Havia outrora, na Pérsia, uma célebre Academia, em cujos estatutos se encontrava o seguinte artigo: “Os acadêmicos pensarão muito, escreverão pouco e falarão o menos possível.”
Confesso-vos que nunca admirei tanto a sabedoria oriental. A última cláusula desses estatutos reúne inevitavelmente os sufrágios de todos aqueles que, pela primeira vez, têm a honra insigne de ser admitidos em vossa Casa. Em tal momento o mais audacioso perde a audácia. É o “noviço” inquieto de se não encontrar à altura de tão elevada missão; inquieto, mas feliz.
Quem disse que o dia mais belo era a véspera?
Foi sem dúvida, alguém, alheio por completo às eleições acadêmicas, nas quais a véspera se nos apresenta incomparavelmente menos sorridente do que o dia do triunfo. Quem de nós não sofreu, nessas intermináveis horas de espera, as ansiedades, os desalentos, as dúvidas e depois as esperanças e outra vez as dúvidas?
Ela é severa, a véspera das eleições... Mas não há de ser por um caminho de flores que se alcançará a vitória.
Minha insistência já provou quanto ambicionei a honra que me conferistes.
Há, senhores acadêmicos, teimosias intrépidas que são altamente recompensadas.
Hoje me acolheis em vossa ilustre Companhia. É para mim um indizível contentamento que vos agradeço comovido. Meu pensamento une os que aqui se encontram aos que se foram, e que esta noite aqui permanecem com todo o prestígio dos ausentes muito amados.
Todos vós, compondo o poema de vossas idéias ou de vossa fé, trouxestes aos homens o inestimável dom de uma potência espiritual sem a qual as conquistas do mundo seriam bem precárias.
Poetas, que espalhais a Beleza sobre a terra: os vossos sonhos são também os nossos. Filósofos, que elevais o vosso espírito acima dos interesses cotidianos; sábios, que nos desvendais cada dia um pouco dos enigmas do universo; juristas, que refreais tantas iniqüidades; historiadores, que escrutais o passado; sacerdotes, que ofereceis ao mundo a fé, a esperança e a caridade, todos vós que vos consagrastes a um ideal, cuja posse é, algumas vezes, tão áspera, eu saúdo em vós o pensamento e a ação, fontes de tudo quanto constitui a grandeza e a ventura do homem. Sem as vossas obras, a vida nos imporia o mais triste, o mais implacável dos fados.
Penso ainda em todos aqueles que se poderiam ter sentado ao vosso lado, em todas as nobres inteligências cujos planos faliram, naqueles que nem puderam tentar realizá-los, pois a vida caprichosa os apartou do caminho de sua vocação não consentindo batessem à vossa porta.
Uma encantadora página da literatura Inglesa me vem à memória, imagem eloqüente de destinos frustrados: “A porta no muro.”
Um jovem, todos as dias, passa diante de um vasto muro, no qual há uma porta fechada.
Um dia a porta está entreaberta. E ele percebe um maravilhoso jardim, no qual desabrocham todas as flores, cantam todos os pássaros e grandes árvores centenárias sobem para a luz. O jovem não pode então deter-se um minuto sequer, porém, enlevado, promete voltar.
Os dias, os meses, os anos passam... e os afazeres rotineiros e absorventes, as preocupações medíocres, todas as imposições da vida impedem-no de realizar seu belo sonho.
A existência inteira ele arrasta dentro de si a nostalgia do encantado jardim em cujo recesso jamais pôde penetrar.
Mais feliz que o herói desse comovente símbolo vejo uma das minhas mais altas aspirações realizada mercê de vossa generosidade.
Fundada numa hora em que o pensamento vivia separado da ação por um fosso intransponível, a Academia congrega pensadores, homens de letras, poetas. Nessa época ela se podia isolar. Sua finalidade máxima seria a conservação da maior riqueza nacional – a nossa língua. Vós vos fizestes os guardiões desse tesouro tão sagrado quanto o fogo da cidade antiga.
Nada ultrapassa, em beneficio à Cultura, a grandeza humana da língua. Ela perpetua a lembrança de nossos antepassados, melhor do que qualquer outro legado que eles nos possam deixar para o edifício da civilização.
O cultivo da gleba, a Arte, a ciência, os costumes internacionalizam-se! Vede: o mesmo trigo estende suas ondulações douradas além fronteiras; a mesma arquitetura veste o universo de monotonia desconcertante; a moda soberana uniformiza o eterno feminino; a ciência penetra todas as nações... A língua fiel, no entanto, permanecerá nossa, será o laço indestrutível entre a geração de nossos pais e a nossa geração, entre nós e nossos filhos.
Eis a herança preciosa. Ela nos vem do fundo das idades em que cada dia que passa é devedor do dia que passou.
Aproximar-se, compreender-se, identificar-se pelas recordações análogas e pelas esperanças comuns será sempre a verdadeira beleza do sentimento nacional.
Senhores acadêmicos, vossa missão foi, é e será essencialmente patriótica.
Como tudo que vive, as Academias estão submetidas à lei da evolução. Mais que nunca apreciais e acolheis a diversidade da inteligência. Pressentis os males de uma literatura confinada na pura especulação. E ensaiais conciliar o idealismo desdenhoso, em sua torre de marfim, com o realismo escravo dos fatos.
Chegamos a uma encruzilhada da História e é difícil distinguir entre o possível e o aparentemente impossível. O amanhã nos permanece incerto, vacilante, na cadeia dos destinos.
Compreendemos, demasiado tarde talvez, tudo quanto há de transitório naquilo que acreditávamos imutável e eterno... A Cultura foi atingida em cheio, até as forças espirituais sentiram o perigo.
A hora é grave para os homens de pensamento e para os homens de ação. E há de ser da identificação de ambos que surgirá a força capaz de modelar o futuro, de marcar o novo estádio pelo qual a humanidade se encaminhará com firmeza.
Nada de grande se obtém sem a fé. É mister acreditar no prodígio, é mister crer no milagre, crer como Clóvis Beviláqua cria:
Creio no Direito, porque é organização da vida social, a garantia das atividades individuais;
Creio na liberdade, altíssimo ideal a que somos impelidos pela aspiração do melhor...;
Creio na moral, porque é a utilidade de cada um e de todos transformada em Justiça e caridade...;
Creio na Justiça... creio na Democracia, creio mais nos milagres do patriotismo.
Esta noite, ante o tremendo compromisso de encarar a figura e a obra de Clóvis Beviláqua, sinto a vertigem das alturas e me arrecearia da queda fatal se me não protegessem a minha sinceridade e a minha devoção àquele que muito conheci e muito admirei.
Nasceu Clóvis Beviláqua a 4 de outubro de 1859, na pequenina Viçosa, no Estado do Ceará. Foi naqueles risonhos dias que, embora próximos, se nos afiguram tão distantes, quando a divina piedade vivia conosco e um sopro evangélico passava ainda sob o nosso céu, ouvindo-se a toda hora:
– Ó de casa!
– Ó de fora!
– Quem bate?
– É de paz...
