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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Gustavo Barroso

RESPOSTA DO SR. GUSTAVO BARROSO

SR. OLEGÁRIO Mariano,

Em tempos que longe, bem longe vão, quando ainda em derredor da famosa Távola Redonda, o rei Artur reunia os seus altos e valentes barões, entre os quais Galeão das Ilhas de Além, Lançarote do Lago e o grande Perceval, – contam os velhos mabinogion, perfumados de poesia céltica, que, na sala de tão ilustre assembléia, só tinham acesso os filhos de reis e os artistas “que trouxessem consigo a sua arte”.

Uma feita, Lug, filho de Eithlenn, apresentou-se à porta do palácio real de Tara e a entrada lhe foi recusada. Enfuriado, encrespou as sobrancelhas à sombra da pala de aço do capacete, cruzou os braços nervosos sobre o peito largo, fitou o porteiro hostil, atroou os ares com o diaspad, – o uivo legal de protesto, e clamou:

– Abra a porta! Eu sou um mabinog, um menestrel! Eu sou poeta!
A estas palavras mágicas, a esse sésamo, logo os batentes de carvalho cobertos de grossas ferragens e de pregaria doirada rodaram sobre os quícios gementes, e o dystein, o intendente real, avançando mesureiro, disse a Lug, filho de Eithlenn:
– Vinde, senhor, e escolhei o vosso lugar. Hoje, aqui sois o primeiro!

AS PORTAS E OS CORAÇÕES DA ACADEMIA

Delegou-me a Academia poderes para receber-vos. Nomeou-me, pois, seu dystein nesta noite festiva e eu vos repito com intenso júbilo, que bem sabeis avaliar por terdes certeza do muito que vos quero, as palavras pronunciadas há tantos mil anos:
– Hoje, aqui sois o primeiro!

Às portas desta Casa, altas figuras, que podemos assimilar aos antigos filhos de reis pelo seu valimento, têm batido em pura perda e raras as têm visto abertas em virtude de nossa fraqueza mortal, porque, não vos iludais, nós – os imortais não pretendemos ser de essência divina e somos fragilimamente humanos.
Esta Casa foi feita, como os paços de Tara, para os artistas que tragam consigo a sua arte.
Logo de início, no vosso discurso, não esquecestes as duas malogradas tentativas para serdes dos nossos. Em ambas, posso assegurar-vos, a Academia, ocupada com outras contendas, não pôde ouvir bem a vossa voz. Mas, no momento em que ela, intensa, lhe chegou aos ouvidos, bradando: Sou poeta! – bem sabeis que, não somente as portas, mas os corações da Academia se abriram para acolher-vos.

A IDADE DOS POETAS

Estáveis fadado à Academia, Sr. Olegário Mariano. Em 1906, quando eu ainda não sonhara pegar da pena e vivia à solta, em tumultuosa boêmia pelas praias e sertões do meu Ceará, esporeado pelo ardor dos dezessete anos, publicáveis, aqui, no Rio que eu sonhava deslumbrante e tentador, com a alma alvoroçada de desejos, lá no fundo da minha província obscura, o vosso primeiro livro de versos. Estou quase a fazer-vos uma pergunta indiscreta:
– Que idade tínheis?

Contenho-me e não insisto, que às damas e aos poetas se não pergunta a idade. A mocidade das damas está na beleza que apresentam. A mocidade dos poetas está nos versos que fazem. Lede o “Rauso” de Alberto de Oliveira. É um soneto de vinte e dois anos!

OS PROFETAS DA ELEIÇÃO

Prefaciando esse livro, Guimarães Passos, entre outras coisas simples e belas, afirmava ao leitor: “Os versos que vais ler são de um menino (perdoa-me, Olegário), que tem bastante talento e zelo para não pensar que já atingiu à perfeição, e que seus versos já lhe dão direito a uma Cadeira na Academia Brasileira.” O grande Guima achava que era cedo para entrardes na Imortalidade – e como não! porém o vosso nome já lhe lembrava a Academia. Isto em 1906, há vinte e um anos! E mais perto de nós, bem mais perto, o espírito sarcástico do esquisito Apporelly, sob o título “Os últimos cigarros”, referente às “Últimas cigarras”, prenunciava o vosso triunfo na efêmera página dum jornal carioca:

É popular e querido
Pelas suas obras bizarras...
Olegário é conhecido
Como o “poeta das cigarras”...

E Mariano vai gozando
Felicidade completa,
Porque as cigarras vão dando
Para os cigarros do poeta...

E' forçoso que se diga
Que a ansiedade popular
Em torno dele... formiga...

