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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Coelho Neto

RESPOSTA DO SR. COELHO NETO

ESTA eminência, sempre que nela assomo – e esta é a terceira vez que a atinjo – afigura-se-me tão alta que eu sinto, ao culminá-la, um como estonteamento de vertigem. É que daqui, como de um pináculo, o olhar alonga-se profundamente pelo Tempo e vê a estrada da vida, entre horizontes, e avista a estrada da morte, infinita, sem raias. Na primeira, onde o século turbilhona, revolvendo a poeira humana, vindes em passos sonoros, meu ilustre confrade; na outra, silenciosa e gélida, palmilham rastos de alguém que passou a esse trânsito indelevelmente assinalado na altura, rebrilha como o clarão de certas estrelas, que são mundos mortos e ainda alumiam fulgurantemente.

Aquele a quem vindes suceder nesta Casa, levantada no caminho da história, e cuja vida recordastes em palavras de saudade e culto, foi um construtor ciclópico. A obra que ele nos deixou, toda em blocos, sem esmerilhamentos de arte, lembra os monumentos de Tirinto. Autóctone, como os que, na Grécia, eram chamados eupátridas e usavam nos cabelos a cigarra de ouro, vivia para a sua terra, amava-a com ternura e dela, como Anteu, tirava a força prodigiosa que o fazia temido.

Quem, entretanto, o visse na rua, lerdo, bambaleando o corpo flácido, sempre com livros e papéis debaixo do braço, os olhos lânguidos de fadiga, passaria por ele indiferente, sem suspeitar que aquele burguês, mal enjorcado e mole, era o formidável manejador da pena, cujos golpes nos períodos dos adversários eram sonoros e demolidores como os da lança de Aquiles nos escudos troianos.
Tipo de aparência pacata, parecia descer a vida na correnteza do destino, como folha morta desliza ao léu das águas. E esse “bom homem”, simplório e canhestro, era uma força da natureza.

Se o provocavam, não vestia armadura; avançava descoberto e altaneiro e, antes de arrojar o dardo, lançava uma ironia ao adversário, entralhava-o em uma sátira, como o retiário que envolvia o gladiador na rede; se o derrubava, contentava-se com isso e ria alto, vendo o vencido escabujar aflito, enliçado nas malhas, sem ferida sanguenta, apenas mascarado de pó e espumando de raiva impotente.

Mas se o antagonista era destro e resistia aos primeiros golpes, o gigante, de cenho carregado e rugindo, investia, armado como os Atlantes, levantando, a mãos ambas, rochedos e montanhas de erudição. E a pugna tornava-se, como a da Teogonia, imensa e turbulenta com fulgores de relâmpagos e estrépitos de raios.

Era bem um filho da terra, da nossa terra.
As suas qualidades, como os seus defeitos, tirava-os ele da natureza. Lírico até a plangência, uma lágrima vencia-o; meigo, uma palavra de ternura bastava para comovê-lo; mas se se exaltava, era o ímpeto, o furor e não havia contê-lo no arremesso amouco.
Súbito abonançava, abria-se-lhe um sorriso no rosto largo, como no céu tormentoso corre uma nesga de azul, e, de repente, estalava o riso retumbante como o dos deuses, fremindo ainda nas últimas crispações da cólera, como um raio vivo de sol de estilo, que rompe as nuvens ferrugíneas, brilha nas folhas gotejantes e na terra encharcada por onde rolam precipitosos córregos escoando rumorosamente o grosso da enxurrada.

Havia nele uma dualidade díspare: o homem e o escritor. O homem era a própria doçura, levemente acidulada por umas gotas de ironia; pusessem-lhe, porém, a pena a mão e logo se transfigurava, impondo-se como a força heracleana quando, de clava em punho, rompe soberbamente de Tebas a caminho dos doze trabalhos.

Esse homem encolhido em modéstia era um sábio que percorria os vários reinos do espírito, sentindo-se, em todos eles, como indígena, não só por lhes conhecer a vida, a história, os costumes como por lhes entender o idioma próprio.

No Direito era um jurista e lia o latim dos velhos textos com a facilidade natural com que Cícero o pronunciava na tribuna do Fórum. Meditava Kant e Fichte nas próprias palavras saídas do pensamento dos mestres. Shakespeare dizia-lhe as grandes batalhas d’alma na língua em que as descrevera. Os italianos, desde os maiores do Renascimento, até os contemporâneos, eram seus íntimos; o francês de Montaigne e o de Amyot, como o de Anatole France, soava-lhe como lição materna; no espanhol, desde o dos cancioneiros, andava como no seu vernáculo, e assim era em tudo.

