Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Sábato Magaldi > Sábato Magaldi

Sábato Magaldi

O ENCONTRO DA NACIONALIDADE

O papel de Gonçalves de Magalhães no teatro brasileiro foi sobretudo o de dar consciência e impulso orientador a uma aspiração íntima do país, quando chefiou o grupo literário que introduziria entre nós o Romantismo. Em Paris, editou a revista brasiliense Niterói e seu livro Suspiros poéticos e saudades, publicado também na capital francesa, permanece o marco de introdução da nova escola em nossa literatura. Os méritos propriamente artísticos do pioneiro não entusiasmam a crítica posterior, embora ninguém lhe recuse a importância histórica.

Magalhães nasceu em 1811 e era apenas um menino ao proclamar-se a Independência do Brasil. Assistiu, na adolescência, ao princípio de afirmação da nacionalidade, que vinha consolidar os melhoramentos introduzidos por D. João VI no país, ao transferir para o Rio de Janeiro, em 1808, a corte portuguesa. A sede de um reino não poderia limitar-se ao acanhado âmbito de colônia, e tudo prosperou, a partir de fins da primeira década do século. À abertura dos portos ao comércio livre, aos novos direitos políticos e ao incremento econômico, somou-se a criação de bibliotecas, museus, jornais e escolas superiores, e o incentivo da vida artística, dentro da qual o teatro se tornaria de fato uma atividade regular. A Independência foi longamente preparada por uma literatura de moldes nativistas: depois que D. Pedro I a proclamou, em 1822, as artes deveriam incorporá-la à sua expressão.

O clima internacional da época favorecia as novas tendências nacionalistas. Chegado a Paris, Magalhães encontrou ambiente diverso do neoclassicismo em que se formara no Brasil. Victor Hugo já havia lançado o prefácio do Cromwell e fora recentemente travada a batalha do Hernani. Esse impacto calou fundo na sensibilidade menos derramada do jovem brasileiro, que se votava também às meditações filosóficas. Colheu do romantismo o que lhe parecia mais aproveitável, sem renegar, contudo, o equilíbrio dos padrões clássicos.

Essa atitude intelectual se justifica pelas peculiaridades da formação brasileira. Quando Victor Hugo e, antes, os alemães se empenharam na reforma literária, estavam saturados das harmonias antigas. Tinham de sacudir o jugo asfixiante do passado. A rebeldia, de súbito expandida, toma, naturalmente, forma explosiva. Entre nós, o panorama se desenhava em cores menos enérgicas: não havia uma tradição contra a qual opor-se; o passado era marasmo e não presença viva e importuna; cabia, na verdade, formar e não reformar.

Por isso a obra de Gonçalves de Magalhães se afigura à crítica um elo de transição entre a escola antiga e o Romantismo. Lançado por ele o manifesto poético, em 1836, o manifesto teatral o sucederia de pouco, já que pressupõe a obra coletiva, mais demorada. Foi a 13 de março de 1838 a noite histórica do teatro brasileiro, na qual subiu à cena do Constitucional Fluminense, no Rio, a peça Antônio José ou o Poeta e a Inquisição, cujo prefácio traz as seguintes palavras do autor: "Lembrarei somente que esta é, se me não engano, a primeira tragédia escrita por um Brasileiro, e única de assunto nacional."

A estréia constituiu-se num êxito, pela união feliz do texto ao desempenho da companhia de João Caetano, dirigindo-se a uma platéia que psicologicamente estava a esperar o acontecimento. Também no prefácio, Magalhães informa: "Ou fosse pela escolha de um assunto nacional, ou pela novidade da declamação e reforma da arte dramática (substituindo a monótona cantilena com que os atores recitavam seus papéis pelo novo método natural e expressivo, até então desconhecido entre nós), o público mostrou-se atencioso, e recompensou as fadigas do poeta."

O assunto nacional era a vida do dramaturgo Antônio José, que o poeta subtraiu do domínio português, embora a ação da peça transcorra em Lisboa, onde foi ele queimado, em auto-da-fé, por suposta prática de judaísmo. Garrett, o criador do teatro romântico português, escreveu também em 1838, depois da nossa peça (segundo o testemunho de Araújo Porto-Alegre no prefácio do drama perdido Os Toltecas), Um auto de Gil Vicente, aparentado na inspiração à do poeta brasileiro: ao tema sugerido pelo fundador do teatro lusitano, correspondia o tratamento da existência trágica do autor de Guerras do Alecrim e Manjerona, cujo berço, no Rio, bastou para atestar-lhe a brasilidade.