E o amigo, o viandante, quem quer que fosse, recebia incontinenti o agasalho fraternal.
Nascido na orla do sertão, berço de gente enérgica e paciente, cujo temperamento varia da alegria serena à nostalgia suave, trouxe Clóvis em sua personalidade a marca indelével do torrão natal.
Seu avô paterno, filho do longínquo Trieste, aportado ao Brasil, há quase dois séculos, e sua avó, D. Luísa de Oliveira, nome representativo das linhagens lusas, lhe teriam de transmitir as qualidades primaciais de caráter e de sensibilidade. Foi, porém, a influência do meio natural e da área da Cultura, em cujo seio viu a luz do dia e viveu os primeiros anos, que lhe impregnou o espírito do vigor físico e social da terra e do agregado humano daquelas paragens.
Embalam-no, por certo, pela voz de sua mãe, as lendas, as poesias, o folclore daquela gente. Ele mesmo mais tarde deve ter voltado a ouvir pelas cabanas agrestes, sob a melancolia cariciosa do luar do sertão, muitas dessas canções, entoadas por ingênuos troveiros indígenas ao som da harmônica, do triângulo e da viola. Tais cenas, a recordarem um bom tempo lendário, no qual tudo é singeleza, arrojo e lealdade, parece terem permanecido para sempre inabaláveis em seu subconsciente.
Ele herdou e conservou ciosamente em si, numa síntese feliz, tudo quanto de bom, de espontâneo, de desprendido os manes daqueles ermos incutiram no ânimo de seus filhos. A simplicidade, a superstição e a resignação do sertanejo nordestino ante a fatalidade da natureza transfiguram-se, na candidez daquela alma, em doçura, em tolerância, em espírito de justiça, tocado por uma bondade sem limites.
Tenho ainda diante dos olhos a fotografia de Clóvis, em 1862. Conta apenas três anos e é já ele mesmo. Sua atitude revela uma paciência surpreendente. Aprumado sobre uma cadeira, seus pés cruzados desafiam as leis do equilíbrio, suas pequenas mãos obedientes lá estão onde o fotógrafo as colocou.
A expressão do rosto infantil é tocante. Denota inteligência, meiguice, resignação – fatores dominantes de seu espírito.
Transcorre um lustro, ele tem oito anos. Uma outra fotografia no-lo apresenta em companhia de sua mãe – Dona Martiniana – cuja expressão a um tempo tranqüila e austera vale por um flagrante das damas de sua época, em nossa terra. O pequeno conserva-se sério, mas mostra-se feliz. Sua mãe ali está e esta companhia é a sua única ambição. É o tempo venturoso no qual poderia cantar com o poeta:
Quand le bord de sa robe était non horizon.
Depois vem o Ateneu Cearense, depois o Liceu Cearense, em cujos bancos o adolescente se entusiasma por Taine, Chateaubriand, Lamartine, Victor Hugo, Leconte de Lisle, Gautier, Georges Sand, Quinet e os nossos, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Alencar, Castro Alves.
Revela-se o escritor. Sua estréia faz-se em 1875, aos 16 anos incompletos, no jornalzinho O Livro, por ele fundado com Paula Ney e outros colegas. Em seguida, em fins de 1876, já tocado pelo movimento intelectual dirigido por Capistrano de Abreu, Rocha Lima, Tomás Pompeu Filho, Araripe Júnior, João Lopes, Amaro Cavalcanti, parte para o Rio de Janeiro e freqüenta o Mosteiro de São Bento e o Externato Jasper. Aqui se une afetuosamente a Silva Jardim, o tribuno incomparável com quem estuda, discute e sonha. Por intermédio de Büchner, Quinet, Miguel Lemos, efetua-se a sua iniciação filosófica. Mas só em Recife, em 1878, desabrocha inteiramente sua poderosa personalidade de pensador.
A capital pernambucana, logo depois de 1860, tornara-se um centro de vibração cívica e mental. Tudo ali era propício a um grande movimento de ardor juvenil. As reminiscências históricas criaram ou desenvolveram esse estado de espírito. À longa e cruenta luta contra os holandeses, às aspirações liberais ensaiadas por inspiração de Nassau, na Assembléia dos Escabinos, na primeira metade do século XVII, à revolta dos Mascates, no início da centúria seguinte, ao Seminário de Azeredo Coutinho, fundado em 1800 com um programa de cultura capaz de produzir os idealistas de 1817 e 1824, se vinham juntar a questão religiosa e a exacerbação criada pela guerra contra Solano Lopes.
Ainda vibravam no ar:
Juntemos as almas gratas
De colegas e de irmãos,
Que o vento que acorda as matas
Nos toma os livros das mãos.
A vida é uma leitura
E quando a espada fulgura,
Quando se sente bater
No peito heróica pancada,
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer...
Era a caminhada para a luta. Mestres e alunos marchavam decididos para o campo de batalha do Paraguai.
No livro de Clóvis – História da Faculdade de Direito de Recife – no qual se resume toda a obra do celebrado instituto de cultura e de vida intelectual e social de Pernambuco e do Brasil, sente-se a fulguração da época. A Faculdade irradia inteligência e entusiasmo. Surge a ação mental, a que Sílvio Romero chama Escola de Recife. Inicia-se em sua feição literária, sobretudo poética. É o momento em que as imprecações de Victor Hugo chegam às plagas brasileiras.
A vida intelectual mantinha-se em trepidação constante e contagiosa. Na Mansão do Direito encontravam-se, vindos dos quatro cantos do Brasil, os agitadores do meio pacato da Veneza brasileira.
Os salões abriam-se-lhes promissores. As serenatas ao luar, sob as janelas das beldades pernambucanas, exaltavam os corações femininos, alheios à inquietação dos sisudos chefes de família, nos remansosos bairros de Santo Antônio e Boa Vista.
Tobias Barreto de Meneses e Antônio de Castro Alves, aos quais se vinham juntar outros, muitos outros, de dentro ou de fora da Faculdade, fascinavam o ambiente tranqüilo de Recife.
O Teatro Santa Isabel, em cujo palco se exibia uma companhia dramática portuguesa, é a arena de combate. Naquele ambiente, sob os olhares fascinantes das mulheres, cujas espáduas nuas caíam graciosamente, acentuando, segundo o gosto da época, cinturas de vespa sobre amplas saias entufadas, se desencadeava verdadeira refrega poética.
Duas atrizes – Eugênia Câmara e Adelaide do Amaral – tornar-se-iam o motivo da peleja que daria sabor e movimento à cidade inteira.
Antônio de Castro Alves exalta a primeira, fá-la sua musa. Tobias decide-se pela segunda, louva-lhe os talentos. Logo o entusiasmo transmuda-se em rivalidade. Separa amigos. Fomenta partidos. Provoca debates.
Em torno dos vates pugnazes alinham-se as preferências. A porfia desperta interesse ainda maior do que os espetáculos. Os dois poetas, nos entreatos, promovidos pelo consenso geral na parte mais empolgante das representações, recitam poesias encomiásticas às suas deidades, envolvidos pelos aplausos da platéia em festa.