A árvore da Ciência não tinha ramos que ele não conhecesse, flores cujo aroma não houvesse gozado, frutos de sabor estranho ao seu paladar exigente. Com tais posses, onde quer que passasse aí deixava vestígios luminosos – e eles aí estão no Código Civil, na História Literária, em apostilas de Direito, em monografias, na polêmica, na Crítica, na Sociologia, na História.
Acusam-no de negligências de estilo, de vícios de linguagem, de desalinho de frase, de pobreza verbal... Mas era o estilo refletindo o homem.

Sílvio não era nem podia ser um artista – era um desbravador e o seu instrumento, pesado e de talho largo, derrubava florestas abrindo caminhos amplos e quando, detorado o arvoredo em desafogada clareira, ele se decidia a construir, eram troncos e penedos que os seus braços transportavam e as edificações avultavam grandiosas, com portarias largas por onde pudessem entrar multidões e muros de rochas sobrepostas que resistissem aos séculos.

Homem de forças tais não podia lidar com cinzéis e ferramenta frágil: brandia o machado e o camartelo e o estrondo do seu trabalho trovejava como tempestade.
Falava e escrevia como a terra produz – com a desordem das explosões.

A sua História da Literatura é vasta e tumultuária como um caravançará e nela se encontram todos os grandes vultos das Letras brasileiras e as vozes que nela soam, ora no ritmo das liras, ora soltas, rompendo dos livros ou retumbando nas tribunas, são a própria eloquência da Pátria, conservada desde o primeiro balbucio lírico no dia em que ela surgiu na História.

E assim, incapaz de exercer a pequena arte, sem paciência e jeito para filigranas nem gosto para lavores miúdos, ele podia repetir a frase de Saint-Simon: “Je ne fus jamais un sujet académique”...

Era, em verdade, um homem da natureza, e entrou nesta Casa, aqui viveu e a sua companhia era amável. Ouvindo-o, porém, falar das escolas rivais na Poesia, das pequenas lutas ridículas entre parnasianos e nefelibatas, parecia-me ver Hércules brincando aos pés de Ônfale.

Mas o seu amor, o seu ideal era a Pátria, que ele estremecia. Quando outros se preocupavam com o que ia lá fora, em alheios climas, ele, encerrando-se na história doméstica, como um asceta no seu cubículo, refolhava-se na tradição, descendo ao mais profundo das suas origens.
Foi ele o explorador da lenda, o intérprete dos mitos, o verdadeiro criador da nossa Poranduba ou folklore brasileiro e, não só descobriu e revolveu o espólio poético das raças primitivas, como o estudou com paciência beneditina, penetrando por ele no passado das três gentes que concorreram para a formação da nossa nacionalidade.

Não sei, em verdade, quem mais admire, se o sertanista afoito que se entranha na brenha dévia, desbravando espessuras ínvias, escalando montanhas ásperas, arremetendo à soberbia de águas acachoadas, disputando, passo a passo, o terreno ao selvagem e à fera para fundar póvoas à sombra tranquila de capelas, reunir sociavelmente bandos de aventureiros, vinculando-os ao solo pelo interesse da posse, semear searas, espalhar rebanhos, construir oficinas e estabelecer sob o regímen da Lei uma sociedade com disciplina e ordem e um deus velando sobre os corações, se aquele que se embrenha nos intrincados labirintos da pré-história, seguindo devesas revessas, onde tudo é mistério escuro.

Aqui, num páramo, depara-se-lhe o vestígio da passagem remota de uma horda, surge-lhe da terra um ídolo truculento talhado em pedra ou falquejado em lenho, afunda-se-lhe o piso em camadas cinéreas, resíduos de fogo de acampamentos nômades, topa rocalha, afofa o passo em dunas ou em lençóis de areia, restos de mares refluídos, encontra detritos de cozinha, urnas funerárias; logo adiante ruínas de muros de macéria, toros em círculo demarcando antigas caiçaras, inscrições hieroglíficas abertas em rochas, esculturas rudimentares, gravados grosseiros contrastando com delicadas gregas e sigmoidais ornando vasos de formas graciosas que lembram os da cerâmica asiática.

Em volta de tais relíquias, como a parietária e a hera que amparam as ruínas, cresce, viceja, alastra a lenda, pululam mitos, eriçam-se superstições, floresce uma poesia ingênua.
Assim passam os povos deixando no seu caminho, como sementes, as suas construções materiais e as suas fábulas, as suas crenças, os seus cantares e basta que o sábio recolha um só de tais decíduos e o fecunde com o exame, como faz o faquir com o olhar ao grão de trigo, para que logo rebente, viçosa, a árvore sagrada das genealogias.

