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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. OLEGÁRIO MARIANO

SR. PRESIDENTE, Srs. Acadêmicos:

Ainda naturalmente conturbado pela surpresa do vosso gesto acolhedor, descerrando-me as portas desta Casa ilustre depois de duas tentativas malogradas, permiti-me evocar um episódio de uma novela que li na minha infância e cuja reminiscência ainda hoje me abala a sensibilidade e me umedecem os olhos. É a história comovedora de dois adolescentes russos que se entregavam ao pesado labor de caçar ninhos de águias no Cáucaso. Moços e destemerosos, mal dealbava, ganhavam a encosta abrupta sobraçando um rolo de cordas, uma forquilha de ferro e a matalotagem necessária à refeição frugal. Chegados ao alto da montanha, distendiam o olhar de aventureiros pelo céu que flutuava como uma bênção tranqüila sobre a escura garganta do despenhadeiro. Aquele céu quase de exceção naquelas regiões, era para eles, invariavelmente, uma esperança de melhores dias.

As nuvens que passavam atropelando-se ao vento, ora translúcidas de sol, ora pejadas de tempestades, criavam, na imprecisão dos contornos, a arquitetura fantasmagórica de uma cidade encantada de castelos medievais de torreões vermelhos e pontes levadiças onde pairava, levíssimo, o pensamento dos dois adolescentes numa doida volúpia de aventura e de beleza épica. Quando voltavam à realidade melancólica, tontos do êxtase que os empolgara, era para o reinício da árdua tarefa que lhes assegurava a subsistência. O mais novo, tipo ágil e intrépido de acrobata, descia, atado pela cinta, a encosta a pique; o outro, mais espadaúdo, continha na forquilha tosca a descida da corda. Depressa o corpo, em prodígios de malabarismo, oscilava no ar como um pêndulo.

Embaixo o abismo escancarado, em cima a pureza do céu tranqüilo. A um sinal convencionado, o corpo estacava para o impulso do balanço, e, varando o côncavo da rocha, agarrava-se às arestas onde as águias, longe da maldade humana, já talvez numa atmosfera de mundos superiores, trabalhavam os ninhos. A essa hora era sempre fácil a colheita. Enchia a sacola de ovos, dava o sinal na corda e, logo, o irmão içava o corpo com a força indomável dos seus músculos de ferro.

Um dia... Há repetidamente na vida que vivemos a fatalidade de um dia. Acordara sem dúvida de olhos contentes o audacioso violador de ninhos. Tudo o impelia para a aventura costumada. Ao penetrar o rincão desejado, um grito selvagem abalou a brutalidade da rocha, despertando-a do sono multissecular.
De súbito, envolveu-o uma revoada fantástica e ele, no pavor da surpresa, sentiu que a morte lhe andava em torno e à espreita. Arrostou-lhe a catadura tremenda, viu-lhe os olhos faulhantes, viu-lhe o aspecto sinistro e pensou no desfecho inevitável. Um minuto mais e estaria condenado sem remissão. O braço de autômato desembainhou a adaga para a última defesa: foi uma luta de minutos que teve intensidade para muitas horas. Cada golpe alucinado, desferido às tontas, espalhava uma revoada de grasnos e de penas em meio ao alarido imprevisto. A águia, várias vezes ferida, acometia sempre e sempre, desprendendo chispas das duas brasas redondas dos olhos, aqueles olhos com reflexos de racionalidade, que apontavam ao conquistador temerário o caminho da morte. Num arranco supremo, retesou os membros, firmou-se na corda e desferiu o golpe final.

A águia, atingida em cheio, revoluteou e abrindo as grandes asas na tentativa de um esforço derradeiro, foi afundando, afundando pela gorja do abismo impenetrado. Lindo teria sido o golpe, mas a corda que sustinha o corpo, estava por um fio, ferida também no desespero da luta. Embaixo sempre o abismo; em cima o céu imenso e entre o abismo e a vida, – a escarpa que se lhe afigurava intransponível. Ao ritmo do corpo que manejava a corda, o corpo ensangüentado ia subindo... ia subindo na manhã clara. No alto, quando seus pés pisaram a rocha musgosa, o irmão, atônito, recuando de espanto, sem coragem para estreitá-lo num abraço, viu que ele tinha a cabeça toda branca e ria para o céu. Estava louco.

*  *  *
Cheguei, por fim, ao píncaro da montanha. Há tanta luz cá em cima que sinto a visão enturbada. Malgrado a aspereza da escalada, não tenho os cabelos brancos nem o corpo a sangrar por mais que a minha luta se parecesse com aquela do herói da novela eslava. Trago, sim, é um grande cansaço dessa luta não pequena, luta de inteligências em que venceu, como não fora de esperar, o mais obscuro e o mais humilde dos que ansiavam pela vossa glorificadora Companhia. Os que concorreram comigo lealmente, muito mais mérito estadeiam e não serei eu que o oculte de certo. Por isso, talvez, as duas minhas primeiras investidas não lograram êxito, pelo vosso seguro espírito de justiça. Outro qualquer retrocederia sem ânimo. Eu não. Teimei em bater-vos à porta, estimulado pelo orgulho de sentar-me um dia entre vós, meus mestres e meus amigos, para poder trabalhar com mais entusiasmo e perdoai que vos fira a modéstia – e mais talento, que o talento é, por força, contagioso.

Não creio que a minha obra apenas iniciada me conceda legitimamente a subida honra que vindes de conferir-me. Nem sei bem porque foi atendido o meu apelo, se tão desmerecido é ainda o meu ativo literário. Provavelmente atuou, a modo de valor primacial, a vossa magnânima simpatia, e, logo o pressentimento do que, com o vosso exemplo, poderia criar o confrade que vos fala tão emocionado. Prometo-vos, por isso, sob a palavra mais sagrada, esforçar-me por merecer o vosso galardão e a vossa Companhia, trabalhando sem outro pensamento que o de colaborar na elevação cada vez maior desta Casa tão asseteada, mas tão ambicionada.

