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Raimundo Magalhães Júnior

O MOMENTO LITERÁRIO

A Medeiros e Albuquerque, que estava sempre viajando para o exterior, deveu João do Rio, em fins de 1904, a sugestão que o levou a fazer a série de reportagens de O Momento Literário. De regresso de uma de suas então já numerosas viagens, Medeiros e Albuquerque - nessa época membro da bancada pernambucana no Congresso Nacional - contou-lhe o que era feito na Europa, onde a reportagem dos jornais literários promovia entrevistas e mais entrevistas com os escritores importantes, os quais davam a conhecer ao grande público suas opiniões sobre a literatura contemporânea, sobre suas próprias obras e as influências que tinham atuado em sua formação intelectual. Falou a João do Rio de livros que adquirira na Europa - um em inglês, Books which influenced me, outro em italiano, I cento migliori libri italiani, a fim de mostrar como na Inglaterra e na Itália se procurava guiar o público para as leituras fundamentais. O jovem repórter entusiasmou-se com a idéia e lançou-se à tarefa que Medeiros e Albuquerque, como deputado federal e membro da Academia Brasileira de Letras, considerava, decerto, abaixo de seu talento e da posição que conquistara. Assim nasceria a matéria de um livro, O Momento Literário, que o autor, reconhecido, dedicou a Medeiros e Albuquerque. É curioso que, tendo sido, praticamente, como autor de tal iniciativa, o animador de um dos lances mais importantes da carreira de João do Rio, não lhe dedicasse Medeiros e Albuquerque um só parágrafo no seu livro de memórias Quando eu era vivo..., onde há extenso e interessante capítulo intitulado "Escritores com quem convivi".

João do Rio, no prefácio do volume em que reuniu tais reportagens, deixa patente que o próprio Medeiros e Albuquerque redigiu o teor das perguntas de tal inquérito literário. Não lhe cita então o nome; mas fala num "meu venerável amigo" que, "pegando a sua pena venerável, lançou no papel as seguintes perguntas do questionário, enquanto eu, humilde, ia lembrando nomes e endereços". O fato de ter aludido esse "venerável amigo" aos livros estrangeiros acima citados e constarem os mesmos títulos da resposta de Medeiros e Albuquerque, bem como o teor da dedicatória do livro O Momento Literário - "Permita V. que eu dedique ao jornalista raro, ao talento de escol e ao amigo bondoso este trabalho, que tanto lhe deve em conselhos e simpatia" - revelam ter sido o deputado pernambucano o verdadeiro promotor do inquérito. As perguntas redigidas por Medeiros e Albuquerque foram estas:

1) Para sua formação literária quais os autores que mais contribuíram? 2) Das suas obras qual a que prefere? Especificando mais ainda: quais, dentre seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere? 3) Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporânea, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.), ou há luta entre antigas e modernas? Neste último caso quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar? 4) O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tendem a criar literaturas à parte? 5) O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?

Revela João do Rio que, terminada a redação da quarta pergunta, seu animador exultava: "- Vamos afinal ver o que somos! bradava ele, rindo da minha fisionomia agitada. De repente, porém, parou: - Falta alguma coisa ao questionário, falta a pergunta capital, em torno da qual toda a literatura gira, falta a pergunta isoladora das ironias diretas!" Fora então que escrevera a quinta pergunta. João do Rio fecha o prefácio com estas linhas: "No dia seguinte, logo pela manhã, mandava pelo correio mais de cem cartas. Tinha mergulhado de todo na literatura..." As cartas circulares, decerto impressas na tipografia da própria Gazeta de Notícias, monotonizariam o resultado, principalmente por terem muitos respondido por escrito, se não tivessem algumas personalidades sido procuradas pelo repórter para entrevistas diretas, apresentando, assim, a contribuição das impressões pessoais e, se por outro lado, não tivessem ensejado uma curiosa série de exibicionismos, que transformou o inquérito numa pequena feira de vaidades. Os mais cabotinos foram, aliás, as figuras menos expressivas. João do Rio irritou-se, aliás, com o retraimento de alguns dos grandes nomes das letras brasileiras, que não deram a menor importância à iniciativa que Medeiros e Albuquerque lhe transferira.

