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Paulo Carneiro

Desde os primeiros escritos, Augusto Comte retoma, sobre novas bases, os problemas de organização política que Platão e Aristóteles, Hobbes, Locke, Montesquieu e Condercet haviam tentado resolver. Fundando a ciência social, ele dá a essas questões a solução racional que elas requerem. Recorrendo a essa fonte qualquer país poderá instituir o sistema de governo que melhor corresponda às suas necessidades e às exigências dos tempos modernos.

O Brasil acabava de nascer como Estado independente, quando Augusto Comte formulou os princípios da nova ciência. Era natural que fosse o nosso país o primeiro a inspirar-se nela.

Desde meados do século XIX, o ensino nas escolas e faculdades do Rio de Janeiro, da Bahia, do Recife, de São Paulo, revela a influência que o pensamento de Comte exerce sobre os intelectuais. Os primeiros adeptos brasileiros do Positivismo são estudantes e professores, escritores e cientistas. Os problemas políticos e sociais, aos quais o país tem de fazer face por aquela época, vão oferecer-lhes um vasto campo de ação.

Um quarto da população do Brasil era, então, composta de escravos vindos da África. A produção, inteiramente dependente da mão de obra negra, consiste, sobretudo, em açúcar, fumo, algodão e café. A essas matérias-primas cumpre acrescentar o ouro, cujas minas começam a esgotar-se. Uma aristocracia rural poderosa domina o país e procura submetê-lo aos seus próprios interesses. Os trabalhadores livres são em proporção ínfima, e desprovidos de qualquer organização de classe. A grande massa permanece analfabeta e pobre. Uma burguesia nascente abre, pouco a pouco, o seu caminho, entra para as faculdades, funda jornais, agita a opinião, infiltra-se no governo. O Parlamento é privilégio dos grandes fazendeiros, marqueses e barões do Império, divididos entre os dois partidos existentes, conservador e liberal, aos quais o Imperador confia, alternadamente, a direção dos negócios públicos.

A partir de 1868, um movimento de reforma toma corpo no país. Uma facção do Partido Liberal adere aos princípios republicanos e lança, em 1870, seu primeiro manifesto. Por outro lado, a ideia de dar ao Estado organização federal ganha terreno dia a dia. As discussões que um tal projeto suscita põem à mostra o declínio do regime monárquico. O problema da abolição da escravatura exalta e comove a nação inteira, domina todos os debates, impõe-se aos partidos, cria a atmosfera propícia às transformações políticas.

Os mais ilustres discípulos de Augusto Comte, no seio do movimento renovador, são Benjamin Constant Botelho de Magalhães, Miguel Lemos e Teixeira Mendes.

Professor de matemática da Escola Militar do Rio de Janeiro, Benjamin Constant transmite, aos jovens cadetes que o cercam de admiração e respeito, os ensinamentos que recebeu da vida e da obra do fundador do Positivismo. Seu prestígio intelectual e sua elevação moral asseguram-lhe autoridade sem igual no seio do Exército. Sua adesão pública à Religião da Humanidade leva à conversão à nova fé, um grande número de seus discípulos. Em torno da sua cátedra, constitui-se, pouco a pouco, a primeira legião de republicanos prontos a pôr em ação o programa social do Sistema de política positiva.

Homem de ação, Benjamin Constant congrega e disciplina as forças que lhe permitirão, no momento oportuno, assumir a direção das mudanças políticas que se anunciam.

A atividade que vão exercer Miguel Lemos e Teixeira Mendes situa-se em outro plano. Voltados ao apostolado, propõem-se dirigir um movimento puramente espiritual, sem qualquer participação na vida política, senão pelos conselhos que serão chamados a dar no curso dos acontecimentos. A Igreja que fundam é calcada no modelo traçado por Augusto Comte, para as instituições religiosas do futuro. A fim de garantir à sua atividade apostólica a necessária independência, abstêm-se de toda função oficial, mesmo no ensino.

Associados, na memorável campanha abolicionista, a tribunos, parlamentares, escritores e jornalistas hostis, muitas vezes, às ideias de Augusto Comte, nela tiveram os positivistas papel decisivo e ganharam uma notoriedade que lhes permitiria, posteriormente, intervir com grande êxito na vida política do País.

Persuadidos, de há muito, da inevitabilidade da República, os apóstolos do Positivismo incitam o Imperador a tomar a iniciativa dessa transformação. Opostos a toda forma de violência, desejam evitar o tumulto de uma insurreição. Mas o monarca permanece surdo aos seus apelos.

Atritos mais e mais graves entre o governo imperial e o exército tornam inevitável a rebelião militar. Benjamin Constant assume, então, a direção dos acontecimentos e transforma a rebelião em movimento republicano. Em 23 de outubro de 1889, pronuncia na Escola Militar um discurso que é uma crítica veemente ao governo. Certo do apoio da opinião pública, persuade o marechal Deodoro da Fonseca, presidente do Clube Militar, a aderir à insurreição. Em 15 de novembro, à frente de alguns batalhões, sitiam o governo no quartel-general. A República é proclamada sem um tiro, em meio a unânimes aclamações.