Se o paleontologista só com uma vértebra reconstrói o arcabouço de um monstro antediluviano e o arqueólogo, só com uma métope, restaura um edifício das eras dóricas, o folclorista faz ressurgir de uma quadra rústica toda uma época e um povo, explica uma fábula, tira a razão de um mito.
Assim, os que entram pela Poesia, no rasto de um ente fantástico ou enlevados no som de uma cantiga, regressam de tal incursão bendizendo-a, tornam contentes como os emissários israelitas que chegaram a Canaã, volvendo aos tabernáculos do povo errante, com os varais recurvados ao peso dos frutos e novas de terras bem regadas e férteis em pão, azeite e vinho.
De homens como Sílvio Romero carece o Brasil para que se recolha em si mesmo, estude, reconheça e aproveite a sua grandeza.

“Ninguém imagina como eu quero bem a isto, dizia ele; como acho isto bonito! Este sol, que não se cansa de nos dar beleza e fartura e dengue às nossas mulheres. Palavra que, às vezes, tenho vontade de o adorar, porque é verdadeiramente um deus. Nós não prestamos para nada. Qual literatura! Toda essa versalhada que por aí anda não vale o canto de um boiadeiro. Se vocês querem poesia, mas poesia de verdade, entrem no povo, metam-se por aí, por esse rincões, passem uma noite num rancho, à beira do fogo, entre violeiros, ouvindo trovas de desafio. Chamem um cantador sertanejo, um desses caboclos, de alpercatas e chapéu de couro e peçam-lhe uma cantiga. Então, sim. Poesia é no povo. Eu criei-me na largueza, livre, correndo campinas, varando cerrados, comendo o que me ofereciam as árvores, bebendo nas fontes vivas e, quando o calor abafava, despia-me, pendurava a roupa num galho e atirava-me n’água, nadando contra a corrente. Poesia para mim é água em que se refresca a alma e esses versinhos que por aí andam, muito medidos, podem ser água, mas de chafariz, para banhos mornos em bacia, com sabonete inglês e esponja. Eu, para mim, quero águas fartas – rio que corra ou mar que estronde. Bacia é para gente mimosa e eu sou caboclo, filho da natureza criado ao sol.”
Dizia e ficava-se sorrindo, d’olhos semicerrados, a olhar longe, na meninice, a gente boa e simples com a qual vivera e aprendera a amar religiosamente a terra, o céu, as águas, as estrelas, as flores, os animais, todos os seres, todas as coisas do seu querido e formoso Brasil.

E então contava, como me contou, certa noite, a um esplêndido luar, na praia branca onde as ondas, palhetadas de ardentias, suspiravam na areia as suas trovas quérulas:

Em menino, o meu maior encanto era, à noite, no copiar ou na eira, entre crianças, ouvir as velhinhas que, com a almofada ao colo, urdindo o crivo, cantavam xácaras peninsulares, narravam conselhos, ou espavoriam o auditório ingênuo com histórias sombrias em que aparecia a iurupari ou o saci saltava num pé só, aluminando a brenha com o olhar esbraseado, quando não era o caapora, senhor da mata, que rompia das profundezas com estardalhaço de ramos, montado num caetetu monstruoso que afocinhava as sapopemas, grunhindo e estralando os colmilhos. E fábulas e lendas, umas irradiando com o aparecimento de Rudá, o sol; outras melodiosas do canto múrmuro das iaras, ou então os contos que faziam rir os pequeninos com as astúcias do jabuti, as manias do maçado e as palermices da onça, sempre ludibriada pela esperteza dos animais matreiros. Ah! meu amigo, nunca livro algum, por mais notável que fosse o seu autor e mais celebrada a sua fábula, conseguiu atrair-me como aquelas velhas o faziam com o ímã dos seus racontos.

Às primeiras palavras, que caíam lentas, no silêncio atento: “Era uma vez...” o coração batia-me comovido, um calor inflamava-me o rosto, abriam-se-me muito os olhos e eu via, via os caminhos de encanto, as árvores de folhas de ouro, as grutas de esmeraldas, os dragões que bufavam chamas, as serpentes, os cisnes, que eram príncipes encantados, as princesas cativas de mouros, todas as coisas e figuras desses poemas da infância, primeiros alimentos da imaginação. E quando toda a casa dormia e, lá fora, no silêncio da noite escura, corujas chirriavam, quanta vez cobri a cabeça com o lençol e fiquei tremendo, a rezar baixinho, sentindo abrir-se a porta e alguém entrar em passos surdos. Ah! medo!... E não eram somente as histórias, também as festas dirigidas pela velhice alegre para encanto dos moços e da criançada: as fogueiras de S. João, as marujadas, as feiras do Espírito Santo, com o imperador que era um pirralho; o Natal, os ranchos de Reis cantando à porta das casas, pedindo pouso, quase nos mesmos termos em que cantavam os bardos câmbrios diante das moradias bretãs: “Dieu vous bénisse, gens de cette Maison. Dieu vous bénisse, petits et grands.”

