseguirá, indiferente ao ódio, às injúrias e ao vozerio de toda a plebe intelectual dos literatelhos sem préstimo, que fingem adotar o Futurismo, para encobrir a própria ignorância, só aceitando, de fato, como princípios salvadores da sua própria nulidade, a abolição da gramática, a supressão da métrica e a extinção do bom senso.

 

                                                                           (Crítica e polêmica, 1924)