No momento de entrar este recinto pela mão do meu prezado e ilustre Sr. Gustavo Barroso, concedei-me, Srs. Acadêmicos, a mercê de adiantar algumas palavras acerca da minha formação literária. Vede nisso o começo da plena satisfação que hei de dar-vos por vos haver solicitado uma poltrona nesta Casa e uma poltrona em cujo espaldar fulguram três luminosas expressões do gênio brasileiro. Pequena, crede bem que o direi sempre, não foi a minha ousadia.

O homem nem sempre é, como se assevera, um produto do meio em que se forma, no sentido moral e físico. Se por uma face a natureza tropical me emocionou desde o berço, na minha província, sonorizada de violas e cantadores, de outra encontrei-me adstrito a uma cidadela revolucionária, riscada de tumultos e oratórias clangorosas, muito mais avassalante. O ruído das agitações daquele tempo memorável tomou-me na lembrança o lugar da toada e do desafio dos violeiros do norte, embora estes, de preferência, me acariciassem a alma em formação. Isso porque, quando abri os olhos sôfregos para a vida, empolava-se em redor de mim com o estrépito abolicionista a preamar republicana que desde 1817 parece não sofrera nenhuma solução de continuidade.

Contemporâneo do advento da Abolição, senti que me derramaram no sangue ânsias de independência e de humanidade. Meu Pai, figura bíblica no cenário político da época na minha terra, senão no Brasil imperial que agonizava, com a cartilha que me pôs diante dos olhos, ensinou-me a grande arte de seduzir pelo coração. Foi com ele, nas suas atitudes de homem e de batalhador intimorato, nos seus gestos de supremo liberalismo em face do calvário malsinado da escravatura, que aprendi a lídima significação da poesia humana, porque, Srs. Acadêmicos, foi meu Pai o primeiro poeta com que privei e que me sensibilizou, poeta da Abolição através do exaltado visionário, abrindo as portas de sua velha casa e o seu imenso coração ao infortúnio da raça proscrita sem olhar para trás como aquele Brissot da Revolução Francesa, para ver se o seguiam e o aplaudiam. Em volta dessa casa que era o baluarte inexpugnável dos homens de ação naquela hora histórica de que nos devemos sempre orgulhar, relampejava, à maneira da divina coluna que vanguardeou as gentes de Moisés, o espírito generoso da liberdade dos homens esmagados pela mácula étnica. Autênticos torneios d’Ágora acordavam em cada pelejador da boa peleja instintos de leões indomáveis que arremetiam, magníficos, contra interesses e preconceitos do capitalismo e da política mal orientada.

A salvaguarda dos seus princípios que eram, no fim de contas, os direitos à vida daqueles mártires negros, determinava, como era de supor, episódios de raro denodo que ainda se hão de gravar na história da nossa grande Pátria.

Aflorando dessa cheia revolucionária, era, pois, natural que houvesse em mim a galhardia heróica e o desempeno quase descomedido daqueles girondinos do norte, estrepitando no vozerio demagógico. Mas, assim não foi. Uma índole diversa modelava-me o temperamento e torcia-me o rumo do destino. É que ao contato de homens que se batiam, de refrega em refrega, e pregavam as suas idéias em comícios na praça pública, eletrizando, alucinando e arrastando os auditórios, aparecia com o seu diadema de estrelas à fronte, pura entre as puras, sorrindo um sorriso que era mais do céu que da terra, a imagem de minha Mãe a quem Nabuco chamou na Minha Formação – “um puro Carlo Dolce”. A ela devo, mais talvez que a meu Pai, o condão de ser poeta e de, muito cedo, afeiçoar-me religiosamente a esse plectro que me impôs à vossa simpatia, plectro que quando firo, como que ouço a música inicial do seu beijo acordando aleluias na minha saudade.

É o instante de volver um olhar retrospectivo, de alma serena, e reler páginas desse livro que escrevemos de memória. Passarão, dessarte, como num painel igual àquele da vida de Santa Genoveva, de Puvis de Chavannes, um por um, os episódios dramáticos que fizeram de minha Mãe uma dominadora figura de lenda. Vejo-lhe os olhos azuis em lágrimas, vejo-lhe as mãos lívidas a cortar algemas de escravos, vejo-a exortando e estimulando os arautos das justas comiciais, vejo-a empenhando todas as suas jóias para que Nabuco, vitoriosa expressão de combate, não fosse derrotado num pleito renhido e vejo-a, afinal, cercada de gente humilde, o organismo enfraquecido por vigílias forçadas, ir cerrando mansamente os olhos, aqueles olhos profundos e consoladores que, com uma lágrima, mitigaram a amargura de tanto coração.

Quando a necessidade de instruir-me num centro maior levou meu Pai a transportar-me aqui para o Rio de Janeiro, ingressei no Colégio Pio Americano. Recordo pelo simples desejo de evocar o ambiente daquele colégio celebrado então nos domínios da pedagogia e a minha iniciação, adiante, no Árcade depois de Alberto de Oliveira, professor de literatura, fundar a sociedade literária “A Arcádia”, para estímulo de seus alunos. Esse professor, o nosso mestre Alberto que ali está a ouvir-me, animou-me, naquele periódico colegial, com estampar-me os versos e premiá-los benevolamente. Com que febre, concluídas as lições do dia, pensava os meus poemetos trôpegos de mocidade e arrumava, rima a rima, os quatorze andares do castelo de cartas de um soneto. Vê-los a seguir em letra de fôrma era um contentamento de jovem rapsodo. Mais tarde acheguei-me a Guimarães Passos.