E concluía:

Precisamos desenterrar o tesouro poético dos primitivos. Os povos têm dois jazigos de relíquias, um no espaço: o cemitério; outro no tempo, a tradição. O espaço é precário e tudo que tem nele assento perece; o tempo é perene e eterniza o que recolhe. Deixemos a terra no seu trabalho de transformação contínua, devolvendo-nos em seiva os corpos que lhe confiamos; busquemos no tempo a herança das almas. É pelo tempo que nos pomos em comunicação com o Passado, e quem nos guia nessa viagem? a tradição: aqui uma lenda, além um mito, adiante um canto, alhures um ritual, uma cerimônia e vamos indo por esses marcos até as origens, que são os fundamentos da nacionalidade. Não queiramos a glória do anonimato: povo sem tradição é árvore sem raízes, que qualquer vento derruba. Veneremos o passado e, assim como acendemos círios à beira de túmulos, façamos luz no tempo para que venham, pela claridade do estudo, as pálidas figuras dos primeiros dias, que são os manes da raça, os precursores do gênio do povo e seus verdadeiros indígetes. Não há história sem tradição: ela é o princípio e no princípio é que está Deus: a origem.

E o formidável polemista quedava de olhos fitos, com um sorriso no rosto, triste como a luz do acaso, acesa em saudade: era o enlevo. E estou certo de que, pensando nas histórias, no fundo do seu coração, uma voz familiar, trêmula e doce, repetiria como nos dias de antanho: “Era uma vez...” porque ele, meneando a cabeça, como a sacudir tristezas, suspirava: “Bom tempo!”
É que sob aquele porte de titã, naquele peito largo e robusto de pelejador, escondia-se uma alma meiga e simples, dessas que conservam sempre a singeleza da meninice, como a do bom La Fontaine que, velhinho, tendo sempre vivido no mundo da fábula com os animais, de Esopo e de outros condutores de sicinis, ainda dizia, sorrindo, com centelhas de gozo nos olhos encarquilhados:

Si Peau d’âne m’était conté,
J’y prendais un plaisir extrême.

Mas agora noto, meu ilustre confrade, que ainda não passamos do vestíbulo. Vim para receber-vos e esqueci-me a conversar convosco.
As academias são centros de vida espiritual aos quais se chega através da morte. Já em Atenas era assim: na estrada do Cerâmico, que levava ao famoso jardim, onde Platão discorria entre os discípulos à sombra dos plátanos, eram os túmulos dos heróis que formavam a aleia. Aqui são as memórias dos que passaram e foi em uma delas que nos detivemos distraídos. Mas o vosso lugar espera-vos, marcado com o vosso nome e ornado com as vossas obras.
Já cumpristes o dever sagrado de cobrir de flores a memória do herói e eu imitei o vosso gesto.
Entremos.

Quis o acaso que viésseis ocupar a Cadeira daquele que vos iniciou nas Letras quando, ainda estudante no Colégio Pedro II, contando apenas 16 anos, formastes, com arte de abelha, os Alvéolos onde depositastes o mel das primeiras colheitas líricas. Sílvio Romero, então vosso mestre, trouxe-vos a público. Foi com um prefácio da sua pena que vos armastes cavaleiro de Apolo.
Com tal padrinho não vos foi difícil vencer e entrastes na liça com passo firme sobre lauréis, ao rumor de aplausos.

Desse livro de estreia andam versos esparsos; muitos guardou-os o povo por lhe saberem à alma, outros perderam-se. Foi pena que eu não encontrasse alguns para que aqui entrasse ao som dos cantos da vossa mocidade e seria uma agradável surpresa para o vosso coração e um prazer para todos.
Artur Azevedo recebeu os Alvéolos com palavras de louvor, dizendo “que havia, afinal, chegado para ele o desejado momento de aplaudir uma verdadeira estreia”. E, depois de algumas transcrições, concluiu: “Ora aí está um poeta, ou não há ratos na alfândega, nem habitantes em Júpiter.”
Os louvores não vos empolgaram atirando-vos na vaidade, essa ilha de encanto, espécie de Ogígia, onde se perdem tantos espíritos peregrinos.