Não raro, terminada a declamação, antes de se extinguir o eco das derradeiras palmas, em resposta às insinuações de um deles à eleita do outro, rebentam improvisos que arrebatam.
Quando Tobias termina, em alusão a Eugênia Câmara, livre e audaciosa:
Sou grego pequeno e forte
.......................................................
Mas minha’ alma inda tem fé...
........................................................
Não sonho, não me embriago
Nos banquetes de Friné...
Castro Alves, sob aclamações, levanta-se e, visando à musa do rival, que era casada, responde:
Sou hebreu, não beijo as plantas
Da mulher de Putifar...
À exaltação do momento sucedem-se os comentários, as discussões, nas vetustas salas da Faculdade, nas redações dos jornais e das revistas, nos salões, nos escritórios, nos balcões comerciais e nas ruas.
Os partidários de um ou de outro orgulham-se de seu chefe e de sua inspiradora, ostentam na lapela os emblemas característicos de sua preferida.
Compreende-se com facilidade o que representaria um acontecimento de tamanho porte numa cidade de Província, cujos atrativos não iam além das reuniões familiares, das festas de igreja, das Cavalhadas, dos Pastoris, dos Bumbas-Meu-Boi, das trocas de olhares namorados à saída da missa aos domingos, das tertúlias dos homens nos bancos das Boticas e das famílias nas cadeiras e canapés enfileirados em plena rua, pelas calçadas das residências senhoriais.
É de lembrar a vivacidade com que meu velho pai – Antonio Carlos Carneiro Leão – nos evocava a impressão que lhe causara, nos salões festivos de seu avo paterno – Francisco de Paula – o encantamento, despertado pelo sucesso sem par. Sua devoção pela poesia lírica e seus versos inspirados guardaram sempre, através dos anos, o sabor da ingenuidade e doçura daqueles dias.
Passada a efervescência que se prolonga até 1866, a vibração continua. Vivia-se numa época em que o maior florão da inteligência era a Poesia. Ser poeta significava pertencer à grei privilegiada da aristocracia intelectual. Ao vate tudo se permitia. Dir-se-ia que se participava do sentimento de privilégio tão bem expresso por São Pedro, (nos versos de Edmond Rostand) ante a desenvoltura de uma alma à porta do Paraíso:
"...............................................................................
"Mais vous viviez comme um infâme!
.................................................................................
Pour vous nous n’avons pas de place
Allez-vous-en chez les damnés!
Oh! là-bas on vous fera fête,
Monsieur le... Tiens, au fait, qu’avez
Vous été sur terre?” – “Poète.
Je faisais des vers, vous savez."
–“Hein? Poète...” Alors m’ouvrant vite:
“Pourquoi” fit-il d’un ton plus doux,
“Ne l’avoir pas dit tout de suite?
Entrez done! Vous êtes chez vous.”
Estamos em plena moda dos recitativos ao piano, ao som da Dalila, do feitiço do verso, da inclinação da Sinhá Dona pelo Doutor poeta, autor de acrósticos, declamador de tiradas românticas nos salões das damas mais belas e mais festejadas da capital de Pernambuco.
Alguns se ostentam, então, como o de Dona Paulina Monteiro de Siqueira Cavalcanti, das Wanderley, das Carneiro da Cunha, das Carneiro Leão, das Rego Barros, das Sousa Leão, das Albuquerque, das Pais Barreto... como verdadeiros centros de convergência intelectual.
A novidade revolucionária, na poesia da Escola de Recife, tinha de ser a social. A liberdade política, a emancipação dos escravos e a emoção cívica predominam. São “Vozes d’África”, “O Navio Negreiro”, “Pedro Ivo”, “Quem dá aos Pobres empresta a Deus”, de Castro Alves; “A Polônia”, “Sete de Setembro”, “Os Leões do Norte”, “Num dia nacional”, de Tobias Barreto, para só falar nos chefes.
Era a reação evidente das idéias e dos sentimentos generosos que culminaram na Emancipação dos Nascituros, na Abolição da Escravatura, na República. É a primeira fase dessa revolução mental e moral que conquista a mocidade e os meios cultos, construindo, como finalidade do espírito, o esforço pelas aspirações humanas mais altas e mais nobres.
Da poesia encaminham-se naturalmente para a crítica literária, para a Filosofia.
Neste período até a Poesia se inspira na Filosofia e na ciência. Os versos de Generino dos Santos e as Visões de Hoje, de Martins Júnior são provas significativas.
A Escola de Recife, em sua fase poética, foi obra da juventude, foi criação dos estudantes de ciências jurídicas e sociais, vindos de todo o Brasil e empolgados pelo meio.
A Congregação da Faculdade mantinha-se na penumbra de uma filosofia e de um direito natural, indiscutíveis e ainda ali indiscutidos. Chega, porém, a hora em que se passa insensivelmente da poesia social e propulsora de idéias generosas, para novas concepções do mundo, da vida, do espírito, da sociedade e do direito.
A revolução filosófica se processa com o Positivismo de Comte e de Littré.
A ação do Positivismo na evolução do pensamento brasileiro é imediata. Cedo, contudo, a corrente se desvia. A luta contra a filosofia oficial prossegue sob a direção de Tobias Barreto. Insulado dez anos em Escada, pequena cidade do interior, entre canaviais e livros de ciência e pensamento germânicos, ele forja as suas armas de combate. Seus mestres são Ernesto Haeckel e Ludwick Noiré. A seu lado ou conduzidos pelo seu entusiasmo surgem outros lidadores. Chegam Sílvio Romero, Sousa Pinto, Aníbal Falcão, Gumercindo Bessa, Martins Júnior, Artur Orlando e... Clóvis Beviláqua.
Não importa a escola. Todos se irmanam na mesma paixão iconoclasta e ruidosa. A luta se orienta contra a estagnação, no repúdio das doutrinas consideradas obsoletas.
Um pugilo de jovens, o mais decidido e combativo que lá dera o Brasil, toma posição e esgrime não raro com ingenuidade tocante mas sempre com decisão e altitude mental promissoras.
Nesse ambiente flamejante Clóvis Beviláqua mansa, mas seguramente, ensaia a crítica literária, a princípio, a crítica filosófica e a Filosofia depois.
Seu Esboço Sintético do Movimento Romântico Brasileiro denota uma visão literária superior. Basta considerar as páginas sobre José de Alencar e Gonçalves Dias. E sua curiosidade dilata-se. O estudioso penetra outras esferas literárias. A apreciação que escreve sobre o Teatro é o primeiro estudo de envergadura no gênero em nosso país. A seguir surgem os ensaios a respeito de Tolstói e de Dostoievsky. Nessas páginas revela-se o crítico com reminiscências de Taine.
Seus conceitos, quanto ao sombrio Dostoievsky, nos evidenciam uma exatidão impressionante no descrever o sofrimento do romancista russo.
– Dostoievsky foi, na Rússia niilista – afirma Clóvis –, o que se pode chamar o foco convergente e multiplicador das agonias de um povo inteiro. Todas as amarguras dos desprotegidos, todos os pesadumes des pauvres gens, dos simples, dos humildes, dos pequenos, dos esmagados, vibram seus nervos doentios de epiléptico genial [...] A pátria fora para ele um culto absorvente, o povo russo não tinha igual a seus olhos; era justo que a Rússia viesse chorar de joelhos sobre a cova daquele que fora a personificação de sua alma atribulada.
