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Discurso de posse

Muitas são as perspectivas, muitos são os caminhos, concomitantes ou sucessivos que iluminam a personalidade 1iterária e política de Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho - o dr. Barbosa para os amigos e admiradores que dele se aproximavam. Os múltiplos caminhos e as perspectivas se irradiam de uma coluna permanente, à qual voltaria sempre, quaisquer que fossem as digressões de sua longa, acidentada e muitas vezes inesperada trajetória. Durante noventa anos, desde os treze, adolescente e ginasiano, até os cento e três - no último dia de sua vida, o Jornal do Brasil publicava seu artigo dominical. A aventura dos treze anos, com a fundação de um jornal próprio, pomposamente chamado A Verdade, ainda que efêmera a folha, revela e prenuncia a vocação que bate à sua porta com imperioso e estridente chamado. Logo que começa a freqüentar a Faculdade de Direito, curso que concluiria com a láurea acadêmica, passou a colaborar para os grandes jornais do Recife, de São Paulo e Porto Alegre. Seus anos de aprendizado, nos quais experimentou as forças, como fazem os bons soldados - diz Severim de Farias - “que antes da batalha, se exercitam em pelejas e escaramuças fingidas, para depois se acharem adestrados nas verdadeiras”. Esse soldado começaria seu combate com as insígnias de marechal já inscritas, mas ainda não visíveis, em sua inquieta e vigorosa palavra. Esse homem longevo, saudável e sempre lúcido, não foi um estudioso voltado exclusivamente para os livros, longe do mundo e da vida. Praticou esportes, como jogador profissional de futebol, intrépido e legendário nadador das praias de Olinda. Suas longas e semanais conversas com João Saldanha, por ele levado ao Conselho Administrativo da Associação Brasileira de Imprensa, se desenvolviam como se fossem entre profissionais,

Recém saído da Faculdade de Direito, com o domínio do francês, inglês e italiano, preparou-se, com a dedicação de todas as horas, com o sacrifício da pobreza decente de uma casa que precisava de sua ajuda, para o concurso de direito internacional público, já aberto, na secular e tradicional Faculdade de Direito do Recife, herdeira da Faculdade de Olinda. Sua tese, já pronta, versando sobre os bens dos beligerantes, com a qualidade dos trabalhos que resistem ao tempo, não serviria ao fim visado. Jamais revelou a ninguém as circunstâncias e o nome do concorrente, para o qual se voltaram as atenções professorais, que consagravam um candidato e sumariamente excluiriam outro. Somente quarenta anos depois, graças ao seu admirador Anísio Teixeira, teria a sua pr6pria cátedra, desta vez dedicada história das doutrinas econômicas. Os estudos econômicos deram-lhe outra e mais profunda noção das grandes questões nacionais. Mas, ainda que nunca tivesse revelado como se deu a sua preterição na Faculdade de Direito, não é difícil saber o que houve. Uma verba testamentária, dispondo sobre o que era indisponível, um sobrenome que cativou os seus juizes, fechou-lhe as portas à mais legítima das ambições. Ele, sempre combativo e sempre pronto ao combate, não se resignou a esperar outra oportunidade, nem se resignou ao que parecia um decreto do destino. A fortuna, nos seus caprichos e infidelidades, deusa esquiva e carregada de surpresas, o abandonou. O lutador cingiria outra armadura para o próximo confronto. Decidiu dar adeus ao Recife, para nunca mais voltar a nele se fixar, salvo no curto espaço de seu curto e mutilado governo, muito mais tarde. E bem possível que a doce paz acadêmica tenha vislumbrado no jovem candidato o ar de insubordinação e desafio que o distinguiu durante toda a vida.

No Rio de Janeiro, onde chegou em 1921, o Jornal do Brasil, lhe abriu as portas, inicialmente na reportagem, elevando-o, pouco depois à editoria política. Este um vínculo, raro em nosso país, que dura noventa anos, sempre acolhido pelo jornal, ainda que contrarie a linha que este adota. Vivia o país, nesse tempo, um curso reacionário, ditado pelos três últimos presidentes antes de 30 - Epitácio, Bernardes e Washington Luís. Barbosa Lima, exemplar raro em sua geração, passou incólume entre os extremos que se geravam com a recepção da revolução soviética. Dentro de sua fortaleza liberal, saiu em defesa da liberdade de imprensa, duramente atacada pelos legionários da reação, movidos pelo medo da mudança do mundo e, em particular, de seu castelo de mandonismo e asfixia política, protegida pela política dos governadores, com o poder de eleger um congressista, tivesse ou não votos, bem como de negar acesso a outro, ainda que majoritário.