Um dos capítulos finais do livro em que reuniu as reportagens, seria dedicado aos "que não responderam". E o principal deles foi Machado de Assis, presidente da Academia Brasileira de Letras, que em meio século de atividade literária nunca dera uma entrevista a quem quer que fosse e não quis abrir exceção para João do Rio. Este dizia ter encontrado objeções por parte de alguns nomes, "que deviam aqui estar, mas que não estão, porque a isso se opuseram uma sensibilidade grande, a vaidade doentia, a noção de responsabilidades graves e, principalmente, talvez, a balbúrdia das idéias". No primeiro caso colocava o autor de Dom Casmurro:

"A sensibilidade grande‚ é a do ilustre mestre Machado de Assis. Quando fui pessoalmente levar-lhe o inquérito, o admirável escritor recebeu-me com um acesso de gentilezas, que nele escondem sempre uma pequena perturbação.

- Um inquérito? Pois não: às suas ordens, com todo o gosto.

Passaram-se os dias. Voltei à carga.

- Francamente, disse-me o autor do Brás Cubas, o assunto é grave, é muito grave. Mas eu respondo, respondo quando tiver ânimo para escrever.

Logo os amigos e admiradores do mestre disseram-me:

- Perdes o tempo, o Machado não responde..."

E na verdade Machado de Assis não respondeu. A esfinge literária, que ele foi, preferia ser decifrada, a decifrar-se, por si mesma. Mas João do Rio tinha certo brio, como repórter, e não costumava aceitar evasivas como resposta. Ele conta:

"Resolvi então cultivar a relação preciosa em bocados de palestra ouvidos nos balcões da Garnier, por onde todos os dias passa o glorioso escritor. Soube assim que o Brás Cubas foi ditado, durante uma moléstia dos olhos de Machado, a sua cara esposa; que o humorista incomparável de Teoria do Medalhão tem uma vida de uma regularidade cronométrica, que as suas noites passa-as a tentar o sono...

Espírito de tamanho fulgor tem, entretanto, a nevrose de se incomodar e sofrer com os pequenos nadas da existência. Se por esquecimento deixa de cumprimentar um homem, perde-se em conjeturas. Que irá pensar o homem. Que dirá dele?"

Conta, em seguida, uma anedota errada:

"Nesse período, uma vez o grande mestre chegou à livraria nervosíssimo. Fora à secretaria1 um cavalheiro pedir-lhe qualquer coisa. Não o satisfizera e estava incomodado com isso, quando passou o contínuo com a bandeja do café. Aceita uma xícara?

- Se me fizer companhia!

- Ora eu não tomo café; mas já tinha recusado ao homem uma coisa e achei que seria demais não o acompanhar. Tomei a xícara e estou com dores de cabeça..."

Artur Azevedo2 contou a versão certa desse caso, nas colunas de O Século. Machado, ao contrário, era inveterado bebedor de café. A tal ponto que Mário de Alencar, numa carta, lhe aconselhava moderação. Quando, na repartição ministerial, fora servido o cafezinho habitual da tarde, horas antes de encerrar-se o expediente, o tal homem dissera a Machado que "o café é um veneno" e, por isso, lhe pedia que se abstivesse de ingeri-lo. Machado, que lhe tinha recusado outros pedidos, atendeu a esse, por mera cortesia, e lá se fora, com dor de cabeça, para a Livraria Garnier, em conseqüência da interrupção de um velho hábito... João do Rio continua:

"Do inquérito, cheguei a saber que Machado de Assis tem como livros de cabeceira o Hamlet e o Prometeu, que acha as predileções passageiras como o próprio homem, e respeita a mocidade olhando-lhe as extravagâncias com um pasmo sincero. Mas, por fim, o mestre incontestável percebeu que eu o acompanhava para lhe arrancar frases e tornou seco um pedaço de intimidade nascente entre o meu louvor e a sua bonomia."