Guima o prefaciador de um livro que publiquei aos dezesseis anos, foi o meu guia no momento em que cuidei numa finalidade literária. Já glorioso, o poeta insigne dos Versos de um Simples não se sentia diminuído em encaminhar o passo vacilante de um confrade. Às suas lições e conselhos muito devo ainda hoje e, pelo fato de o não haver olvidado, rendo-lhe nesta evocação o meu preito de saudade.
Daí por diante, sem quaisquer preocupações de escolas literárias sob a contingência do motivo ou da forma, não pretendi ser mais que poeta, bastando-me esse pouco para conseguir tudo. Não realizei, é claro, o poeta adivinho, de altas prerrogativas com teorias estéticas pré-determinadas.

Preferi invariavelmente deixar a alma, pela minha mão nervosa, dizer o que lhe aprouvesse num instante de alegria ou de tristeza. Nunca desejei mais do que isso, embora concordando com o velho Lamartine que a poesia é também “le souvenir et le pressentiment des choses”. Pedi-me tudo de minha desvalia, menos um verso com insígnia escolar que reflita um solene postulado estético ou filosófico. A minha poesia há de ser sempre lastreada de uma sabedoria espontânea que também não sei como obtive. As almas e as paisagens que nela aparecem, melancólicas ou alvoroçadas, surgiram sem sombra de sacrifício, que umas e outras estavam presas à minha emotividade de lírico incorrigível.

Nesta hora, dia a dia mais em êxtase diante da minha terra e da minha gente, tão bela e tão boa, volvo para ambas a sensibilidade e as exalto e as abençôo com uma devoção enternecida. É o exemplo do nosso amado Bilac cada vez mais vivo na admiração brasileira, preferindo, muitas vezes, a qualquer motivo, o que bendissesse desta nossa Pátria unida e forte. Sem pretender incidir no regionalismo de horizontes limitados, parece-me que é o momento de explorarmos as nossas reservas folclóricas, tão ricas como as que mais o forem neste pletórico. Novo Mundo, cantando ao mesmo passo a terra morena e moça que assombra o estrangeiro pela sua exuberância prodigiosa e desabrochar em vergéis incomparáveis exaltando o homem que a povoa e a opulenta. Eu por mim comprometo-me a colaborar nessa obra que há de ser eminentemente nacional, uma vez que nela se moverão os nossos heróis em tipos reais ou lendários, esplenderão os nossos aspectos panorâmicos, gorgolejarão as nossas cachoeiras, correrão os nossos rios, avultarão as nossas montanhas, florirão os nossos jardins e fulgurarão as nossas noites em incêndios maravilhosos nas clareiras das matas, sob a bênção estrelada do Cruzeiro.

Mas já é tempo, Srs. Acadêmicos, de falar nos nomes que iluminam e assistem esta poltrona.

*  *  *
Joaquim Maria Serra Sobrinho! Que íntegra figura, íntegra e grande pela mentalidade e pelo heroísmo moral!
Nascido em 1838 na gloriosa Atenas brasileira que já nos dera aquele cronista inconfundível do Jornal do Timon como o nosso sempre moço e sempre grande Coelho Neto, Joaquim Serra revelou-se, desde a mocidade, o que soube ser depois, no pleno esplendor da sua máscula inteligência. Reuniu esses dois poderes admiráveis e tão desunidos sempre – caráter e talento. Fácil ser-me-ia demonstrá-lo com alguns episódios da sua vida de homem, de funcionário, de publicista e de político. Mas aludirei a outras faces de sua personalidade que é histórica, como a dos seus companheiros de geração e de prélio libertador.

Rumando muito moço para esta antiga corte de S. M. Pedro II, com a intenção de matricular-se na Escola Militar, Joaquim Serra quis foi conhecer e penetrar uma arena maior onde pudesse desenvolver a ação que já lhe agitava o sangue. Destarte, aqui fixou residência, abandonando a idéia de vestir farda militar. Ocupara anteriormente diversos cargos públicos na sua Província ilustre e como aqui em 78 o de Diretor do Diário Oficial, de que, com dignidade, se exonerou por divergir do gabinete de 15 de janeiro de 82. Pobre, mas altivo, na incorruptibilidade de quem não costuma sobrepor o interesse de qualquer ordem a um leve princípio de ética, ainda assim foi deputado à 17.a legislatura pela sua Província. Tudo isso, porém, nada representa na hora de se rememorar a ação poderosa de Joaquim Serra na Campanha Abolicionista. Ela foi, sem interrupção, uma das clavas tremendas contra o escravagismo autoritário que buscava amparar-se sob os argumentos de uma estranha economia política.

O cronista tenaz de “Argueiros e Cavaleiros” n’O País, como o dos “Folhetins Hebdomadários”, da Gazeta de Notícias, dos “Tópicos do Dia” e do “Domingo a Domingo”, não cessava de rebatê-los depressa e definitivamente, afirmando que nenhum Império poderia, com honestidade, assentar as suas bases numa ignomínia como a escravatura. Confundia, pois, por obra daquela sua maneira única de expressar-se, os adversários mais enfibrados. E isso, dia a dia, com um ritmo teimoso de pingo d’água, cansando e descoroçoando os renitentes. Dele disse Nabuco, com a sua autoridade de tribuno magnífico, “ele não deixou passar um dia sem a sua linha. Minado por uma doença que não perdoa, salvava cada manhã o que bastasse de alegria para sorrir à esperança dos escravos, a qual viu crescer, dia por dia, durante esses dez anos, como uma planta delicada que ele mesmo tivesse feito nascer”. Bem sabeis o que há de verdade nessas palavras de Nabuco, como nessas outras, incisivas de André Rebouças: “Serra foi o publicista que mais escreveu contra os escravocratas.”

