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Raymundo Faoro

OS PRÓDROMOS DA INDEPENDÊNCIA

I – A VIDA RURAL OS COMEÇOS DO SÉCULO XIX

O século XIX encontra um país subjugado, com fronteiras definitivamente esboçadas, neste lado do Atlântico. Desde que a reação centralizadora ganhara os sertões, atenta à supremacia da autoridade pública, a caudilhagem dos conquistadores e latifundiários perde o ímpeto, estrangulada no nascedouro. O rústico militarismo, seja já o exercido pelo senhor de engenho, quer o arvorado pelo bandeirismo, ou o nascido nos acampamentos de combate ao holandês, abatera-se, dominado por dois processos contrários e complementares. O paulista, o pernambucano, o rio-grandense transformam-se em agentes régios, incorporados às milícias ou às ordenanças, com trânsito, algumas vezes, às fileiras da primeira linha, da tropa regular. Aqueles que desafiam a ordem legal, inconformados com a submissão blandiciosa nos cargos e patentes, recebem o golpe das armas, a ferro e fogo. Para os de boa vontade, a terapêutica dos emolientes; para os outros, a espada nua, mal encoberta nas draconianas devassas e nas prisões amparadas na justiça. Os senhores territoriais refugiam-se nas câmaras municipais, freados, limitados e dominados pela falsa autonomia das vilas distantes. Sua influência política será quase nula, no exercício de cargos municipais manietados, sem que as suas decisões alcancem a sede das capitanias ou os corredores da corte. Eles, na verdade, não serão mais necessários para devassar a terra inculta, domar o indígena ou repelir o invasor que surge do mar ou se projeta da fronteira. A base da força que os fizera respeitados estava morta: o militar de formação reinol ocupa o seu lugar, auxiliado pelas tropas territoriais, recrutadas nas cidades e nos ermos, aquele cada vez mais expressivo em número e superior na disciplina.

Não apenas o conteúdo político do senhor rural mudou, senão que transformação mais profunda alterou-lhe o status. Depois de dois séculos ocupados em produzir açúcar, lavrar ouro, cultivar cana e tabaco, pastorear gado – ao lado das funções paramilitares e paraburocráticas – a própria estrutura da empresa rural toma outro cunho. De caçador de riquezas converte-se em senhor de rendas, a fazenda monocultora toma o caráter de latifúndio quase fechado. O prestígio outrora haurido das implícitas delegações de autoridade se transmuta no de senhor de um pequeno reino, que produz quase tudo.

Ainda aqui, nesta hora de transição, pulsa e circula, na paisagem das lavouras e das distâncias, o sangue da economia mundial. Não que a colônia seja um reflexo passivo do jogo internacional – século a século ela adquire consistência própria, fisionomia singular, de cuja interação dinâmica se comporá o anseio de autonomia. O último quartel do século XVIII denuncia uma crise e revela uma mudança de rumo. A exportação cairá, em termos absolutos e em termos per capita, por efeitos não apenas atribuíveis ao esgotamento das minas. Ao colapso da produção do ouro se associa a baixa das exportações do açúcar, atingindo o ponto mais baixo dos dois séculos anteriores. Em 1750, para uma população de 1.500.000 habitantes, a exportação alcançou 4.300.000 libras esterlinas, enquanto em 1800, numa população de 3.300.000, mal subiu a 3.500.000 libras esterlinas, com o ponto mais baixo da década 1780-90. Esses dados se fixam, não obstante as vicissitudes do Haiti, cuja revolta arredou o perigoso concorrente francês de açúcar. A renda per capita teria caído, de 30 libras ouro em 1600, para 3 em 1800. Um elemento abre, todavia, outra perspectiva: a participação percentual da exportação na renda interna, na altura de 80% em 1600, teria também caído, insinuando a moderada expansão, senão do mercado interno conjugado, pelo menos das unidades agrícolas.  Mais tarde, o café, no sul, trará convulsivamente a partir de 1850, outra mudança no mapa econômico.