Antes ele publicara trabalhos de adolescência, hoje reunidos em volumes pelo carinho de suas filhas Doris e Floriza, com o título geral de Recordando o Passado. Quase dessa época são aindaFrases e Fantasias, a propósito das quais acentua Araripe Júnior:
– A prosa poética de Clóvis Beviláqua lembra, mutatis mutandis, o timbre argênteo de Lamartine em Graziella; e se ele se dedicasse à ficção é bem provável que nos desse belíssimas pastorais no gênero de Longus ou de Bernardin de Saint-Pierre. Tal conceito justifica-se na leitura de “Miloca”, “Na Helênia”, “A Morte do Pássaro” e “A Flor da Tuberosa”.
É principalmente na crítica que Clóvis começa a participar da Escola de Recife.
Chegado a Pernambuco em 1878, alcança o período final da fase crítica e filosófica da Escola.
Aliado a Martins Júnior faz-se Positivista, no começo sob a ação de Augusto Comte e logo depois de Littré.
Sua conferência sobre o renovador do Positivismo foi uma das melhores manifestações de sua inteligência no período acadêmico. Tal simpatia era uma como demonstração das semelhanças flagrantes entre as duas personalidades.
Littré, cuja pureza de espírito e de coração só encontrava rival na pujança do seu saber, era uma alma privilegiada, dessas que nos levam a perdoar toda a maldade humana por descobrirmos o infinito de bondade contido em uma só criatura. Chamavam-no “Santo Leigo”, qualificação mais tarde dada aqui também a Clóvis Beviláqua.
A Escola de Recife por aquele tempo fervia na batalha armada no arsenal filosófico de Comte, Littré, Mill, Haeckel, Noiré, Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer, Wundt...
Não tinha ainda enxergado no Direito influxo das idéias que lhe davam a interpretação do mundo. Foi o concurso de Tobias a centelha reveladora da grandeza dessa ciência, de sua força para a explicação do cosmos, da vida, razão de ser da sociedade, da civilização e da Cultura.
Devo a Tobias – ele o confessa – o inestimável serviço de me haver aberto a inteligência para ver o Direito.
Clóvis Beviláqua pertenceu a um período único na história de nosso pensamento, ao menos em seu caráter de contágio mental e de fé no prestígio das idéias.
A juventude estava fatigada das velhas tiradas do Direito Natural quando ouviu alguém, cuja voz dominava e convencia.
Em atitude de desafio, com uma lógica irresistível, uma instantaneidade nas réplicas arrasadoras, um desabrimento de linguagem atordoante, Tobias Barreto de Meneses apontava a todos a Canaã de um nova concepção do Direito. Era a verdade que aqueles moços buscavam beber a longos tragos nas exposições do demolidor eloqüente, desabusado e intrépido. Nem os velhos “lentes” da Faculdade escapavam à sensação de surpresa.
Músico e barítono, sua voz quente e poderosa tinha modulações de grande riqueza e seus olhos dançando nas órbitas, numa combinação fisionômica curiosa e não raro pitoresca, acompanhados pelos gestos mais expressivos davam-lhe à palavra e aos argumentos grande intensidade de vida.
Vale a pena citar alguns trechos de uma carta descrevendo o sensacional concurso de Tobias.
– A palavra mágica de Tobias Barreto – escreve Gumercindo Bessa, o missivista de então, traduzindo uma lógica inelutável e originalíssima –, não é coisa que se exprima numa carta. E depois o vulto grandioso de Tobias ainda mais se destaca no quadro por efeito de um contraste palpável; imagina tu um gigante assentado no meio de quatro pigmeus e terás a verdade no que vai sucedendo por aqui nesse célebre concurso. Avaliar-se em mais de mil as pessoas que têm afluído à sala dos graus não é exagero. É um barulho enorme desde as sete da manhã na Academia para achar-se lugar...
Quando chegou a vez de ser argüido o Tobias, fez-se na sala um silêncio tumular. O sergipano ergueu-se lentamente e com passo majestoso foi sentar-se em frente ao seu contendor.
[...] O Drummond argüiu-o na tese do Direito Eclesiástico, que o sergipano assim enunciou: O regime concordatário não se harmoniza com a organização e instituição da Igreja [...] A concordata é uma transação entre a Igreja e o Estado, entre o Papa e o Rei, estas duas metades de Deus na frase de Victor Hugo”. Ora quem diz transigir, diz tolerar”. Mas a tolerância é filha da dúvida, e a Igreja não pode tolerar, porque não pode duvidar... “A Igreja crê-se de posse das verdades divinamente reveladas, apregoa-se mãe e mestra dos povos, via veritas et vita; como pode tolerar?” “Tolerar é pactuar, é adiar o combate de duas doutrinas porque se duvida qual delas seja verdadeira”. Poderá a Igreja ser coerentemente tolerante? “Não, repito, a tolerância é filha da dúvida, a verdade é intolerante, não transige com o erro”. “Logo, posso concluir, a concordata é inconciliável com a organização da Igreja”. E é por isso que eu tenho minhas simpatias pelos papas intransigentes”.
Depois, debatendo com o Dr. Freitas, com Gomes Parente, com Portela, ele manteve sempre o mesmo tom.
Tudo é um, eis concretizado todo o sistema que adoto – diz Tobias. – Mas, compreenda-se bem, quando eu digo adoto, estou longe de afirmar que o espírito humano tenha dado seu último passo nessa peregrinação em busca da verdade. Quero apenas dizer que o Monismo é a palavra ultima da ciência moderna. Espírito progressivo como sou, não concebo que se possa fechar o cérebro à invasão das ciências novas, para apegar-se eternamente a uma doutrina que não merece a sanção da ciência e que se declare em rebelião insensata contra a poderosa injunção dos fatos. Assim amanhã abandonarei a velha bagagem do Monismo, se o advento de um sistema mais completo vier se impor à ciência. É essa a condição de todo o progresso. Entremos agora na explicação do nosso tema: a fórmula irredutível do Monismo é esta: Tudo é um. Isto é, o cosmos, com suas ordens de fenômenos diversos, rege-se por uma lei idêntica, única...
E em seguida:
– O Direito não é uma idéia apriorística, não é um postulado metafísico, nem caiu dos céus sobre nossas cabeças, não é também uma abstração resultante das leis da evolução, que ainda se acham em estado de incógnitas, mas é a disciplina das forças sociais e principio de seleção legal na luta pela existência. [...] Sim, antes que as relações fossem afirmadas pelo Direito a força dominava tudo, da mesma sorte que nos céus, antes que os corpos sidéreos tivessem encontrado a lei de sua existência o caos dominava tudo.
Aí está o acontecimento galvanizador, a desviar da retardatária filosofia de Soriano, do desacreditado Direito Natural de Ahrens para o pensamento germânico de então a sôfrega juventude. O deslumbramento pelo inédito não conhece fronteiras. Começam todos a ouvir e a seguir o mestre como a um oráculo.