Em meio à luta que foi, afinal, do povo contra o poder, este preso aos interesses dos entusiastas da escravidão, Joaquim Serra, malgrado a saúde frágil, operava prodígios de resistência física sempre à vanguarda, na trincheira mais exposta à fuzilaria adversa, com uma coragem que parecia crescer cada manhã, através de cada croniqueta. Machado de Assis relembrou em novembro de 88 quando “feita a abolição, desabrochada a flor, morria ele”... “A cintilação do espírito era a mesma – a frase brotava e corria pela folha abaixo, como a água de um córrego murmurosa e fresca”. Mais adiante acentuou o mestre de Quincas Borba: “Creio que Joaquim era principalmente um artista. Amava a justiça e a liberdade, pela razão de amar também a arquitrave e a coluna, por uma necessidade de estética social. Onde outros podiam ver artigos de programa, intuitos partidários, revolução econômica, Joaquim Serra via uma retificação e um complemento; e porque era bom e punha em tudo a sua alma inteira, pugnou pela correção da ordem pública, cheio daquela tenacidade silenciosa, se assim se pode dizer de um escritor de todos os dias, intrépido e generoso, sem pavor e sem reproche.”

Quem haverá merecido encômio tão alto de pena tão avara? No entanto, isso ainda era pouco. O pelejador indomável era ao mesmo tempo e com o mesmo vigor, o folhetinista, o comediógrafo, o historiador, o humorista e o poeta. Comprovam-no com eloqüência o “Sem Rumo”, do Jornal do Commercio, com seu costumado traço pessoal; Sessenta Anos de Jornalismo; A Imprensa do Maranhão; O Remorso Vivo; Os Melros Brancos; O Jogo das Libras; Epicédio à Morte de Manuel Odorico Mendes; Um Coração de Mulher; Quadros e outros trabalhos, muitos outros, de vários gêneros, do mais sisudo ao humorístico. Joaquim Serra não realizava o espírito especialista; ao contrário, o seu cérebro tinha as facetas desses diamantes bem nossos que parecem cegar-nos o olhar fascinado.
Não me afastarei da personalidade de Joaquim Serra, sem me ater um pouco mais ao poeta para acordar um fato da minha juventude escolar. Dos trechos de literatura da Selecta Clássica, de João Batista Regueira Costa, um, em verso, desde que o li, não me abandonou a memória. Aprendi-o insensivelmente, como aprendemos certas canções populares à força de ouvi-las repetidas a todo instante. Era a famosa “Missa do galo”, correntia composição septissilábica, de feição descritiva, que, lida, ficaria depois a cantar-me no ouvido:

Repica o sino da aldeia,
Troa o foguete no ar!
O rio geme na areia,
Na areia brilha o luar.

Quantas vozes, que alegria!
O povo da freguesia
Corre em chusma, folgazão.
No caminho arcos de flores,
Por toda parte cantores,
Folguedos e agitação.

Ali no largo da ermida
O tambor toca festeiro,
Se apinha o povo em redor;
E a igrejinha garrida
É toda luz e fulgor.

Vêm do monte umas devotas,
Têm o rosário na mão;
Uns camponeses janotas,
Calças por dentro das botas,
Seguindo o grupo, lá vão!

O sino da freguesia
Da branca igreja da aldeia
Cada vez repica mais;
O povo corre à porfia,
A capela já está cheia,
Soam trenos festivais.

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Céu de estrelinhas douradas,
Estrelas de papelão:
Brancas nuvens fabricadas
Da plumagem do algodão!

Anjos soltos pelos ares,
Peixes saindo dos mares
Feras chegando de além,
Marcha tudo e vêm na frente
Os reis magos do Oriente
Em demanda de Belém.

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Eu disse muitas vezes a mim mesmo esses versos que me encantam. Esqueci o nome do poeta que, por inconsciência de menino, não sabia ser o de um dos lugares-tenentes da revolução social que determinou um novo ciclo para a história do nosso país. Lendo depois o seu livro Quadros, comecei a descobrir as belezas rústicas que o poeta cantou, da gente e dos costumes de sua terra:

Ei-lo aí! É o Vicente
E mais o ruço-queimado!
Oh, homem, fala c’o a gente!
Venha um abraço apertado...

Que demora! Seis semanas!
Pois patuscas nessa idade?
Eu aqui a plantar canas,
Tu folgando na cidade!
Toma a bênção do padrinho,
Menino, deixa esse galo;
Moleque, sai do caminho,
Tira a sela do cavalo.

Solta-o depois no terreiro,
Fecha a cancela c’o a tranca...
Compadre, tome primeiro
Um bocadinho da branca.

E que suavidade embaladora na “Cantiga à viola” de uma tão viva nota sertaneja:

Tu foste na encruzilhada,
Saíste ontem da aldeia;
Eu te conheço a pisada,
Eu vi teu rastro na areia...

Estou de tudo inteirado:
Vais sozinha ao igarapé;
Sei quem mora do outro lado
Na casinha de sapé...

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Vi lascada a cajazeira
Onde teu nome escrevi;
Pedra de raio certeira
Só o meu deixou ali.

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Quando do céu se aproxima
Alguém que morreu de amar,
Hás de ver que lá de cima
Cai uma estrela no mar.

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Não fosse o muito que ainda tenho a dizer, reproduziria cenas de seus trabalhos de teatro para comprovar o que adiantei lá atrás, – que o espírito de Joaquim Serra foi arestado e fulgurante como um diamante brasileiro de boa água.

*  *  *

Compreendei agora, Srs. Acadêmicos, com que alta e dominadora emoção um filho de José Mariano falará de José de Patrocínio. Esse brasileiro extraordinário, com haver sido o gigante negro da Abolição, foi tocado de gênio, na sua expressão mais empolgante. Patrocínio teve prerrogativas de símbolo. A palavra desse negro formidável adquiriu miraculosamente fulgores apocalípticos. Surpreendeu, domou, arrastou as multidões sequiosas de liberdade e de humanidade com o seu soberbo império, despertando a exclamações estentóricas a consciência da época entregue à inominável miséria moral da escravidão, dos políticos e estadistas que a defendiam já às portas deste século. Não ignorais que quase desaparecem o jornalista e o político, diante da figura oracular do tribuno.

Confesso-vos que me minguam recursos críticos, pobre poeta que sou, para plasmá-la como devera, estudando-a com o poder que ela reclama, descobrindo na sua envergadura ciclópica novos valores, particularidades novas. Patrocínio exige um espírito do mesmo vôo potente que o critique como ele próprio criticaria alguém da sua assombrosa estrutura.

