AOS MESTRES
Criar um sentimento de amizade universal é hoje o primeiro dever da educação em todos os países.
Os mestres devem despertar na criança a consciência de que ela faz parte de um grande todo, acordar um sentimento mundial de reciprocidade.
De tal maneira poder-se-á ver a civilização indicar à consciência o seu papel universal, exprimir de modo brilhante a unidade humana e fundar a liga permanente da humanidade.
Fr. J. Gould
Mestres:
O vosso destino é de fraternidade e de amor.
E trabalho algum de pensador, ou de artista valerá a vossa obra.
O pensador desenvolve teorias e expõe doutrinas, mas é o mestre quem as experimenta e as utiliza, em benefício da formação social e do progresso mental e moral dos povos.
O artista cria a beleza; é, porém, a alma viva dos homens que a vai sentir e animar.
Que obra de Fídias, Miguelângelo, ou Rodin, valeria a criação carinhosa e perfeita de um espírito ativo e justo, conquista paciente de um mestre, modelador de almas?
E terá sempre o educador a consciência do seu destino?
Pensará sempre na sua obra de criador?
Compreenderá que a massa plástica trabalhada por ele será, nas suas mãos, a essência de criaturas monstruosas, ou de almas elevadas?
Jamais esquecerá que indivíduos sãos se corrompem em ambientes degradados e criaturas más se purificam em meios sadios?
Medirá toda a extensão da sua responsabilidade?
Entretanto a sociedade por vir será o que a escola quiser. Outrora a Igreja e o lar eram as duas forças organizadoras e condutoras da formação social. Agora tanto um quanto o outro se enfraqueceram visivelmente. A primeira perde o domínio sobre os indivíduos, não conseguindo mais estabelecer a mentalidade religiosa, que conduzia e guiava; o segundo enfraquece consideravelmente o seu poder, como ambiente moral, plasmador do espírito e do caráter e como orientador da atividade juvenil. É à escola que cabe agora o maior papel. Ela tem uma obra considerável de reajustamento a fazer. E não apenas no ponto de vista material, para seguir o progresso vertiginoso da civilização, nesse caminho, mas de equilíbrio social e moral.
As calamidades criadas pela Grande Guerra puseram, diante dos olhos de todos os homens que querem ver, as perspectivas de um futuro sombrio, se a moral dos povos não se encaminhar em sentido oposto à sua diretriz no passado.
Ai de nós, ai dos homens se continuarmos a formar a juventude, no ódio, na preocupação da superioridade necessária da pátria sobre os outros povos!
É voltando ao espírito cristão da igualdade entre os homens, não apenas de uma, mas de todas as pátrias, que asseguraremos a justiça e a paz.
Imensa responsabilidade cabe à escola e aos mestres que, nos velhos países da Europa, durante tantas décadas, incutiram no coração das crianças o mau orgulho nacional e o ódio de raças e de povos.
Os inquéritos que a Sociedade Carnegie para a Paz está fazendo nesses países, mostram quanto o desvario guerreiro levou os homens de responsabilidade a envenenarem, pela leitura diária, a alma e o coração dos moços. Os livros escolares muito comumente insinuavam: “a nossa pátria é a melhor e a mais perfeita, deve bater e vencer as demais. Os defeitos, as maldades, as inferioridades, só existem nos outros povos.”
E o livro formador do coração da infância estava cheio de um espírito unilateral e de uma loucura agressiva que deformaram a mentalidade da juventude e comprometeram a civilização, degradando-a até lançá-la à mais hedionda das carnificinas.
Nenhum mestre capaz de atentar um minuto na calamidade da devastação, pela metralha e pelo gás asfixiante, da mocidade da sua raça, sentirá a consciência tranquila se formou, nos livros belicosos, a alma da geração que fez a guerra.
Que prestígio terão, nos Congressos internacionais de direito e de paz, as nações que adotam nas escolas livros excitadores de ódios?
Que autoridade terão os educadores para pregar a paz se inocularem, diariamente, no coração da infância e da juventude, o vírus da vaidade nacionalista?
A obra da paz há de ser obra de sinceridade. Sem a consciência do valor da paz, sem a formação de um espírito que tenha horror à guerra, e não se inspire senão na justiça, todo congresso internacional para a pacificação do mundo, toda sociedade de nações será inútil.
A obra a realizar não será nunca de divisão e de rivalidades, mas de aproximação, de amor e de eliminação do nativismo doentio e do menospreço pelos outros povos. Há de ser não o privilégio de uma pátria, mas o resultado da cooperação de todas.
A justiça é sempre a mesma, dentro das fronteiras, ou fora delas. O que não queremos para nós devemos querer para ninguém. O que é mau para a nossa pátria não pode ser bom para a pátria alheia.
Como na luta entre indivíduos não poderemos compreender nem justificar senão a legítima defesa, na guerra entre os povos somente a repulsa à agressão devemos absolver. O mais é o crime da nação como é o crime revoltante do indivíduo.