Clóvis Beviláqua, agora positivista, com toda sua geração, se enfileira na corrente materialista e passa ao Monismo naturalista de Haeckel e daí ao evolucionismo monista de Herbert Spencer. Todos os fenômenos universais reduz a um mesmo denominador: o movimento.
Embora senhor de grande autonomia mental, foi, na fase filosófica, discípulo da Escola de Recife, mas tornou-se mestre e líder na fase jurídica, cuja construção dependeu, em parte magna, de sua inteligência, de sua cultura e de seu labor.
Para ele tudo é matéria e movimento, e o movimento no Cosmos produz e organiza a harmonia dos mundos, na vida constrói e orienta as funções vitais, no espírito alimenta e realiza a consciência e o pensamento, na sociedade institui e desenvolve as interações sociais, no Direito estabelece o equilíbrio entre o indivíduo e o grupo, suscitado pelas duras contingências da existência coletiva.
Mergulhamos em puro naturalismo. A hereditariedade e a adaptação são as duas grandes leis formadoras da vida, do espírito e da sociedade.
E o evolucionista não se perturba com a impossibilidade de explicar como reduzir o movimento a fenômenos de consciência, de vontade, de liberdade no espírito e de personalidade, de associação e de solidariedade no grupo. Ele concebe os estados de consciência como processos nervosos reduzidos pela ciência a movimentos.
Para Spencer, aliás, as leis do conhecimento como as do crescimento da população são as mesmas leis da natureza.
Durante sua estada na América do Norte, conta-nos Harald Hoffding, acentou Spencer os males revelados na vida pública desse país, provenientes de sua Constituição. Em si mesma, dizia o filósofo, a Constituição era boa, mas, elaborada por “um golpe de acaso”, ao invés de construída espontânea e lentamente, as conseqüências não correspondiam às esperanças nela depositadas.
“E o inconveniente não será remediável pela educação?”, pergunta-lhe alguém.
O evolucionista responde peremptoriamente: “Não. As modificações de caráter só se efetuam quando há relações recíprocas entre uma raça e as condições reais da existência, durante gerações. É pela adaptação, pela evolução, pelo exercício das forças de cujos serviços nos valemos na luta pela vida que se formam os caracteres fortes e os sentimentos sadios.”
A profecia de Spencer não poderia falhar mais fragorosamente e com ela a inefabilidade de sua evolução lenta, da força inexorável da hereditariedade e da adaptação como fator de toda a evolução, da vida à sociedade e ao Direito.
Nunca inovação mais imprevista e mais atrevida surgira para a construção de um estado federativo, do qual se diria que tudo conspirava para seu esfacelamento, do que a “Suprema Corte”, produto dessa Constituição, cuja função até então insuspeitada pela ciência e pela prática política dos povos, se transformava na chave do equilíbrio nacional, do julgamento das leis, dos atos dos demais poderes, tornando-se até hoje a garantia da unidade e do progresso da grande República. Sob seu influxo, há cento e setenta anos caminham os Estados-Unidos em ascensão contínua.
Há mais de século e meio os Presidentes da República e os chefes executivos estaduais se sucedem regular e legalmente, a princípio pela expressão do voto indireto e depois do voto direto do povo, sob a determinação daquele instrumento político instituído por “um golpe de acaso”.
A educação, em que o insigne filósofo inglês, conforme sua teoria, não depositava confiança, tem sido, nos Estados Unidos, um anteparo decisivo às forças destrutivas. É verdade que ele mesmo, apesar de não crer na educação, se insurgira contra seus patrícios, que se preocupavam com o treinamento de seus potros de raça e esqueciam a preparação dos filhos. Foi seu livro Educação Intelectual, Moral e Física lido no limiar de meu curso jurídico juntamente com os Primeiros Princípios, que me arrastou, aos 18 anos de idade, para o estudo da educação como fator da formação e do crescimento individuais e da harmonia e grandeza sociais. Não posso deixar por isso de render graças a quem influiu tão cedo e tão decisivamente para minha confiança na educação como força organizadora, orientadora e transformadora da sociedade.
É que, não obstante sua descrença noutras forças plasmadoras e promotoras de progresso social além da hereditariedade e da adaptação, ele não se pôde esquivar à importância do fator educacional. Felizmente para mim a hereditariedade constitui elemento inelutável, mas como potencial a ser desenvolvido, dirigido, orientado de acordo com o meio e as circunstâncias. Daí minha fé na energia transfiguradora da educação em seu mais alto sentido.
Não vejo como concluir que a evolução ou, melhor, o progresso do pensamento e da liberdade, assim como da Moral e do Direito, sejam resultantes do movimento senão caindo em plena metafísica.
Seria realmente curioso denominarmos metafísica apenas a especulação das causas primarias e finais apregoadas pelo espiritualismo! O absoluto dos materialistas, a eternidade e a indestrutibilidade da matéria como a universalidade do movimento, tudo isso é tão metafísica quanto a existência de um espírito supremo de onde tudo promana.
O próprio Spencer reconhece uma conexão entre a ordem fenomenal e a ordem ontológica ou o absoluto.
Clóvis não afirma tão explicitamente sua conciliação com o absoluto.
Que será, porém, considerar todos os fenômenos universais, como ele os considera, manifestações progressivas de “um principio único e evolutivo?”
Sua escola filosófica tem o Direito como atributo da natureza material do homem e da sociedade, fenômeno redutível a movimento.
Certo, a natureza do homem, suas necessidades funcionais têm de ser estudadas, compreendidas e respeitadas nos limites da colisão com os interesses da sociedade.
Não percebo por que para chegarmos a tal solução necessitemos de considerar o Direito uma como que transformação do movimento. Não possuímos instrumento algum nem de ciência nem de método que nos autorize a afirmativa tamanha. Como o não possuímos tão-pouco para as conclusões de Bergson: “O homem defende-se contra seus inimigos menos bem que os animais, logo o instinto passa a prevalecer; a inteligência não pode compreender senão o contingente, logo é inferior ao instinto e sobretudo à intuição que atinge o absoluto.”
Nenhuma outra filosofia poderia soar melhor aos depreciadores do intelectual, aos sectários dos regimes do “homem providência”. O Príncipe de Fichte, o Chefe dos racistas de nosso tempo, possuíam o instinto e a intuição, podiam desprezar a inteligência.
Muito mais lógica e principalmente mais modesta seria, dentro dos limites científicos de que dispomos, a explicação do saudoso mestre Laurindo Leão, quando concluía pela irredutibilidade fenomenal.
Desse modo vemos o Cosmos e a vida sujeitos à lei de causalidade pela transformação do movimento e o espírito, a sociedade e, em conseqüência, o Direito, subordinados à lei de finalidade pela determinação dos fins.