Quem poderia lá prever que aquele modesto fluminense, da cidade de Campos, servente de uma farmácia de hospital, tinha um destino admirável a cumprir, batendo-se por um ideal de tanta formosura cristã? É que Patrocínio não viera pisar esta gleba áspera que pisamos para aviar receitas, mas, antes, por vontade de Deus, nascera e se fizera homem para desoprimir oprimidos, abrir ergástulos dos feitores asselvajados e libertar e erguer e nobilitar e humanizar uma raça desditosa.

Ferreira de Araújo disse, certa vez, e com razão, que Patrocínio “foi a concretização do espírito nacional”. De fato, seu verbo repercutidor reunia em torno de si os soldados da causa generosa, incitando-os a arremeter contra as muralhas do carrancismo escravocrata. O grande diretor da Gazeta de Notícias escreveu depois: “No ardor da peleja confiava mais no quadro descritivo dos horrores do cativeiro do que nas vantagens econômicas da Abolição.” Nabuco destacou-o sempre com toda justiça. O nosso saudoso Osório Duque-Estrada, cuja perda ainda me confrange o coração, falando no seu volume A Abolição, sobre a campanha que abalou os fundamentos do Império e acabou atirando-o por terra, afirmou que as suas maiores figuras foram José do Patrocínio, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Realmente, Srs. Acadêmicos. Basta uma evocação ligeira da continuada ofensiva de Patrocínio na praça pública e na banca de jornal.

Em 77, já com insígnias de Generalíssimo, entrou francamente para o jornalismo, formando ao lado dos melhores redatores da Gazeta de Notícias. Quatro anos mais tarde, com a morte de um dos proprietários da Gazeta da Tarde, Dr. Ferreira de Menezes, adquiriu essa empresa. Daí escreveu a Victor Hugo pedindo o seu apoio para a causa abolicionista. Em setembro de 87, abandonou a Gazeta da Tarde para fundar a Cidade do Rio onde, parece, cresceu o seu ímpeto combativo. O ardor era o mesmo daquele homem que fundara a Confederação Abolicionista e redigira o famoso manifesto endereçado ao corpo legislativo. Nomeado, com Joaquim Nabuco, delegado daquela Confederação na Europa, conquistou depressa simpatias. É que o seu nome já rompera fronteiras e oceanos. Em Paris, havendo escrito uma memória sobre a libertação do elemento servil no Ceará, reuniu, num banquete, senadores, deputados e jornalistas, com os quais trocou pensamentos. Foi, então, ovacionado. Patrocínio, mesmo não sendo negro – “o negro” – como ele próprio se apodava – em 26 de janeiro de 85, quando Nabuco, coberto de glórias, chegou eleito Deputado por Pernambuco, exclamou na sua oração calorosa da sacada da Gazeta da Tarde: “Joaquim Nabuco! O representante de um milhão e meio de escravos ajoelha-se aos pés do redentor de sua raça!” Que lhe importava a cor da epiderme, se lhe sobravam brancuras no espírito e no coração!

Como escreveu Araripe Júnior naquele seu notável ensaio que antecede o Contrastes e Confrontos, de Euclides da Cunha, Patrocínio “nascera com a oratória no sangue. Tinha incorreções de forma, deslizes filosóficos, insobriedades de imagens, mas uma vez na tribuna ou no artigo de fundo de um periódico, era um tumulto feito homem”. É que ele – acrescentou logo – “ainda que mestiço, recebera a força inteira da educação mediterrânea e, no seu cérebro, ao mesmo tempo que irradiava o verbo latino, levantavam-se os sirocos das terras adustas da África, os quais varriam tudo nos dias de cólera”. De poucas molduras surgirá tão perfeita a envergadura de Patrocínio, do Patrocínio da conferência sobre a emigração chinesa quando quis agredir em público o Barão de Cotegipe. Relede, Senhores, as palavras em que Araripe conta o triunfo estupendo dessa conferência em que, vivíssima, se alteou a “sórdida Pequim” para, em seguida comover o auditório ao iniciar “o capítulo mais lírico que já me foi dado ouvir dos lábios de um orador” – continuou Araripe. “O poeta dos escravos, das reivindicações históricas não fazia esforços nem usava de arte para fazer chorar, e, pondo a vivo os caracteres, as palavras desse mestiço de gênio escorriam sangue.” Crítica entusiástica essa e que bem refletia o gênio de quem cresceu desmesuradamente nos entrechoques da luta titânica.

Perdoai-me que insista. Ninguém melhor que Patrocínio simbolizou a campanha abolicionista na Corte e no Sul do país. Apesar de vultos tão ou mais altos, o animador por excelência foi Patrocínio. E isso se explica: tudo nele era mais vibração; todo ele ardia na chama messiânica, e quase como em holocausto fazendo elevar o tônus sentimental das multidões. Hipnotizando-as, amoldando-as, doutrinando-as, afastava-as cada vez mais da mentalidade escravocrata. Tão submissas ele as teve, tais prodígios com elas operou que hoje nos custa acreditar. Dois episódios resumem a mais longa análise.
Certa vez, no calor da oratória, o homem de cor que eu celebro nesta noite para mim gloriosa, empregou uma expressão falsa, mas que o auditório, empolgado, não chegou a perceber. Porque se não fora a hipnose a gargalhada teria espocado. Patrocínio no seu arroubo: “Nós, os latinos...” Era sincero e estava de todo esquecido da epiderme delatora. A verdade é que, malgrado isso, era, por dentro, mercê da cultura, o mais latino talvez dentre todos os que o ouviam.