Arrancado de sua província, sentir-se-ia, ainda que propicia a carreira, profundamente magoado e ferido pela indesejada inflexão de seus planos de vida. Quisesse ou não, dai por diante seria um exilado, com o olhar que vê o tempo e o mundo de modo indireto, imantado ao futuro e cego ao presente. Na cidade da eterna dor, onde convivem os exilados e os condenados, um pai desesperado, embora com a estrada do futuro aberta diante de si, pergunta se o filho ainda vive, non fieri le occhi suoi la dolce lume. Mais adiante, o poeta tropeça com outro florentino, ansioso pelas notícias de sua gente, murado pela condição de exilado - noi veggiam, come quei c‘há mala luce le cose....... che ne son lontano. Vê as coisas que estão longe, no passado, mas sobretudo, com a claridade de escassa luz, o futuro. Esse lance, poético pela origem, condicionará a visão cultural de Barbosa Lima, que passa ao largo da fantasia ou da hipótese. Charles Renouvier, num livro de 1 876, Uchronie, recentemente reeditado, revela o código e a chave dessa incongruente dança do tempo. Nas asas da ucronia - o tempo livre do passado, do presente e do futuro - construirá as suas utopias, transformando a história numa obra de imaginação, com alicerce na esperança. Em três momentos, os momentos culminantes de seu itinerário intelectual, fixados num retrato não biográfico, encontrou Barbosa Lima o tempo, recriando o passado, deformando o presente e elevando, por obra do futuro, a mais significativa utopia do seu tempo e da nacionalidade. Os três momentos estão situados em montanha de luz - cada vez que delas nos aproximamos, mais distantes ficaremos do destino.

Quando se situa fora dos momentos significativos de sua imaginação, desenvolve digressões, que não significam evasivas, nem desvios de seu curso intelectual, mas atividades em que não dispensou o ceticismo, ou nas quais faltou a continuidade ou o empenho de toda uma vida. Seriam acidentes, que seu talento qualificou e engrandeceu, - ou, na verdade, um percurso que poderia ter evitado, sem fragmentar a personalidade. Estão na rubrica das digressões, a estação do poder, o diálogo com os mortos, audível no pórtico da cadeira número seis, que liberalmente me confiastes, e, finalmente, sempre com louvor, seu combate jurídico, incapaz de abalar as pressões de poderosos grupos estrangeiros, ramificados em todos os poderes e instituições do país.

Perdida e dilacerada sua identidade pernambucana, forçado ao exílio, embora vitorioso, criou, organizou e dilatou, com outro barro, o ducado de Próspero, que seria o refúgio mítico de sua mocidade e a saudade de sua velhice. Nunca mais conseguiria, daí por diante, encontrar a sua terra e a sua gente, senão pela imagem do espelho que estaria em seu lugar. A ilha de Próspero será uma utopia, sem levar em conta a mácu1a que a cobre, por força de certa teoria, que, murada numa fortaleza havida por inexpugnável, quis desqualificar todas as outras. É claro que a utopia está em lugar da realidade social - a furtiva realidade social, sempre buscada e sempre oculta. A utopia - conforme é assente - configura a incongruência com o estado real da sociedade. É necessário para que a utopia adquira fisionomia que transcenda a realidade, destruindo ou desfigurando o quadro que a reflete.

