A vossa eleição foi uma das mais brilhantes que se tem realizado nesta Casa. É que tivestes de lutar com antagonistas de armas fortes, de pulso forte, de forte poder de combate.
E, por isso mesmo, foi a vossa eleição uma das mais dramáticas a que tenho assistido na Academia.
E eu vos quero contar como foi que ela se processou na tarde de 9 de agosto, a tarde da vossa vitória.
Apesar dos cabelos brancos que me cobrem a cabeça, não pude, até hoje, curar-me de uma fraqueza da emoção fácil e forte, acreditai, fez-me passar por dois grandes sustos no momento em que se desenvolviam as cenas da vossa eleição.
Eu era abertamente, declaradamente, fogosamente vosso eleitor.
Se Deus me deu alguma parcela de virtude, a maior virtude que ele me deu é certamente, a minha capacidade de admiração. Não é uma admiração estática e silenciosa a que Deus moldou para meu uso. É sempre com agitação, com ruído e, às vezes, com mau comportamento, que eu exerço o direito de admirar. O meu voto, nesta Casa, é para mim coisa sagrada. Dou-o, não por amizade ou por influência de pedidos, mas unicamente, por admiração. Dou-o àquele que eu imagino que mais o merece pela fulguração de inteligência e pela qualidade da obra produzida. Eu dou-o com a abundância d’alma, com a seriedade de quem cumpre um dever religioso.
E, às vezes, senhores, não espero que me peçam. Eu o ofereço ao candidato da minha admiração e do meu entusiasmo. E faço-o abertamente, à luz do céu, de consciência tranqüila. Poder-se-á dizer que isso é irregular. E é. O regulamento da Academia exige o voto secreto. Mas, num país onde é usual o descumprimento da lei, eu posso dar-me ao luxo de cometer uma infração que a ninguém prejudica e que é feita com a boa intenção de praticar justiça.
E a verdade, meus senhores, é que a minha consciência se sente bem com essa infração. É um desabafo de minha profunda antipatia pelo voto secreto.
O voto secreto é o voto impalpável, o voto que usa máscara. É o voto que não tem veias nem sangue para que se identifique a sua cor; voto que sofre de alalia mas que é capaz de articular mentiras; voto que não tem corpo tangível, mas que carrega no seu bojo todo um mundo de simulação, de embuste e de logro. O voto secreto é a contrafação de opinião, é a moeda falsa do mercado eleitoral. É o voto de duas caras que finge estar acendendo uma vela a Deus, quando, na verdade, acende a vela do diabo.
(Vamos esperar que a Academia, na sua constante marcha de elevação, para maior beleza de suas escolhas, faça, um dia, a abolição do voto secreto!)
COMO SE PROCESSA UMA ELEIÇÃO NA ACADEMIA
Foi realmente um grande susto, Sr. Magalhães Júnior, o que passei no dia 9 de agosto, na hora em que esta Casa vos elegia. Uma tarde de eleição na Academia é uma tarde diferente das outras tardes. Os acadêmicos chegam mais cedo que de costume e sentam-se à mesa do chá mais silenciosos que nos outros dias. Caso curioso esse; os acadêmicos que, durante os meses de inscrição, conversam à mesa do café sobre os candidatos que se vão inscrever, no dia da eleição estão mudos, retraídos, concentrados, esquivos e insondáveis.
Às quatro e meia da tarde a Casa está cheia. Há um vivo burburinho de jornalistas e de fotógrafos. Às cinco horas em ponto iniciam-se os trabalhos.
No dia 9 de agosto eram cinco horas exatamente, quando Elmano Cardim na ausência de Peregrino Júnior, que se encontrava na Espanha, assumiu a presidência. Os acadêmicos residentes no Rio estão todos presentes. Faltam os que vivem no estrangeiro. Os fotógrafos batem chapas. Luís Viana lê emocionadamente a ata. Emocionadamente porque, nos dias de eleição, a emotividade sobra até para a leitura da ata. O expediente é lido em seguida. Não houve oradores naquele dia.
O Presidente anuncia a ordem do dia. É a eleição.
E os imortais (pobre imortalidade a nossa!) vão exercer função profundamente terrena – a escolha daquele que vai substituir o imortal que a morte ceifou mostrando não levar a sério a imortalidade acadêmica.
A presidência conta os votos fechados dos acadêmicos ausentes. Na nossa carteira, à frente de cada um de nós, estão as cédulas com os nomes dos candidatos inscritos.
As criaturas estranhas são convidadas a sair da sala. Cerra-se a cortina. A eleição é secreta. Cesário – o porteiro –, na farpela dos grandes dias, apanha a urna e inicia a colheita das cédulas. Começa a apuração. Não há nesse momento quem esteja indiferente ao que se passa na sala. O Presidente em voz alta. Vai o Primeiro-Secretário – anuncia, com voz forte o número de votos que obtém cada candidato. – Magalhães Júnior quatro, Magalhães Júnior, cinco, Magalhães Júnior, seis.
Minuto a minuto a eleição vai ganhando interesse. Sente-se que a inquietação está transformando as fisionomias. Se alguém se der ao trabalho de tocar as mãos dos acadêmicos encontrará, com certeza, muitas mãos geladas.
Foi justamente quando a eleição começou a ganhar interesse que se verificou o meu primeiro susto.
Toda a Academia contava com a vossa vitória e nós, os vossos eleitores, estávamos firmemente convencidos de que ela seria facílima. No primeiro escrutínio estaria tudo resolvido.