Tampouco deram resposta ao inquérito Graça Aranha, Artur Azevedo, Alberto de Oliveira, Aluísio Azevedo, José Veríssimo e outros. Aluísio Azevedo, que se encontrava em Cardiff como cônsul, desculpou-se numa carta: "Tenho diante de mim uma torre de papéis a despachar! O cônsul inibe o escritor de responder!" Mas quem irritou particularmente o repórter literário foi José Veríssimo, um dos donos da crítica literária no momento. Em relação a este, João do Rio foi um tanto desabrido:

"José Veríssimo, o conhecido escritor, não gostou do inquérito, e numa roda chegou mesmo a dizer que era esse um processo de fazer livros à custa dos outros.

Tamanha amabilidade impediu-me de insistir, e obrigou-me a pedir a Deus que a produção da literatura nacional aumente. Só assim o Sr. José Veríssimo não insistirá na pesca na Amazônia, para continuar a série de Escritos e escritores."

Foi, porém, mais feliz com outros membros da Academia Brasileira de Letras, a começar pelo grande rival de José Veríssimo, Sílvio Romero, que então se encontrava com Campanha, trabalhando numa recompilação de seus escritos para incorporá-los, de forma sistematizada, à nova edição de sua História da literatura brasileira. João do Rio eliminou, de seu livro, todas as datas, como se não quisesse desatualizá-lo ou tornar evidente o largo tempo decorrido entre a inserção das reportagens, no primeiro semestre de 1905, na Gazeta de Notícias, e a edição lançada anos depois pela Casa Garnier, aliás sem a indicação do ano, mas só contratada a 21 de junho de 1907. Referindo-se a Sílvio Romero, diz João do Rio:

"Dez dias depois de mandar o meu questionário para a Campanha, onde o mestre refundia toda a sua obra, recebi uma carta telegráfica que se pode resumir em duas frases. "É difícil. Vou ver se faço".

Passaram-se mais duas semanas e outra carta surgiu:

‘Tanto trabalho fez-me neurastênico. Não posso responder nestes trinta dias’."

João do Rio afirma que começara a desanimar, mas não esperara muito:

"Ainda não decorrera metade do tempo marcado para o repouso do incansável espírito, recebi com a resposta este simples bilhete: ‘Não pude esperar. Lá vai a coisa. Se não servir, rasgue’."

É uma das respostas mais curiosas obtidas por João do Rio, tanto pelo que contém de autobiográfico, como pelo tom de sinceridade. Pode-se apanhar, aqui e ali, em frases soltas, matéria para compor o esboço de um retrato literário e psicológico de tão singular e turbulenta personalidade, cheia de exageradas paixões e de aversões igualmente intensas, umas e outras perturbando, não raro, sua capacidade de julgamento. Por exemplo:

"Conheci, sem esforço e para meu mal, que, se não sou ao pé da letra um cientista, não me cabe também a denominação de literato...

‘Escrevi, é certo, algumas poesias, entre os dezoito e vinte e cinco anos, que andam aí em dois volumes. Mas foi isso. Não tenho romances, contos, novelas, dramas, comédias, tragédias, folhetins, crônicas; fantasias...’

‘Não tive nenhumas precocidades literárias, científicas ou outras quaisquer. Quando escrevi a primeira poesia e o primeiro artigo de crítica, já tinha dezoito anos e meio bem puxados e já andava matriculado na Faculdade do Recife’.

‘Como caráter e temperamento, sou hoje o que era aos cinco anos de idade.’

‘Não devo ocultar certa ação de dois livros que foram, nos últimos tempos de escola primária, a base do ensino do meu derradeiro mestre de primeiras letras. Um -o Epítome da História do Brasil, de J. P. Xavier Pinheiro, por causa da descrição de nossa terra, de Rocha Pita, que ocorre logo nas primeiras páginas: "O Brasil, vastíssima região, felicíssimo terreno, em cuja superfície tudo são frutos..."

Outro, os Lusíadas, por muitos trechos que me encantavam.

O Brasil da descrição de Pita ficou sendo o meu Brasil de fantasia e sentimento; a poesia de Camões ainda hoje é uma das mais elevadas manifestações da arte no meu ver e sentir e, com seu ardente amor da pátria, fortaleceu o meu nativismo.