Pois todos acham que, um dia,
Cantará até rebentar...
As portas da Academia...

Vê-se, portanto, como disse Lamartine, por vós citado, como afirmou Chevrillon, de Rudyard Kipling e eu repeti, quando a este aqui, saudei, que os poetas são em verdade profetas.

A GLÓRIA DOS POETAS

Sois um poeta, Sr. Olegário Mariano, na mais lata acepção dessa palavra. Dissestes, e com a maior razão, que, – sem quaisquer preocupações das escolas literárias sob a contingência do motivo ou da forma, não pretendestes ser mais do que poeta, deixando a alma dizer o que lhe aprouvesse em instantes de alegrias ou de tristezas. Eis aí a causa principal de serdes, entre os nossos poetas, um grande poeta, porque sois vós mesmo, sem artifício, sem ouropéis, sem máscaras, vós, integralmente vós, com os vossos defeitos e as vossas qualidades. E, na singeleza sem par dessa naturalidade, reside por certo a vossa maior glória.

“Não pretendi ser mais que poeta, bastando-me esse pouco para conseguir tudo”, acabais de dizer. Tendes de sobra motivos de orgulho para essa afirmativa. Poucos têm sido na nossa terra, tão madrasta às letras, poeta como vós. E não há no mundo glória maior do que a dos que fazem versos, desde Valmiki e o velho Homero até Dante e Camões, até Shakespeare e Victor Hugo, até Samain e Verlaine. Mesmo entre nós qual o general ou o estadista, qual o orador ou o jurisconsulto que fez estremecer a alma nacional e deixou-a vibrando ainda poderosamente após ter ido esconder-se na sepultura, como Olavo Bilac? Que glórias maiores no Brasil do que a de Gonçalves Dias e a de Castro Alves?
Lembremos os versos do uruguaio Marcelino Pérez:

Cuando no haya poetas, que será de la vida?
Que será de las astros, y la  fuente y la flor?
El silencio y la, sombra, en la tierra dormida...
Que será de las almas? que será del amor?...

OS POETAS E OS REIS

Pausânias, o primeiro folclorista da civilização mediterrânea, diz que antanho os poetas viviam com os reis. Anacreonte morou com Polícrates, tirano de Samos. Ésquilo e Simônide de Argos eram comensais de Hieron de Siracusa. Dionísio favorecera Filoxenes de Citera, que lhe dissera, um dia, preferir ser condenado a britar pedras a louvar os maus versos do déspota siciliano.
Entre parêntesis: os poetas são sempre muito perversos nas suas respostas aos poderosos. Ibn Errumi, poeta árabe do califa Mutahid, ofendera numa sátira o vizir Kevim, que o envenenou por vingança num banquete íntimo. Quando o poeta, cambaleando sob o efeito da peçonha, procurava sair da sala festiva, Kevim perguntou-lhe, maldosamente:

– Aonde ides?
– Onde me envias, replicou o outro.
– Então, dai lembranças a meu pai...
– Eu não vou para o inferno, tornou o poeta e emborcou morto.

OS POETAS E A VIRTUDE

Antágoras de Rodes e Aratus de Solis gozaram da intimidade de Antígone, soberano da Macedônia. E Pausânias assegura que Hesíodo não obteve tais favores por ser preguiçoso e que Homero preferiu uma grande reputação e uma glória sólida ao convívio com os grandes. Todavia é ele quem nos apresenta o poeta Demódocus cumulado de honrarias nos banquetes de Alcinous e nos diz, na Odisséa, que Agamenon, partindo para a guerra, deixara a rainha sua esposa acompanhada por um poeta.

Nesse tempo, os poetas faziam profissão de guiar os homens à virtude e de incutir-lhes o amor do bem, tanto que Egisto, a fim de poder corromper Clitemnestra, teve de exilar numa ilha deserta o poeta que a guardava. E sobre os mares em fúria, varridos pelo temporal, surgiam até delfins miraculosos que carregavam às costas os poetas em risco de se afogarem, como aconteceu com Árion.

OS POETAS E OS CÉSARES

A mão cruel e poderosa dos Césares protegeu, muitas vezes até carinhosamente, os poetas. Horácio, Virgílio, Lucrécio, Propércio, Tibulo e Catulo receberam os benefícios do Palatino. A aventura misteriosa em que Ovídio se envolveu a outros levaria à morte; a ele levou somente ao exílio, onde cantou as saudades da esplendente coroa de poetas que honrava Roma e a quem Roma honrava. O infame Domiciano apreciava Marcial e muito custou a castigar Juvenal pelas suas sátiras.