O ducado de Próspero tem fronteiras móveis e elásticas. Vai do São Francisco ao Maranhão, recriando a hegemonia pernambucana, que se fixou no século XVI. Onde está. a utopia nos seus três livros de história, dedicados à sua gente e à sua terra? Onde está a utopia em largas e elegantes narrações, fieis às fontes documentais, onde não se permitiu romancear os fatos ou dar curso à fantasia? Para que a conversão se manifeste - a que vai de Pernambuco às fronteiras da ilha de Próspero - basta procurar um perfil e reanimar traços apagados. Com finura e sem ostentação literária, inverteu a perspectiva da história consagrada. Nos relatos e nos estudos da história, ainda que o autor seja Oliveira Lima, situam-se as revoluções, as agressões à ordem constituída, como se fossem máculas, infiltrações de idéias estrangeiras, onde não fa1tará, no fim do século XVIII e começo do XIX, a presença do jacobino. Barbosa Lima leu de forma contrária o curso da história: nas entrelinhas de sua narração, o papel nobre está ocupado pelas revoluções e são elas que ditam o ritmo do passado. Num lance marcado, em alguns passos, pela sutileza, o passado se converte no futuro - completando-se a ucronia, que está na base da utopia. As revoluções são a história - o passado oposto a elas são a excepcionalidade, o perverso quotidiano que assombra o tempo presente. As revoluções se condensam no canto de Ariel - as duras repressões, particularmente a de 1824, expressam a voz mal articulada, violenta e feroz de Caliban. Na vindicação da hegemonia pernambucana, ao norte e ao sul, o território está em segundo plano. O ducado de Próspero se faz com homens que abriram um rumo novo ou um corajoso rumo na construção nacional. Nesse elenco, avulta Evandro Lins e Silva. As suas raízes pernambucanas se prendem na linhagem dos grandes intelectuais pernambucanos. Basta citar, entre sua gente e na sua família, a palavra de um jurista, João Barbalho, cujos comentários à Constituição de 91 tiveram a mesma valia do que o texto comentado. Teria sido seu precursor no Supremo Tribunal Federal, onde mais de um membro de sua família ocupou as cadeiras, nem sempre imunes ao poder desenfreado de abusivos governantes. Seu maior título não virá da consagração profanada da mais alta corte de justiça do país, mas da advocacia, cujos clientes, os dissidentes políticos, encontraram nele, longe de qualquer preocupação material, um baluarte em defesa da utopia de Próspero. Espera-se, para que o país melhor o respeite, a publicação de suas memoráveis defesas, esquecidas pela indesculpável modéstia do exemplar advogado, que sacrificou sua mocidade, o bem estar de sua família, com a compreensão de sua companheira única, em favor do país - o país que deve estar sempre de pé, apesar dos abalos que o sacodem.

O construtor de utopias nunca deixou de ser o jornalista Barbosa Lima, devotado à sua classe, ocupando nos anos vinte a presidência da Associação Brasileira de Imprensa, que seria, por vinte anos, a paixão de sua velhice combativa. Percorreu todos os degraus do jornalismo. Na reportagem, inventou a notícia - selecionou e garimpou os fatos, que são cegos, e lhes deu a expressão que cala qualquer dúvida possível. Ele não foi o jornalista que morre todos os dias, sem ultrapassar a fugacidade da notícia. Jornalista literário, com a qualificação de seus títulos, egresso da ficção, que abandonou para melhor se dedicar às questões nacionais, não se limitou ao quotidiano, nem à pressão da hora. Os estudos de Antonio Olinto e de Alceu Amoroso Lima, que merecem reedição conjunta, não se desenvolveram em outras reflexões, capazes de qualificar o jornalismo literário, presente em outros países. Há alguma coisa que caracteriza o que jornalístico do que é não jornalístico, alguma coisa indefinida, à espera de quem a caracterize. Por que os Dez Dias que Abalaram o Mundo é jornalismo e por que O mais Longo dos Dias, que descreve o desembarque na Normandia, não o é. O primeiro revelou uma realidade nova, ou uma versão nova de um movimento social já conhecido, enquanto o outro tardou em manifestar uma versão já conhecida. O major acontecimento, posto diante de Barbosa Lima jornalista, entregue ao seu dia-a-dia, será a revolução de 30. Como a viu? Haverá alguma distorção oblíqua, alguma sombra que não lhe permita vê-la, numa dimensão linear, ferido pela incapacidade de recriar o presente tempo, o tempo que está diante dos olhos, sem se perturbar com le cose che son lontano? Inesperadamente, para o homem que iria, mais tarde, atuar politicamente dentro de sua dinâmica, o movimento maior de seu tempo se traduziria numa sátira. A revolução de 30 - A verdade sobre a Revolução de outubro de 1930, publicado em 1933, viu na mudança de comando apenas um setor oligárquico que se desgarrou do eixo, para, unindo-se a outro dissidente, impor pelas armas um governo que seria novo na aparência, na verdade velho, tão velho como a República. 0 tom satírico, retratando, com finura e graça, o tentador mór, Antônio Carlos, o dito chefe civil da Revolução - o homem que pedia a revolução do alto, antes que o povo a fizesse. Getúlio Vargas, o caudilho cerebral, era o espírito do despistamento. Seria verdadeiramente surpreendente se o observador político atilado, não tivesse percebido a dinâmica revolucionária, que, desfigurando-a subjetivamente. O quadro subjetivo corresponde a um quadro social objetivamente existente: A revolução, na véspera de 32 - época que o jornalista fixou - não vivesse um impasse. A sátira, condenando duas cidades sem o predomínio de uma ou outra, realiza, dentro de si, refere Hegel, uma pauta dupla, incapaz de superação. Aludem os estudos hegelianos, desenvolvidos além do campo da estética, que a realidade, ao viver simultaneamente duas oposições inconciliáveis, gera monstruosidades sociais. Tenha-se em conta que a pauta dupla, produz, além da sátira, a utopia. Toda utopia literária uma sátira, mas nem toda sátira uma utopia.