Mas, em certo momento, a presidência anuncia seis votos para vós e sete para outro candidato. Fico subitamente como uma pedra de gelo. Olegário Mariano, o príncipe dos poetas, tem uma expressão de amargura na fisionomia fidalga. Carneiro Leão arregala os olhos para Levi Carneiro. Adelmar Tavares, o santo Adelmar, baixa os olhos tristemente. A cabeça grisalha e aristocrata de Múcio Leão tem um tremor de surpresa. Josué Montello toca inquietamente o braço de Cassiano Ricardo, Álvaro Lins e Maurício de Medeiros, que pela primeira vez assistiam a uma eleição na Academia, revelam fundamente, no rosto, o espanto daquele transe dramático.
Olho à direita, olho a esquerda. Há surpresa em todos os rostos.
A presidência continua a apuração, O susto passou. Fostes, pouco a pouco, ganhando distância.
Magalhães Júnior doze! Magalhães Júnior treze! Magalhães Júnior quatorze!
As fisionomias clarearam, Olegário sorri, Adelmar levanta os olhos. Luís Edmundo fala risonhamente com Osvaldo Orico, Afonso Pena, com seu ar tranqüilo de mineiro que já sondou o terreno, diz baixinho a Menotti del Picchia:
– Ninguém mais lhe palpa o rastro.
– Magalhães Júnior quinze, Magalhães Júnior dezesseis! Magalhães Júnior dezessete! Magalhães Júnior dezoito! Magalhães Júnior dezenove!
Todos nós tínhamos os ouvidos e os olhos voltados para a presidência.
Foi aí que eu raspei o segundo susto. É que na urna havia apenas uma cédula.
Aquela cédula ia decidir a sorte. Se tivesse o vosso nome seríeis o vencedor, mas se o nome fosse de outro candidato, estaria em xeque a vossa vitória.
É verdade que havia mais três escrutínios. Mas, todos nós acostumados às eleições da Academia, sabíamos que quem não se elege no escrutínio que conta ser vencedor, dificilmente se elegerá nos outros escrutínios.
Pesou na sala um silêncio dramático. Minhas mãos, de tão frias, seriam capazes de gelar a Guanabara. Olegário tinha quarenta graus de febre nos olhos. Nunca ficaram tão revoltos os cabelos de Austregésio de Athayde. Macedo Soares procurava encobrir, num sorriso, a inquietação dos seus nervos. Clementino Fraga fingia estar absorto na leitura do folheto. Amoroso Lima, Aníbal Freire, Aloísio de Castro, Barbosa Lima Sobrinho e Hélio Lobo tinham os olhos pregados no teto para parecer que estavam fora do mundo. Manuel Bandeira, de lápis na mão, escrevendo, fazia tudo para dar a impressão de que o momento não lhe interessava. Múcio Leão, Josué Montello e Adelmar Tavares tinham nos rostos o vinco de criaturas que estão carregando pesos, Elmano Cardim tira a cédula da urna. Desdobra-a. Esse desdobrar parece que durou um século.
Ouviu-se então uma salva de palmas que durou minutos. Todos os acadêmicos, todos saudaram com palmas o escolhido pela maioria. É assim que acontece em toda as nossas eleições. Gregos e troianos festejam o vencedor. Que seja bem-vindo o novo companheiro!
E eis aí, minhas senhoras e meus senhores, como se elege um imortal. Nada de extraordinário, nada de misterioso, tudo corriqueiro.
MACHADO DE ASSIS DESCONHECIDO
A escolha do vosso nome, Sr. Magalhães Júnior, não era desejada apenas pelos vossos amigos. O Brasil inteiro a esperou. É que a Academia tinha o dever de eleger-vos.
Não era apenas um dever de justiça, era também um dever de gratidão. Com Machado de Assis Desconhecido tornastes-vos credor da Academia. E, para resgatar a dívida, ela hoje se engalanou. Há dívidas que a gente só paga florindo o coração.
O vosso livro que dantes que aqui entrásseis, já o considerávamos um patrimônio nosso, veio dar um cunho de maior beleza, de maior majestade e de resplendor maior a este teto de Letras.
A Academia é, com honra nossa, a Casa de Machado de Assis.
Mas que Machado de Assis era o gênio tutelar desta Casa? Um Machado de Assis desgraçadamente mutilado. Um verdadeiro aleijão.
O Machado de Assis dos biógrafos era um homem frio, um iceberg exótico, flutuando nas ardentes águas deste País ardente. Vós nos trouxestes um Machado de Assis flamante, de alma aberta a todos os incêndios da emoção, um Machado de Assis que, em moço, sobe ao palco dos teatros para recitar versos às atrizes brilhantes, e que, um dia, em pleno delírio de entusiasmo uniu-se a rapazes de sua idade para puxar o carro de uma cantora famosa.
O Machado de Assis que conhecíamos era uma criatura amorfa e descolorida, com absoluta indiferença pelos acontecimentos do País, insensível às palpitações da nacionalidade e do coração, inteiramente surdo às ressonâncias do patriotismo. E vós, com abundância de provas, revelastes-nos um Machado de Assis milhardário de civismo, exaltador de heróis liberais, exaltador de Nunes Machado, de Pedro Ivo, um Machado de Assis vibrante de ternura pelos vultos da Inconfidência e de tão vivo amor pela figura de Tiradentes que, certa vez, censurou publicamente o povo por não ter festejado o dia 21 de abril o sacrifício do proto-mártir da Independência. Revelastes-nos um Machado de Assis possuidor de sensíveis antenas de patriotismo a captar todas as vibrações da nossa nacionalidade, um Machado de Assis que, ao sentir a Pátria ofendida na famosa questão Christie, forma barricadas de antigos inflamados e escreve hinos que desagravam a nossa honra.
Machado de Assis que conhecíamos era uma criatura de tão pouco interesse pelo Brasil que nem o sangue de nossa gente, derramado nos campos de batalha, lhe tocava o coração. Atravessou todo o período da guerra do Paraguai calado, em completa indiferença.