Parece o produto de uma escolha da razão o tema de Magalhães. Observou ainda ele: "Desejando encetar minha carreira dramática por um assunto nacional, nenhum me pareceu mais capaz de despertar as simpatias e as paixões trágicas do que este." "Eu não sigo nem o rigor dos Clássicos nem o desalinho dos segundos (os Românticos." "(...) antes, faço o que entendo, e o que posso. Isto digo eu aos que ao menos têm lido Shakespeare e Racine." A assimilação e o desenvolvimento de certas características de ambos, aliás, participava da estética romântica, e o nosso dramaturgo não trairia a sua natureza nem os pressupostos da nova escola se acomodasse a sua obra àqueles modelos. Completa o quadro uma referência à noção do idealismo grandioso de Corneille.

A falta, no seu tempo, de informações mais pormenorizadas sobre a vida do Judeu, ou o desejo romântico de moldá-lo segundo o esquema das vítimas de uma injustiça mais poderosa, contra a qual é impotente o homem, fez que Magalhães fantasiasse a trama ao seu inteiro arbítrio.

O verdadeiro motor da ação, marcando-lhe os momentos decisivos, é Frei Gil, que persegue o Judeu. Haveria aí fanatismo religioso? Não, porque o representante da Inquisição está distante de qualquer fé católica. Seu propósito é o de afastar Antônio José da atriz Mariana, na esperança de conquistá-la. Como o herói repele a investida do frade contra a bem-amada, a vingança de vilão será perdê-lo nos cárcere inquisitoriais. Frei Gil denuncia o indefeso poeta, levando-o a ser sacrificado vivo na fogueira.

O sucesso da trama sinistra depende, do ponto de vista dramático, de várias coincidências e de recursos folhetinescos. O frade certifica-se da presença de Antônio José na casa do Conde de Ericeira, seu protetor, por intermédio de uma carta que marcava um livro. Com uma fragilidade que é muito mais de teatro que da vida real, Mariana morre instantaneamente quando os Familiares do Santo Ofício prendem Antônio José. Nada prenunciava essa delicadeza de saúde. Estupefato com a cena, fixando o céu, Frei Gil tem aí a revelação fulminante de sua culpa.

Impunha-se esse golpe fatal para que o frade reencontrasse o caminho da Igreja. O arrependimento e a penitência não faltariam a um teatro de claras preocupações morais. Talvez Magalhães tenha compreendido a observação do prefácio de Cromwell, segundo a qual "le beau n’a q’un type; le laid en a mille." A caracterização de um mau frade pretendia enriquecer a galeria de personagens originais. O retorno aos mandamentos cristãos assegurava a vitória da moralidade.

(Panorama do teatro brasileiro, 1962.)

 

CRIAÇÃO DA COMÉDIA BRASILEIRA

O lançamento de Antônio José ou o Poeta e a Inquisição parecia um manifesto para a posteridade - a tomada de consciência de uma missão artística e cultural a cumprir. Meio ano depois, a 4 de outubro de 1838, pela mesma companhia de João Caetano, estreava O juiz de paz na roça, sem alarde publicitário e pretensão histórica. Era a primeira comédia escrita por Martins Pena (1815-1848), de feitio popular e desambicioso, costurando com observação satírica um aspecto da realidade brasileira. Poucos, talvez, na ocasião, assinalassem o significado do acontecimento. Começava aí, porém, uma carreira curta e fecunda (Martins Pena escreveu dos 22 aos 33 anos de idade, quando morreu, 20 comédias e 6 dramas), e o verdadeiro teatro nacional, naquilo que ele tem de mais específico e autêntico. Martins Pena é o fundador da nossa comédia de costumes, filão rico e responsável pela maioria das obras felizes que realmente contam na literatura teatral brasileira.

Sílvio Romero, há mais de meio século, julgou a comédia de Martins Pena o painel histórico da vida do país, na primeira metade do século XIX. Aplica-se também aos nossos dias a observação do crítico, segundo a qual "parece que o dramatista brasileiro está vivo entre nós e escreveu hoje as suas comédias". A espantosa atualidade de Martins Pena permanece, assim, um lugar-comum, sempre vitalizado por uma ou outra encenação bem recebida. Admirável observador, ele fixou costumes e características que têm continuado através do tempo, e retratam as instituições nacionais. Retrato melancólico e primário, sem dúvida, mas exuberante de fidelidade. Em pleno surto do movimento romântico, idealizador de um nacionalismo róseo, Martins Pena antecipa, com noção precisa, alguns dos nossos traços dominantes, ainda que menos abonadores. Não aprofunda caracteres ou situações. Vale, porém, a extensão, a vista panorâmica da realidade. O comediógrafo atinge religião e política, e esta no funcionamento dos três poderes executivo, legislativo e judiciário. Queixa-se do presente, em face de um passado melhor (que autor de comédias não teve a nostalgia de uma ilusória época perfeita?). Define o estrangeiro no Brasil, e as reações do brasileiro, em face dele. Mostra a província e a capital, o sertanejo e o metropolitano, em suas diferenças básicas. Invectiva as profissões indignas e os tipos humanos inescrupulosos, denunciando inclusive o tráfico ilícito de negros, na sociedade escravocrata brasileira. Não é estranha a galeria dos vícios individuais, como a avareza e a prevaricação, e tem um sabor especial ao satirizar as manias e as modas. Trata da constituição da família, surpreendendo-lhe o mecanismo na análise do casamento, com o eterno conflito das gerações.