De outra feita, porém, foi a repetição da cena pelo avesso. Patrocínio ia falar, quando grupos de escravagistas, disseminados no teatro, desandaram a vaiá-lo. Gritos reboaram na abóbada do edifício. Das galerias, das platéias e dos camarotes rechinavam como foguetes escarninhos os assovios do refrão entontecedor: “Fora o preto cínico!” – a que respondiam em delírio achincalhante: – “Fora o Zé do Pato!” – O orador, ereto junto às gambiarras, esperou. Esperou, sereno com uma resignação apostolar, um hausto da multidão cansada de vociferar. Em um segundo qualquer teve a frase que determinou uma reviravolta completa. Tal a psicologia multitudinária. Quando houve esse instante de trégua, Patrocínio aproveitou-a para dizer com uma voz estentórica, mas repassada de desespero e piedade: – “Quando Deus me deu a cor de Otelo foi para que eu tivesse ciúmes da minha Raça!” – Ó milagre do verbo na alma inexplicável das multidões! – não acabara o período, apenas esboçava a imagem shakespeareana e imensa para que o teatro todo, como um homem ou como aquele monstro dannunziano de mil cabeças, se lançasse no frenesi do aplauso vibrante.

Assim foi ele pela vida – sempre despertando ou arrancando emoções, risos ou chufas, na hora de falar ou de escrever. Não traía jamais o seu espírito profunda e instintivamente liberal. Ratificou-o na imprensa, na tribuna ou no livro. Tendo sido a Inglaterra grande propulsora da libertação dos escravos, ao tempo da guerra anglo-transvaliana, quando toda a imprensa brasileira clamava contra o golpe do imperialismo britânico, Patrocínio defendeu com surpresa o ponto de vista contrário. E essa campanha que nenhuma compensação lhe trouxe no momento foi, no aceso da Grande Guerra Européia, a chave com que a sombra rediviva do orador abriu as portas de um cárcere para que voltasse à liberdade e à vida o filho que lhe herdou o nome e que foi, com o atual comissário dos Sovietes para os negócios exteriores, Sr. Titcherine, o único a salvar-se do equívoco tremendo que teria como desfecho o nó corredio na garganta.
Mota Coqueiro, ou a Pena de Morte, sua obra mais divulgada, é um romance de improvisação. Foi, como sabeis, escrito nas desoras da redação, aos pedaços, precisando o autor verificar onde havia deixado o relato da véspera. Ressente-se assim de todos os defeitos da obra que se escreve sobre a perna. Se bem que a primeira edição do editor Domingos de Magalhães tivesse 274 páginas, toda a matéria poderia ser condensada em metade disso, ou pouco mais.

Porque – notemos – o orador metafórico continuou no romancista inflamando-se em contacto com as fórmulas sociais e os fatos, mas sempre com a preocupação de encantar o leitor de um dia. A substância propriamente ideológica de Mota Coqueiro é fraca. Da sua ação, que se desenvolve na costa fluminense de Maricá à barra de Itabapoana, ressaltam, com o ataque ao erro judiciário que leva o inocente à pena capital, algumas formosas paisagens e caricaturas de tipos rurais, com os seus defeitos e qualidades.

O Patrocínio construtor do balão-dirigível é já “um sol agonizando sem crepúsculo”, como ele disse de Danton numa página memorável. Vejo-o ainda, com infinita melancolia ali na estação suburbana de Engenho de Dentro, o paletó coçado, a barba falha e grisalha, o passo lento, esperando pobremente o trem para a cidade. Vinha do seu “barracão” e dava a idéia de um titã vitorioso, mas fatigado, o mesmo que sofrera a deportação de Cucuí, lá no longínquo Amazonas, para receber a homenagem daquela petição em seu favor com a assinatura inicial do grande Vacquerie.

*  *  *

É chegado agora, Srs. Acadêmicos, o meu momento de recolhimento e de êxtase.
Careço de muito atilamento e de muita serenidade crítica, porque Mário de Alencar viveu mais perto do meu coração. Platoniano devotado, esse cuja poltrona dignificada venho hoje ocupar, compreendeu, em verdade, o que disse o mestre harmonioso do “Jardim de Academus” que “a virtude é uma obra de arte”. Homem e artista, com aquela elegância moral que o acompanhou através da vida ruidosa, ombro a ombro com homens de temperamentos diversos, Mário de Alencar não realizou senão o ensinamento platoniano, com criar, dia a dia, paciente, silenciosamente a obra de arte de sua virtude. Daí os amigos leais que deixou e que não cessam de lamentar-lhe o desaparecimento.

De uma grande delicadeza moral, Mário sabia impor-se à afeição das criaturas mais esquisitas e temperamentos mais reservados, como Machado de Assis. E, como a ele se uniu depois o criador das Memórias de Brás Cubas, amando-o com um amor de mestre mais velho.

Srs. Acadêmicos, diante desta poltrona que Mário de Alencar iluminou com o brilho da sua inteligência e a bondade consciente da sua alma, não sei o que mais me preocupa, se o dever de apurar a minha capacidade para não a deslustrar ou a obrigação de purificar-me num banho lustral de harmonias para lograr ser bom como ele. Pertenceu Mário ao número dessas figuras que o tempo na sua corrida vertiginosa não consegue apagar do recôndito da nossa saudade, antes, como os bronzes patinados pelos séculos, avultam cada vez mais, crescem no cenário humano, dando a impressão de que continuam a agitar-se entre nós como personagens redivivas do drama eterno que se desenvolveu nas páginas de seus livros. Através do prisma artificial das artes que se renovam, essas figuras quase lendárias enchem os nossos olhos de um clarão de alvoradas.