Mentira! Pura mentira! afirmastes documentadamente e documentadamente mostrastes a atividade do grande injuriado que, durante o período de guerra, pusera ao serviço da Pátria toda a flama de sua Inteligência, ora escrevendo artigos que tocavam os brios da Nação, ora fazendo recitar poesias, nos teatros, para festejar os heróis que voltavam da luta cobertos de louros.
O Machado de Assis que conhecíamos era um homem estranho, sem o menor vislumbre de humanidade. Oriundo de negros, decendente de escravos, sem o menor interesse pela propaganda abolicionista.
Mentira, pura mentira! Lá estão no vosso livro reabilitador, as provas destruidoras dessa grave impúria.
Vivia o orador de Capitu tão congelado na introversão e no seu egoísmo que nem um amigo fizera na vida. Isso até ontem se afirmou como verdade indiscutível.
As provas do contrário lá estão no vosso Machado de Assis Desconhecido. Amigo e do melhor quilate ele era de Saldanha Marinho, de Joaquim Nabuco, de Quintino, de Zacarias de Góes e Vasconcelos, de Mário de Alencar e de Magalhães de Azeredo.
Até o Machado de Assis escritor vivia deformado pelos biógrafos. O estilista, o prosador cristalino de modos áticos, senhor de fidalga substância clássica, o sóbrio o magnífico Machado de Assis, que produziu as maravilhas que formam o nosso maior patrimônio literário, esse Machado (vejam os senhores que absurdo!) esse Machado não era obra dele próprio. Era obra de Carolina de Novais, a sua esposa.
Antes dela (isso se afirma sem a menor cerimônia), era ele um escritor secundário, sem simplicidade e sem pureza de língua. Foi ela, Carolina, que lhe estancou os excessos, quem lhe deu limpeza vernácula, quem lhe compôs os contornos do estilo e, como boa portuguesa, quem lhe ensinou (que heresia!) a colocar os pronomes.
Arrasastes, de uma vez para sempre essa balela. Que criatura era Carolina, que maravilhosa cultura devia ter essa mulher para poder guiar uma vocação literária do alto porte de Machado de Assis, policiando-lhe os deslizes de linguagem, refocando-lhe a feitura dos personagens, impondo-lhe a elegância dos clássicos e rumando-lhe o gosto para as obras-primas da Literatura da França e da Inglaterra?! Que criatura era essa incomparável mulher portuguesa que fez do marido o máximo prosador do Brasil e dela própria não fez nada? Que deixou ela para que se lhe conheçam os pronomes de cultura, para que se lhe possa atribuir o milagre de ter formado um escritor de gênio?
Foi aos trinta anos completos que Machado de Assis se casou com Carolina de Novais. Naquela idade já era ele um escritor de espírito completamente formado, já conhecia toda a Literatura clássica de Portugal, já lia Shakespeare em inglês e, de tal maneira dominava a língua francesa, escrevia versos tão bons como na sua própria língua. E já era um escritor na plenitude de todos os encantos do aticismo, já senhor da mais bela prosa que já se escreveu no Brasil. Já era o grande inconfundível e maravilhoso Machado de Assis.
O NOVO COLOMBO
Meus senhores,
Pode-se dividir o mundo em duas grandes eras históricas: o mundo anterior a Colombo.
Antes de Colombo o mundo era pequeno: – O Mediterrâneo e algumas milhas de Mar Tenebroso que as abusões e as lendas tornavam desconhecido.
Com a proa de suas naus, o descobridor da América redobrou, multiplicou o tamanho do planeta.
Pode-se partir de duas fases a figura do autor de Brás Cubas – Machado de Assis antes de Magalhães Júnior e Machado de Assis depois de Magalhães Júnior.
O Machado de Assis anterior a Magalhães Júnior era uma criatura diminuída pelas injúrias, lacerada pela fantasia dos biógrafos.
Como a proa da nau de sua incrível operosidade, meus senhores, o homem que hoje a Academia recebe no seu seio singrou os mares nunca dantes navegados de excelente documentário e descobriu um Machado de Assis desconhecido – o verdadeiro Machado de Assis, o que eleva e dignifica a nacionalidade brasileira.
Sr. Magalhães Júnior: esta glória ninguém vos tira: sois o descobridor, o Critóvão Colombo do novo Machado de Assis que o Brasil hoje possui.
A epopéia de Colombo, desvendando a América, não serviu apenas para ampliar a humanidade. Vós não vos satisfizestes em revelar o novo Machado. Fizestes o trabalho completo do navegador que, na ânsia de descobrir, entra neste e naquele golfo, nesta e naquela enseada, naquela angra, neste estuário, naquele delta, à procura de novas terras. Com a paciência de um beneditino e de um chinês, entrastes pelos arquivos e pelas bibliotecas, desencabando jornais e revistas, amarelados pelo tempo. E dessas revistas e desses jornais colhestes nada menos de cinco volumes de contos – jóias que a operosidade perdulária do autor de Quincas Borba abandonara no esquecimento.
O ESCRITOR DE MUITAS FACETAS
Ao dar-me o Presidente da Academia a incumbência de receber-vos nesta solenidade, procurei reler as vossas obras.
E, quanto mais vos lia, Sr. Magalhães Júnior, mais na minha admiração crescia o vulto da vossa inteligência. E o curioso é que eu, querendo, entre as vossas virtudes intelectuais, saber qual delas era a mais famosa, senti-me atordoado como se estivesse viajando sozinho no dédalo de canais e furos do desaguadouro de um grande rio. São tantas e tão brilhantes as vossas facetas literárias, que fiquei sem saber qual delas é a mais sedutora. Em vós o que primeiro impressiona é o trabalhador. Não existe atualmente no Brasil um escritor de personalidade. Sois ainda um homem jovem e a vossa bagagem literária tem o porte de bagagem de um escritor no fim da vida.