OS POETAS E OS BÁRBAROS

Vede os conquistadores bárbaros escutando, acalmados, as gestas, os rimances, as loas, os lais e as trovas dos menestréis. O califa Harun-al-Raschid entretinha-se alegremente com Abu-Nurras e Tahir, general do califa Mamun, pagava a Abu-Tamman, por uma quadra, quarenta mil dirrhens de oiro. Vede na rude existência medieval a poesia florescer entre combates e rapinas como uma flor entre espinheiros.

Todo o idealismo dos troveiros que andavam de longada se resume nessa maravilhosa história, eternizada por Edmond Rostand, de Joffroy Rudel, que vai ao Oriente em busca da Princesa de Além, da qual a fama da beleza chegara até ele, no seu solar da Aquitânia, e a quem já tinham chegado os versos em que ele essa mesma beleza celebrava.

Vede, na vida negra de traições maquiavélicas e ensangüentada de crimes borgíacos dos príncipes italianos do Renascimento, os poetas passarem como cisnes alvos sobre águas turvas, tal qual disse Mereikowski de Leonardo da Vinci com Ludovico o Mouro. Então, os versos de Boccaccio viajavam com as suas credenciais de diplomata e Dante Alighieri era embaixador do Duque de Ravena junto à Sereníssima República de Veneza.

E nem preciso lembrar a auréola de poetas que cercava o Rei Sol nos esplendores de Versalhes, para acabar de dizer-vos, senhor Olegário Mariano, que fazeis bem em ser somente poeta, porque em verdade sois grande coisa.

OS POETAS E A FORTUNA

Que importa nem sempre a fortuna seja companheira fiel da glória, se a glória é bem maior e muito mais saborosa do que a fortuna? Uma vez, o sultão Mahmud encontrou na mesquita onde ia orar, um velho maltrapilho que escrevia qualquer coisa sobre a parede.
– Que fazeis aí? – perguntou.
O desconhecido respondeu-lhe:

– Emir dos crentes, sou o poeta Firdusi, envelhecido pelos trabalhos e emagrecido pelas privações, e estou fazendo a conta dos camelos carregados de oiro que me prometestes pelo meu livro...
Envergonhado, corrido, o sultão, que nunca mais se lembrara de pagar ao seu poeta, mandou entregar-lhe uma carga de dinheiro.

Dizei-me, Sr. Olegário Mariano, que preferíeis – ter escrito o Schah-Nameh, o esplendoroso Livro dos Reis, ou ter recebido a preciosa caravana do erário real? Bem sabeis que ao Senhor pequenino os Magos levaram, no presépio, mirra, oiro e incenso. A mirra provou-a ele nas amarguras do Pretório ao Calvário. O oiro deixou para que outros lhe tocassem. E, decorridos dois mil anos quase, ainda diante d’Ele só se queima o incenso...

MATANDO A POESIA

Não estou a incensar-vos, porque em alta conta tenho a vossa obra. No momento que passa, a desorganização da sociedade, que por aí vai à matroca, sem o leme da religião e sem a bússola da moral, reflete-se na vida literária. Os grupos com alcunhas em ismo afloram de todos os lados, sem que os seus componentes saibam direito ao que vêm e o que pretendem. Como na senilidade do império bizantino, ressurgem outros epístológrafos, asmatógrafos e epitalamógrafos, com rótulos diferentes. A mercadoria é a mesma: falta de talento, e, sobretudo, falta de cultura. Estamos num desses períodos em que, segundo dizia Goethe com tristeza, os próprios poetas se encarregam de matar a poesia.

ANACREONTE REDIVIVO

Esboçando um cenário da antiga Roma, Jean François Bladé aponta-nos velho aedo escravo à margem do Tibre:
– “Vieil esclave, chante encore.
– Passe ton chemin, grammairien curieux. Passe, illustre sénateur. Je chante ce qui ne vit plus que dans mon âme.”

Como esse aedo antigo, não cantais senão o que vos anda n’alma e eis por que a vossa poesia, – veio de água corrente, construção leve de areia, canto estridulado de cigarra em dia estival, poeira de sol, neblina de luar, bem brasileira no sentimento, bem nossa no lirismo faceiro, é tão encantadora e tão serena, e vós nos pareceis um Anacreonte redivivo, um Anacreonte reencarnado nesta pátria ardente e deliciosa.