A direta consequência dessa brusca oscilação, brusca mas não inesperada, será o retraimento da empresa agrícola aos próprios recursos. O tráfico de escravos, obviamente, seguiu idêntico afrouxamento, com a perda da influência dos mercadores e financiadores, abatidos pela crise. A existência de grosso cabedal de mão de obra em poder dos engenhos, minerações e fazendas forçou a mudança de rumo no setor exportador para o setor de subsistência, numa estrutura econômica incapaz, pelas dependências ao crédito e aos compromissos a curto prazo, de transformar-se rapidamente. A proibição de criar indústrias restringiu a reorganização aos quadros internos do mundo rural. A fazenda, dotada de dois focos, o foco exportador e o foco interno, a vibração exportadora e a convergência de economia natural, tende a buscar seu eixo de movimento autônomo. Não há diferença entre a unidade agrária da cana e a unidade agrária do café, no aspecto de cultivo e da lavoura, senão que, entre um momento e outro, a fazenda sofre desajustamento nas suas bases. A prosperidade cafeeira virá corrigir as distâncias, também ela voltada para a monocultura, tal como a cana de 1600, monocultura temperada pelas novas condições do país, já mais voltado ao tropismo do mercado interno. Em plena prosperidade do café, o mais alto espírito brasileiro, o homem que melhor conheceu o seu país, não se cansa de bradar: “o Brasil é uma nação que importa tudo: a carne seca e o milho do Rio da Prata, o arroz da Índia, o bacalhau da Noruega, o azeite de Portugal, o trigo de Baltimore, a manteiga de França, o pinho do Báltico, os tecidos de Manchester, e tudo o mais, exceto exclusivamente os gêneros de imediata deterioração. A importação representa assim as necessidades materiais da população toda, ao passo que a exportação representa o trabalho apenas de uma classe”. O antigo minerador, o senhor de engenho, o lavrador e o pastor ampliam – enquanto o café não vier avassalar as terras – as culturas de subsistência, preocupados em adquirir de fora o mínimo possível de bens, sal, ferro, chumbo e pólvora. Fato este que se deve à pobreza, à exportação cadente, e não à natureza da lavoura de cana, tal como cultivada no Rio de Janeiro e São Paulo, regiões que não conheceram o brilho exclusivo dos engenhos de Pernambuco e Bahia. Sob a pressão da conjuntura adversa o fazendeiro sentirá o que em outros tempos, nos tempos prósperos, não percebera: o fiscalismo, a tirania, o entrave do governo à atividade econômica. Mal-estar associado com as ideias francesas do liberalismo nascente, únicas ideias então disponíveis para colorir a revolta.

Ao fator econômico, que abranda a monocultura e a dependência à exportação, soma-se o fator geográfico. As fazendas distantes do Rio de Janeiro, de Salvador e do Recife tendem para o sistema autárquico, pressionadas pelas dificuldades de transporte, transporte entregue totalmente às tropas de burro, reservado o carro de boi para os trabalhos internos da fazenda. O processo de autonomismo policultor se envolve, de outro lado, pelas peculiaridades locais: enquanto a cana do nordeste sofreu a tradição exportadora, a fazenda paulista se acomoda melhor aos novos tempos, voltada para a lavoura de subsistência. Os viajantes do começo do século XIX assinalam, nas fazendas próximas ao Rio de Janeiro, a passagem progressiva da categoria de chácaras e quintas para a de grandes propriedades. Observação, de resto, assentada sob o óbvio, recordada a circunstância que a influência da cidade cessa a pouco mais de vinte quilômetros da costa. As acomodações e o mobiliário são, à medida que se avança no interior, cada vez mais rústicos, no mesmo caráter do vestuário, de panos grosseiros, tecidos dentro do latifúndio. Luccok, atordoado diante do fenômeno emergente da variedade das culturas e preocupado em lhe discernir a causa, o atribui, em Pernambuco, à orientação governamental. O feijão e a mandioca se associam e disputam a vizinhança da cana e do algodão, com prejuízo dos lavradores e dos comerciantes, mais interessados nas culturas lucrativas de exportação, fato que teria contribuído para o descontentamento sobre o qual eclodiu a Revolução de 1817. Em outra passagem, vincula a mudança de rumo à quebra do estatuto colonial, provocado pela transmigração da corte, com a entrada nos campos das frutas e vegetais. Conjeturas infundadas, mas calcadas sobre uma situação nova. Coincide o comerciante inglês na sua queixa à faixa diminuta de comércio, provocada por essas unidades fechadas com seu compatriota, o contrabandista Lindley, que escreve em período anterior à chegada de D. João VI. Não obstante a falta de moeda e o isolamento das fazendas, ainda assim, graças à coluna não destruída da exportação, o tráfico com o exterior permanece ativo, sobretudo para o comércio inglês, agora liberto, senão privilegiado, de todas as amarras. O padrão de trocas obedece, sempre que a praia se distancia, ao escambo, com o crédito de permeio, utilizado em escala inesperada e abusiva. O lucro da atividade agrícola não se expande, como é natural na conjuntura restritiva, reduzido, segundo cálculos de Saint-Hilaire, a dez por cento sobre o capital empregado, lucro que se eleva no período do café. A terra, diante da nova perspectiva, embora fácil de obter para o requerente bem situado, passa a contar de forma mais expressiva na composição de estabelecimento.