Sabeis por ventura, Sr. Magalhães Júnior, quantos volumes já publicastes? Nada menos de 30.
Tem-se a impressão de que repouso é a palavra que não existe no dicionário do vosso labor. Para vós o dia e a noite têm a mesma serventia. Ambas foram feitas para o trabalho. Nunca vos vi senão trabalhando. Quando, convosco, me comunico pelo telefone, acreditai, fico com a impressão de que pratico um crime. Pela maneira de responder às minhas perguntas, percebo que cometi a inconveniência de interromper a vossa ocupação. Não é de mau humor que me atendeis; ao contrário, é com extrema delicadeza, mas com tantas e tantas repetições de “muito obrigado” fora de propósito, que eu verifico que não tendes outro desejo se não ver a conversa pelas costas.
Não sei quantas horas tem o dia para vós, mas me parece que a vossa capacidade de trabalho modificou de tal maneira o caminhar do tempo que as vossas 24 horas se desdobram em 48. Só assim se pode explicar a enorme produção que diariamente realizais. E que realizais pontualmente. A vossa atividade é de boa educação e impecavelmente disciplinada – Não faz ninguém ficar esperando na ante-sala. As promessas, os compromissos, as obrigações, vós a cumpris religiosamente, à hora marcada. Para se ter a noção dessa surpreendente operosidade que Deus vos deu, basta voltar os olhos para a Casa de Espetáculo – há ocasiões em que o nome de Magalhães Júnior figura nos cartazes de quase todas elas, ora com originais, ora com traduções. Eu não saberei contar o número das traduções. Aposto que vós também não sabeis a conta.
Outra faceta impressionante dos vossos talentos é a variedade de engenho literário. Dominais, com brilho, todas as modalidades das Letras. Na lista das vossas obras não falta nada: Há ensaios, há novelas, há contos, biografias, crônicas, antologia, pesquisas históricas, histórias infantis, poesia, comédias, muitas comédias, tudo.
E tudo bem feito. Essa – a boa feitura é outra faceta marcante da vossa individualidade.
Quem produz obra numerosa geralmente produz obra ligeira sem profundidade, sem consistência, sem exatidão.
Apesar de numerosos, os vossos trabalhos são meticulosamente compostos. As crônicas são encantos de leveza e de cintilação; os ensaios têm solidez de cultura os contos destacam-se pela vivacidade da fabulação e pela simplicidade da narrativa; as peças são ricas de entrechos e de personagens curiosas, inteligentemente observados.
E as pesquisas históricas? Ninguém vos leva vantagem no dom de pesquisador. Tendes como ninguém a habilidade de mergulbar nos fundos dasminúcias, para de lá trazer a pérola que vem dar valor à figura ou ao fato que quereis realçar. Não se encontram erros nas vossas pesquisas. Não há citações falsas, datas sem exatidão, enganos, distrações, descuidos, desleixos. No Machado de Assis Desconhecido, no Artur Azevedo e a sua Época, no Pedro II e a Condessa de Barrau, no Três Panfletários do Segundo Reinado, é tudo honesto, seguro, fiel, fidelíssimo.
Outra faceta fascinante de vossas qualidades artísticas é a simplicidade na maneira de escrever. Simplicidade técnica, simplicidade vocabular, simplicidade de forma. É tudo límpido, tudo transparente, de cima para baixo tocado por fresca e viva claridade solar.
O MESMO HOMEM EM TUDO
Não consegui, como vos disse, distinguir entre tantas modalidades do nosso engenho literário, a vossa modalidade preeminente.
Sois o mesmo Magalhães Júnior em tudo – o sólido, o fulgurante, o correto escritor tanto de crônicas como de ensaios, tanto de biografias como de contos, tanto de pesquisas históricas como de comédias. Janela aberta, que, nesta Casa, obteve o prêmio Carlos de Laet. Europa 52 narrativa de viagem, são como crônicas, dois livros modelares pela leveza da exposição, pela vivacidade e pelo colorido satírico dos comentários.
Em Europa 52 lá está a todo instante, a revelação da vossa operosidade incorrigível. Quem vai à Europa, em viagem de recreio, está claro, vai para divertir-se. Mas, nas vossas crônicas, há dados de tão difícil colheita, informes de tão trabalhosa consecução, que a vossa viagem de recreio, à Europa redundou num extenuante mourejar pelas ruas, pelas fábricas e pelos museus.
Na novela O Capitão dos Andes, nos contos Impróprios para Menores, na Fuga de Outros Contos revelai-vos uma legítima vocação de narrador que conhece, um por um, os segredos, as dificuldades, os meandros dessa coisa dificílima que é a narração.
Como biógrafo, como pesquisador de grandes vidas, mais alto do que qualquer elogio saído de minha boca fala o sucesso de livraria de Artur Azevedo e a sua Época, primor de equilíbrio e de minúcia. E, mais alto ainda, fala a ressonância que Machado de Assis Desconhecido está alcançando em todo o País.
Como homem de teatro poucos escritores, no Brasil, conseguem como vós, armar tão bem as peças, poucos, pouquíssimos com a vivacidade do vosso diálogo e com a comicidade dos vossos personagens.
O TEATRO HUMORÍSTICO
E, curioso, Sr. Magalhães Júnior, notei, no vosso discurso, que não tendes grande apreço pelo Teatro cômico, o Teatro que, com freqüência, realizais.
Por quê? Será possível que esteja perturbando o vosso gosto artístico o gosto que, atualmente, perturba a mentalidade dos nossos críticos teatrais?
De algum tempo para cá, os críticos cariocas relegaram para o rol das coisas inferiores o Teatro para rir.
Brotou, estranhamente, nos palcos nacionais, um Teatro de entrechos escabrosos, em que as figuras são seres anormais, marcados pelos vícios, pela loucura e pelos crimes.