Contudo chegamos aqui a resultado inesperado e desconcertante. Enquanto o espiritualismo de um Bergson e a metafísica de um Fichte, de um Schelling, de um Hegel podem levar ao regime de cega obediência e submissão à força, o decantado materialismo de um Clóvis Beviláqua conduz à libertação espiritual, ao equilíbrio das relações entre indivíduo e Estado por mera atuação do Direito. E, acentuemos ainda, ninguém de crença mais arraigada e mais pura na superioridade moral, na vocação humana para a liberdade do que o autor do Código Civil Brasileiro.
Elucidativa é sua declaração: “Surpreso fiquei ao saber, por intermédio da Revista Internazionale di Filosofia del Diritto, que o vice-presidente da delegação italiana no Congresso Internacional de Filosofia em Praga, em 1934, Emilio Bodrero “eficazmente demonstrara a existência e a vitalidade de uma. filosofia fascista”.
“Não compreendo bem o que possa ser uma filosofiafascista”, comenta Clóvis. “Porque sendo a filosofia a mais alta generalização dos conhecimentos fornecidos pelas ciências particulares, não pode embeber-se da coloração de uma transitória forma de organização política. – A política atende ao governo dos povos, a Filosofia é síntese do saber humano.”
A mesma repulsa mereceu-lhe Del Vecchio, denominando o fascismo “democracia concentrada”. Para Clóvis, “a democracia é o regime da Justiça e da razão social”.
Seria incompreensível que um dos mais lúcidos civilistas do Brasil e da América, nosso maior jurisconsulto de todos os tempos – se levarmos em conta os ramos jurídicos por ele professados – pudesse pactuar com alguma doutrina negadora do Direito justo. E é aqui que vamos situar em seu verdadeiro lugar o pensamento do mestre. Afetivo e bom, como homem representativo de sua gente, ele próprio acentuou como característica essencial do Direito brasileiro a afetividade; não poderia nunca solidarizar-se com a violência ou com a injustiça, fosse qual fosse a sua capa ou os subterfúgios de seus proclamadores.
Não deixa de ser significativo verificar como ele se encaminha para o “eticismo” jurídico. Em sua conferência, na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1937, afirma Beviláqua: “O momento atual necessita da penetração mais extensa da moral no Direito para que, na curva ascensional, que ele tem de galgar, mostre a resistência necessária. Cabe à Moral e ao Direito a solução da crise que nos assoberba.”
Cinco anos mais tarde, em fins de 1942, reitera, numa exposição notável de elevação e beleza...
Tratarei da consciência jurídica marchando em seguida para o fenômeno propriamente moral, sem contudo visar à fusão das duas ordens de preceitos, o que aliás se me afigura seu natural destino [...] a realização do justo é condição essencial de vida para a sociedade humana e é chegado o momento em que essa realização reclama uma participação mais ampla da moral. É precisamente esse sentimento humano que, no meu entender, deve entrar em mais larga escala na regra jurídica. A evolução social nos vai conduzindo nessa direção; mas é preciso impulsá-la e dirigi-la com critério e elevação de vistas segundo os ditames da Psicologia e da Sociologia.
“Eis uma bela tarefa para os moços que têm preparo jurídico”, acrescenta vosso ilustre confrade, “desenvolver o elemento ético do Direito, com a segurança de quem está cumprindo um dever social...”
Nenhum hino de esperança e de fé poderia embalar mais consoladoramente os ouvidos dos homens conturbados pela catástrofe que ameaçou tragar a civilização.
Nenhuma figura mais oportuna e edificante a evocar-se nesta hora de reajustamento humano do que a deste agnóstico que espiritualiza tudo quanto toca, capaz, por seu amor ao Direito, à Justiça e ao preceito moral, de restaurar a confiança numa vida decente, digna e tranqüila.
Será que todo o sistema filosófico de meu grande antecessor não se tenha alterado?
Não insistamos, porém. Máxime porque o Mestre não nos confessou modificação alguma em seu pensamento fora da órbita do Direito.
Terminado seu curso de Ciências Jurídicas e Sociais, em 1882, Clóvis, nomeado promotor público de Alcântara, no Maranhão, abandona o Recife, centro de sua intensa atuação intelectual na imprensa e na tribuna. Sua ausência não se prolonga por doze meses. Ei-lo novamente na cidade de suas preferências, a princípio professor particular de primeiras letras e, depois de disciplinas do curso secundário e superior. O falecimento do Cônego Rafael Ferreira de Brito, em 1884, dá-lhe o lugar de bibliotecário da Faculdade. Era a prancha de salvação, a possibilidade de continuar seus estudos de Literatura, de Filosofia e de Direito.
Em 1889, após renhido concurso, conquista a cátedra de Filosofia do Curso Anexo. Advém então a proclamação da República. Republicano convicto, desde os dezenove anos de idade, a convite de Taumaturgo de Azevedo, segue como secretário do governo para o Estado do Piauí. Em seguida elegem-no deputado à constituinte do Ceará e ele toma parte saliente na elaboração da Constituição estadual. Sua permanência na política é todavia muito rápida. Abandona a depuração e não cede mais aos reiterados convites para deputado, senador federal e governador de seu Estado. Nem o cargo de ministro do Supremo Tribunal o seduz. Recusa-o duas vezes para se não afastar da sua vida de meditação.
A Reforma Benjamin Constant cria duas cadeiras no curso jurídico: História do Direito Nacional e Legislação Comparada. Para a primeira é nomeado Martins Júnior, para a segunda Clóvis Beviláqua. Começa sua dedicação sistemática às ciências do Direito. A matéria que lhe toca por sorte é daquelas que o forçarão ao exame acurado e persistente dos diferentes ramos do Direito, nos diversos países. E que ele não perde tempo, prova-o o livro Legislação Comparada sobre Direito Privado, editado em 1893. Esse compêndio denuncia o jurista que o Brasil conquistara.
Seus trabalhos anteriores: A Filosofia Positiva no Brasil, Estudos de Direito e Economia Política,Traços Biográficos do Desembargador José Manuel de Freitas, Frases e Fantasias e Épocas e Individualidades mostram o crítico e o pensador. Legislação Comparada patenteia a inteligência apta a aprender, criticar e construir nos vários ramos do Direito. Nesse livro ele determina o assunto, proclama-lhe o método e discorre com clareza e proficiência sobre as legislações mais díspares. Sua capacidade crítica e sua familiaridade com o pensamento filosófico e com a experiência sociológica sabem fazer ressaltar até onde a comunhão dos princípios se deve manter em sua peregrinação, através do tempo e do espaço, ao lado do “para que” e do “porquê” das alterações impostas pelos imperativos diferenciadores de meio natural, etnias e áreas de cultura.
A seguir ele nos oferece Criminologia e Direito – crítica singular de filosofia e sociologia jurídica. Nessas páginas se esclarecem com singeleza muitas questões de interpretação e de compreensão do Direito e dos fatos sociais indispensáveis aos estudantes e aos mestres. O problema da responsabilidade, a raça no problema jurídico, a evolução do Direito têm aí um lugar de realce. No capítulo sobre a filosofia do Direito vamos encontrar a visão sociológica de Clóvis Beviláqua aplicada com oportunidade e segurança ainda hoje absolutas em parte considerável de suas conclusões. Seus combates aos exageros da chamada escola antropológica são precisos e felizes.