A imediata consequência: o fazendeiro, enclausurado no seu domínio, não é mais o instrumento passivo do intermediário da exportação ou do fornecedor de escravos. Ele, se a ruína na hora da contratação da fazenda não o abateu, tem nas mãos as condições, embora não vigorosas, para resistir à pressão exterior e ditar sua conduta, que a velha arrogância, bebida nos tempos da caudilhagem territorial lhe inspirará.

A passagem do empresário exportador para o senhor de rendas e produtos coincide com a transmigração da corte, em 1808. Soma-se a maturação interna da colônia a um acidente da política europeia, separando o tênue, mas já vivo anseio de emancipação das tendências liberais, separação singular e inexistente na América espanhola e inglesa. Um rei absoluto realiza, preside, tutela a nação em emergência, podando, repelindo e absorvendo o impulso liberal, associado à fazenda e às unidades locais de poder. Liberalismo, na verdade, menos doutrinário do que justificador: os ricos e poderosos fazendeiros cuidam em diminuir o poder do rei e dos capitães-generais apenas para aumentar o próprio, numa nova partilha de governo, sem generalizar às classes pobres a participação política. Ocorre que, com a contração econômica do latifúndio, a terra e as conexões produtoras passam a adquirir maior importância, com a gravitação de categorias de pessoas sem terra em torno do proprietário. Nesse sentido, o empresário, o senhor de engenho que, desde Duarte Coelho, impunha seu predomínio graças aos investimentos da indústria de moagem de cana, com as lavouras cativas, converte-se no fazendeiro estendidas as dependências para todas as culturas, que só ele comercializa e redistribui. O senhor da fazenda é, agora, senhor do mercado fechado e das comunicações exteriores. O engenho – que se compõe da fábrica e da fazenda – alonga o seu segundo componente, numa base agrícola mais larga. No nordeste açucareiro, onde será mais difícil a mudança, com a rígida tradição exportadora e monocultura, os lavradores subsidiários não são mais os donos de terras próprias e os arrendatários dos senhores de engenhos, todos dedicados à cana. As terras, segundo o depoimento de Koster, são divididas pelo proprietário, senhor de engenho, em cinco parcelas: as matas, as terras do plantio de cana, as de pastagens, as plantações para alimentação dos escravos e as ocupadas por homens livres. Com o emprego dos escravos na empresa industrial do engenho ou das lavouras de cana, assumem importância as culturas de mandioca e feijão, algumas vezes o milho, gêneros que o proprietário nem sempre pode comprar. Essa necessidade será coberta pelas lavouras dirigidas pelo fazendeiro, com seu pessoal, ou resultará dos homens livres, os moradores sem terras, precariamente fixados ao solo, sem nenhum contrato escrito, vendendo as sobras ao proprietário, que lhe fornece os implementos agrícolas. “A posição que essas pessoas têm nessas terras ocupadas é insegura e essa insegurança constitui um dos grandes elementos do poder que um latifundiário desfruta entre seus moradores. Nenhum documento é escrito mas o proprietário da terra autoriza verbalmente o morador a erguer sua casinha num terreno, habitando-a, sob condição de pagar uma renda mínima, de quatro a oito mil-réis, um ou dois ‘guinéus’, ou pouco mais, e lhe permite cultivar o que possa fazer pessoalmente mas a renda aumentará se for auxiliado por alguém. Às vezes, na convenção verbal, dispõe-se que o rendeiro deverá prestar certos serviços em vez de pagar o foro em moeda.” Na borda das cidades, a horticultura se expande, cultivada sobretudo pelo imigrante português, disposto a usar das próprias mãos, ao contrário de seu compatriota de há dois séculos. Tollenare percebe, no campo nordestino, três classes: os senhores de engenho, grandes proprietários territoriais; os lavradores, espécie de rendeiros e os moradores, ou pequenos colonos. Os lavradores, rendeiros sem contrato escrito de arrendamento, plantam cana em terras do senhor de engenho, no velho esquema do século XVI, com o domínio de escravos e lavouras de subsistência. Os moradores gozam da permissão de erguer sua cabana, com pequena retribuição, sujeitos à expulsão sumária. Koster e Tollenare coincidem no seu depoimento: o velho engenho monocultor ganha novas dimensões, alargando, com a transformação, a estrutura de classes. A dicotomia senhor e escravo perde o conteúdo para armar, em torno do proprietário, uma tosca pirâmide de dependentes, fechada sobre si mesma. O exclusivismo da cana sofreria, ao tempo, brechas pelos produtos do sertão: o algodão e o gado, com fazendas organizadas sem o traço monocultor. No sul – São Paulo e Minas Gerais, Rio de Janeiro (algumas léguas longe da capital) –  a reclusão fazendeira toma maior consistência, agravada pelo isolamento das estradas precárias. Só os escravos, as ferramentas agrícolas e os artigos de luxo, além do sal, vêm de fora, num comércio cheio de entraves e retardamentos. Nesse contexto, a indústria, depois de levantadas as interdições colbertianas, não pode se expandir, tolhida pela falta de mercado e pelo transporte caro. A produção manufatureira em pequena escala sofreria ainda a concorrência inglesa, com seus produtos cada vez mais baratos.