É esse o Teatro que a crítica festeja como Teatro; são como teatro artístico, como teatro de profundidade.
O mundo, dia-a-dia se torna mais difícil de ser compreendido. O velho e saboroso teatro humorístico passou a ser indignidade. No entanto, só há, um Teatro inferior, um Teatro indigno – o Teatro imoral.
Em todos os tempos, o humor, o riso, a comicidade foram coisas sãs. Em todas as épocas o Teatro humorístico foi considerado obra de arte. Na Grécia antiga, nos concursos dionisíacos, exigia-se que o candidato ao prêmio apresentasse uma tragédia e uma peça para rir. Os gênios do burlesco valiam tanto quanto os gênios de tragédia. Aristófanes merecia tanto quanto Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
Nos tempos modernos esse conceito não modificou. Molière não vale menos que Shakespeare. Provocar a lágrima não é mais difícil que provocar o riso. E quem sabe? Parece que custa muito mais provocar o riso do que provocar a lágrima. Eu, se quisesse, poderia facilmente fazer toda esta sala chorar. Bastava contar com emoção um caso triste da minha vida ou da vida de qualquer outra pessoa. No entanto, eu poderia passar a noite inteira contando casos engraçados sem ter a felicidade de conseguir um sorriso dos vossos lábios. O povo, que sabe dar valia a tudo que realmente tem valor, usa de uma frase pitoresca para valorizar repentes humorísticos. Todos nós conhecemos e usamos a frase. Quando, ao nosso lado, uma criatura pronuncia um dito engraçado, exclamamos, sem sentir: “Não diga mais nada, você ganhou o dia.”
Quer dizer que um dito humorístico vale o dia de trabalho de um homem.
O Teatro não se desvaloriza por ter feitio cômico. O próprio Shakespeare, o maior gênio de tragédia da idade moderna, escreveu “As Alegres Comadres de Windsor”, “Sonhos de uma Noite de Verão”, “A Megera Domada”, “Muito Barulho por Nada”, que são comédias para rir. E escreveu também “A Comédia dos Erros”, com a roupagem indisfarçável de uma farsa.
Um escritor, mesmo que seja um Shakespeare, não se diminui em fazer obra leve. O alfaiate, que corta a casaca das grandes cerimônias, corta também o paletó-saco dos dias comuns. Se aquela é necessária, este é indispensável. Nem só de casaca se veste o homem.
Verifiquei também, Sr. Magalhães Júnior, que o vosso apreço pela Literatura infantil é fraquíssimo. No entanto, sois um genuíno, um ótimo escritor de crianças. O Álbum de Toninho e o Chico Vira Bicho, revelam tão fortemente as vossas virtudes na Literatura da infância, que o desdém que mostrais por ela é clamorosamente criminoso.
A INCONVENIÊNCIA DE SER POETA
Minhas senhoras, meus senhores,
Na enumeração das virtudes do escritor que a Academia está recebendo, inclui a modalidade poética. Essa modalidade está excelentemente revelada na Antologia dos Poetas Franceses (do século XV ao século XX), por ele organizada. Na Antologia a sua cooperação é de 28 poesias traduzidas.
Mas, para ter noção exata do valor poético do festejado de hoje, não me bastaram as traduções. Quis ter, em mão, poesias originais. Em cem vezes as pedi e cem vezes ele me prometeu. E de nenhuma delas cumpriu a promessa.
Dizei-me, Sr. Magalhães Júnior, por que me negastes as poesias? Acanhamento? Medo?
Deve ter sido medo.
Nós, os escritores, devemos ser cautelosos. Precisamos fazer o possível para que o público não saiba que escrevemos.
E por que essa cautela? para não perder consideração do público.
João Ribeiro disse-me, uma vez, com aquela sinceridade de sábio: “O que é que você pensa? Literato não vale nada. Ninguém leva literato a sério. E quando o literato é poeta, a desconsideração do público é ainda maior”.
Para o povo, poeta é sinônimo de distraído, de vadio e até mesmo de aluado.
– Ele é um poeta – é a expressão que ouvimos, freqüentemente, quando alguém quer falar de uma criatura que vive no mundo da lua.
Aquele fato que contam de Raimundo Correia mostra que o literato, principalmente se é poeta, para não perder o conceito de gente de bem, deve fazer tudo para que não se saiba das suas virtudes intelectuais.
Raimundo Correia, nomeado, não sei se promotor ou juiz, de uma localidade mineira, para lá seguiu, hospedando-se em casa de um velho conhecido. No dia seguinte, à hora do almoço, o dono da casa disse ao hóspede: – Se chegar aos seus ouvidos a notícia de algum mau juízo que estejam fazendo do senhor, não faça caso. Esta gente aqui é horrível – de falar mal da vida alheia.
O poeta de “Mal secreto”, que era um temperamento arisco e crispável, tremeu, empalideceu, perguntando:
– Estão dizendo mal de mim?
– Não se incomode, doutor, esta gente aqui não presta.
– Mas que é que estão dizendo? Que é? Que é?
O dono da casa baixou a voz como se fosse pronunciar uma palavra feia:
– Estão dizendo que o senhor é poeta. – E acrescentou imediatamente, como para salvar a situação: – Mas eu já desmenti, eu já desmenti.
João Ribeiro tinha razão: ninguém leva a sério o literato.
A VANTAGEM DE SER PADEIRO
Eu, Sr. Magalhães Júnior, posso dizer que é verdadeira a afirmação de João Ribeiro.
Houve, há tempos, aqui no Rio, um padeiro que tinha exatamente o meu nome. A sua padaria, ali no Catete, ostentava, na fachada, uma tabuleta em letras vistosas – Padaria Viriato Correia. Os jornais crivavam-me de pilhérias, os caricaturistas pintavam-me em mangas de camisa amassando pão, muita gente me fazia parar na rua para perguntar se eu havia deixado de escrever.