O fraco, se os elogios o envolvem, lançando-o, embrulhado na espumarada efêmera dos adjetivos, nesse diversório de enganos, logo se julga divino e, pandeando empáfia, bebe, a grandes sorvos, o néctar das lisonjas, coroa-se de flores e estira-se molemente na relva, repetindo os próprios cantos ou contentando-se em ouvi-los afinados na voz falaciosa de Calipso, a deusa que há de sempre seduzir os homens... não falo das mulheres, porque essas são as suas ninfas.

E o mundo esquece-o, por não vê-lo, e, com o esquecimento do homem, sepulta-se a obra frágil. E lá fica na Vaidade, julgando-se imortal, o que não passa de um náufrago perdido.
O forte e sadio Ulisses, esse aborrecia-se na inércia lânguida, com saudade da vida e da morte, bocejando enfastiado na monotonia daqueles prados de verdura eterna, daquelas águas sempre cristalinas, daquele céu sempre azul, desejando, com ânsia, a cidade tumultuária, a luta e os trabalhos dos homens, os rebanhos nas pastagens, os guerreiros nas torres, as doces colinas verdes e em flor na primavera, alegres ao sol no estio, carregadas de frutos no outono, nuas e brancas no inverno, sob a vergasta dos ventos. E a sua ilha áspera, onde o mar estrondava, e Penélope e Telêmaco, todos os seres dos quais se apartara, todas as coisas que não esquecia.

E não amava a deusa nem se comprazia nos vergéis imortais do tempo maravilhoso, e, tanto que teve o favor de Zeus, desprendeu-se de todos os encantos estéreis, da facilidade daquela existência anódina, daquele corpo divino que o tempo tornava mais belo e inflamava em desejos mais árdegos, lançando-se às incertezas das vagas para tornar à vida, que o seu sangue reclamava, aos trabalhos que os seus braços exigiam, guiar uma junta de bois num campo, brandir uma lança em combate, deitar-se num leito ao lado de uma mulher humana, em cujos lábios florissem sorrisos, em cujos olhos brilhassem lágrimas.
Vós também, meu ilustre confrade, ainda que conhecêsseis os perigos do mar grosso, salteado de insídias, ainda que soubésseis que nem todos os deuses vos eram propícios, nem sequer tomastes pé na ilha e, sem barco ou jangada, nadando a peito afoito, ousastes a aventura de que tão galhardamente vos saístes.

Na obra que tendes em preparo sobre a Abolição direis, por certo, como encontrastes o Brasil quando aparecestes entre os seus poetas. Todo o país, de norte a sul, agitava-se abalado pelos gigantes. Cada jornal era um vulcão, cada folha provinciana uma solfatara, e aqui, mais perto de Zeus, os titães redobravam os esforços na tremenda guerra, que parecia dirigida por Prometeu.
Os que viveram esses dias gloriosos viram as maiores fulgurações do nosso gênio, as mais possantes energias da nossa raça; conviveram com os heróis do ciclo mais belo da nossa História.
Nas ruas, por entre o povo, passavam, sem arrogância, as forças do tempo; era Patrocínio, era Bocaiúva, era Joaquim Serra e Nabuco, Ferreira de Araújo, José Mariano, João Alfredo, Dantas e Rui Barbosa, já, então, senhor onipotente da palavra, o nosso verbo mais fecundo e mais puro.

Em torno de tais colossos gravitavam os novos. Com eles formastes e, logo nos primeiros recontros, viram os vossos companheiros que entráveis na luta com boas armas e coragem ardida.
Na imprensa, a que logo subistes, tivestes lugar de honra e, ora como archeiro, despedindo flechas hervadas em sátira, mas aparadas com arte como se saíssem da própria aljava de Apolo, ora arrojando da altura das colunas blocos de prosa demolidora, fizestes, com dedicação e denodo, o vosso ofício de soldado, hoje em um bando, no dia seguinte em outro, mas sob a mesma fé, pelejando pela mesma causa.

Na investida em que se arrojaram as forças não só derrubaram as muralhas ferrenhas do imenso Valongo, como, passando impetuosamente sobre os escombros, chegaram aos paços da dinastia e, um ano depois da libertação dos escravos, com o mesmo canto heroico com que haviam as hostes arrasado as senzalas, fizeram cair o Trono e, sobre as ruínas dessas moles, levantaram a República. Assim, entrastes na Pátria com os triunfadores.