Entre a sátira, em 1932, e a suprema utopia que. sua inteligência iria criar, Barbosa Lima esteve em muito lugares. Em nenhum momento, recolheu-se à sua biblioteca. como se a ação o entediasse. Ele vivia e respirava o universo político, a inquietude do jurista e advogado, o inconformismo de todas as formas de crítica - literária e social. O jornalista, apaixonado por sua profissão, ocupou. ainda não entrado em anos, a presidência da Associação Brasileira de Imprensa, que passaria, a partir de 1978, a ser a sua casa vitalícia. Nessa altura, continuava a ser o mais árduo combatente do nacionalismo brasileiro, deixando atrás de si a política e a advocacia. Coube-lhe o mérito único de reivindicar, na Procuradoria do Estado da então Guanabara, a reversão gratuita dos bens que a Light, prestes a findar o prazo da concessão, vendera, delapidara ou doara conhecidos construtores. Finda a concessão, o governo brasileiro indenizava a Light em duzentos mi1hões de dólares, cujo destino a revista Fortune revelou humoristicamente.. Um aventureiro comprou as ações da ex-concessionária, apropriando-se dos duzentos milhões de dólares em caixa, com menos de dois por cento do que se pagou.

Em 1978, eu presidente nacional da OAB, ele da ABI, unimos nosso esforços na direção da abertura do regime militar por meio de uma fresta na sua estrutura inabordável e monolítica. A resistência à ditadura compunha-se de um núcleo de sinceros e devotados lutadores, cercados por uma coligação de suspicácias. Havia uma casta atuante, composta de patrulheiros, que velavam pela nossa pureza democrática. Eles estavam certos à sombra dos combatentes, poderiam construir seus ninhos, à direita, numa árvore que dá acesso pela escada da esquerda. Eram as vocações de almocreves. Passada a emoção daqueles dias vencidas as angustias das incertezas, apagadas as mágoas da incompreensão, podemos dizer que fomos os happy few, que poderiam dizer, como os capitães de Henrique V, que estiveram na nossa Agincourt, a Ordem dos Advogados. Leguei Barbosa Lima aos meus sucessores que lhe testemunharam todas as homenagens maiores de nossa confraternidade. Chamaram-no para, ao lado do presidente da OAB, assinar a petição do impeachment. providência que se impunha à dignidade dos brasileiros, depois que Mino Carta, na chefia da redação da revista Isto É, apresentara a prova definitiva, concludente e irrefutável da corrupção que medrava no centro do poder.

Barbosa Lima, pelo espaço de trinta anos exerceu a política, identificando-se com as grandes causas nacionais a as de seu Pernambuco. Goethe, que sabia muito de poder numa conversa com Eckermam, observou que o poder é estéril. Na fábula bíblica das árvores, conta-se que as árvores, fartas de agressões e fartas da desordem, decidiram constituir um governo que lhes regesse o destino. Voltaram-se, encantadas com seu porte, ao cipreste, que lhes respondeu não poder abandonar sua função, a de velar pela paz dos cemitérios. Decidiram chamar a oliveira, que recusou o encargo, dizendo que estava ocupada na produção das azeitonas. Seguiram-se as recusas da videira e figueira, até que encontraram no espinheiro, que nada produz, o candidato ideal. Mas, tem acontecido que muitas oliveiras se deixaram seduzir pelo poder, ao preço da produção das suas azeitonas.