Mas, apesar de todos esses aborrecimentos, houve uma compensação, foi a época em que eu gozei de maior conceito. Gente que não me prestava nenhuma atenção, passou a me fazer rapapé, criaturas, que fingiam não me conhecer, passaram a me tirar reverentemente o chapéu. Mais de uma vez, nos bondes e nos ônibus, cavalheiros se levantavam para me ceder o lugar. De tal maneira me vi cercado de consideração que, até hoje, lamento não ter capital para montar uma padaria.
LÚCIA BENEDETTI
Sr. Magalhães Júnior,
Uma estrela coruscante presidiu o vosso nascimento. As boas fadas vos deram todas as fortunas. Deram-vos a imensa fortuna de operosidade. E também a mesma fortuna do coração de Lúcia Benedetti.
Por mais incenso que se queime para glorificar a influência das mulheres na vida dos intelectuais, esse incenso é pouco quando se trata de uma mulher como essa que o destino vos deu para esposa e para companheira.
Viver sozinho é viver na ante-sala do inferno, e o homem de labor mental, mais do que qualquer outro homem, não pode deixar de ter ao lado uma criatura que desempenhe as suas delicadas tarefas, a de esposa e a de companheira.
Ser apenas esposa não basta. A vida do lar não é apenas a vida da prole. É preciso haver a conjugação dos espíritos, a solidariedade dos corações. E isso só se realiza quando, além de esposa, a mulher é companheira também. E quando isso acontece, a mulher não é apenas do lar. É a responsável autora, ou melhor, a dona, pelo menos, de metade dos sucessos do marido.
O destino, convosco, Sr. Magalhães Júnior, não foi apenas generoso, foi magnânimo, munificente. Deu para vossa companheira uma criatura suave, uma mãe de família consciente de dignidade do seu papel. E como não bastasse, adornou-a com uma inteligência de tão fina têmpera que ela figura entre as mais notáveis figuras literárias do País.
A MULHER NA ACADEMIA
É diante de uma mulher como Lúcia Benedetti que eu lamento não permitir a Academia a entrada de mulheres no quadro de seus membros.
A intelectualidade feminina, no Brasil, ganhou tão grande avanço que em nada se mostra inferior à intelectualidade masculina. Possui figuras de tão alto relevo nacional que dariam relevo a estas Cadeiras azuis. Há Gilka Machado, essa perene figura de inspiração que enche de clarões os céus dePoesia; há Rosalina Coelho Lisboa, admirável, Rosinha do Rito Pagão. Há Adalgisa Nery, de Astro fascinante; há Maria Eugênia Celso, um dos mais fidalgos talentos de Poesia, da crônica e da novela; há Rachel de Queiroz, a romancista surpreendente de O Quinze e de As Três Marias; há Lúcia Benedetti, cronista, contista, romancista e criadora do melhor teatro infantil que possuímos; há a romancista Dinah Silveira de Queiroz, sucesso invejável de livraria; há Henriqueta Lisboa, com o seu lirismo comovedor; há Maria Wanderley de Menezes e Maria Jacinta, autênticas vocações de Literatura dramática, que honraria a Literatura de qualquer povo culto. No departamento tipográfico aí está Lúcia Miguel Pereira, com a sua honesta capacidade de pesquisa. Na crônica diária podemos citar apenas duas culminâncias – Eneida e Elsie Lessa. No conto e na novela destacam-se ainda Lígia Fagundes Telles, Ondina Ferreira, Helena Silveira, Maria de Lourdes Teixeira e outras que eu não tenho tempo e memória para enumerá-las.
Não falta nada. Na Literatura feminina brasileira não falta nada. E o que existe, é da melhor substância e da mais pura essência.
E por que essas mulheres não estão aqui dentro?
Há uma explicação aceitável: Esta Casa foi feita por homens e, na época, as mulheres ainda não haviam entrado nas lides literárias.
Mas a Academia não é um sarcófago habitado por múmias. A Academia Brasileira de Letras é um corpo vivo que caminha para a frente, que evolui, que se aperfeiçoa. Amanhã, inevitavelmente, ela eliminará essa falha de sua organização. Amanhã, para a honra nossa, e para a glória do Brasil (vamos pedir a Deus que assim seja), amanhã teremos, nestas Cadeiras tão ambicionadas pelos homens, as mulheres proeminentes que dignificam a mentalidade e a nacionalidade brasileira.
ATEÍSMO DUVIDOSO
Sr. Magalhães Júnior,
Não sei se notastes: quando falei na entidade que compôs o conjunto de vossas virtudes, não falei no nome de Deus. Fi-lo de propósito, por escrúpulo. Sempre voz ouvi proclamar em alto e bom som que sois ateu. Não quis que os vossos ouvidos se ferissem com o nome do Criador do Universo.
Mas, essa história do ateísmo, que viveis a proclamar, anda, há muito tempo, a roer-me a paciência.
Sois realmente ateu? Onde se encontram as provas desse fato?
É nas obras que os homens revelam as tendências espiritualistas. Li toda a vossa obra e não encontrei nada, absolutamente nada que revelasse vaga sombra do ateísmo. Nem uma confissão, nem um argumento, nem uma heresia.
O que encontrei foi justamente o contrário. Encontrei um doce recordar de perfume cristão. Desculpai a rudeza de afirmativa; o vosso ateísmo, Sr. Magalhães Júnior, não passa de uma fanfarronada.
Em duas de vossas peças descobri que, além de religioso, tendes até acentuada simpatia pelos padres. Na comédia “Vila Rica”, o padre Ferreira é quase um santo. Em “Essa Mulher é Minha”, destes ao Padre Basílio tantas e tantas virtudes que não as daria tantas se fosse o autor da peça o nosso companheiro Amoroso Lima, que é lider católico.