Como o poeta de Téos, bem o sei, sois capaz de preferir a vossa alegre liberdade ao oiro dos Polícrates. Como ele, sois um poeta sutil e sem artifício, gracioso e discreto, cantando a divindade das cigarras, o prazer, a vida, a natureza, e os encantos maravilhosos do amor. O outro, quando de Samos tornou a Atenas, por ordem de Hípias foi buscá-lo uma galera de cinqüenta remadores. Infelizmente, nesta que vos leva ad immortalitatem, não somos nem podemos ser mais do que quarenta...

O CANTO DAS CIGARRAS

Aquele a quem sucedeis nesta Casa e que foi meu dileto amigo, Mário de Alencar, com a sua nítida visão das coisas desde muito tempo já vos tinha perfeitamente compreendido. Em agosto de 1918, ele vos escrevia: “Agradam-me sempre os seus versos: não se parecem com os dos outros, e é já um motivo de gosto ouvir entre tantas vozes uma voz distinta.” Nessa mesma epístola, achava que o canto das vossas cigarras se antenuava sob a vibração luminosa do estio. Faltou-lhe acrescentar que esse estio claro e vibrante era a vossa luz interior, que dá aos vossos versos as cores da vossa alma. Eis por que, no mesmo ano, Bilac podia dizer da Água Corrente: “o murmúrio desta água cantante, sangue da terra, embalou, encantou, consolou o meu espírito em dias e noites de enfermidade triste...”
Mas ouçamos o canto das cigarras:

CONSELHO AMIGO

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,
Gosto da tua frívola cantiga,
Mas vou dar-te um conselho, rapariga:
Trata de abastecer o teu celeiro.

Trabalha, segue o exemplo da formiga,
Aí vêm o inverno, as chuvas, o nevoeiro,
E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,
Pedirás e é bem triste ser mendiga!
E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava,
(Quem dá conselhos sempre se consome...)
Continuava cantando... continuava...

Parece que no canto ela dizia:
– Si eu deixar de cantar, morro de fome...
Que a cantiga é o meu pão de cada dia.

NOITE SONORA

Anoiteceu. Pelas montanhas veio
Lentamente o crepúsculo caindo...
O céu, redondo e claro como um seio,
Ficou, de lindo que era, ainda mais lindo.

O vale abriu-se em pirilampos cheio,
Luzindo aqui, e ali tremeluzindo...
No regaço da treva, úmido e feio,
A natureza adormeceu sorrindo...

As ciganas, na sombra, se calaram;
As árvores no bosque farfalharam
Na esperança de ouvi-las e de vê-las...

Caiu de todo a noite quieta... Agora,
O céu parece uma árvore sonora
De cigarras cantando nas estrelas...

O ENTERRO DA CIGARRA

As formigas levavam-na... Chovia...
Era o fim... Triste outono fumarento!...
Perto, uma fonte em suave movimento
Cantigas de água trêmula carpia.
Quando eu a conheci, ela trazia
Na voz um triste e doloroso acento.
Era a cigarra de maior talento,
Mais cantadeira desta freguesia.

Passa o cortejo entre árvores amigas...
Que tristeza nas folhas... que tristeza!
Que alegria nos olhos das formigas!...

Pobre cigarra! Quando te levavam,
Enquanto te chorava a natureza,
Tuas irmãs e tua mãe cantavam...

As cigarras de Anacreonte eram gregas; as nossas são bem brasileiras, porque as cantais, não só nesta rica, bela e forte língua que falamos, mas com as nossas expressões familiares, com o nosso acento melancólico e com o gosto da nossa folhagem, da nossa água e da nossa terra. É verdade que lá vos escapou um outono, porém não se podem compreender em clima algum poetas sem outonos...

A ÁGUA QUE CORRE E CANTA

Desde vosso primeiro livro com prefácio de Guimarães Passos e desde mesmo a elegante plaquette dos XIII Sonetos, que esse brasileirismo no sentir e na expressão dia a dia ressuma mais caracterizado. E a maior razão do encanto dos vossos versos é que nos sentimos irmanados com eles. Bebemos todos da vossa clara e suave Água Corrente, água que corre e canta:

AS DUAS SOMBRAS

Na encruzilhada silenciosa do Destino,
Quando as estrelas se multiplicaram,
Duas sombras errantes se encontraram.
A primeira falou: – “Nasci de um beijo
De luz, sou força, vida, alma, esplendor,
Trago em mim toda a glória do desejo,
Toda a ânsia do Universo... Eu sou o Amor.

O mundo sinto exânime aos meus pés...
Sou delírio... loucura... E tu quem és?”

– “Eu nasci de uma lágrima. Sou flama
Do teu incêndio que devora...
Vivo dos olhos tristes de quem ama,
Para os olhos nevoentos de quem chora.