Apesar das inúmeras palmatoadas que apanhei na leitura e análise dos dois livros, nunca perdi a simpatia por Luís de Camões e pelo, mais tarde, tradutor de Dante’3."

Depois de falar sobre os seus professores de humanidades no Rio de Janeiro, onde estudara de 1863 a 1867 - padres Gustavo Gomes dos Santos e Patrício Moniz, Joaquim Veríssimo da Silva, Francisco Primo de Sousa Aguiar e o Barão de Tautphoeus - Sílvio Romero se referia longamente a Tobias Barreto, seu mestre na Faculdade de Direito de Recife. E dizia:

"Deixei para o fim a influência em mim exercida por Tobias Barreto, para ter o prazer de destacá-la com mais força.

Não recebi dele propriamente idéias, aprendíamos, por assim dizer, em comum.

Dele aproveitou-me intensamente, e nunca fiz disso mistério, o entusiasmo de combater, o calor da refrega, o ardor da luta, o espírito de reação, a paixão das letras, o amor pela vida do pensamento, pelo espetáculo das idéias.

E, assim, penso, meu caro João do Rio, ter respondido ao seu primeiro quesito.

Ao segundo, pondo de parte uma fingida modéstia que nunca tive, e sem perder a cabeça em julgá-los mui grande coisa, declaro que, se se pode assim falar, de meus trabalhos prefiro todos, porque cada um deles visou um fim e teve função especial. Me gustan todos...

Desculpe a rude franqueza de nortista."

Sobre o momento literário, entendia Sílvio Romero que não havia decadência, mas uma simples parada. Além dele, João do Rio ouviu quatorze outros membros da Academia Brasileira Letras: Olavo Bilac, João Ribeiro, Filinto de Almeida, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque, Afonso Celso, Silva Ramos, Garcia Redondo, Guimarães Passos, Rodrigo Octavio, Inglês de Sousa, Raimundo Correia. Bilac foi procurado pessoalmente, às oito horas da manhã, na sua casa, cujo endereço o repórter se absteve de mencionar, decerto para evitar o assédio de importunos. Descreveu a casa com tais requintes - cortinas cor de leite e sanefas de veludo cor de mosto, colchas de seda cor d’oiro, antiga tapeçaria francesa, telas assinadas por grandes nomes, kakemonos do Japão, vastos divãs turcos, jarras de porcelana e bibelots, numa exibição de fausto e conforto tão ostensiva, que o poeta logo reclamaria; " - Como você foi inventar todo aquele luxo!?"4 Coelho Neto, também procurado em pessoa, em sua casa, no momento escrevia uma peça para a companhia Lucinda Simões e Cristiano de Sousa. Confessou-se autor de obras fesceninas e afirmou ter escrito de improviso, como folhetim, "sem psicologias" o romance O Rajá de Pendjab. Era um "trapista do trabalho, a bête de somme dos franceses", mourejando, por gosto, "como os servos da gleba", porque "o artista não é o zoilo das confeitarias à cata de jantar..." João do Rio, querendo agradar ao entrevistado, diz: "Coelho Neto é no Brasil o que Rudyard Kipling é na Inglaterra - o homem que joga com maior número de vocábulos. Alguém já lhe calculou o léxico em vinte mil palavras." Como Sílvio Romero, Coelho Neto, que já publicara cinqüenta volumes, declara que "a todos prezo".