Desarmadas as tendas, recolhidas as armas, quando todos, voltando da peleja, cuidaram de refazer a Nação, que ficara em muradal, não vos negastes a servi-la e aparecestes como obreiro, ajudando aqui, ali aos que trabalhavam, ora com um artigo, ora com um livro. Enquanto fazíeis tais obras, íeis aprofundando o espírito no estudo, apurando os vossos conhecimentos e, um dia, surgindo de uma livraria com um novo volume debaixo do braço, os que nele buscaram versos líricos pasmaram de achar páginas didáticas, obra de professor, ponderada e sóbria, toda em regras e em princípios bem fundados.

E o educador surgiu do poeta, naturalmente, como da flor sai o fruto.
E nesse estudo aturado, sem descontinuação, viestes polindo a língua, enriquecendo-a de formas cultas, renovando-a nos dizeres, escoimando-a de vícios, e logo a vossa autoridade impõe-se e, por ela, chegastes à cátedra, lecionando aulas nas mesmas salas onde havíeis aprendido e subindo de posto dia a dia em promoções merecidas, já como professor, já como escritor, e dos que com mais alinho redigem e com mais austeridade honram a nossa língua.

E, ao passo que assim vos dedicáveis à instrução, íeis continuando, com a mesma pertinácia, a obra iniciada nas letras, publicando a Flora de Maio, pronunciando conferências literárias, e como a vossa curiosidade e amor à terra vos levassem ao Norte, não tornastes de mãos vazias: o livro de que lá trouxestes aí está com a relação minuciosa do que vistes e observastes.
No jornalismo tendes percorrido toda a escaleira, desde a nota rápida até a crônica e o artigo político; desde o epigrama, que belisca de leve, até a polêmica, que escorcha. Mas foi na crítica literária que vos fixastes, estabelecendo nela posto de vigia. Sois como o guarda da ponte que vem da sombra para a claridade. Os que pretendem entrar no raio do sol de que fala Rostand:

Car ils sont comme la poussière:
Des petits atomes danseurs
Qu’on ne voit que dans la lumière,
Les poètes et les penseurs!

todos esses ambiciosos de glória hão de atravessar a ponte, onde montais sentinela e que lembra a de Gálata, em Constantinopla, na qual, segundo De Amicis: “passam por dia cem mil pessoas e não passa em dez anos uma ideia”.

“Nem tanto!”, direis convosco. Sim, nem tanto... De vez em quando lá surge alguém que vos mostra tesouros da terra – palhetas de ouro, pedras raras; outro que vos estende as mãos em concha cheia das próprias lágrimas cristalizadas em poemas ou exibe sonhos floridos entre espinhos, à maneira das rosas. Mas o grosso da multidão compõe-se de bufarinheiros, de contrabandistas, mascates e regatões, carregados de quinquilharias, ouropéis tisnados de azinhavre, joias, cujas pedras são dobletes, folhetas de ouro que são mica. Esses, por mais que façam, não vos conseguem iludir e, como vos opondes à passagem de tal gente, logo se levanta, estrondoso, o alarido da revolta. A ponte atroa o barbarizo, vozes ameaçam-vos, chovem pedras de injúria aos vossos pés. Tornando, porém, aos seus penates, tratam os repulsos de explicar o mau êxito da aventura e, à maneira de certos heróis da Idade Média, que retrocediam aos castelos, rotos e contundidos de sovas, mas contando duelos com os dragões ou encontro com gigantes, pintam-vos como um monstro truculento, enlapado em gruta assoalhada de ossos, como o antro da Esfinge, grande, escamoso, de garras leoninas, lançando chamas pelas fauces armadas de seis ordens de dentes, que rilham poetas líricos e atassalham, com voracidade, filósofos e novelistas.

E o vosso nome, como o de Morhout, no poema Tristão e Isolda, estarrece os mais ousados e enche de pavor a gente literária.
Entretanto ninguém é mais maneiro nem diz com mais entusiasmo o louvor, quando é justo, do que vós, mas como na turba são poucos os que o merecem, o que domina é o vozerio dos descontentes e esse é que faz o sufrágio que vos elege “o ferocíssimo devorador dos gênios”.
Não serei eu quem vos acuse de rigoroso, principalmente do que diz respeito à análise da língua que entre nós se escreve. O que pedis aos presumidos vates e aos originalíssimos reformadores da prosa portuguesa é que se exprimam em voz pura e não em geringonça, compondo uma espécie de satura lanx em que entra de tudo, como nos pratarrazes pastranos, formando uma salgalhada indigesta com pedaços de línguas estrangeiras, entre os quais predominam os da francesa, tida por mais suculenta e saborosa.