Dizem que ao mundo vim para ser boa,
Para dar do meu sangue a quem me queira.
Sou a Saudade, a tua companheira,
Que punge, que consola e que perdoa...”

Na encruzilhada silenciosa do Destino,
As duas sombras comovidas se abraçaram
E de então nunca mais se separaram.

O veio dessa Água Corrente mais se azula e transparente fica, embora borbulhe de emoção quando cantais a memória augusta de vossa mãe, a tão querida Dona Olegarinha, alma boníssima que na vossa se derramou, heroína da Abolição, cuja morte fazia em 1898, o grande Joaquim Nabuco dirigir a vosso pai esta carta, que peço permissão para ler:

Meu caro José Mariano,

Apesar de afastados um do outro pelas peripécias políticas dos últimos anos, conservo-lhe sempre os sentimentos da nossa velha camaradagem e por isso o golpe que o feriu tão profundamente afetou-me também pela lembrança viva que guardo de D. Olegarinha, tão boa quanto bela.
Nunca me há de esquecer na eleição de 14 de setembro o modo pelo qual ela se associou à nossa comum e grande vitória. As agitações da sua vida, na República, sobretudo, em que ela deve ter passado por transes atrozes pensando em V., conservaram aquele coração extremoso em constante abalo. Foi talvez o mais duro tributo que V. terá pago à horrível política do nosso tempo. Eu como seu amigo, faço votos para que depois de tão doloroso sacrifício, V. pense no dever que tem de economizar a sua própria vida no interesse agora de seus filhos.
Creia, meu caro amigo, que é de todo o coração que lhe escrevo estas linhas.
Seu sempre dedicado

Joaquim Nabuco.

Perpetuais, como bom filho e bom poeta, a memória da santa nesta doce poesia:

PALAVRAS DE MINHA MÃE

Quando, num dia calmo, eu vim ao mundo,
Minha Mãe-santa e nobre Flor de Lis,
Disse, olhando os meus olhos bem no fundo:
– Meu filho! Hás de ser bom e ser feliz!

No decorrer do tempo, na bravia
Onda humana que ruge e se encapela,
Cada cousa de mal que acontecia,
Eu me lembrava das palavras dela,
E era um gozo infinito o que eu sofria.

Hoje, homem feito, a alma de crenças morta,
Colhendo males pelo bem que fiz,
Inda ouço a mesma voz que me conforta,
Sei a sorte que tenho... mas, que importa?
Quero iludir-me para ser feliz.
AS VOZES DO PASSADO

Platão queria banir de sua República ideal os poetas como inimigos da verdade e Santo Agostinho propunha infamá-los como aos comediantes. Referiam-se aos que arquitetavam fábulas perniciosas, ou ultrajavam a Divindade. Triste da república onde não pudessem medrar os verdadeiros poetas, aqueles que fazem sua lira do próprio coração.

Não vos baniria o filósofo da sua República, Sr. Olegário Mariano, nem vos expulsaria o santo de sua comunidade, porque a beleza e o sentimento dos vossos versos abrandariam decerto a aspereza dos seus preconceitos. E, quanto mais o tempo passa, mais vos sinto eu voltado para a vossa terra e para a vossa gente, às vezes até como que em êxtase, apurando o ouvido a fim de escutar as vozes do passado.

AS RESERVAS FOLCLÓRICAS

Confessais no nosso formoso discurso que, nesta última fase de vida literária, procurais lançar mão das reservas folclóricas trazidas da meninice, que passastes nesse grande Pernambuco, terra de heróis e de mártires, adormecido ao luar como um gigante, sonhando o sonho tumultuoso das revoluções idealistas, segundo no-lo pintou o poeta.
Hillebrand, o cavaleiro coberto de aço duma lenda medieval, depois de errar mundo afora, voltou à terra do berço para nela, como duro castigo, sentir-se estrangeiro. Não vos acontecerá jamais isso. Sois bem nosso, bem ligado ao torrão por inúmeras raízes e já começais a seguir o excelente conselho dum folclorista francês: “Puisqu’il t’a consolé de tout, demeure fidèle au passé. Ce qu’il en reste encore hâte-toi de le recueillir.”
De como dais cumprimento a essa nobre missão atestam os aplausos dos que vos lêem e dos que vos ouvem. Não preciso estender-me em considerações acerca da vossa poesia eminentemente folclórica, que pretendeis enfeixar, para gozo dos nossos espíritos, no futuro Canto da Minha Terra. Nele figurará decerto o inimitável e delicioso “Tutu Marambá”:
“Tutu, marambá,
Não venhas mais cá,
Que o pai do menino
Te manda matar.”