Dessas entrevistas com acadêmicos, a que revela maior pobreza mental é a de Guimarães Passos, autor dos Versos de um simples, das Horas mortas e, por fim, de um Dicionário de rimas, ampliado por Olavo Bilac e, aliás, não mencionado por João do Rio. O poeta boêmio promete pensar sobre o inquérito, acha "muito difícil" dar-lhe resposta, mas acaba por confessar que leu, ainda na escola, o satírico português Nicolau Tolentino. Lera, depois, Camões e Bocage e, finalmente, começara a estudar "o grande padre Antônio Vieira". Chegara a saber-lhe sermões inteiros de cor. Tinha quatro volumes publicados, com críticas elogiosas e prefácios célebres, de Araripe Júnior. De sua obra, gostava da metade, de que o público não gosta". Quanto ao momento literário, era um período absolutamente estacionário:

"Não há lutas de escolas, não há mesmo escolas novas, poesia de ação e outras histórias. Ainda estamos com os que os traquinas de café chamam os velhos - Aluísio Azevedo no romance, Bilac e Alberto de Oliveira no verso. Literatura nos Estados? Uma blague. Não é possível. O jornalismo? Péssimo para os escritores. O jornalismo é o balcão. Não pode haver arte onde há troços; não pode haver arte onde o trabalho é dispersivo."

João do Rio varria a testada de seu matutino: "E, abrindo os braços, Sebastião de Guimarães Passos conclui uma terrível catilinária contra o jornal. Ai de nós!" O poeta, conhecido então como o Passos-Miséria, era um dos náufragos da velha imprensa precária e boêmia que fizera a abolição e a República. Não tardaria muito a morrer tuberculoso, mas teria o requinte de ir morrer em Paris. E o seu elogio acadêmico seria feito pelo seu jovem entrevistador de O Momento Literário.

Algumas figuras novas, que o grande repórter arrolou, perderam de todo o significado para o leitor dos nossos dias. É o caso de um Curvelo de Mendonça, autor do "justamente esquecido romance Regeneração" (ele mesmo diz isso ao responder a João do Rio, numa carta tão prolixa quando enfadonha). É o caso de um maníaco do ocultismo, Magnus Sondhal, que já figurara em As religiões no Rio; de um Pedro do Couto, de um Elísio de Carvalho, de um Fábio Luz, que nunca ultrapassaram as fronteiras da mediocridade. João do Rio entrevistou ainda outros autores, que chegariam, um dia, a pertencer à Academia Brasileira de Letras, aliás atacada, com certa veemência, por entrevistados como Frota Pessoa e, mais ainda, por Félix Pacheco. Este, que se reconciliara com João do Rio, então um moço extrovertido, bem longe da figura conselheiral que dirigia o Jornal do Commercio, foi deputado, senador e ministro das Relações Exteriores. Em alguns pontos da entrevista, ele zomba de si mesmo e dos antigos ataques de João do Rio. Diz que estreara nas letras com o livro de versos Chicotadas "um pouco do gênero das Vergastas, do meu cordial inimigo, o Dr. Lúcio de Mendonça, que aliás nunca tive a fortuna de ler". E continuava:

"Fiz depois O publicista da Regência, trabalho de jornal, com dia certo para ser publicado. Releio às vezes o volume e, palavra de honra!, não desisto de tirar-lhe algumas infantilidades, retocá-lo, ampliá-lo e fazer dele uma obra, quando mais não seja, em homenagem aos reparos e à sarabanda tremendíssima de um certo jornalista meu amigo, que viera das mesas do Café Paris e irrompera desabusado pela Cidade do Rio, numa fulgurante promessa de altos vôos..."

Havia também uma alusão ao livro de versos igualmente atacado por Paulo Barreto:

"Em 1901 publiquei Via crucis, que não é positivamente uma obra. O meu romantismo ficara na coleção do Debate, sepultado juntamente com um amor que era feito de mel rosado e borboletas. A crítica aplaudiu o volume, mas, em meio desse coro de bênçãos, houve um berro que me desconcertou um pouco. Com uma ingenuidade de Calino meditei na razão do necrológio e vi que o homem não deixava de ter razão; o contrapeso do assobio é necessário para que as palmas não embriaguem...

O fato é que a Via crucis não era sem falha, e tanto assim que depois de publicada, ainda emendei muita coisa, como terá ocasião de ver na edição definitiva."