É no fecho desse livro: Fórmula da Evolução Jurídica que suas qualidades de jurista filósofo prevalecem. Para Sílvio Romero esse trabalho, juntamente com a Introdução à Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, e a Nova Concepção do Direito, de Tobias, são as três culminâncias teóricas do Direito brasileiro no século XIX.
Segundo a Fórmula a história da evolução do Direito se realizou: 1.o – pelo reconhecimento de um número de mais em mais avultado de direitos atribuídos a cada pessoa; 2.o – pelo alargamento progressivo das garantias jurídicas, que são concedidas a um maior número de pessoas; 3.o – pela segurança sempre crescente dos direitos reconhecidos.
Seu espírito estava maduro para a construção do Direito Civil com a publicação do Direito da Família, do Direito das Obrigações e do Direito das Sucessões, ele se alteia ao nível de Teixeira de Freitas – a mais pujante vocação de civilista em nosso país – e do Conselheiro Lafayette, cujos tratados constituíram um encanto para todos nós, pela clareza dos conceitos, profundidade de visão e limpidez de estilo. Tamanho é seu êxito nesse ramo do Direito que o governo da República o convida para elaborar o Código Civil Brasileiro.
Conhecidas eram as tentativas vigorosamente empreendidas e tristemente abortadas, desde o inicio de nossa emancipação política, para nos tirar do caos legislativo em que nos debatíamos servindo-nos das Ordenações do Reino, já revogadas em Portugal, “de leis desconexas, promulgadas em ocasiões diferentes, por imposições diversas e até das glosas de Acúrsio e das opiniões de Bartolo e mais doutores”.
O primeiro ensaio fora o de Teixeira de Freitas, em 1859. O famoso jurista, apesar de ver seu trabalho servir de fundamento para a elaboração do Código Argentino e inspirar em larga escala o uruguaio, nada logrou no Brasil.
O segundo foi o de Nabuco de Araújo, interrompido com a morte de seu autor. Depois vem Felício dos Santos, depois Coelho Rodrigues. Tudo inutilmente. É quando Epitácio Pessoa, em nome de Campos Sales, convida o modesto professor da Faculdade de Direito de Recife para a obra memorável.
Nem o fracasso dos maiores nomes em nossa jurisprudência, nem a oposição prévia de ilustres figuras nacionais, constituíram empecilho bastante para demover o infatigável operário do Direito. O Brasil exigia o sacrifício, o jurista não discutia, submetia-se tranqüilo.
Em janeiro de 1899, aos 39 anos, recebe o honroso convite. Em março do mesmo ano chega ao Rio de Janeiro. Inicia o trabalho em abril e seis meses depois, em outubro, ao completar quarenta anos de idade, entrega o Projeto concluído.
A obra é de uma homogeneidade e de um equilíbrio impressionantes. Seu saber jurídico excepcional, a formação filosófica de seu espírito, sua cultura sociológica, apta à penetração dos fatos sociais, harmonizam-se de modo admirável, dando-nos um Código à altura da ciência de seu tempo, sem trair as imposições correntes da vida nacional.
Terminara o primeiro ato do drama, ia começar o segundo.
Para exame do Projeto, enviado a Câmara, o governo nomeia uma Comissão especial de jurisconsultos, presidida pelo ministro da Justiça.
Especialistas ilustres criticam-no livremente. Faculdades de Direito estudam-no e combatem-no. Não há talvez estudioso de ciências jurídicas que não tome parte nos debates. O interesse generaliza-se e traz-nos um atestado consolador da acuidade de nossa vida mental.
A atenção do codificador está alerta. Acode aqui, aparece ali, atende acolá em defesa de sua obra e das necessidades do Brasil por ele postas acima de qualquer veleidade pessoal. Discute com jurisconsultos da estatura de Coelho Rodrigues e Andrade Figueira, com o corpo docente de escolas jurídicas, no seio da Comissão da Câmara com os melhores civilistas. O que isso representa de esforço, de fadiga, de espírito de cooperação e de desprendimento sensibiliza.
Nunca um homem foi submetido em nosso país a prova tão árdua. As ciências mais diversas, do Direito à Filologia, à Psiquiatria, à Medicina Legal, serviram de temas de debate por especialistas, ciosos de sua seara quando não intransigentes em suas preferências.
Criatura simples, como se estivesse sempre a pedir licença para apresentar-se e expor seus pontos de vista, habituado ao amor da família, ao carinho e à veneração dos discípulos, à estima dos colegas, à admiração e ao respeito públicos, submete-se, com paciência evangélica, às discussões das quais não estão ausentes diatribes e motejos.
Consolida sua fama de polemista. A pujança e solidez de seus conhecimentos, o incisivo de sua argumentação, a precisão de suas justificativas e a elegância moral na repulsa aos doestos e aos remoques impressionam a todos.
Não lhe faltaram adversários pugnazes em regra vencidos ou conquistados pela suavidade de sua conduta, justeza de seus argumentos, superioridade de sua cultura e de sua magnanimidade.
Na imprensa, como no seio da Comissão Especial e da Comissão da Câmara, ele se revela o civilista sem par, a alma fidalga e, ao mesmo tempo, firme no esclarecimento como no revide.
Formar-se-iam dezenas de volumes com a crítica dedicada a seu Projeto durante os dezesseis anos de debates. Nessa biblioteca curiosa e instrutiva ressaltam, com singular relevo: de Rui Barbosa O Parecer e A Réplica; do Professor Carneiro Ribeiro – A Redação do Projeto do Código Civil e aRéplica do Dr. Rui Barbosa.
Foi esse, certamente, quer pelo tempo em que se prolongou, quer pela plêiade de contendores convocados, quer pela extensão e profundidade da cultura em jogo, quer pela projeção em nossa vida, jurídica, o acontecimento de maior alcance e maior brilho na vida mental do Brasil.
No campo estrito do Direito muitos são os trabalhos que dariam volumes. A começar pelo livro do próprio codificador, Em Defesa do Projeto do Código Civil Brasileiro, e o monumental relatório de Sílvio Romero, no seio da Comissão da Câmara, os tomos se sucederam inspirados pelo desejo de esclarecer e cooperar para a obtenção de um aparelho jurídico correspondente às nossas aspirações.
Fora do Direito o acontecimento provocou ação fecunda. Motivado por ele, entre outros, Nina Rodrigues contribuiu com dois estudos sérios – O Alienado no Direito Civil Brasileiro,Apontamentos Médico-legais ao Projeto de Código... e Afrânio Peixoto com O Projeto de Código Civil Brasileiro e a Medicina Legal.
Comentando o fato em 1905 Estanislau S. Zeballos, no Bulletin argentin de Droit International Privé, definiu o debate travado até então, no tocante ao Projeto de Clóvis Beviláqua, de episódio notável nos fastos intelectuais da América do Sul.