No seu berço de rendas, com brocados d’oiro,
Os olhinhos redondos de espanto e alegria,
Ele olha a vida como quem olha um tesouro...
– Meu filho é o mais lindo desta freguesia.

O filho da coruja!
A boquinha em rosa, a mãozinha suja,
Com os dedinhos gordos já dá adeus.
Fala uma língua que ninguém compreende...
Toda a gente que o vê se surpreende:
– Tão bonitinho! Benza-o Deus!

É redondo como uma bola.
O seu polichinelo com um grande guiso
É a única cousa que o consola...
Meu filho é o meu melhor sorriso.

Que noite clara anda lá fora!
O luar entra no quarto, manso e lindo,
Com a expressão angélica de quem chora...
Roça o berço: o menino está dormindo.

Então, a voz que mal se sente,
Vai cantando maquinalmente:

“Tutu, marambá,
Não venhas mais cá,
Que o pai do menino
Te manda matar.”
O SACI

Não esqueçamos o lindo poemeto Saci Pererê, em que o feitiço da noite brasileira nos empolga e os versos dançam na nossa imaginação como o endiabrado lutino:

Corre, corre levando na carreira
A ânsia dum grande sentimento oculto.
É o saci pererê. Gênios da mata,
Vede-o: o cabelo verde se desata
Ao vento, afaga as árvores, enlaça
Os troncos, pára e, olhando a selva inteira,
Parece que no olhar profundo abraça
Todo o esplendor da terra brasileira!

A LENDA DA IARA

Há muitos anos, um poeta do norte, desbravador do caminho tradicionalista, Teles de Sousa, hoje quase esquecido, pôs em versos a lenda da Iara, tão bem aproveitada por Afonso Arinos, que o grande Couto de Magalhães salvara do olvido e que até nós chegou com o perfume da raça tupi:

Era na taba dos Manaus, outrora,
Num recanto de virgem natureza,
Onde, risonha, se alevanta, agora,
Do Rio Negro a próspera princesa.

E o filho do tuxaua preparara
O necessário pra sair à pesca;
Cantava além fatídica cauã...
E depois se dirigiu numa igara
Ao pequeno regato que refresca
A ponta do Tarumã.
Era da tribo o moço mais formoso!
Ágil, robusto e forte e destemido,
Assim tão destemido e valoroso
Ainda outro não tinha aparecido.

Quem da floresta virgem no regaço.
A zarbatana destro manejava,
Cuja flecha, certeira, não errava
O aracauã atravessando o espaço!

Quem o tacape com valor brandia
Da guerra nos embates,
Era o moço tapuio, a quem cabia
A palma nos combates.

Era o orgulho da taba dos Manaus
E do velho tuxaua o sucessor,
Que dos Mundurucus feros e maus
Fora sempre o terror.

E o filho do tuxaua preparara
O necessário pra sair à pesca.
Cantava além fatídica cauã...
E depois, dirigiu-se numa igara
Ao pequeno regato que refresca
A ponta do Tarumã.

E assim por diante.
Nestes versos frouxos, cheios de defeitos, embora com certa inspiração, a lenda mal sai da ganga primitiva para a literatura na verdadeira acepção desta palavra. Tanto assim que, no Cancioneiro do Norte, Rodrigues de Carvalho a incluiu entre as produções populares. A vós coube, Sr. Olegário Mariano, introduzir a Iara no mundo das letras, envolta nas galas da poesia. Por vós, o tema indiano foi tratado por mão de mestre, cinzelado como um hostiário de Frei João de Segóvia. A distância que vai do poemeto complicado e frouxo de Teles de Sousa, aos vossos versos leves, polidos e sintéticos é tão grande que, no dia em que alguém maldosamente quiser cotejar as duas produções, podereis responder de cabeça ereta que o material foi o mesmo – reserva folclórica, mas, no meio, consoante a receita espanhola, houve necessidade de poner talento:
Senão vejamos a vossa Iara:

Jaguarari, o filho do tuxaua,
Era formoso, elástico e sensual.
Tinha nos olhos o ímpeto bravio
Da água do Grande Rio
Quando passa em tropel, quando ruge em caudal.

Destro, selvagem como um potro,
Vê-lo era ver na glória matutina
A bandeira das asas em troféu,
O gavião de penacho que domina
Toda a floresta e faz maior o azul do céu.

Quando na igara pequenina e leve
A correnteza múrmura descia
Ao clarão flamejante do arrebol,
À proa, o filho do tuxaua parecia
Um pássaro de fogo em caminho do sol.