Isolamento, menor dependência do exterior, confinamentos às localidades do campo – este o caráter rural do começo do século XIX. O comércio, fortemente vinculado ao estamento governamental, perde a absoluta supremacia nas fazendas. Ele se articula em antagonismo ao latifúndio, gravitando em torno da metrópole, da qual depende para alimentá-lo de mercadorias e crédito. Perde, de outro lado, a consistência hegemônica, com a chusma de comerciantes ingleses que, a partir de 1808, invade as cidades do litoral. As capitanias, centrifugamente voltadas para as unidades agrícolas, não logram engastar-se numa base homogênea de interesses, dispersas, além disso, nas conexões autônomas com o comércio europeu.

[...]

                                                               (Os donos do poder, 4ª ed., 1977)

 

MUDANÇA E REVOLUÇÃO

I – O ABALO IDEOLÓGICO E AS ASPIRAÇÕES DIFUSAS

Na madrugada de 5 de julho de 1922, governador Epitácio Pessoa e já eleito Artur Bernardes, os disparos do Forte de Copacabana anunciam o fim da República Velha. Os jovens militares antecipam, em dois quatriênios, uma data necessária, embora não irremediável nos termos em que aconteceria. Este ciclo, que começa com pólvora, com pólvora se fechará, depois que um tiro paralisar o coração de um presidente – presidente, ex-chefe revolucionário e ex-ditador. Os velhos políticos, senhores da crônica republicana, atores de acontecimentos antigos e recentes, não temiam bravatas, nem acreditavam no encerramento da obra de Deodoro, obra corrigida e reeditada por Campos Sales. Agitações, badernas e revoltas inquietaram Rodrigues Alves e Hermes da Fonseca, com as ruas e as praias feridas de balas e boatos, sem que nenhum presidente abandonasse o palácio. Esta onda de indisciplina passaria, como passaram as outras, contanto que houvesse energia e mão pesada. As oscilações demonstrariam a solidez do edifício – posto à prova para atestar a firmeza dos fundamentos.  A serenidade voltaria aos espíritos e a paz aos quartéis: volvidos os dias de Artur Bernardes, o quatriênio de Washington Luís correrá tranquilo, retomada a confiança na prosperidade e no trabalho. Só o duro temperamento do áspero montanhês teria impedido a conciliação, roído de vinganças e ódios, extraviado na crença de sua missão de restaurar a autoridade.