Aos quarenta anos de idade, Barbosa Lima foi eleito, por esta Casa, para ocupar a cadeira número seis. A cadeira começa, com um mito, o da infância feliz, no tempo da palmatória, e se encerra com uma utopia. O patrono, Casemiro de Abreu. ainda hoje vivo na simpatia popular, é um dos poetas que morreram jovens, em torno dos vinte anos, ao lado de Alvares de Azevedo e Castro Alves, piedosamente evocados por Ligia Fagundes Teles, como os que morrem cedo. O elenco deveria abranger também Raul Pompéia, que saiu voluntariamente da vida aos 32 anos. 0 país não tinha lugar para os poetas, para os gênios e para seus artistas. Que restava a essa geração, que se vivesse, seria alvo da chacota dos parvos, senão a morte, o refugio na undiscovered country? O fundador da cadeira, Teixeira de Melo, supôs ter encontrado a fórmula de ocu1tar sua condição de poeta - admirado por Machado de Assis - , enquanto exercia medicina em Campos. Se seus clientes suspeitassem que o médico escondia um poeta fugiriam dele, suspeitosos de serem assassinados. A figura que, na cadeira, o fascinou, ao ponto de lhe dedicar, mais tarde um livro , foi a de Artur Silveira da Mota, o Artur Jaceguai, nome que adotou depois de aposentar o baronato. Ele sentiu, filho do planalto paulista, o britânico chamado do mar, - run away to the sea - romanticamente, no leitor e tradutor de Byron, o homem que escolheu, num rapto consentido, a companheira de toda sua vida. Na passagem do Humaitá, não era ele o destinado a afrontar a fortaleza. Mas, para que o ataque não se frustrasse, desafiou os fogos da fortaleza, em feito indisciplinado e vitorioso. Jaceguai era um patriota, não um nacionalista, termos que Barbosa Lima nem sempre distingue, em seus numerosos escritos. As guerras holandesas defenderam o patriotismo, a revolução d 1817 tinha, em seu cerne, a nacionalidade. Ele amava sua pátria, à qual se devotou, sem se deixar confundir com os que dizem obedecer à pátria, esteja esta certa ou errada, seja justa ou injusta. Como a pátria não fala, nem sequer ao ouvido dos que a exploram, eles servem todos os ditadores, todos os corruptos, todos os opressores que se escondem, num gesto extremo de canalhice, debaixo de um nome supostamente sagrado. Esses patriotas, aprendizes de servos, seriam repudiados pelo General Eisenhower, que dizia não querê-los em seus exércitos, compostos de homens livres e de cidadãos responsáveis. O mais ardoroso de nossos patriotas, Afonso Celso, conseguiu organizar o patriotismo. levando-o ao ridículo, em Porque Me Ufano de Meu País, que o livro de Euclides da Cunha viria a abalar. Se nos afrontassem com a glória dos homens do mundo, deveríamos responder com as belezas do país, com grandeza de seu território, com o majestoso Amazonas, assim como outras veneráveis sandices. Que não falte uma palavra sobre Goulart de Andrade, alagoano, como o mestre da poesia e da prosa, que é Ledo Ivo. Goulart de Andrade sabia tudo sobre poesia e sobre prosa, devotado aprendiz da última grande geração boêmia. Poeta de um tempo de transição, não manteve, depois da morte, a extraordinária. nomeada que lhe devotava o Rio de Janeiro.