O puma ruivo e hostil, de olhos de ferro em brasa,
No enredado cipoal da selva acesa,
Ou o veado arisco ao pé do buriti,
Não tinham a bravura, a insolência, a destreza
Nem a elegância de Jaguarari.

Ninguém como ele arremessava a flecha
Do arco reteso. A flecha ia, certeira,
Ao gesto varonil do braço nu,
E cortava, de súbito, a carreira
Por vales e grotões, do caitetú.

Na taba dos Manaus, havendo festa,
Ao rufar do trocano, ele terçava
A tangapema de tal jeito, que a uma voz,
O grupo dos guerreiros proclamava
Jaguarari o mais valente e o mais veloz!

A seta ervada da zarabatana
Que ele assoprava às árvores, sorrindo,
No orgulho de um guerreiro sedutor,
Rompia o espesso matagal, ferindo
O carachué na castanheira em flor.

Ao florescer da mamorana, quando
Fendia a igara a superfície plana
Da água que se encrespava em frenesi,
O vento sacudia a mamorana,
Jogando flores em Jaguarari...

No canto das mulheres o seu nome
Vibrava, ora em relâmpagos de ameaça,
Ora plangendo como os urutaus.
Esse nome que, dando orgulho à raça,
Era a glória da taba dos Manaus.

Nas tardes silenciosas, a canoa
Do jovem deus, banhada pelo poente,
Ia, ligeira como a jaçanã,
Ao sabor do destino da corrente,
Rumo da ponta azul do Tarumã.

E lá ficava horas inteiras... Vinha
A noite e a água, em balanço, como um berço,
Apurava-se em música a embalar
Jaguararí num grande sonho imerso,
Sob a melancolia alva do luar...

– “Que pescaria é essa, filho, que entra
Na noite imensa que me desconforta
Como o presságio de uma sorte má,
Na hora em que ronda a natureza morta
O espírito funesto de Anhangá?

Nunca lhe ouviste a voz maldita e cava?
Anhangá, altas horas, quando passa
Eriçando o cabelo aos capinzais,
Espalha como a sombra da desgraça
O veneno das dores imortais.”

Assim se lastimava a mãe tapuia
Ao ver o filho amargurado e aflito
Entrar com passo tardo a habitação,
Trazendo os olhos cheios de infinito
E o infinito do céu no coração.

Às palavras da mãe enternecida
Jaguararí, absorto em suas mágoas,
Olhava-a muito e em seu olhar cruel,
Toda a profunda solidão das águas
Borbulhava num lúgubre tropel.

– “Filho! Guardo nos olhos a lembrança
Da derradeira vez em que sorriste...
A alegria esvoaçava em torno a ti,
Hoje vives sem alma, sempre triste,
Olhando as águas como o maguari.
Os jurupis perversos da floresta
Na hora em que o vento os arvoredos corta,
Os jurupis envenenaram-te o ar.
O acauã vem cantar à nossa porta.
Dize, meu filho, que te faz chorar?”

– “Mãe! Eu a vi! Como era linda! Tinha
Os cabelos caídos pelas ancas
Como raios de um sol que não tem fim.
E o corpo branco como as garças brancas
Tremia caminhando para mim...

Quando ela canta os pássaros se calam.
A tarde absorta fica mais tranqüila
Ao som daquela voz vinda do além.
Quedam-se os rios todos para ouvi-la
E a cachoeira, a escutar, pára também.

Ela olhou para mim e abriu-me os braços...
Era linda! Toquei, desfalecendo,
Seu corpo nu de uma nudez sem véu
Que ia de manso desaparecendo
No fundo da água que reflete o céu.

Eu quero ouvi-la ainda! Quero vê-la...
Quando sobre a intranqüila natureza
A iaci vem surgindo, devagar,
Não tem a melancólica pureza
Que anda boiando a flor do seu olhar.”

– “Tu viste a Iara! Foge, filho amado,
A Iara mente! Nos seus olhos vagos,
Na luz verde que espalha em derredor,
Como da água parada de dois lagos
A morte ri para matar melhor.”
E a velhinha chorava... No outro dia
A canoa nas águas que a levaram
Passou de igarapé em igarapé...
Os Manaus, quando a viram, murmuraram:
– “Lá vai Jaguarari pescar tucumaré!”

Mas, de súbito, enchendo a tarde imensa
Um grito abriu-se na alma do infinito,
De quebrada em quebrada a se perder...
As mulheres choravam nesse grito:
“Corre, gente, vem ver! Corre, gente, vem ver!”