Desde que Aristófanes fez o processo de Atenas, tem-se a tendência de confundir a comédia com a história. Guardemo-nos de identificar o exagero natural de quem deseja fazer rir com a objetiva análise dos acontecimentos. A paixão partidária do comediógrafo, contudo, tem o dom de surpreender certas particularidades, reveladoras de traços reais.

A cada momento Martins Pena esboça um retrato do país. Desta forma se expressa, por exemplo, em O cigano, o malsim Gregório: "... Evitar contrabandos! Assim era eu tolo! Como se chegasse para comer o que eu ganho no ofício ! E demais, se me pilham, digo que os queijos são para o Ministro." Na mesma comédia, outra personagem exclama : "Há guardas na Alfândega que são os diabos; deram-lhes para ser honrados." Replicam-lhe: "Pois que comam da honra!" Em O usurário, para criticar as assembléias legislativas, um jovem se serve da brincadeira que tramaram, comentando: "... Não seria mau que os presidentes de nossas câmaras fossem todos defuntos. Em vez de dizerem: Tem a palavra o ilustre preopinante, gritariam: Caluda!, e não se perderia tanto tempo com palavras inúteis." Na Comédia sem título, mentindo que escreveu cartas, uma personagem se justifica: "A falta de ordem que vai no correio é que tem culpa de tudo isso".

Assim como fizera em Os dous ou O inglês maquinista e O caixeiro da taverna, Martins Pena se refere na Comédia sem título à carestia, "... pois do modo por que tudo está hoje no Rio não há dinheiro que chegue." E responsável por ela, em grande parte, aparece o estrangeiro, como está em As desgraças de uma criança: "... os ofícios cá na nossa terra já nada dão; a concorrência de estrangeiros é grande. Só os empregos públicos é que são para os filhos do País, e isso mesmo..." Aspectos desagradáveis da presença do estrangeiro são apontados também em Os dous ou O inglês Maquinista, O caixeiro da taverna, Quem casa quer casa e sobretudo As casadas solteiras. Nessa última comédia, uma personagem diz que os estrangeiros falam que não gostam do Brasil mas sempre vão chegando, para lhe ganharem o dinheiro. O inglês Bolinbrok assevera: "Brasil é bom para ganhar dinheiro e ter mulher... Os lucros... cento por cento..." A jovem explica que o pai não deseja o seu casamento com um inglês e os odeia "pelos males que nos têm sempre causado". Finalmente, há essa deliciosa e vulgarizada definição do brasileiro, dada pelo inglês: "Brasileiros sabe mais gasta do que sabe ganha." O brasileiro retruca: "Ora, adeus! A vida é curta e é preciso gozá-la." Um toque simpático, a respeito do estrangeiro, havia sido tentado em Quem casa quer casa: "... o artista quando vem ao Brasil, digo, quando se digna vir ao Brasil, é por compaixão do estado de embrutecimento em que vivemos, e não por um cálculo vil e interesseiro." Ao que se responde: "... e comendo o dinheiro que ganhava no Brasil, fala mal dele e de seus filhos."

A oposição da metrópole à província surge, na obra de Martins Pena, sob dois ângulos mais comuns: de um lado, a capital, civilizada, com teatros e invenções do momento (sege, bonecos de cera, mágicas, etc.), como aparece em Um sertanejo na corte, enquanto o sertão recebe esta sentença: "Desgraçada da nação cujos povos vivem na mais crassa e estúpida ignorância!"; e, de outro, o homem da capital é refinado e superior, mas esperto e sujeito à corrupção, ao passo que o provinciano, bronco, rústico e ingênuo, revela moralidade mais sólida, como os fazendeiros e os roceiros, e o Paulista de O diletante. Os prejuízos da saída do campo para a cidade não foram desconhecidos de Martins Pena e o soldado Pacífico, vindo do interior para prestar serviço no Rio de Janeiro, diz, em As desgraças de uma criança: "O Estado precisa mais de filhos do que de soldados, e demais, a lavoura é quem perde com isso." Naquele tempo, também, ainda se acreditava, como aparece em O cigano, que "em Minas os pretos forros não precisam trabalhar para viver. Há muito dinheiro pelo chão."