Por proposta de Miguel Lemos e de Teixeira Mendes, o governo provisório, no qual Benjamin Constant ocupa o posto de Ministro de Guerra, adota, por decreto de 19 de novembro, a bandeira que tem a divisa comtiana: “Ordem e Progresso”.

Desde a convocação da Assembleia chamada a elaborar a nova Constituição, Miguel Lemos e Teixeira Mendes submetem-lhe uma série de propostas, muitas das quais foram, mais tarde, incorporadas por Júlio de Castilhos na Constituição do Rio Grande do Sul. Esses projetos têm por base o modelo estabelecido por Comte nas suas últimas obras. “A vida prática - escreve ele no quarto volume do seu Sistema de política positiva - não pode ser regulada sem a intervenção geral e contínua de um poder central, ao mesmo tempo ordenador e repressivo. Embora o regime humano se torne cada vez menos temporal, o conselho não pode jamais dispensar o comando. Cada república sociocrática exige um governo propriamente dito, quer dizer, um poder central que ramificado por toda parte consolide e desenvolva a vida cívica.”

Esse poder central assistido por uma assembleia encarregada de fixar o orçamento anual e de controlar a sua execução será, no futuro, exercido por um triunvirato composto de representantes da agricultura, da indústria e do comércio. A fim de deixar bem caracterizada a natureza antiparlamentar e puramente temporal dessa forma de governo, Comte a chama ditatorial. A título transitório, confia a um único chefe, oriundo, de preferência, do proletariado, as funções que incumbirão, em seguida, aos triúnviros.

O nome dado por Comte a esse tipo de governo criou equívocos e suspeitas que até hoje perduram. É totalmente absurdo confundir seu sistema com os regimes totalitários, que ele foi o primeiro a repelir, fundando a política moderna na mais ampla liberdade espiritual.

Pierre Laffitte, o mais antigo e mais bem informado dos seus discípulos, esclareceu perfeitamente a questão numa carta dirigida a Benjamin Constant para felicitá-lo pelos rumos que tomava, sob a sua direção, a República brasileira:

“Dá-se a algumas expressões de Augusto Comte o sentido corrente e vulgar, quando ele mesmo lhes deu um sentido filosófico em muitos pontos diferente.”

Augusto Comte proclama, com efeito, e frequentemente, a necessidade do regime ditatorial. Mas o que se deve entender por isso?

A noção de ditadura é, para ele, inseparável da ideia de liberdade, da mais completa liberdade de expressão e de discussão. Cumpre igualmente levar em conta a vigilância que, no seu esquema, a assembleia financeira, eleita pelo povo, exerce sobre o governo, ao qual pode sempre recusar as verbas de que carece.”

A concepção de Augusto Comte não tem o caráter que lhe quiseram emprestar. Não se trata, absolutamente, no seu pensamento, de conferir, a quem quer que seja, um poder absoluto. Os exemplos que dá, nesse particular, demonstram-no claramente: ele julga Luís XVIII “o melhor dos ditadores que surgiram em França depois de Danton; e Luís Filipe, o mais imperfeito”. Trata-se, para ele, de “estabelecer a preponderância do governo sobre as assembleias, preponderância que se caracteriza pela iniciativa, e de concentrar em uma pessoa a ação executiva governamental.”

É, a rigor, um governo presidencial o que Augusto Comte propõe. A palavra ditadura adquiriu conotações tão contrárias ao sentido que lhe atribuía que deve ser substituída por poder central, expressão equivalente. Foi, aliás, o que fez Júlio de Castilhos, que jamais usou a palavra ditadura ao redigir a Constituição do Rio Grande.

Por motivos em grande parte semânticos, a Assembleia Constituinte não deu ao projeto de Miguel Lemos e Teixeira Mendes a acolhida que merecia. Algumas das suas propostas foram, porém, incorporadas ao novo texto constitucional. A mais importante delas foi a separação da Igreja e do Estado. O projeto de lei adotado, nesse particular, pela Assembleia Constituinte, foi apresentado por um jovem deputado positivista do Rio Grande do Sul, Demétrio Ribeiro. Reflete, fielmente, as ideias de Comte sobre a divisão e independência dos poderes temporal e espiritual.

Graças à corrente positivista da Assembleia Constituinte de 1890-91, a Igreja católica frui no Brasil, desde o advento da República, da mais completa liberdade. O Papa cria bispados e nomeia bispos sem a menor intervenção do governo. O clero e as irmandades conservaram a propriedade de todos os seus bens. Os padres e seminaristas não prestam serviço militar. O casamento civil não deve, obrigatoriamente, preceder o casamento religioso. Novos conventos e ordens monásticas podem ser livremente estabelecidos.

O Apostolado Positivista prosseguirá sem desfalecimento na sua obra renovadora. Todos os problemas que a evolução no Brasil faz surgir são examinados à luz da sociologia e da moral positivas.

[...]