Que ateísmo é esse? Ao chegardes a Roma, um dos vossos primeiros cuidados foi ver o Papa. Não me parece que isso seja cuidado próprio de ateu.
E ainda existe esta particularidade para eu registar; quando chegastes a Roma o Santo Padre estava em Castel Gandolfo, seu palácio de veraneio. Castel Gandolfo fica hora e meia distante da Cidade Eterna. Isso não vos impediu de ir até lá. E é, realmente, um regalo ter em Europa 52 a descrição que fizestes da audiência do Sumo Pontífice. É toda uma tela de simpatia, de carinho e de ternura, pode-se mesmo dizer de embevecimento.
A respeito de vossa irreligiosidade tenho à memória, um fato que, com certeza, de vossa memória já se apagou.
Íamos, nós dois, pelo largo de São Francisco de Paula e, ao passarmos pela porta da igreja, tirastes o chapéu. Foi um gesto natural, que me deixou a convicção de que usais à porta de todas as igrejas.
Que diabo de incredulidade é a vossa, Sr. Magalhães Júnior? Sois mesmo ateu? Pilhéria. Sois muito bom católico. Católico apostólico romano.
Uma semana antes da vossa eleição, Josué Montello me deu assombrado, pelo telefone esta notícia incrível: “O Magalhães Júnior já escreveu o discurso de posse.”
– Não é possível! – exclamei.
Montello confirmou com segurança que não admitia dúvida:
– É verdade, eu vi.
Nem mesmo assim acreditei. Eu não podia imaginar que houvesse um homem que, antes da eleição na Academia, escrevesse o discurso de posse. Não teria ele nos seus dicionários a palavra flexibilidade? Quantas e quantas eleições, nesta Casa, tidas como seguras, falharam estrondosamente?! Não teria ele conhecimento desses fatos? Estaria ele no mundo da lua?
Era mesmo verdade, meus senhores e minhas senhoras: Magalhães Júnior, antes de ser eleito, escrevera o discurso de posse.
E dizei-me, meu caro acadêmico, porque assim o fizestes?
Não sabeis ou não quereis explicar? Eu explico. Escrevestes o discurso antes da eleição porque tínheis grande fé em Deus. Grande fé em que seríeis vitorioso.
O QUE VEM LUTAR PELA VIDA
Minhas senhoras, meus senhores,
Em Janeiro de 1930 chegou ao Rio um rapaz cearense que aqui pisava para lutar pela vida. Não vinha da terra natal, vinha de Campos, onde fazia profissão de jornalista. Era humilde, pobre, mas tinha dezenove anos de boa saúde.
No bolso trazia apenas cento e cinqüenta mil réis, mas, na alma, trazia uma fibra de aço, uma imensa paciência para sofrer e uma indiscritível coragem para lutar.
Meus senhores,
Ainda não apareceu um gênio para escrever a odisséia do rapaz pobre e humilde que chega ao Rio de Janeiro com disposição para vencer.
É uma página de Balzac ou de Zola.
A luta é cruel, luta que dura anos, muitos anos, na treva da ansiedade, da inquietação, dos tormentos, da angústia e, as vezes, da miséria.
O rapaz humilde e pobre que chega ao Rio de Janeiro, para lutar pela vida e pela glória, mal pisa em terra está pisando num inferno. Correm-lhe ao encontro todas as hostilidades. Tudo o que é necessário para viver desaparece-lhe dos olhos. É preciso morar e não há teto, é preciso comer e não há mesa, é preciso vestir e não há roupa, é preciso dormir e não há leito. Não tem um amigo, não tem um carinho, nem de leve consegue a mornidão de um consolo. Os seus dias não terminam, nunca, as suas noites são ainda mais longas do que os dias. Aos trinta anos, um que começou a lutar aos vinte, já viveu três séculos pelo menos, porque não há mais nada comprido, no mundo, do que a desesperança e o sofrimento. Está ainda para ser escrita a tragédia do rapaz que consegue, sozinho, vencer no Rio.
O moço pobre e humilde que chegou, há 26 anos, é este que hoje festejamos pela sua entrada nesta Casa.
Sr. Magalhães Júnior,
Quando chegastes ao Rio, contou-me Herman Lima, fizestes, aos vossos íntimos, esta afirmação de homem que está disposto à luta:
– Nestes próximos vinte anos ou eu terei vencido ou estarei tuberculoso. Os vinte anos passaram. Pela rijeza e solidez do vosso físico, percebe-se que a tuberculose não se arriscou a aproximar-se de vós. Pela qualidade de Poltrona em que estais sentado, pelo que vos cerca, deveis estar convencido, como nós estamos, de que alcançastes totalmente a vitória ambicionada.
Magalhães Júnior deve estar satisfeito com Magalhães Júnior.
Vencestes. E de que maneira vencestes?
Sozinho, sem ajuda de ninguém.
A vossa caminhada eu assisti quase toda. Foi dura, espinhosa, extenuante. Lutastes sobre barrancos e sobre penhascos, sangrando os pés e de coração sangrando.
Mas, chegastes a esses píncaros de ânimo levantado e de alma limpa. Os imperativos da sobrevivência, que quase sempre abatem o caráter dos homens, não abateram o vosso caráter. Chegastes de honra intacta ao fim da luta.
AS CRIAÇÕES DE MACHADO DE ASSIS
Minhas senhoras e meus senhores,
Eu me incluo no rol daqueles que acreditam que nós não acabamos no fundo de uma sepultura. Deus não faz obra efêmera. Deus só faz obra eterna. E a vida é obra de Deus.
Acredito que aqueles a que chamamos mortos estão vivos. A vida não acaba – transforma-se.