Havia, no episódio de 1922, muita coisa nova, capaz de perdurar além dos pretextos e das desinteligências dos grupos. Minas Gerais e São Paulo acertam, no ano anterior, o problema sucessório, a aprazimento de todos, com exceção do Rio Grande do Sul, sempre enigmático, rebelde e potencialmente subversivo. A vez, depois de caber a São Paulo com Rodrigues Alves, era de Minas Gerais. Rivalidades aparentemente frívolas perturbam o poder de atração dos dois principados, permitindo uma coligação oposicionista, composta das situações dominantes do Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Em termos eleitorais o confronto não assustaria, provocando, a exemplo de 1910 e 1919, agitações sem consequência. O sistema será contestado por políticos da velha guarda, como Borges de Medeiros e Nilo Peçanha, de duvidosa ortodoxia republicana. Para os calculistas de cúpula, os números esmagariam os dissidentes, seguidos do implacável acerto de contas, para escarmento dos ambiciosos e dos pescadores de águas turvas.

Nas águas turvas estava todo o drama, não mais válidas as regras “genuinamente” republicanas da política dos governadores. Para o estuário, ainda não cavado no solo, mas já entrevisto na sensibilidade de raros observadores, avolumam-se as correntes que logo irão correr: o povo – a camada média da sociedade, que Rui Barbosa pretendeu interpretar na campanha de 1919 –, o Exército e o Rio Grande do Sul, este inconciliável, há muito, com o esquema dominante. Desde logo, Borges de Medeiros, notificado e não consultado, da candidatura Artur Bernardes, apela para uma convenção popular, na qual se escolheria o programa antes do candidato. A convenção não seria, se convocada, mais que outra farsa dentro da farsa republicana, habituada a dispensar o povo nas suas decisões políticas. Mas, no alvitre, expediente inócuo, via o velho repúblico o meio de retificar o equívoco da ação de Pinheiro Machado. Enquanto este se mantivera fiel ao convívio castilhista com o Exército, mecanismo de emergência para contrabalançar o isolamento político do sul, o povo, seduzido pelo antimilitarismo liberal, torna-se sombriamente hostil ao líder e à sua atividade. Agora, sobre as cinzas do passado, rearticular-se-ia o esquema antes malogrado. Na dinâmica das combinações perder-se-ia, entretanto, a veleidade hegemônica do Rio Grande do Sul, manifestamente incapaz de ocupar o lugar de São Paulo ou Minas Gerais, em favor de uma missão nacional, apoiada sobre forças alheias, senão hostis, ao estadualismo. Nesse trabalho de retorno aos planos dos primeiros dias republicanos, retoma-se a linha de combate às candidaturas oficiais – oficiais não apenas por serem filhas do Catete, mas dos dois estados grandes. De outro lado o Exército viria a falar pela voz do mesmo líder de 1910-14, teimosamente apoiado pela política do extremo sul. Desde 1920, Hermes da Fonseca, depois de longo exílio voluntário, retoma seu papel político, em torno do Clube Militar. O povo viria a engrossar a caudal contestatória, desde que, agressivamente a partir de 1919, sentira estar ausente dos conchavos e manobras de cúpula. Nilo Peçanha, herdeiro dos protestos desencadeados há pouco, ocupa a liderança vazia, para abalar as colunas do templo, que, com certeza, não se renderia ao voto, número manipulável sem compromisso com a vontade do eleitor. O dissídio entre os militares e o governo, envolvido agora Epitácio Pessoa no combate, agrava-se com o episódio das cartas falsas, sem que se amaine com o resultado das eleições, acoimadas de inautênticas pelos vencidos, como já se tornara regra. O Clube Militar, Hermes da Fonseca eleito e reeleito presidente, quer comandar a vida política. Os políticos sabem que, agora, está encerrada a contestação e aberta a aventura. Neste ponto, eles recuariam com a solene palavra de Borges de Medeiros – pela ordem: “Dentro da ordem sempre, nunca pela desordem, parta de onde partir, tenda para onde tender, – é este o nosso lema, supremo e inderrocável”. No vestíbulo da ação, o Rio Grande se retrai, dominado pelos persistentes escrúpulos republicanos da política conservadora. Em breve, sobre os passos percorridos, desfilarão suas tropas, no combate aos aliados de ontem, para sagrar o apoio a Washington Luís. Breve incoerência, que as circunstâncias corrigirão, quando se desintegrarem as resistências ideológicas do regime.