É preciso que a escola reprove o emprego da força. Que o professor canalize, como aconselha Bovet, o instinto de combatividade na criança, em esforços de atividade física, guiados pelos sentimentos de associação e de solidariedade (Pierre Bovet, L’éducation pour la paix). Assim será possível, tornando cada vez mais viva a consciência do valor da cooperação, aproveitar, em prol a harmonia coletiva, a força até agora explorada como instrumento de destruição e de injustiça.
Seja a ideia de honra a introduzir na escola para sempre: - a paz pelo direito e pela justiça.
Outra, aliás, não tem sido a corrente do nosso espírito. É apenas necessário torná-la mais dinâmica para que jamais se possa obscurecer, ou modificar. A nossa história aí está clara para demonstrar que, honrando o espírito americano de paz, resolvemos todas as nossas questões de fronteiras, sem disputas nem divergências, pelo arbitramento, invariavelmente.
A Constituição brasileira nos proíbe a guerra de conquista e o nosso nacionalismo nunca chegou ao exagero de pregar o ódio aos outros povos.
Insistimos no espírito de cordura, tradição da nossa pátria e aspiração contínua de todas as nações do continente americano.
Ainda há pouco (e nos deve ser consolador) no Congresso de Paz pela Escola, reunido em Praga, vimos, após comunicação dos esforços das nossas escolas, em prol dos sentimentos de cordialidade e de confraternização, apresentarem congressistas, como estímulo à obra escolar pela paz, os exemplos do Brasil.
Continuai, pois, a vossa missão de concórdia e de afeto, desenvolvei-a, aumentai-a ainda mais, fazendo, ou inspirando livros didáticos que preguem e solidifiquem a unidade espiritual da América, e a fraternidade e a paz do mundo.
O entusiasmo com que recebestes para patrono das nossas escolas os nomes dos países americanos, o vosso carinho pela Cruz Vermelha Juvenil e pelo culto de afeto às nações, são atestados irrecusáveis da vossa generosidade e do vosso amor humano.
A vossa obra é já significativa e promissora: que cresça e frutifique para vossa glória e felicidade do Brasil.
(Palavras de fé, 1928)
A AÇÃO DE VICTOR HUGO NO BRASIL
“Dans ce vaste Brésil, aux arbres semés d’or
Passeront le Progrès, la Force et la Clarté...”
Victor Hugo
Aí está, nesses versos, a medida da simpatia de Victor Hugo por um povo, cuja fé na liberdade, no direito e na justiça, fez da Musa do poeta uma inspiradora inesgotável e fiel.
Nenhum artista, nenhum escritor, nenhum homem de Estado, nenhum pensador nacional ou estrangeiro, teve, em nosso país, projeção igual à desse mago da poesia. De extremo a extremo da pátria brasileira, durante mais de cinquenta anos, a originalidade de suas imagens, o flagrante de suas personificações, a audácia renovadora de sua língua, o mistério cósmico de seu sentimento religioso, a força revolucionária de seu estro conquistaram as inteligências e os corações.
Que poeta, que artista, naqueles tempos de ânsia de novidades, não se apaixonaria pelo fascinante provocador dos conservadores e dos clássicos nas atitudes contundentes de um drama petardo?!
Deviam arrebatar os moços, por toda parte, aquelas cenas nas quais se respirava um ar saturado de substâncias explosivas.
Eram revistas e diários parisienses os primeiros a preverem as lutas futuras nas rodas literárias, quando surgisse Hernani.
O Mercure de France já noticiava, em outubro de 1829, que um exército de jovens literatos “armados dos pés à cabeça, esperava impacientemente o início de uma grande batalha, na qual seu líder desejava lutar sozinho...” E o Journal des Débats afirmava que a próxima estreia despertava tantas paixões e ódios que se estava transformando a cena num “campo de batalha...” Mas acontecesse o que acontecesse na “república das letras”, a monarquia francesa não tinha consequências a temer.
Basta recordar as palavras de Théophile Gautier - um dos mais ardentes batalhadores pelos triunfos de Hugo - para sentirmos a tempestade: “O prefácio de Cromwell brilhava a nosso olhos, escreve Gautier, como as Tábuas da Lei sobre o Sinai, e seus argumentos se nos afiguravam sem réplica. As injúrias dos jornaizinhos clássicos contra o jovem mestre, para nós desde então o grande poeta de França, nos despertaram cóleras ferozes. Assim ardíamos no desejo de combater a hidra do peruquismo - dos cabeleiras postiças...”