Dois corpos enlaçados num só corpo,
Ao bramido monótono e tremendo
Da cachoeira em diabólico escarcéu,
Iam de manso desaparecendo
No fundo da água que reflete o céu...

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Hoje, as águas que passam dia e noite,
Ora em fúria selvagem que espadana,
Ora gorgolejando aqui e ali,
Quando cai uma flor da mamorama
Cantam de mágoa por Jaguarari...

AS NOSSAS COISAS

Louvo a brasilidade das concepções deste jaez! Louvo todo pendor artístico para as nossas coisas. Mas o meu louvor é sem exageros, embora seja eu um regionalista. Sinto-me, pois, à vontade dentro deste assunto. Já li algures que é preferível tratar das nossas coisas em caçange a falar da Grécia ou da França em língua de bom quilate. Insurjo-me contra essa opinião. Um artista brasileiro pode escrever, pintar e esculpir motivos estranhos à nossa terra e à nossa gente sem deixar de ser brasileiro. O cunho do seu nacionalismo está na sua interpretação. As maravilhas esplendentes saídas das manoplas informes do Aleijadinho são da arte barroca do sul da Europa; contudo nada mais profundamente brasileiro. E Bilac, cantando Frinéia ou Cleópatra, não as cantou com o dátilo ou o espondeu acaio, nem com os ritmos doces do Egito helenizado; porém sim com versos refulgentes como o nosso sol, perfumados como as nossas matas e impregnados de langor como a nossa saudade.

O CABOCLISMO

Fora dessa concepção larga, considero o que se tem pretendido impor como cânone de arte, na prosa e no verso sobretudo, um caboclismo exagerado e uma limitação da liberdade de artista.
Na nossa psique não continuam somente a se entrechocarem três elementos raciais básicos: negro, índio e luso. Pelas contingências da evolução, somos hoje mais universalizados: luso-brasileiros, ameríndios-brasileiros, áfrico-brasileiros, anglo-brasileiros, franco-brasileiros, teutos, tchecos, iberos, sírios, ítalos ou poloneses-brasileiros, conforme as regiões, todos, entretanto, brasileiros a se difundirem neste imenso cadinho de oito milhões de quilômetros quadrados, que há de ser um dia o orgulho do continente!

Vosso brasileirismo, Sr. Olegário Mariano, acentuamos bem, está fora dos estreitos moldes apregoados, e inscrito de coração na fórmula larga que abrange todas as concepções do espírito. Sois uma individualidade e não um autômato dentro dum nacionalismo exagerado. E é de tal largueza de vistas que tem a irradiante simpatia impressa nas vossas atitudes, ressumante da vossa personalidade e derramada pelos vossos livros.

OS ANTECESSORES

Sr. Olegário Mariano, sucedeis nesta Casa, na Cadeira de Joaquim Serra, a duas grandes figuras. Curvo-me reverentemente ante a memória da primeira, José do Patrocínio, que só de nome conheci, herói quase lendário que tão bem nos apresentastes. Curvo-me reverentemente ante a elegância moral e mental de Mário de Alencar, que foi dos meus melhores amigos e sobre cujo túmulo verto lágrimas de saudade. Estudastes com serenidade e doçura, como devíeis, essa figura de que posso falar, porque com ela privei. Era uma alma eleita, de estranha sensibilidade, de percuciente inteligência, todo sentimento, todo vibração, todo coração, duma inteireza moral magnífica. A Academia jamais o esquecerá, porque ele nunca trabalhou que não fosse a prol da Academia!

OS POETAS FELIZES

Embriagado pelos vossos versos de oiro, afastei-me das praxes acadêmicas e não fiz a resenha bibliográfica da vossa obra poética nem alinhei a data do vosso nascimento, do vosso primeiro dente, da vossa indefectível formatura e até da vossa eleição. Perdoai-me essa falta de academicismo na minha oração, tão distante dos moldes clássicos dos Isócrates e Quintilianos, tão distante! É que preferi contar das emoções que me transmitis, da maneira como as nossas almas se compreenderam. Talvez tenha feito de menos; todavia a minha intenção era fazer de mais...

Afirmam comumente que os povos felizes não têm história. Pois os poetas felizes não têm biografia. Vós, Sr. Olegário Mariano, segundo confessais, exagerando, com o simbolismo duma lenda zaporoga ou moscovita, as asperezas da escalada que vos trouxe a esta Casa, creio que vos sentis neste momento feliz. Entretanto, mais felizes, acreditai, sentimo-nos nós todos por vos abrirmos mais que as nossas portas – os nossos corações, repetindo:

– Hoje, aqui sois o primeiro!