Convidado pelo Barão do Rio Branco para “Consultor Jurídico” de nossa Chancelaria, afasta-se de sua cátedra em Recife e aqui, por mais de 25 anos, trabalha sem cessar. Não deixa, entretanto, nem de lavrar pareceres que não raro fazem doutrina, nem de escrever livros de Direito de mérito invulgar. Data dessa época a criação, com sua mulher, Dona Amélia de Freitas Beviláqua, da revistaCiências e Letras, sob a direção da dileta companheira de sua vida e por ele prestigiada, durante anos, com magníficos trabalhos de Literatura e pensamento.
Nesse período publica seu Direito Internacional Privado, buscando determinar a nossa conduta em relação aos estrangeiros domiciliados em nosso país, pelos mais altos preceitos da eqüidade e da moral. Elabora sua magistral Teoria Geral do Direito Civil, em cujas páginas condensa as normas básicas para a interpretação e a aplicação consciente da lei em relação à doutrina, às aspirações humanas, impostas pelo progresso, o envolver vertiginoso da Cultura e as realidades sociais inelutáveis.
Com o pensamento nesses problemas escreve ainda Direito Internacional Público (a síntese dos princípios e a contribuição do Brasil), pregando a necessidade de dar por fundamento da interação dos povos “não a soberania, princípio de Direito Interno, mas a solidariedade, fenômeno social de subida relevância”.
Consolador é verificar, no conteúdo dos dois grossos volumes, a parte considerável do Brasil no esforço universal para impor a força do Direito e da Moral no entendimento entre os homens.
Tais diversões, não obstante seu merecimento e seu vulto não o inibem de conservar-se na liça, jamais deixando sem resposta crítica que merecesse atenção. Daí sua surpresa no tocante à atitude de Rui Barbosa, produzindo um monumento filológico sem quase nada articular quanto à parte jurídica. E não é sem amargura que ele acentua o fato de não raro a redação proposta pelo egrégio senador alterar o sentido da lei.
Rui e Clóvis eram dois temperamentos diametralmente opostos. O primeiro dominador, combativo, estuando-lhe n’alma a ardência de um profeta de Israel, desgarrado nos tempos modernos, sempre pronto a investir; o segundo retraído, senhor de si, mas esquivo por índole, sereno e delicado, preferindo ser ferido a ferir ou simplesmente desgostar. Defrontando-se um dia, um com o outro não nos poderiam oferecer espetáculo diferente.
Que a Clóvis sobravam recursos para retrucar a certos censores com espírito e mesmo com ironia basta-nos, para prová-lo, transcrever suas palavras:
Os que não dispõem dos dotes que abrilhantam a individualidade do Conselheiro Rui Barbosa, os que escrevem com tibieza igual à minha, os que como eu manejam desajeitada a língua de Latino e não tiveram tempo para se saturarem suficientemente das rígidas normas formuladas pela ruvinhosa casta dos gramáticos, esses deviam ter para comigo, ao menos as complacências do coleguismo.
Terminado o trabalho, publicado o Código, os aplausos não se fizeram esperar. A par das manifestações de regozijo do nosso mundo jurídico a repercussão no estrangeiro foi a mais encomiástica.
Alfedo Colmo escreve:
Considero que o acontecimento jurídico do século na parte latina do Continente é a sanção do Código Civil Brasileiro... Qualquer dos nossos países que necessite de rever sua lei civil deverá recorrer em muitos pontos ao Código Brasileiro para receber boas inspirações de metodologia, de técnica, de ciência, de tendências liberais e modernas.
Outro jurista argentino – Martinez Paz – declara: Ráro ejemplo de voluntad, de fortaleza. de talento, de serenidad, el codigo estaba sancionado y Clóvis Beviláqua consagrado el primer jurista de su generación y de América.
Eduardo Prayones, Jesus H. Paz e H. Lafaille, mestres de Direito Civil na Universidade de Buenos Aires, Luís Gasperi, do Paraguai, José Antonio Uribe, da Colômbia, Alberto dos Reis, de Portugal, Icilio Vanni, da Itália, Lambert e Raoul de la Grasserie, da França, Felix Meyer, da Alemanha, festejam o cometimento. E o Código Civil Brasileiro é traduzido para o inglês, o francês, o alemão.
É a consagração definitiva. Contudo o mestre não julga findo o seu dever. Não obstante as alterações e, para que não dizer, as incongruências insertas no Projeto primitivo, ele, que deveria estigmatizar os enxertos, nada reclama e logo se esforça para explicar e clarear tudo quanto de obscuro ali se encontra. O Código Civil, comentado pelo glorioso civilista em seis alentados volumes, vem não só facilitar o estudo e a aplicação mas também assegurar o êxito do nosso maior monumento jurídico.
Não se estancou entretanto aí a prodigiosa produção de Clóvis Beviláqua. No domínio do Direito Civil faltava-lhe completar a sua obra. Discípulos e professores o exigiam. Vemo-lo, então, aos 83 anos, publicando Direito das Cousas, compêndio imediatamente clássico, posto ao lado das duas maiores produções no gênero – a do Conselheiro Lafayette e a de Lacerda de Almeida.
Perfeitamente em dia com a ciência, numa língua correntia e com oportunidade flagrante, Direito das Cousas foi o cântico de cisne do venerando mestre, seu último legado de saber às novas gerações brasileiras.
À margem dessas obras capitais foram publicados, ainda, vários trabalhos seus, Estudos de Direito, Linhas e Perfis Jurídicos, Opúsculos são amostras dessa operosidade inesgotável.
Nos derradeiros anos de sua vida, longa e enternecedora, falava principalmente aos jovens. Era o velho educador, no mais nobre sentido da palavra, aquele cujo admirável ensinamento oral ou escrito só podia encontrar equivalência em seu exemplo, indubitavelmente a mais edificante lição de um verdadeiro mestre.
Quantas lições de ciência, de Beleza e de elevação moral nos ministrou aqui, sob a evocação do nome de Franklin Távora, o patrono de sua cadeira nesta Casa, o revelador eloqüente da alma e dos costumes populares de nossa terra, o cantor das lendas e tradições dos campesinos, de suas venturas e de suas desditas!
Dentro como fora da Pátria não lhe faltaram honrarias. Doutor Honoris Causa, em várias Faculdades de Direito de nosso país e do estrangeiro, membro efetivo ou honorário das maiores instituições mundiais de ciências jurídicas, colaborador em empreendimentos internacionais de fama universal, o mestre inesquecível foi sempre o mais despretensioso e o mais probo dos homens.
Sua obra traz a marca de seu gênio. Ela, certo, é uma obra de cunho nacional, não sei porém de outro brasileiro que nos ostente um título mais legítimo à atenção e à estima do mundo.
Um saber imenso, uma excepcional nobreza de coração e de pensamento, um espírito pairando acima dos interesses materiais, generoso, harmonioso e sereno, tal era aquele que tanto dignificou seu País e sua época. Ele não conduzia consigo a certeza dos grandes mistérios, que ajudam tantos santos a atingir a perfeição, mas o esplendor de sua vida moral teve a sua recompensa. Sua inteligência não conheceu desfalecimentos. Sem amargura e sem dor, suavemente, o meigo, o justo, o bom Clóvis Beviláqua entrou na doce paz eterna, iluminado pela alegria de um trabalho fecundo até o derradeiro minuto de sua vida.