Hernani repetia o fenômeno do prefácio de Cromwell com mais alvoroço ainda, e, no tumulto que se desencadeava, em torno desse drama, podia-se prever que os acontecimentos seriam estrondosos. Assistir à representação dessa peça revolucionária, combater pela boa causa era a nossa aspiração mais cara, a nossa mais alta ambição... Porque naquele tempo, segundo Edouard Turquety, não bastava a admiração, era preciso que nos exaltássemos, déssemos pulos, estremecêssemos; tínhamos que exclamar com Filaminta: “Não se pode suportar mais, desmaia-se de prazer! morre-se”
E a efusão era geral. Após a leitura do Hernani, declamada por Hugo durante duas horas, diante dos jovens mais ardorosos da ocasião, Vigny, Merimée, Musset, Gautier, Sainte-Beuve - Dumas, com seus pulsos de ferro, ergue o poeta nos braços e carrega-o, exclamando: “Hugo, nós te carregamos à Glória! Hugo, tu nos farás todos famosos!...”
Durante a representação de Hernani a lufa-lufa, a algazarra na residência de Hugo, em virtude da romaria incessante e ruidosa de admiradores e amigos, torna impossível a vida da proprietária da casa em cujo primeiro andar mora o poeta. E a coisa é tal que esta senhora, alarmada, procura Madame Hugo e declara-lhe: “Minha querida senhora, apesar de sua grande gentileza e da bondade de seu marido, não posso estar sossegada tendo-os nesta casa! Retirei-me do comércio para viver em paz. Comprei esta casa numa rua pacata e de três meses a esta parte há aqui, por vossa causa, uma procissão sem fim, de dia e de noite, um alarido constante nas escadas e tremores de terra sobre a minha cabeça.
- Quer dizer que me põe fora? - diz Madame Hugo.
- Estou sinceramente desolada - responde-lhe a proprietária.
- E a senhora pode, porventura, dormir tranquila?
Ninguém a lamenta mais do que eu. Seu marido arranjou uma situação bem amarga.”
E não era de admirar se Nodier, então, em carta a Lamartine, datada de 11 de janeiro de 1830, fala no perigo de Hugo desencadear uma pequena guerra civil com a sua audácia.
Mas... “Jamais Dieu ne fut adoré avec plus de ferveur qu’Hugo”, declara Gautier.
“Nous étions étonnés de le voir marcher avec nous dans la rue, comme un simple mortel, el il nous semblait qu’il n’eût dû sortir par la ville que sur un char triomphal trainé par un quadrige de chevaux blancs, avec une Victoire ailée suspendant une couronnne d’or au-dessus de sa tête.”
Era nesse ambiente que se feria a batalha entre os moços e os “cabeleiras postiças”, durante as representações. Gritos, ataques verbais interrompiam o espetáculo. Finda, porém, a primeira representação, a oficiosa Gazette de France atribui nobres e profundos pensamentos e “fulgores geniais” à nova tragédia; e o crítico do Globe relatou que muito depois de ter ele saído do teatro o público ainda não se tinha retirado, ficando ali, de pé, a aplaudir durante uma hora. Na manhã seguinte Chateaubriand escrevia a Hugo: “Assisti à primeira representação do Hernani. Conhece a admiração que lhe tributo. A minha vaidade afeiçoa-se à sua lira, bem sabe por quê. Eu me vou e o senhor chega. Recomendo-me à recordação da sua musa. Uma glória piedosa deve rezar pelos finados.”
Como escapar a juventude brasileira, desde que conheceu tão destemeroso e revolucionário guia, à sedução de sua musa intrépida e inovadora! E, do lirismo atordoante, passando ele por todas as esferas da sensibilidade humana, inspirado sempre numa filosofia a serviço da renovação e do progresso, o contágio seria inevitável e profundo.
Então “se os nossos pensadores e poetas não lhe absorveram, como Eça de Queirós e Guerra Junqueiro, todo o pensamento religioso, moral e humanitário, é inegável, como assinala Celso Vieira, que a ressonância de suas odes se amplificou e se converteu para o Brasil no ímpeto de uma corrente, na propagação de uma escola, durante a fase dos condoreiros líricos...”
Cedo começou o fascínio irresistível, a acomodação de nossa mentalidade à arte e às ideias de Victor Hugo. Vê-se, assim, como um Salomé Quiroga farta-se de perpetrar paráfrases, reminiscências, traduções de Hugo. Sua fascinação é tamanha que Sílvio Romero não trepida em tachá-lo de plagiário, embora depois, em seu Compêndio de história da literatura brasileira, em colaboração com João Ribeiro, leiamos: “ele muito parafraseia ou traduz, principalmente a Victor Hugo, mas com talento poético.” E a influência hugoana começou aqui muito cedo. Já Domingos José Gonçalves de Magalhães escrevera, a 18 de junho de 1836, com reminiscências de “À la Colonne” e de “L’Arc du Triomphe”, respirando o próprio ar de Waterloo, “Napoleão em Waterloo”, como mais tarde, depois de estar naquele mesmo ambiente, compusera Victor Hugo “L’Expiation”.
(Victor Hugo no Brasil, 1960)