No panorama ornamental das forças sociais em convergência, debaixo das intrigas sucessórias e das correntes políticas, as tendências íntimas de 1922 só poderiam amadurecer se a camada dirigente não as desfigurasse, absorvendo-as e renovando-se. Paradoxo só aparente. Com  Borges de Medeiros, com Nilo Peçanha, com J. J. Seabra e mesmo com Hermes da Fonseca, as lideranças ascendentes seriam digeridas pelos interesses de mando. Não acontecera assim em 1910? O recuo pela ordem, ao tempo que desampara os jovens, dá-lhes a consciência de sua missão, agora cada vez mais revolucionária, fora das regras do jogo. A morte de Hermes da Fonseca (1923) e de Nilo Peçanha (1924) provoca o vácuo entre as gerações ainda disciplinadas sob os padrões conservadores – conservadores, estes, como Rui Barbosa, que viam nas mudanças sociais o único meio de evitar o pior. Nas sedições das cidades e na longa marcha pelo interior deserto apura-se, passo a passo, um corpo de propósitos, afogados, no primeiro momento, pela negação frontal e aberta da ordem. O fio sucessório, que prende os jovens aos velhos, não passa mais pelos presidentes, no caminho de Pinheiro Machado. A herança de Rui Barbosa será diluída pelos seus quase contemporâneos, armados de fuzil e ânimo de sacrifício. O liberalismo, cortado e manchado de muitos compromissos, continua vivo, não obstante. Liberalismo de conteúdo diverso, simples pano de fundo de indefinidas reivindicações. A sociedade não ficaria entregue ao seu livre jogo, para que da liberdade se organizasse a estrutura econômica e política. Era preciso libertar o homem do interior do coronel, os Estados das oligarquias, em movimento antitradicional. Depois de libertar, organizar e velar pelo sistema novo, conduzir e amparar. Numa palavra, renovar o salvacionismo de 1910, no passo, ainda obscuro, que afaste o individualismo, em favor do comando tutelado. Um Estado interventor, dirigente, autônomo, coroaria a empresa, suscitável pela única categoria capaz de estrutura-lo e sustentá-lo, o Exército.  Hermes da Fonseca, que emerge nestes anos de 1921-22 do ostracismo de seu difamado mau governo, afirma uma liderança. Seus antigos companheiros, os generais, respeitam-no, mas não traduzem a mensagem em ação. Essa tarefa, contra os chefes, caberá aos tenentes. “As situações políticas passam e o Exército fica”, lembra o velho marechal e ex-presidente, legitimado com o texto do art. 14 da Constituição Federal. Não será somente um chefe militar que invocará ou justificará a presença da força armada no mundo político. Essa voz surpreendente está a indicar que a ordem conservadora apela para a espada, ameaçada pelos que a exploram, incapazes de ouvir o voto. Um liberal, vencida a reação contra Floriano e que se configura em 1910, dá o toque de reunir, como se estivesse nos dias de 1889. Rui Barbosa, reconciliado com Hermes da Fonseca, no discurso de posse deste no Clube Militar, a 26 de junho de 1921, quer, uma vez mais, a derradeira vez, purificar a República por meio da atividade militar. Deodoro ressurge das cinzas e das humilhações para a obra de regeneração política. Dois anos já eram volvidos da afirmação que, negando competir às classes armadas papel político, lhes reconhece o dever de exercer a vigilância da nação. Do tímido passo –  passo ou conversão, volta às origens – sai, pouco depois, a palavra franca. Somente um candidato presidencial comprometido com a reforma constitucional receberia seu apoio, escreve em 1921, acrescentando o outro requisito – “e que conte com as simpatias do elemento militar. Considero” – adverte – “o concurso delas imprescindível neste momento, pois tenho a situação atual do país como mais grave que a de 1889, e vejo nesse elemento a força única capaz da estabilidade e da reorganização que resta ao povo na dissolução e na anarquia geral que nos arrasta”. Hermes da Fonseca e Rui Barbosa se encontram, finalmente, antes que ambos cerrem os olhos, na mesma trincheira. Uma manobra de cúpula, dentro do estamento banido, reformaria a ordem republicana, sem quebra da estabilidade. Os políticos que mandam, Epitácio Pessoa, Artur Bernardes, Whashington Luís, dispensam esse apoio, confundido com a sedição, articulando a normalidade no presidente forte, sobre a política dos governadores. O Exército não é a nação, disse Epitácio Pessoa, “nem é tutor da nação,” ... “é apenas um aparelho de defesa das instituições e da integridade moral e material da nação”.