Para nós, no momento desordenado que atravessamos e que quer ter a vaidade de ser pragmático, elas representam a época de ouro, o outro tempo dentro do qual se formou a nossa inteligência e se consolidou, a golpes de estudo, a nossa cultura. Expressão de um longo período literário, esse herdeiro heráldico dos nossos maiores líricos atravessou não poucas gerações, conservando, em todas elas, o necessário equilíbrio mental, a justa medida, o sentido da proporção e a serenidade que, afinal, lhe particularizaram a obra. Mário, realizador que buscava ser das sentenças do discípulo amado de Sócrates, tinha sobretudo o culto da beleza moral. Para ele esse culto sobretudo era uma espécie de religião. Nervoso, raquítico, pequenino, tímido e desambicioso, tudo nesse homem representava ansiedade por dominar o feixe de nervos que lhe punha constantemente a vida em perigo. Mas vencia sempre no domínio de si mesmo, por obra da energia interior que jamais lhe escasseou. É que não esquecia as palavras de Horácio nas Odes: – “Lembra-te de conservares uma alma igual.” Privando da sua intimidade, pude penetrar-lhe os arcanos do coração – lago quieto, às vezes, outras vezes agitado, de onde qualquer mergulhador voltava sempre com as mãos cheias de pérolas.

É dessa figura impressionante e até singular na história da literatura brasileira que venho ocupar-me, ainda aturdido dentro da clareira aberta pela sua morte nesta casa espiritual de Machado de Assis.
Recordo – e com que saudade! – uma tarde em que saímos juntos, a passeio, ali em Teresópolis. Éramos três: – Magalhães de Azeredo, Mário e eu. Caía a noite, grande noite constelada, envolvendo na magia do silêncio árvores e montanhas. A cidade virgem, coroada pela Serra dos Órgãos, despira a túnica doirada de Anacreonte para vestir um manto radioso de estrelas. Mário, que geralmente falava pouco, diante do espetáculo formidável da terra meio adormecida a embalar as colinas nos seus braços de árvores, pôs-se a falar baixinho. As cousas que ele murmurava eram tão belas, tão harmoniosas, tão penetrantes, que eu senti, ao prestígio da sua palavra, que aquele homem retraído e pequenino crescia diante de mim como um deus no cenário da paisagem miraculosa.

Cada gesto que esquecia no ar era um traço bíblico, cada evocação que fazia em êxtase, penetrava-me a alma numa carícia inédita. Magalhães de Azeredo, o grande poeta das Odes e Elegias, caminhava absorto; eu, maravilhado. A uma curva do caminho, paramos. Ante a cigarra humana que falava manso, uma outra cigarra estridulou num balsedo. Mário sorriu e pôs-se a ouvi-la com enternecimento.
– “Seu Olegário, você é um homem feliz. Ela veio saudar o seu poeta!”
Não sei dos três qual o mais poeta.

Poeta e santo como aquele sereníssimo Francisco de Assis, Mário de Alencar trazia o espírito do seu tempo na perpetuidade do sangue. Fruto de uma árvore sonora, voluptuoso do buril, lapidava as criações da inteligência e da alma para tornar-se cada vez mais digno dela. José de Alencar era o Brasil primitivo senão selvagem, atravessado de senhores truculentos e caciques de tribos, roncando no estrépito das cachoeiras, no galope dos ventos, no baque das grandes árvores centenárias.

Mário era o Brasil desta hora, apurado pelo influxo de uma civilização renovada e superior e que nos vai, pouco a pouco, distendendo os horizontes para conquistas definitivas. Aí estão os seus livros que valem para todos os que lêem e o conheceram de perto por um fiel retrato psicológico e mental do poeta e do prosador. Individualidade fascinadora, ele soube cumprir o seu destino na terra e realizar aticamente a obra que havemos sempre de admirar. A faculdade de expressão, expurgada de quaisquer falhas de linguagem e de pensamento, ele a possuiu como raros escritores do Brasil.

No seu entranhado culto da arte, pensava como eu penso, não sei se com muito espírito crítico – que nada vale a inteligência sem o contato do coração. Ela é vaga, imprecisa, inacabada. O coração entra com a matéria-prima que é o sentimento para coroar a obra de perfeição e de beleza.
Em qualquer página, que caía sob a avidez de nossos olhos, aparece como através do cristal dos espelhos, traço a traço, linha a linha, a sombra taciturna do artista lapidário que a trabalhou, às vezes com aquela sua melancolia indulgente, outras com aquela sua graça elegante e amável.

Quando com quinze anos apenas, publicou o primeiro livro de versos, Lágrimas, nada pôde a crítica adiantar acerca do poeta que surgia. É que o primeiro livro, genial que seja, nunca reflete integralmente uma individualidade: vem sempre de sugestões alheias. Tributário de outros rios maiores, o pensamento em seus primeiros passos é apenas um ribeiro obscuro que traz nas águas o ritmo inquieto e as paisagens efêmeras das caudais de onde veio. Depois de muito correr e ondular cortando campinas, fecundando searas, tonificando raízes, sofrendo o jugo das represas, é que começa a sentir, na própria força propulsora, as energias adormecidas. Agita no lençol das águas a poeira das estrelas, abre as asas libertas e vai por esse mundo, nômade e insubmisso, vingando nos calhaus que arrasta, nas barreiras que solapa, nos troncos de árvores que arranca, a herança humilhante da sua antiga dependência. Agora, sim, é um grande rio porque é só.

Quando conseguiu desvencilhar-se de sugestões alheias, Mário de Alencar integrou-se na sua individualidade com um pessimismo que tinha um sabor peculiar entre Machado e Anatole. Aí começa a ascensão gloriosa do poeta inconfundível dos Versos. As qualidades essenciais esboçadas naquele volume aludido e em algumas prosas dispersas, se foram acentuando, livro a livro, até adquirirem a escorreição celebrada. Ele era o beneditino das letras. A sua frase, no conto ou no verso, no romance ou no ensaio, denunciava para logo o cinzelador incontentado. Afora a pureza de linguagem em que ninguém o sobrepassou, havia invariavelmente uma tal harmonia de idéia, uma segurança tal de conceito que o artista exigente que ele era, depressa se traía. Religiosamente devotado à arte como ao seu mestre Machado que tanto o animou, Mário jamais deixou de cultuá-la com estranho fervor, respeitando-a e respeitando-se.