Liberto da lida política, que, em certos momentos lhe despertou o ceticismo, o ceticismo do chefe que manda mas sabe que não ele que manda, mas a função pública que momentaneamente representa. Marcos Vinícius Vilaça o surpreendeu num telegrama eleitoral, com todos os temperos de quem dá ordens e com a certeza da lealdade diante do poder. Liberto das atividades jurídicas e de suas decepções e liberto de todos os vínculos com o rei Creonte, o que lhe permitia auxiliar o combate de Antígona, reclamando a justiça social, sem a qual, diz Santo Agostinho, não há paz, partiu para a construção da nacionalidade, na mais pura chama que jamais ardeu na inteligência de um brasileiro. A avaliação do nacionalismo. vista desde 1968, data do livro que o despertou da hipnose de um falso país, será decepcionante. O nacionalismo nasceu no fim do século XIX e começo do sécu1o seguinte, no momento em que as classes e os grupos sociais de toda índole dissolvem as amarras que não permitiam se mover dentro da sociedade estagnada. Esta a hora dos nacionalistas, a hora que as nacionalidades emergem e se engrandecem. Dois foram os nacionalistas dessa primeira hora: Silvio Romero e Euclides da Cunha. Não será presunção desta Casa anotar que Machado de Assis foi a testemunha, que se esconderia na casca do observador, do nascimento da nacionalidade. Em 1858, acentuou que, feita. a independência política do país, ainda continuávamos alheios a nós mesmos, não existíamos culturalmente, reflexos sem critica das metrópoles. Mais tarde, reconheceu a existência de um certo instinto de nacionalismo - o que está longe de expressar a nacionalidade. Nossos proto-nacionalistas, Silvio Romero e Euclides da Cunha, identificariam, principalmente o primeiro, no bando de idéias novas que esvoaçou sobre o país, do norte para o sul, criou as bases para que a nacionalidade se condensasse e tomasse consciência de si mesmo. Identificou como essência da nacionalidade os cantos e contos populares. fugindo da cultura erudita, das imitações servis. Euclides da Cunha, num livro que abalou - e ainda hoje e abala - o país encontrou a nacionalidade fora do litoral, na cultura e na etnia do sertanejo. A manhã promissora durou pouco, mar não foi decepcionante. Não foi decepcionante porque os próprios portadores da boa nova vieram a público para dizer que o projeto nacionalista era, ao seu tempo, irrealizável. Numa noite solene, na Academia Brasileira de Letras, casa sempre havida como retirada das emoções públicas e alheia ao debate político, no dia 18 de dezembro de 1906 desmentiu sua nascente tradição de absenteísmo. Euclides da Cunha ingressava na Academia recebido por Silvio Romero. Na mesa, presidindo-a, Afonso Pena. Ao seu lado, sem demonstrar nenhuma emoção, estava Machado de Assis. Euclides da Cunha denunciou o parasitismo de nossa gente, deixando-se levar por coisas novas, bizarras e coloridas postas no mercado por outras nações. Fa1tava-nos tudo - faltava-nos a sociedade e faltava-nos o estado. O estado brasileiro reconstruiu-se pelas cimalhas, arriscando-se a ficar nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados. Em outras palavras: não tínhamos história, - éramos meros epígonos de uma história que se tornara inadequada ao nosso tempo, herdeiros de um tempo excêntrico. Silvio Romero bateu com mais energia: batia na tecla patrioteira do paraíso terreal, da minha terra tem palmeiras .... A reforma de carecia o país, frustrava-se ao reformar pelas cimalhas, isto é mudar e corrigir de cima para baixo, sempre longe do país. Silvio Romero provocou sério desconforto no Presidente da República ao desqualificar as reformas de seu antecessor, Rodrigues Alves, e ao atacar a elite palreira que ocupava o centro das decisões políticas. Culminou pelo reconhecimento de que nos faltava povo - no sentido de povoamento e de densidade política.

A carência de povo e o excesso de estado não impedem a emergência do nacionalismo, na verdade um nacionalismo de traçado peculiar, mas não desconhecido na história. Tratar-se-ia, para reproduzir uma imagem de Euclides da Cunha, de um nacionalismo com forma de anticlinal, termo cunhado pela presença de Antônio Conselheiro na sociedade artificial da república nascente. Correspondia ao surgimento inesperado de camadas rochosas antigas removendo as mais recentes. Sempre que nacionalismos são impostos de cima para baixo. Sem corresponder à sua exigência social, provocam uma anticlinal, trazendo à tona categorias sociais desprezadas, sequiosas de vingança, encarnadas em líderes anacrônicos. A nossa imperfeita nacionalidade nos surpreendeu com algumas tempestuosas anticlinais. A conjunção das deficiências indicadas por Silvio Romero e Euclides da Cunha impediram que nosso nacionalismo tivesse uma linha contínua, cortado por ondas desencontradas e erráticas. Dentro de seus ímpetos, muitas vezes incoerentes, formaram base ideológica de empreendimentos vitais para desenvolvimento, como a siderurgia, o petróleo, a eletricidade, empreendimentos que contariam com a liderança ou a condução do Estado, em vista da escassez recursos privados. A experiência demonstrou que essa via, ainda que onerosa, é a que menos compromete os usuários ou consumidores, ancorando-os a preços internos. O que se vê, na atualidade, que a globalização, há algum tempo prestigiada, hoje desmascarada, aliena a economia, desviando-a do seu núcleo renovador. Por outro lado, o nacionalismo imperfeitamente realizado apela para substitutos imaginários de sua completude. Os cavaleiros da Távola Redonda saem à demanda do santo graal à procura do santuário onde está o cálice da última ceia, consagrado por sangue e vinho. Os Lancelotes procuraram definir a identidade nacional - para Silvio Romero oculta nos cantos e contos populares. Euclides da Cunha a viu longe do litoral, na imagem do sertanejo. Sérgio Buarque de Holanda a encontrou no homem cordial, Barbosa Lima na língua nacional. Lancelote, crivado de pecados, não seria digno da visão sagrada, sem que Percival ou sir Galaad se habilitassem para a conquista. Policarpo Quaresma, cujo fuzilamento seria a maior tragédia literária da república nascente, percorreu também seu caminho, na direção da sátira. Queria que, para afirmar a nacionalidade, o país adotasse a língua tupi-guarani.