Tais guisados de tasca não vos sabem; é contra os que os cozinham e os apresentam em banquetes literários que vos insurgis.
Podíeis tomar por lema as palavras de Castilho, que disse: “À linguagem consagrei particularmente um grande esmero e tanto maior quanto mais desamparada, mendiga e esfarrapadinha a vemos hoje correr por toda a parte à vergonha, ou sem vergonha dos seus naturais.”
Desde que aqui se proclamou a vitória do vosso nome, levantou-se lá fora um arruído de revolta:
“A Academia, bradaram, pactuou com o volteiro da Crítica e abriu-lhe as portas. É a guerra!” Assim, com a vossa entrada, para tal gente, ia a casa da serenidade transformar-se em castelo roqueiro, o aviário mudar-se em ninho de falcão.

Amotinaram-se nos ares sanhaços e tico-ticos, e todo o povo alado, que se presume mavioso, arrufou-se em cólera.
Durante dias, que foram de estardalhaços, esteve perturbada a paz deste retiro com a chirriada e o atitar furioso. Enfim tudo cessa e os ânimos alvoroçados serenaram.
Vindes em boa hora, porque a língua está a pique de perder-se, degenerando em garabulha por arte dos franchinotes. Já não é somente o vocábulo de boa casta que é renegado pelo barbarismo, é a própria plástica, a mesma sintaxe, de construção robusta, que se vai deformando com o arrocho do justilho, efeminando-se com embelecos e postiços.

E assim abastardam e envilecem o nobre idioma, o altissonante português, que rompeu sonoro através do troar das buzinas romanas; que retumbou vencendo o clangor das tubas sarracenas; que ecoou em África sufocando o estrugido das parapandas negras; que dominou o ribombo dos trovões e o uivo dos ventos nos mares, quando ordenava nas galés atrevidas; que se lançou por Ásia dentro e veio cantar nas tabas americanas, regressando ao ninho paterno cheio de notícias de heroísmo.

Ao reentrar na Pátria, como as pedras que se moveram ao som da lira de Anfião e, sotopondo-se por si mesmas, umas às outras, formaram as muralhas altas de Tebas, obedecendo à “fúria grande e sonorosa” do épico, ajustou-se em heroicos, formando a torre inexpugnável dos Lusíadas, onde há de viver eterno o gênio robustíssimo da raça que o criou.

É tal idioma, cujos termos nasceram em campos de batalhas; nos castelos alcandorados e nas alcáçovas das fronteiras; nas humildes póvoas dos vilões, e nos claustros ascídios; nas estalagens, onde pousavam trovadores e dormiam espadachins e goliardos; nos paços reais e nas galés que se faziam aos mares misteriosos, nas recâmaras das donas e nas arribanas dos pastores; no púlpito das igrejas e nas tribunas parlamentares; na arte e na ciência; no comércio e na indústria; na lezíria, entre o gado; nos trigais e nos olivedos, nas festas pagãs das colheitas, nas feiras sempre turbulentas; no inverno ao calor do lume, no soalheiro estival e entre a dorna e o lagar no outono; sentimental pelo influxo da saudade, flor da raça. É tal idioma tradicional, herança que nos foi legada pelos que nos deram a Pátria, o Deus do nosso altar, os costumes, a Lei e a sua própria glória, que está em perigo, não por desestima do povo, mas por traição dos vélites da pena, desses mesmos que o deviam guardar com avareza e defender com brio.

E por que assim o desconjuntam? Porque o acham, dizem, por demais inteiriço e ríspido, sem flexibilidade, duro. Então desarticulam-no e arrancam-lhe do corpo hercúleo as peças da armadura que o acoberta e reforça desde o tempo em que, partindo dos arraiais galizianos, entrou a terra lusitana, forte e altivo, nas mesnadas dos ricos-homens. Se ainda o vestissem compostamente, com trajo de hoje, nada se lhes diria, mas atafulam-no como um pintalegrete e trazem-no por aí ciciando em voz de eunuco e caminhando aos pinchos como um pisa-flores.

O mal não é novo, alegam os galiparlas. Já Duarte Nunes de Leão o denunciava no começo do século XVII, mostrando acarretos do francês no curso do vernáculo.
Tais expressões, porém, transitam como folhas que descem o rio ao som das águas, e passam e vão-se ao mar; mas se as deixamos rebalsarem-se, a água toda vicia-se, e turva-se o que era límpido, o que era fluente remora em pântano; fica estagnado em putrilagem o que, antes, docemente corria regando terras, refletindo arvoredo, céus e montes, movendo azenhas e abeberando povos e rebanhos. Insistem ainda os taralhões argumentando com Victor Hugo: “Une langue ne se fixe pas. L’esprit humain est toujours en marche, ou, si l’on veut, en mouvement, et les langues avec lui.”