Eram satisfações dadas, de público, ao antigo adversário. Félix Pacheco chamava a Academia Brasileira de Letras "a dos alhos com bugalhos." Zombava de Medeiros e Albuquerque, então diretor da Instrução Pública, dizendo que "ele faria obra de caridade se olhasse um pouco para essa pobrezita. Porque com o Zé Veríssimo, positivamente, a coisa não vai lá das pernas! O homem é dos tais que não enxergam uma polegada adiante do nariz." Tinha frases que se ajustavam tanto ao Paulo Barreto da Cidade do Rio, como a ele próprio:

"No Rio, as coisas são assim. Quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar a entrada. Fora disso, o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil - elemento seguro e infalível para a subida fácil."

Conclusão que não deixa de ser um tanto contraditória. Mas a petulância de Félix Pacheco chegava ao cúmulo quando, depois de se dizer leitor de Fagundes Varela, seu poeta predileto em criança; de Lamartine, Hugo, Richepin, Luís Delfino, Baudelaire, Rimbaud, Regnier, Quental, Francisca Júlia, Cruz e Sousa e Carlos Dias Fernandes, acrescentava:

"Para desencargo de consciência devo acrescentar que a despeito de minha boa vontade, ainda não consegui ler nem Gonçalves Dias nem Machado de Assis..."

Ataque ainda mais forte à Academia foi o do jovem crítico Frota Pessoa, que dizia tratar-se de:

"um mito evocativo da Academia dos Seletos, ao qual o Sr. Seabra5 acaba de insuflar um pouco de realidade, fornecendo-lhe aposento, luz e criado, à custa da nação, para que, ante os seus pares atônitos, o Sr. Lúcio de Mendonça reviva e perpetue a imortal querela com o Sr. G. Redondo sobre a nacionalidade de Gonçalves Crespo. Mas a própria Academia de Letras, considere o meu douto amigo, nunca passou - tal a melancolia destes tempos - de uma sociedade funerária, com o exclusivo escopo de prantear os defuntos imortais e de receber novos imortais candidatos à vida terrena. Nela se entra pura e simplesmente para adquirir direito a uma morte carpida entre frases retumbantes e descompassados encômios. Nunca, jamais, nenhum imortal, ali penetrante, fez, no seu caráter de imortal, outra coisa que não partir para a bem-aventurança. E como o meu arguto amigo, com a sua incomparável perspicácia, deve ter ponderado, de si para si, isto é macabro."

Outros dos entrevistados são Afrânio Peixoto (ainda usando o nome de Júlio Afrânio), Laudelino Freire, Luís Edmundo, Nestor Victor, Osório Duque-Estrada, Mário Pederneiras, Rocha Pombo, Sousa Bandeira, Alberto Ramos, Gustavo Santiago, o padre José Severiano de Resende (que logo deixaria a batina) e o obscuro Augusto Franco. Convidado, também deixaria de responder Emílio de Meneses. Mas João do Rio não explica porque muitos outros nomes em evidência foram omitidos: Vicente de Carvalho, Euclides da Cunha, Valdomiro Silveira, Luís Murat, Afonso Arinos, Capistrano de Abreu, Rui Barbosa, Lúcio e Salvador de Mendonça, Oliveira Lima, Carlos de Laet, Alberto Torres, Alcindo Guanabara, Tobias Monteiro, etc. Em alguns casos, talvez tivesse havido impugnações de Medeiros e Albuquerque, ou do próprio João do Rio. De qualquer forma, embora com muitas lacunas, o livro O momento literário, que resultou desse inquérito, ficaria como um documento muito mais expressivo do ambiente intelectual brasileiro na primeira década deste século e da mentalidade nele dominante. Sua divulgação em volume teria, entretanto, que esperar mais quatro anos.

Pouco depois da publicação dessas reportagens, Paulo Barreto, sequioso de notoriedade, julgou-se em condições de pertencer à Academia. A 27 de dezembro de 1905, morreu Pedro Rabelo. Era o nono, dentre os fundadores daquela instituição, a desaparecer. E Paulo resolveu candidatar-se à vaga. Tinha, então, vinte e quatro anos. E era autor de um só livro. Mas a Academia tivera entre os fundadores um moço de apenas vinte e cinco: Carlos Magalhães de Azeredo, também autor de um único livro: Procelárias. E Graça Aranha figurara entre os quarenta primeiros imortais com o romance Canaã ainda inédito.6 Desejoso de afirmar-se e certo de que fizera sólidas amizades entre os acadêmicos, ao entrevistar quatorze deles no recente inquérito literário, enviou a carta formal de inscrição e, em seguida, dirigiu-se particularmente a Machado de Assis:

"Meu ilustre Mestre. - Na carta dirigida ao Presidente da Academia Brasileira de Letras, dei parte do meu ousado desejo de pertencer a tão ilustre corporação. É um desejo excessivo, é uma pretensão exagerada. E, por isso, talvez, sinto um invencível acanhamento em solicitar o seu voto. Há votos que são consagrações e que orgulham por toda a vida... Não chego a pedir, mostro apenas a quanto se atreve a ambição teimosa... Que o Mestre venerando perdoe ao mais humilde de seus admiradores - Paulo Barreto.7

Inscreveu-se, na mesma vaga, o velho advogado e antigo deputado geral do Império Heráclito Graça, estudioso da língua e, além do mais, tio de Graça Aranha. Diz-se que, pouco antes do pleito, D. Florência Coelho Barreto surgira na Livraria Garnier e perguntara a Machado de Assis o que pensava de seu filho. E Machado teria respondido, com uma ponta de malícia:. "Oh, mi-minha senhora! Mas o seu fi-filho é o meu mestre..." Com a proximidade da eleição, João do Rio, extremamente nervoso, seguiu para Poços de Caldas e dessa estação de águas mandou uma série de crônicas para o seu jornal. Mas, antes de partir, escreveu de novo ao Presidente da Academia:

"Sr. Machado de Assis - Como o meu estado de moléstia força-me a deixar o Rio e a eleição da Academia deve ser realizada esta semana, tomo a liberdade de lhe pedir guardar estes três votos para juntar aos outros que talvez no dia da eleição me venham a caber por sorte. Os votos são dos meus ilustres confrades os acadêmicos Drs. Clóvis Beviláqua, Augusto de Lima e Garcia Redondo. Agradecendo antecipadamente a sua boa vontade, seu admirador, venerador - Paulo Barreto".

O jovem candidato não se enganara em suas previsões. Na eleição, realizada a 30 de julho de 1906, realmente teve outros votos, elevando-se o total a oito. A vitória foi do antigo parlamentar e jurista Heráclito Graça, autor do livro intitulado Fatos da Linguagem. Ao jovem de vinte e cinco anos "os imortais" preferiram o medalhão de sessenta e nove anos. Foi, aliás, como se ninguém tivesse sido eleito e a cadeira permanecesse vaga. Heráclito Graça tomou posse por uma simples carta, eximindo-se até mesmo de fazer o elogio de seu antecessor. E nunca deu um pio nas sessões acadêmicas, até morrer, em 1914, aos setenta e sete anos. Sua única contribuição foi um silêncio de oito anos... É provável que tenham figurado, entre os votantes de João do Rio, alguns dos que ele entrevistara e que com ele conviviam mais intimamente nas redações dos jornais: Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto, Guimarães Passos, etc. Heráclito Graça, eleito com dezessete votos, tivera uma maioria de apenas nove sufrágios. E Paulo Barreto, ainda que derrotado, ficou bastante animado com a votação obtida.

1. Entenda-se: Secretaria de Estado da Viação e Obras Públicas, onde Machado de Assis era então o diretor-geral de Contabilidade. A versão correta;

2. De Artur Azevedo, companheiro de repartição de Machado saiu em O Século a 7 de outubro de 1908 e foi por nós transcrita em Machado de Assis, Funcionário Público (2a edição).

3. J. P. Xavier Pinheiro foi autor de uma tradução integral da Divina Comédia.

4. Ramo de Loiro, página 176.

5. O Ministro do Interior, José Joaquirm Seabra, mandara alojar a Academia num prédio próprio da União, além de lhe conceder franquia postal.

6. O famoso romance de Graça Aranha só sairia em 1902.

7. O original pertence ao arquivo da Academia Brasileira de Letras.

(A vida vertiginosa de João do Rio, 1978.)