Machado de Assis está vivo. Está vivo na obra que deixou, está vivo em espírito, espírito que ele levou para outras regiões criadas por Deus e por nós desconhecidas.
E tudo que ele criou continua vivendo. Todas as figuras a que deu sopro de vida, nos contos e nos romances, estão vivas como nós estamos. Esse é um atributo imanente dos gênios: criar obra imperecível.
Agamenon, de Ésquilo, Édipo, Antígona e Electra, de Sófocles, Eugênia, Orestes e Helena, de Eurípedes, há dois mil anos atravessam o mundo com a mesma força vital com que foram criados. Macbeth, Romeu, Julieta, Ofélia, Desdêmona, todas as figuras tocadas pelo sopro genial de Shakespeare, parece que vivem na nossa época. João Valgean de Victor Hugo, o velho Goriot de Balzac, o Nababo de Daudet, Naná de Zola vivem, ao nosso lado, como vivem nos romances. Iracema, Peri, Ceci, todas as belas criações de Alencar agitam-se na nossa mente como se realmente tivessem existido. O solene conselheiro Acácio, o respeitável Pacheco, as duas mais deliciosas figuras do engenho de Eça de Queirós sentam-se à nossa mesa, andam na rua conversando conosco e nos fazem rir com os seus sábios conceitos.
Não morreu uma só das figuras criadas por Machado de Assis. Não sei se é realidade ou é visão, sei que as estou vendo chegar, uma por uma, a esta sala para festejar a vitória do reabilitador do homem que as moldou para a perpetuidade da vida.
Ali está o Sr. Joaquim Barba dos Santos – o Quincas Borba –, não o andrajoso, o esfarrapado, mas o Quincas Borba dos dias de gala. E no primor da sobrecasaca perfeita, na alvura da camisa imaculada, dá a impressão de um desembargador sem beca, de um general sem farda, de um negociante sem deficit.
Antes dele entrou Brás Cubas, de olhos vivos e resolutos, arrogante, sangüíneo, tendo-se em conta de lindo rapaz, ele que a princípio fora criança com fumos de homem e depois homem com ares de menino, Junto dele o Lobo Neves, imponente, de ar ministerial, de braço dado a Virgília, cujos olhares disfarçadamente vivem caçando Brás Cubas.
Eis que, ali adiante, nos aparece o Conselheiro Aires, com a sua velhice rija de sessenta anos, calvo, enrugado, com a mesma flor eterna à botoeira, bigode alvo de pontas finas e agudas, passo firme, gesto grave, com aquele toque de galanteria que nunca perdeu. Vem em companhia da mana Rita, que é seguida também por um casal de velhos – o Aguiar e a D. Carmo, aquela que tecia com o coração. E quem está ali ao lado deles? É a viúva Fidélia e, perto dela, o Sr. Custódio, o indeciso Sr. Custódio, dono daquela confeitaria bem em frente ao Catete, cuja tabuleta ainda continua parada na letra “d”.
Entraram dois senhores. Quem são eles? Parecidíssimos, tão parecidos que parecem um só, refletido no espelho. Reconheço-os agora, são Pedro e o Paulo dos Santos, os gêmeos de D. Natividade. Como se olham hostilmente!Pois se começaram brigar desde o ventre materno...
Quem é o sujeito que vem ali falando sozinho? Não se lembram dele? O Simão Bacamarte. E aquele outro com cara de quem tem a consciência pesada? O enfermeiro Procópio José Gomes Valongo.
Entrou agora uma figura importante. Quem a não conhece? É o deputado Botero, que não rompeu e nem romperá mais com o governo. Chegou um punhado de mulheres: a Mariana, a Marcela, a D. Paula, a Helena e Iaiá Garcia.
A sala foi invadida por um punhado de homens. São todos conhecidos. O Luiz Nogueira, o Cônego Galvão, o incurável, o Palha, o Camacho, o Aires, o Vergueiro, o Sales das promessas não cumpridas, e o Ezequiel Maia, precursor da mudança da capital do Brasil para o sertão longínquo.
E aquele sujeito que, logo à entrada, gastou vários superlativos? É o José Dias – o parasita. Acaba de entrar um cavalheiro encaramujado desses que dão à gente a impressão de quem vivem para dentro. Quem o não conhece? É o Bento Santiago, o Bentinho para a família, o Dom Casmurro para os vizinhos maldizentes.
Entrou uma mulher impressionante. Tem ar de sonsa. Tem olhos oblíquos. Tem olhos de cigana. Tem olhos de ressaca.
É Capitu, a manhosa, a sorrateira, a misteriosa, a traiçoeira, a sutil Capitu, obra-prima do gênio machadiano.
E todos ficam na sala como à espera de alguém. E eis que esse alguém entra segundos depois. É moreno, cabelos crespos, compleição franzina, barba, pince-nez e testa ampla de gênio. Que vejo? Será possível, será possível? Estarei acordado ou estarei sonhando? O homem que acabou de entrar é Machado de Assis.
Capitu, D. Casmurro, o Conselheiro Aires, D. Natividade, Iaiá Garcia, todas as figuras que há pouco entraram curvam-se reverentemente.
E ele avança. Avança e pára. Pára e, com o olhar, percorre a sala. Está procurando alguém. Sente-se que foi para procurar esse alguém que ele entrou na sala.
Olhou à frente, olhos à direita, olhos à esquerda, procurando, procurando...
E eis que, de súbito, o seu rosto se ilumina. Encontrou, encontrou a criatura que procurava. Um frêmito de gratidão inflama-lhe a fisionomia. Estarei acordado ou estarei dormindo? Será realidade ou será visão?
Ei-lo que abre os braços e caminha. E caminha, caminha vivamente ao vosso encontro, Sr. Magalhães Júnior, ao vosso encontro, ao vosso encontro...
6/11/1956