                                            (Ideias políticas de Júlio de Castilhos, 1982)

 

 

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA

Senhores acadêmicos,

À gratidão pela honra que me fazeis, acolhendo-me em vossa Companhia, junta-se, nesta hora, o sentimento dos deveres que contraio para convosco. É que as Academias não são apenas consagrados cenáculos literários, prêmio e estímulo para grandes obras. Nelas se forja o pensamento vivo das nações; são laboratórios de experiências in anima nobili, abrigos, ao mesmo tempo que fontes renovadoras, da língua, da tradição e dos costumes. À medida que a civilização se apura e se avoluma o seu patrimônio cultural, tornam-se elas a consciência e a memória da humanidade. Contrapõem-se, assim, ao mau signo que, segundo Barbusse, pesa sobre os homens do nosso tempo, transformados, por uma crescente necessidade de fuga, em “máquinas de esquecer”.

Aqui, ao revés, se liga sempre o passado ao porvir, num encadeamento ininterrupto de gerações, de ideias, de escolas filosóficas e literárias. Aqui revivem os homens que ilustraram o seu tempo, serviram os pósteros e se foram, por atos e palavras, da “lei da morte libertando”.

São as Academias, pela autoridade que lhes imprimem os homens de elite que as compõem, os mais altos tribunais da opinião pública. Cabe-lhes, na carência de outros poderes, submersos no caos contemporâneo, o papel de guias espirituais e de promotores das necessárias renovações.

Reunidos para velar pela cultura de nossa terra, temos missão sagrada a cumprir, e esse encargo nos alça acima de nós mesmos, desprendendo-nos, quanto possível, de paixões e interesses pessoais.

Tomo, perante vós, o compromisso de não faltar às obrigações que ora assumo. Confio em que a tanto me ajudareis com a vossa generosidade e o vosso saber pois tendes, sem dúvida, presentes em vosso espírito as nobres advertências de Tomás de Kempis, transpostas por Corneille em versos inimitáveis que seria sacrilégio tentar traduzir:

                  Aucun n’est sans défaut, aucun n’est sans faiblesse,

                          Aucun n’est sans besoin d’appui,

                  Aucun n’est sage assez de sa propre sagesse,

                  Aucun n’est assez fort pous se passer d’autrui.

***

[...]

 

Minhas senhoras e meus senhores, outro que não eu deveria ocupar a Cadeira de que hoje tomo posse! Um largo consenso assegurava-lhe já brilhante eleição, quando em trágico acidente caiu brutalmente morto. A Anísio Teixeira cabia, melhor do que a ninguém, a honra de suceder a Clementino Fraga. O grande educador que ele foi - o maior de quantos o Brasil já teve - traria a esta Casa uma das inteligências mais ágeis e mais vivas do nosso tempo, uma cultura aberta a todos os horizontes e o exemplo de uma vida que se inscreverá um dia entre as glórias mais altas e mais puras do nosso país. Seu nome há de ficar para sempre incorporado ao patrimônio da Cadeira 36 e espero que os meus sucessores aqui recordem de geração em geração a grandeza da obra que ele realizou, os livros que escreveu e as lições que nos legou de energia, desprendimento e devoção à causa pública!

***

Senhores Acadêmicos, a vida e os trabalhos do patrono e dos primeiros ocupantes desta Cadeira fazem-me pensar, com igual admiração, nos inúmeros promotores de idênticos feitos, em outros campos de nossa atividade. Surge, assim, ante os meus olhos, uma legião de homens e mulheres vindos de todas as profissões e dotados do mesmo espírito criador. Insuflaram, eles, alma e grandeza à nossa pátria, ilustrando-a e protegendo-a, no afã de elevar por todos os meios o seu grau de civilização.

Cumpre que as novas gerações se sintam em íntima comunhão com esses autênticos construtores da nossa nacionalidade, se inspirem nos seus atos de abnegação e coragem, renovem as suas invenções e descobertas.

Tão desatenta e perdida se encontra, nos tempos que correm, a consciência dessa herança, e tão vagos se afiguram os deveres por ela gerados, que eu me pergunto se não seria azado o momento para erigir-se, sob o vosso patrocínio, o Panteon da nossa cultura, museu e templo em que se inscreva a epopeia da nossa formação e se perpetue a lembrança dos que a serviram e por ela se imortalizaram.

Oxalá mereça essa ideia o vosso apoio e vos apraza recomendá-la aos responsáveis pelos nossos destinos!

***

Ao evocar perante vós a figura de Clementino Fraga animou-me o propósito de associar para sempre a sua memória às tradições de nossa Academia. Possuiu ele as qualidades de coração, de espírito e de caráter que mais honram o nosso povo. Na sua vida e na sua obra é a imagem do Brasil que transparece, lúcida, generosa e promissora. É o Brasil voltado para as glórias do seu passado e as perspectivas do seu porvir, consciente das suas responsabilidades e dos seus deveres para com a saúde e a educação dos seus filhos, um Brasil confiante nos rumos que a ciência e a tecnologia abrem à sua prosperidade, mas antes de tudo atento aos valores intelectuais e morais que lhe cabe preservar, sem deixar-se corromper nem transviar por miragens ou temores, um Brasil bastião da ordem, da cultura e da liberdade!

                                  (“Discurso na Academia Brasileira de Letras”, 1971)