A feitura ou a publicação de uma página era bem um ato desse seu culto que cresceu muito mais, certamente, na convivência de uma cidadela de livros de que foi guardador por isso que exerceu irrepreensivelmente, por anos e anos, o cargo de diretor da biblioteca da Câmara dos Deputados. Esse, talvez, o motivo por que, escrevendo tantos livros, tão poucos editou. Os seus filhos, que lhe veneram a memória, vão publicar a novela em verso Flor do Campo, o romance Sombras, a 2.a série dos Versos, Páginas, Palavras, Palavras..., os ensaios sobre Literatura Brasileira, Pela Academia de Letras, Páginas de Minha Vida, os poemas Goethe e Prometeu, além de outros muitos trabalhos que hão de ser reunidos com espírito de unidade. Dessas obras inéditas como das que publicou, em vida, repontará com o mesmo viço e o mesmo traço de perfeição a individualidade daquele que foi uma das colunas desta Casa pelo que produziu sem ruídos reclamistas e pela sua dedicação inexcedível.

Quem lhe critique a obra, dificilmente, afirmará se ele foi melhor poeta que prosador, melhor ensaísta que novelista. O escritor, nesta ou naquela expressão literária, era igual na sua beleza e na sua superioridade. Este soneto, já legitimamente célebre, é, por exemplo, de uma perfeição de obra-prima:

Como aquele esperado mar que um dia,
Tardos, subindo a inóspita montanha,
De longe, hostil, selvagem terra estranha,
Os gregos avistavam que surgia...

Arfando vinham, vendo que os seguia
A fome, a sede, o frio, a insônia, a sanha
Bárbara, e a morte; e, mais que dor tamanha,
Matava-os silenciosa a nostalgia.

Súbito um deles no alto cimo berra:
O mar! O mar! E a multidão que avança,
Ecoa: O mar! que enfim o mar descerra.

A pátria aos olhos seus – Alma, esperança!
Também um dia o mar verás e a terra
Que embalava os meus sonhos de criança.

Quem quer que releia os poemas dos seus livros, publicados ou inéditos não se afastará desse meu juízo que é, aliás, o da crítica de bom aviso. Nos Versos, 1.a série, lá estão aquelas estrofes que me parecem repassadas da mais profunda emoção:
Tangem sinos de missa. Passa gente
Que vai rezar,
E fico triste e invejo-os, eu, descrente,
Vendo os que vão passando alegremente
Sonhando o que eu não posso mais sonhar.

Eles têm o consolo da esperança.
Mas eu, que tenho mais?
Pobre espírito meu que nem alcança
A doçura do céu que é de bonança
E a alegria dos sinos matinais!

Fui em busca do bem e da verdade
E só achei
Onde existia a crença, inanidade,
E em lugar de alegria, esta saudade
De quando eu não sabia o que hoje sei.

Tangem os sinos; vozes de alegria,
E eu ouço o coração
Que bate e ecoa como voz sombria,
Som da noite cortando o azul do dia:
Tudo é ilusão, tudo é desilusão.

Um doloroso pessimismo envolve quase sempre a obra do poeta. A plangência lírico-romântica, à maneira de uma toada de berço, comove, acaricia, anestesia como nesses versos:

Enquanto estou a teu lado
Enquanto estou a teu lado
Enquanto estou a teu lado,
De tudo mais deslembrado,
Só eu sei que há o nosso amor.
Em teus olhos, teu sorriso,
Quanta cousa vejo eu!
Em teus olhos, teu sorriso,
As delícias que eu diviso,
Só há neles e no céu,
Talvez nem haja no céu!

E “Em outro tempo”? E “Manhã de Agosto”? E a “Paineira”? E todos os outros trabalhos do livro? E este formidável soneto “O Africano” que não quero deixar de dizer-vos:

Costuma estar ao sol em pé junto à porteira
Da fazenda, onde escravo arrastou toda vida,
De um dos olhos é cego, e já do outro a cegueira
Lhe vai grudando à face a pálpebra caída.

Do corpo seminu sob a pele entanguida
Se esboça a secular ossada quase inteira.
E a aparência ele tem esguia e denegrida
De um tronco solitário em queimada clareira.

Dizem que ensandeceu de dor no mesmo dia
Em que morreu seu dono; outros, de nostalgia;
Outros que é feiticeiro e simula mudez.

Porque às vezes lhe vem súbita vida estranha
E ele pula e descanta e risos arreganha.
E ágil ginga no jongo ao batuque dos pés.

As mãos invisíveis da vida como daquela sua rendeira laboriosa teceram a trama do seu destino tocado de uma espécie de melancolia resignada e que se difunde pelos seus versos, lidos sempre com o maior encanto.

O prosador de O que Tinha de Ser como dos Contos e Impressões, a começar por aquela deliciosa página “Tia Lulu”, foi notável. Os seus tipos vivem uma vida real, e a sua paisagem estremece fisicamente. Nada de derrames hiberpólicos, de tropicalismos verbais, mas uma tranqüilidade e um ritmo disciplinado, na frase apropriada e irrepreensível. Por tudo isso sentireis a razão com que todos nós devemos lamentar o desaparecimento de Mário de Alencar que, ainda moço, muito mais nos poderia dar em arte perfeita. No refúgio de sua casa, daquela velha casa da Marquês de Olinda onde viveu amado pela sua companheira e amando-a acima de tudo, tendo em cada filho o seu melhor amigo, sendo ele ao mesmo tempo o melhor amigo de cada filho, quando não criou novas páginas, admirou e traduziu Hugo, Poe, Heredia, Tennyson, La Fontaine e outros. O seu desejo era trabalhar, trabalhar sempre, obreiro incansável que foi das nossas letras moças.

Além do dever que me compete como ocupante da Cadeira que ele tanto dignificou, como seu amigo fiel, irmão de Ideal e de Sonho, prometo glorificar-lhe a memória, concorrendo com o meu trabalho paciente de operário modesto para alevantar, pedra a pedra, e apontar às gerações vindouras, o monumento do seu nome puro e grande como a sua obra.