Sim, a língua não se fixa: evolve, mas sempre à custa da seiva que recebe das raízes e dos benefícios que tira do ambiente. Assim a árvore perde as folhas, abrolha de novo, floresce, frutifica, esmarre para reverdecer mais bela. Mas como a árvore morre se a infestam parasitas, assim perece a língua se a invadem exotismos.

Que transferida de um para outro clima a língua se modifica, não há negar. O idioma falado no Brasil é o mesmo que soa em Portugal, mas – e mantenho a analogia – com o nosso sol a árvore tornou-se mais verde, mais viçosa, vieram-lhe as flores mais coradas e os frutos mais doces e de mais aroma e, como se deu bem na terra, desenvolveu-se prodigiosamente, abrindo a frondosa copa e enchendo-se de cantos.

Mas a seiva que lhe corre no âmago é a mesma que circula nas veias da árvore veneranda, em cujas raízes estão sentados os quatro evangelistas: Camões, Vieira, Bernardes e Camilo.
Deixai que esperneguem e vociferem os tarelos, continuai a campanha, que a vossa causa é boa. Vós que compusestes o hino, que é a oração da pátria, que o povo canta diante da bandeira; vós, que pusestes nas mãos da criança as Leituras Militares; vós, que sois poeta e educador, fazei o vosso dever, sem desfalecimentos, guardando e defendendo o nosso mais sagrado patrimônio.
Reconstroem-se as cidades destruídas, refazem-se muralhas, restauram-se edifícios, mas um povo que perde o seu idioma desaparece.

Que resta do etrusco? Vestígios no barro. Que ficou do fenício? Lendas. A Grécia e Roma subsistem nos seus poetas e pensadores. Os povos, ainda sob a virga férrea, procuram conservar o vernáculo e com ele se consolam das misérias, recordando tristemente os dias felizes.
Herculano conta-nos dos que, subjugados pelos romanos, na Espanha, recolhendo, à noite, aos ergástulos, conversavam misteriosamente na língua dos seus maiores, mantendo-a viva e transmitindo-a aos filhos.

O mesmo faziam entre nós os negros, semeadores das primeiras searas. À noite, trancados nas senzalas, juntando-se em conselho de saudade, conversavam baixinho na aravia das suas tribos, como se se reunissem em um pedacinho da pátria que houvessem trazido no coração.
Continuai a vossa campanha e tendes autoridade para o fazerdes porque, escrevendo dos vossos livros, disse o mestre de todos nós, aquele que é como o nume do vernáculo, levantado em altar de ouro, feito com as suas próprias obras – Rui Barbosa:

Nenhum desses livros mente ao seu título, e em todos, ao mesmo passo que se sente o espírito de um verdadeiro homem de letras, se apura a linguagem de um mestre do nosso escrever. Nestas palavras sem lisonja desejaria não ter ficado aquém da justiça que se lhe deve.

Os livros a que alude o mestre são: o Tesouro Poético Brasileiro, a Arte de Fazer Versos e Leituras Militares.
Além desses tendes ainda publicado estudos gramaticais e estéticos, teatro e conferências.
Classificado em dois concursos e sempre lidando na imprensa com infatigável assiduidade, fiscalizais ainda o ensino público e lecionais em escolas e, por vezes, saudoso da lira, preludiais um canto novo.

Nas vossas conferências – uma das quais é a glorificação de Luís Delfino, o poeta magnífico, cuja obra, de tanta grandeza, consumida em parte, pelo fogo, ainda jaz no olvido, parecendo que desceu com ele à sepultura, como outrora, na Índia, eram levados à fogueira rogal, acompanhando o corpo do guerreiro, além das armas que ele celebrizara, o seu corcel, escravos e a esposa do seu coração – entre as vossas conferências, digo, algumas há que revelam o vosso amor à poesia do povo.
Já o destino nos preparava para a sucessão, pondo-vos na pista do paciente respigador dos Cantos Populares do Brasil, cuja cadeira órfã vindes ocupar.

Os ensaios foram felizes, continuai que não vos falta alento para a empresa e encontrareis em vosso caminho, entre outros, que se empregam no mesmo trabalho a que vos vindes ultimamente dedicando, João Ribeiro, Alberto Faria e Erasmo Braga.

Esses são – e vós com eles – os que, pacientemente, revolvem o passado, mineiros de boa lavra, que trazem do fundo do Tempo à flor dos dias o que se foi acumulando no subsolo das letras e que, reaparecendo, será lume para a História, conforto para a alma e força motriz do progresso da nacionalidade.

Sede bem-vindo a esta Casa, que espera de vós mais glória para o seu brasão.