O expediente conciliatório, de atrelar o Exército a um movimento de reforma institucional, controlado do alto, malogrou-se. 1922 não era 1889, como acreditava Rui Barbosa. O Exército se transformara, pronto para outra missão, que as defesas do regime lhe negam. O caminho do interior, o combate, as insurreições e as conspirações abrem, na desintegração ideológica, as perspectivas da utopia próxima e do mito remoto.

Da confusão reinante, nas cabeças disponíveis, surgirá um roteiro. Um revolucionário, mais tarde destinado a um alto papel histórico, relata que o 5 de julho 1922 não ultrapassava “os limites de mera questão pessoal”, com a deposição do presidente no poder e do presidente eleito, para desafronta dos brios ofendidos do Exército. Já no segundo ato do drama, em 1924, intervêm fatores novos para alimentar a revolta  –  “salvar das loucuras da politicagem profissional os últimos esteios da democracia agonizante”. Além do processo gradual de revelar a face de sentimentos que estavam vivos desde a primeira granada arremessada sobre o Catete, estruturam-se reivindicações, mais tarde apressadamente transcritas em programas. As oligarquias estaduais, a prepotência do presidente, as medidas opressivas contra a liberdade de associação e de imprensa, reduziram o regime republicano ao biombo do absolutismo, afirmado o sistema apenas na transitoriedade das funções públicas. Essa soma de oligarquias, dos municípios ao centro, não forma uma tirania, mas a contrafação do governo da maioria, em favor de poucos. A elite republicana, constituída de “adesistas interesseiros”, não passa de uma “grei restrita de filhos e contraparentes dos felizes magnatas que, a troco de audácias, de embustes, ou de subserviências –  lograram monopolizar a direção suprema do país...

“Que se poderia, logicamente, esperar da atuação de uma tal camarilha, como elemento diretor da mentalidade republicana de um povo? Naturalmente, o que aí está: – a exploração sistemática e impune, de trinta e tantos milhões de governadores, por um grupo reduzido de sibaritas sem escrúpulos”. Urgia, na opressão da fraude e da violência, evocar o povo, com seu poder e sua independência. Nesta nota desponta a crítica de Rui Barbosa, com acento plebeu alheio ao senador vitalício pela Bahia. O alvo era o povo  –  “esse polichinelo de nossa democracia  –  (que) só interfere nesse inventário político, pela porta escusa do suborno, com que o corrompem, ou pela razão indiscutível da força, com que o violentam, nas pantomimas eleitorais”. Mas, essa elite trai e mistifica não porque explore o povo, senão, principalmente, porque esquece seu dever principal, sua missão superior de orientá-lo, conduzi-lo e educá-lo. Função, esta, alheia ao liberalismo, mas que denuncia a premissa maior da mão que empunha o fuzil. Se há a obra pedagógica a realizar, o mestre-escola está à vista, na farda dos contestadores. O Exército será a vanguarda da nação – conteúdo vivo do art. 14 da Constituição de 1891. “Seria ilógico que o Exército, estipendiado pelo povo, apenas exercesse a função repressiva contra este, deixando-se consumarem-se impunimente as violências do poder contra a nação. ... Quando os governos mutilam a lei e desrespeitam a Constituição, compete à força armada  colocar-se ao lado destas, ainda que seja mister destruir, provisoriamente, o poder constituído.

“É uma leviandade afirmar que, em tal hipótese, cabe ao povo e não à força armada derrubar o governo que o tiraniza. A massa imbele da nação dificilmente poderá vencer, sozinha, a guarda pretoriana que defende déspotas”.  Na essência do movimento, pretendia-se que o povo, livre de senhores, escolhesse seus representantes, afastadas as oligarquias em todos os níveis. O voto secreto representa grandes esperanças aos revolucionários, embora cedo persuadidos que a nação, no interior, muda à sua mensagem, não queria libertar-se. Dadas as razões que deflagram as sedições, será falsa a impressão da ausência de sentido ideológico dos revolucionários, consoante se afirmou muitas vezes. Faltava-lhes um programa, não a ideologia, apesar do alheamento do elemento civil. Repeliam a aproximação proletária, que poderia tornar o movimento suspeito de esquerdismo, timbrando na insistência de seu caráter de renovação política, enveredando para o discreto nacionalismo, que depois ganhará o primeiro plano. O eco socialista, brando e fugaz, servia apenas para colorir os entusiasmos, sem contradizer o núcleo democrático liberal.

[...]

                                                               (Os donos do poder, 4ª ed., 1977)