Em Os três médicos, se glosa assunto da moda, como em O diletante a mania da música. Martins Pena satiriza o debate entre a alopatia e a homeopatia; e, para carregar o ridículo, introduz um médico hidropata, que utiliza a água como a grande panacéia universal. O tema é vivo, palpitante a maneira de opor os diversos sistemas terapêuticos, mas o comediógrafo pretende atingir a crítica eterna à Medicina, que remonta aos Menecmos, de Plauto, e atravessa toda a história do gênero: o diagnóstico que abstrai o paciente e por isso se funda no absurdo. A espessura das teorias que desconhecem a pessoa humana. Daí a conclusão sobre os médicos, expressa por uma personagem: "Cada um quer matar lá a seu modo..." Na preocupação com a qual escreve sempre ao estímulo da realidade à volta, Martins Pena, mesmo quando toma um assunto eterno e convencional do teatro, pinta um retrato de sua época.

A referência aos arquétipos cômicos e à crítica da atualidade leva a uma conceituação de Martins Pena segundo os modelos tradicionais do gênero. Quando o ator João Caetano o denominou "o Molière brasileiro", estabeleceu um ponto de partida obrigatório para a crítica. Cabe indagar em que se aproximam as duas obras. Por certo, se as compararmos, a do autor de O diletante parece forçosamente primária e superficial ante a do comediógrafo de O misantropo e essa verificação simples não escapou aos comentaristas mais presos a um nacionalismo estreito. Diversos elementos das comédias de Martins Pena mostram que ele procurou em Molière um modelo, ao entregar-se a maiores ambições. Seria o caso de afirmar que o dramaturgo brasileiro se saiu melhor quando se distanciou do padrão francês, mergulhando na realidade imediata? Não há dúvida de que seus trabalhos são mais interessantes na medida em que refletem os dados do meio, os costumes que lhe era possível retratar e nessa perspectiva não estamos adotando preconceito sociológico em prejuízo de critério artístico. É que Martins Pena, mais sensível aos vícios e ridículos próximos, não tem fôlego para as sínteses e abstrações responsáveis pelos grandes caracteres.

[...]

A falta de uma verdadeira linguagem trágica ou dramática reduziu muito o alcance dessas experiências do fundador da comédia brasileira. Seu malogro resume, desde já a trajetória do nosso teatro na segunda metade do século XIX. Apesar das limitações de tôda ordem, a comédia de Martins Pena representa de fato o marco inicial da fixação dos costumes brasileiros, que são explorados por Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, França Júnior e Artur Azevedo, os principais cultores do gênero, numa continuidade de trabalhos que vem até o princípio deste século. Do dramalhão, ao qual não escapou Martins Pena, quase nenhuma peça também fugiu, e somente parte da obra de Gonçalves Dias e uma ou outra peça conseguem atingir verdadeira nobreza dramática. Numerosos traços da comédia de Martins Pena reaparecem nos sucessores, conservando o seu eco e as qualidades mais autênticas. Pode-se afirmar que os textos de reais méritos que se distinguem na segunda metade do século passado nascem de uma sugestão contida em suas farsas despretensiosas. Nelas está o exemplo das possibilidades dramáticas indicadas pelo quotidiano, com a abundante parcela de ridículos e absurdos. O sentimento nacional, que já se opõe à sede de lucro e à falta de assimilação estrangeiras, sugerirá novas obras, que irão alicerçando a pesquisa, em nossos dias, de uma completa individualidade brasileira. Prosseguirá, em toda a dramaturgia subseqüente, o vezo da sátira política e da crítica à sociedade e à administração, com o elogio implícito ou explícito dos bons costumes e da sadia moral, tanto na vida privada como nos negócios públicos. No repúdio aos erros, nas diversas esferas do país, a comédia de Martins Pena pode ser considerada uma escola de ética, antecipando esse papel que o teatro assumirá, conscientemente, mais tarde. Uma bonomia e uma tolerância, feitas de profunda compreensão, adoçam o propósito moralizador, e lançam, no teatro, as raízes efetivas do nosso espírito democrático. Daí a platéia simpatizar com as múltiplas figuras dessa comédia espontânea, na qual reconhece o que tem em si de mais natural e aconchegante. O sentimentalismo piegas, disposto às boas ações e às solidariedades francas, encontra na obra de Martins Pena um veículo ideal, incontaminado de quaisquer laivos eruditos. Toda a filiação aos gêneros tradicionais do teatro e a referência a autores europeus não esmaga a pura seiva de brasilidade dessa farsa, que parece brotar da nossa rua, como a Commedia dell’Arte nasceu do gênio popular italiano. Martins Pena leva para o palco a língua do povo, e por isso o brasileiro enxerga nele, com razão, a sua própria imagem.

(Panorama do teatro brasileiro, 1962.)