Todas as linhas traçadas para construir o nacionalismo brasileiro não conseguiram configurar um desenho válido. O nacionalismo de ondas passageiras e fragmentos não teve capacidade para enfrentar os ataque que o afrontaram, estruturados sobre uma ideologia liberal, desnacionalizada e aqui incorporada ao sistema político e econômico. Barbosa Lima, depois de uma longa jornada de trinta anos de nacionalismo sem espinha dorsal, deliberou criar sua utopia - fonte de futura ideologia. Resgatou Alberto Torres do túmulo conservador onde jazia, para retornar seu reformismo radical. Reconhecia que somos um país sem direção política e sem orientação social econômica. Embora Augusto Comte nunca tenha se detido no estudo do nacionalismo, Barbosa Lima adotou as bases de sua crítica, particularmente no que diz respeito à organização e reorganização da sociedade. Não aceitaria, está claro, o agrarismo de seu modelo - que, como ele, não se preocupam em distinguir o nacionalismo do patriotismo: o nacionalismo seria um dever do patriotismo. Denuncia os obstáculos, desmistificando idéias e figuras consagradas. Retira da base da nacionalidade, o cândido e bom Visconde de Cairú, que ao ditar um rumo para a economia brasileira. baseou-se nos Estados Unidos - numa corrente que ele não sabia haver sido vencida. Pode-se dizer que nosso. pensamento econômico repousa sobre a ignorância. supondo que Jefferson e não Hamilton teria traçado o rumo da economia. D. João VI, que não lera Cairú, tentou dotar o país com uma siderurgia: o malogro técnico custou ao Brasil mais de cem anos perdidos. A ortodoxia - a inflexível cartilha que privilegiava a hegemonia exterior - deixou perecer as indústrias de Mauá. Barbosa Lima queria que, em lugar de Cairú, estivesse Alexander Hamilton, que, nos Estados Unidos, com seus subsídios e empréstimos de banco para isso criado, gerou a indústria e criou o empresário. Num livro dedicado ao Japão, editado em 1973, demonstrou que o capital estrangeiro não capaz de gerar os meios necessários ao desenvolvimento. Sem xenofobia, sem chauvinismo, sem patriotadas e sem ufanismo, criaria um novo nacionalismo.

Nunca, em nenhum tempo, se escreveu tanto com tanta profundidade sobre o nacionalismo do que nos últimos trinta anos. De Anthony Smith a Hroch, de Gellner a Benedict Anderson, e, sobretudo de Liah Greenfeld, que demonstrou não haver nenhum país entrado na modernidade senão pelo caminho do nacionalismo, à monumental Enciclopédia de Nacionalismo. Essa avalanche completa-se com os estudos que mostram as incongruências e as insuficiências da globalização, ora em maré vazante. O fundamentalismo de mercado, cercado de prestígio em seus primeiros momentos, não passa, na visão da atualidade, de uma falácia.

Quem era esse homem que viveu mais do que um século, cercado pelo respeito e pela admiração de seus contemporâneos? Foi, sem dúvida, um intelectual situado acima das classes e das ideologias. Mas, foi muito mais: foi o mensageiro de uma terra incógnita, onde estaria banida miséria e a injustiça. Sua mensagem falava à imaginação dos homens e despertava a esperança das gerações mais novas. A utopia que construiu move a história e exerce fascínio hipnótico sobre os que a conseguem ver. Mas a utopia que move a história não é a história: a utopia não é realizável porque, se realizada, funda-se sobre o despotismo. O homem que foi capaz de desenhar uma época e construir os fundamentos de um país chamou-se - quando virá outro? -Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho.