OS ACADÊMICOS JOVENS
Um dos pontos impressionantes de vossa entrada nesta Casa é a verdeidade que trazeis.
A Academia é um solar de gente outoniça e de gente velha e vós aquiestais entrando com a fresca primavera dos vossos 37 anos.
– É moço demais! exclamou-se, lá fora, quando vos elegemos.
Todo mundo estranhou que chamássemos aqui para dentro uma criatura que nem ao menos havia transposto as fronteiras da madureza, período em que, ao que se diz, os intelectuais atingem a plenitude da personalidade.
Até vós, ao que parece, não tivestes confiança na vossa juventude e procurastes ampará-la em outras juventudes que aqui entraram antes de vós. Com abundância de exemplos trouxestes para o tablado as figuras de Magalhães de Azeredo, de Medeiros e Albuquerque, de Olavo Bilac, de Pedro Rabelo, de Coelho Neto, de Graça Aranha, de Guimarães Passos, de Pedro Calmon, de Gustavo Barroso, de Aloísio de Castro, de Hélio Lobo e de Ribeiro Couto, que aqui chegaram com idade menor que a vossa, e de Múcio Leão e de Osvaldo Orico que, com a vossa idade, aqui chegaram.
E o vosso acanhamento em entrar tão moço para a ilustre Companhia se acentua no instante em que, achando insuficiente e prata da Casa, batestes à porta da Academia Francesa, para ir buscar no seu passado remoto, os exemplos de Armand de Combout e Germain Habert, que se fizeram eleger quase meninos, aos dezessete anos.
Mas, os exemplos que apresentastes são apenas exceções e, exceções, vós bem sabeis, servem somente para confirmar as regras e não para fazê-las.
Na história dos príncipes da Igreja vamos encontrar exemplos muito mais surpreendentes do que os que trouxestes de nossa Academia e da Academia Francesa.
A púrpura cardinalícia é dignidade que, em geral, os prelados só adquirem quando alcançam a idade provecta. No entanto, houve rapazotes, e até meninos, que a obtiveram.
Antônio Della Noce ganhou o cardinalato ao completar dezoito anos. Rafael Riário, sobrinho do Papa Sixto IV, Francisco Maideschini, filho de um irmão de Inocêncio X, e Afonso Cerafa, colateral de Paulo IV, aos dezessete anos já possuíam o chapéu cardinalício. João de Médici que, aos trinta anos, subiu ao trono pontifício com o nome de Leão X, quando completava quatorze obtinha a púrpura de cardeal.
E há outros exemplos ainda mais chocantes: o Príncipe Fernando, filho de Felipe III de Espanha, vestia as calças curtas dos seus dez anos de idade, quando lhe impuseram o chapéu cardinalício. Luís de Bourbon, filho do rei espanhol Felipe V, vestiu a púrpura aos oito anos.
E há caso mais forte ainda: o principezinho Afonso, infante de Potugal, foi feito cardeal com sete anos apenas.
Mas, nem por isso se vai dizer que o cardinalato é honraria que pode ser conferida a pimpolhos. Os casos apresentados pela História são exceções que nunca mais se repetirão.
Sr. Josué Montello: na Academia, a vida começa aos quarenta anos. Os que aqui entraram com idade menor que a vossa representam a minoria. São muito poucos, e servem para mostrar que, nesta Casa, apesar dos cabelos brancos dos homens que a compõem, tem-se confiança e tem-se fé na mocidade, desde que ela venha carregada de brilho, de flores e de frutos como a vossa.
Fostes mau advogado de vossa própria causa. Não conseguistes, com os exemplos apresentados, justificar o vosso benjaminato. Não é que vos tivesse faltado engenho e arte, que engenho e arte tendes mais do que janeiros. O que vos faltou foi coragem, ou melhor, a coragem sentiu-se tolhida pelas algemas da modéstia.
Vou ser vosso advogado. Vou explicar e justificar ao país as razões de vossa entrada prematura na Academia.
E vou ser, com certeza, mais feliz do que fostes.. Não é que eu seja mais hábil do que vós. É que eu não tenho algemas que me prendam. É que eu não me vou servir de exemplos alheios. Vou-me servir apenas do vosso próprio exemplo, de vossa própria vida, de vossa inteligência e de vossa obra literária.
E isso me é suficiente. Não preciso de mais ninguém do que de Josué Montello.
E, para conveniência de minha tarefa, permiti que eu vos deixe de falar diretamente, para me dirigir às pessoas que me estão ouvindo.
UM PASTOR SEM VOCAÇÃO
Minhas senhoras e meus senhores:
Ouvi a história do escritor para o qual se abrem hoje as portas da Academia. Ouvi-a e depois direis se a Casa de Machado de Assis teve ou não razões para lhe abrir as portas.
Lloyd George, nascido de gente extremamente humilde e extremamente pobre, fora criado por um tio que era sapateiro e pastor evangélico E, como ele revelasse uma surpreendente vivacidade de inteligência, o tio resolveu fazer dele também pastor. E ele foi, com surpresa de seus parentes, o grande estadista inglês do começo do século.
Josué Montello nasceu num lar como o de Lloyd George.
Era um menino pacífico, bem comportado, mais silencioso do que falador, mais dado à contemplação do que à estrepolias próprias das crianças:
– Que excelente ministro dará este meu filho! –, dizia o velho Antônio Montello, pai do menino.
Não imaginem os senhores que o velho Montello fosse um sonhador que pretendesse ver o filho sobraçando uma pasta de ministro da Justiça, da Guerra, da Educação, ou qualquer outra pasta. O velho tinha a exata compreensão de sua simplicidade. O ministério que ele sonhava para o menino era um ministério religioso. Queria que o filho fosse ministro, sim, mas ministro protestante – pastor de ovelhas da Reforma.
Na casa de Josué a religião era coisa séria e de todas as horas. Na parede das salas e corredores, havia quadros com versículos evangélicos. Numa estante de livros, atulhavam-se as brochuras e folhetos de polêmica religiosa. O velho Antônio, protestante ortodoxo, guiava a mulher e os oito filhos pela mais servera ortodoxia luterana. Aos domingos só se saía para ir a igreja. A Bíblia, na tradução clássica do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, era o livro sagrado que ele sabia de cor e que pretendia que a família de cor também o soubesse.
Todas as noites, com a família reunida, fazia-se a leitura do grande livro. Rotativismo de leitura: ao chegar ao Apocalipse, voltava-se ao Gênese; ao chegar ao Gênese, ia-se ao Apocalipse.
Foi a Bíblia o primeiro livro que Josué conheceu, mesmo antes de entrar para a escola. E logo que apreendeu a ler, o velho fê-lo leitor do livro sagrado, nos serões religiosos de todas as noites.
Um bom pastor de almas precisa estar profundamente infiltrado dos preceitos da religião. O velho Antônio Montello achou que somente a leitura da Bíblia não bastava para a formação religiosa do filho. E levou-o para o templo evangélico, na esperança de que ele cimentasse melhor a sua fé cristã ouvindo, com enlevo e com encanto, a substância doutrinária dos sermões do pastor. Tinha Josué, naquela ocasião, onze anos de idade. E aconteceu, senhores, o inesperado. Em vez de encantamento e de enlevo, o menino começou a dar mostras de desagrado e desinteresse.
E aconteceu coisa pior, senhores: o menino, em certas ocasiões, passou a interromper o pastor, fazendo perguntas e levantando dúvidas incomodamente atordoantes.
E pior ainda, minhas senhoras e meus senhores: o menino de onze anos, com uma insubmissão estarrecente, contestava o pastor, levantando tais objeções de doutrina que só a cabeça de um ateu podia formular. Os fiéis arregalavam os olhos escandalizados; o pastor, com jeito, procurava sair das dificuldades e o velho Antônio Montello (coitado do velho Antônio) coçava a cabeça, inquieto e decepcionado. A coisa chegou a tal ponto que a família achou melhor que o menino, passando de projeto de pastor a ovelha preta do rebanho, não voltasse mais à igreja.
O pobre pai andou desolado por muito tempo. Que fazer daquele filho, do qual esperava tanta coisa, e que se mostrava incapaz de um bom caminho?
O velho Montello não era sapateiro como o tio de Lloyd George, mas tinha uma loja de sapatos. Ficava na antiga Rua dos Remédios, rua absolutamente fora da zona comercial, mas o mais largo e melhor caminho para a estátua de Gonçalves Dias.
Já que o menino, por seu temperamento insubmisso, não tinha queda para pastor de almas, o remédio era arranjar-lhe outra ocupação. E o velho Montello levou-o para a loja.
Ali mesmo em São Luís, no século XIX, João Francisco Lisboa havia feito o seu estágio num balcão, antes de alçar o seu vôo literário. E Artur Azevedo passara pela mesma escola, num armazém da Praia Grande, antes de molhar a pena no tinteiro para fazer versos e peças de teatro.
Para Josué a loja foi um castigo: de manhã à noite olhando prateleiras com caixas de sapatos ou vendo o caixeiro a calçar e descalçar os pés dos fregueses que apareciam.
Mas, num dia do ano, a sua alma enfarada se engalanava festivamente – era o dia 3 de novembro, aniversário da morte de Gonçalves Dias. Da porta da sapataria via ele as escolas em formatura descendo alegremente a rua, ao som de músicas, a caminho do Largo dos Remédios, onde se alteia, esguia e branca, a estátua do poeta. Não resistia à tentação. Largava o balcão e seguia a revoada das crianças.
Ao pé da estátua, os colegiais cantavam e depositavam flores.
Quem era aquela criatura modelada em mármore, que, todos os anos, naquela praça aberta para o mar, recebia a festa das escolas ? Um homem que escrevera versos – um poeta.
Ser poeta, então, valia alguma coisa, mais, talvez, do que ficar no balcão da loja, fiscalizando a freguesia.
– E o que será preciso para ser poeta? perguntou ele, no regaço de sua mãe.
Estudar. Sem estudar ninguém é nada, meu filho.
A leitura diária da Bíblia havia despertado no menino a gulodice da leitura. Livro que lhe caísse nas mãos era lido vorazmente. Pouco se lhe davam os fregueses que chegavam, querendo um sapato. Que esperassem! Só os atendia quando terminava a leitura da página ou quando chegava ao fim do capítulo.
De uma feita, sozinho na loja, por doença do caixeiro, passou a tarde lendo um dos volumes de Dom Quixote, na tradução de Castilho. De noite, ao fechar a casa, o velho Montello pôs as mãos na cabeça: tinham furtado da loja dezesseis pares de sapatos, enquanto Josué andava por terras de Espanha seguindo Sancho e o fidalgo manchego.
E assim mesmo não se emendou. Lia, lia, pensava, pensava e às vezes dormia sonhando com o que lia.Deram-lhe, um dia, o livro de contos de Perrault. Josué atracou-se com o volume e enfiou os olhos na leitura. A sapataria que ficasse às moscas. Uma maravilha! “A Bela Adormecida no Bosque”, o “Chapeuzinho Vermelho”, o “Barba Azul”, o “Pequeno Polegar” encheram-lhe a cabeça de sonhos alucinados.
Lia e relia os contos, cinco, dez, quinze vezes, enlevado, encantando com o maravilhoso daquelas histórias fascinantes.
A BOTA DE SETE LÉGUAS
Uma tarde... era uma tarde morna e silenciosa, dessas tardes que amolecem e dão sono à gente. Lá fora, na rua, uma solidão de aldeia. Nem um freguês na sapataria.
Josué relia o livro. O calor foi-lhe fechando pouco a pouco os olhos. O livro caiu-lhe das mãos.
E ele adormeceu. E sonhou. (Até hoje não sabe se foi mesmo sonho). O certo é que seus olhos começaram a percorrer as estantes da sapataria.
E aconteceu o maravilhoso. Lá em cima, na útima prateleira da mais alta estante, havia uma caixa diferente entre outras caixas de sapatos. Que era aquilo? Quem havia colocado aquela caixa ali?
A curiosidade do menino fê-lo erguer-se da cadeira. Foi buscar a escada. Subiu. Voltou ao chão e abriu a caixa. Era o maravilhoso! Nada mais nada menos que a bota de sete léguas do conto de Perrault. O destino (o destino faz cada uma!) havia se colocado ali, ao alcance de suas mãos. Calçou-as. Pareciam ter sido feitas na medida de seus pés.
E ele partiu pelo mundo afora.
Nada mais o deteve. As distâncias que as outras criaturas precisam de anos para percorrer, ele as percorria em minutos.
Ei-lo em viagem a jato pela vida.
Em 1933, apenas com quinze anos de idade, faz-se professor do próprio colégio em que estuda. Em 1934, lança os seus primeiros versos. Em 1936 sai de São Luís do Maranhão e ruma para Belém do Pará. Em Belém publica o seu primeiro livro. Em Belém, aos dezoito anos, torna-se sócio do Instituto Histórico do Pará. Em 1937 chega ao Rio. E não perde um minuto; atira-se a escrever nos jornais e revistas, e mexe-se, e mexe-se, e no mesmo ano é nomeado inspetor do Ensino Comercial.
No ano seguinte, por força de concurso e defendendo de público, em renhidas provas, uma tese sobre o sentido educativo da arte dramática, conquista o cargo de técnico de Educação.
E tudo vai acontecendo em vertigem, numa celeridade de estontear. Em 1939, com 21 anos, entra neste salão, ocupa-lhe a tribuna e faz uma conferência sobre o estilo de Machado de Assis. Em 1941, publica Janelas Fechadas, seu primeiro romance. Dois anos depois lança o ensaio biobibliográfico Gonçalves Dias, edição da Academia. No mesmo ano, como assistente do saudoso Rodolfo Garcia, faz o plano de reforma da Biblioteca Nacional. Ainda no mesmo ano faz representar “Precisa-se de um Anjo”, sua primeira peça de teatro. No ano seguinte, é diretor dos Cursos da Biblioteca Nacional. Em 1945 e 1946 publica os seus primeiros livros infantis Tesouro de D. José, Calunga e Bicho do Circo, e o volume de ensaios que tem o título de Histórias da Vida Literária.
Não há nada que lhe detenha os passos, não há nada que lhe impeça a carreira.
Em doze meses acontecem-lhe tantas coisas que a qualquer de nós seriam necessários anos. Em 1948 traça Josué a reforma do ensino no Maranhão, publica A Viagem Fantástica, outro livro de criança, e escreve e publica “Escola da Saudade”, sua segunda comédia, e é nomeado secretário-geral do governo de seu Estado natal.
E mais ainda: conquistou o prêmio de ensaio conferido pela Academia Brasileira.
As botas de sete léguas não lhe permitem parar. A velocidade é cada vez maior, cada vez maiores são as conquistas a que elas o conduzem. Em 1948 é nomeado Diretor Geral da Biblioteca Nacional. Em 1948 publica o romance A Luz da Estrela Morta. Em 1948, conquista o prêmio de Teatro da Academia. Em 1948, escreve Problemas da Biblioteca Nacional. Em 1948 lança à publicidade A Cabeça de Ouro, outro livro infantil.
Em 1950 as livrarias expõem dois de seus mais belos ensaios: O Hamlet de Antônio Nobre e Cervantes e o Moinho de Vento. Em 1952, escreve a novela Labirinto de Espelhos, e Fontes Tradicionais de Antônio Nobre.
Só? Não. Levanta aqui na Academia o prêmio de Romance.
Em 1953 lá está ele no Peru, em missão de nosso governo, regendo, na Universidade de São Marcos, a cátedra de estudos brasileiros.
Em 1954 traz a lume a peça “O Verdugo” e o ensaio Ricardo Palma, Clássico da América.
E antes que o ano termine, é eleito para a Academia Brasileira de Letras, na vaga deixada pela querida figura de Cláudio de Sousa.
Logo depois, a Universidade de São Marcos inscreve o nome de Josué no seu claustro quatro vezes secular, como catedrático honorário da mais antiga instituição de ensino superior do continente.
Ninguém pode com este homem. Onde, minhas senhoras e meus senhores, onde irá ele parar, se não se resolve a descalçar as botas de sete léguas que o destino lhe deu em forma de inteligência, de cultura e de operosidade? Onde?
OS TROPEÇOS DO CAMINHO
Josué Montelio tem sido na vida um pupilo da celeridade. Tem-se a impressão de que não é ele quem vai em busca dos acontecimentos, mas sim os acontecimentos que caminham ao seu encontro. Tudo lhe acontece com a rapidez dos relâmpagos.
Mas rapidez não é sinônimo de facilidade e muito menos de felicidade. Ele encontrou várias pedras estorvando-lhe o caminho.
Uma delas foi a pobreza.
A loja da Rua dos Remédios, quando ele se entendeu, entrava nessa fase que assinala o crepúsculo das casas de comércio. E o velho Antônio, que tinha em casa oito filhos, ganhava apenas o curto ordenado de fiel de Tesoureiro da Delegacia Fiscal em São Luís, emprego que lhe arranjaram quando a casa principiou a declinar.
É então que a aplicação da leitura produz os seus milagres. O gosto dos livros de tal maneira se havia entranhado em Josué que, aos dezesseis anos, ele já sabia para ensinar. E no mesmo ginásio em que era aluno tinha alunos.
E estudou à sua própria custa. Ganhou o suficiente para custear os estudos e ir formando, desde esse tempo, a sua biblioteca literária.
Não sei se no Maranhão todos são poetas, mas a verdade é que todo rapaz faz versos.
Josué Montello, que a natureza talhara para ser o belo prosador que hoje festejamos, não podia fugir ao destino dos moços da terra de Gonçalves Dias. E começou poetando.
Com versos ninguém manda ao mercado, afirma o povo numa sentença pessimista.
Vejam os senhores a habilidade de Josué Montello – ganhou dinheiro fazendo versos, não para mandar ao mercado, mas para mandar às livrarias.
Duas casas comerciais, ao tempo em que ele vestiu a sua farda de aluno do Liceu Maranhense, viviam em turras constantes.
O estudante do Liceu arranjou meio de elas brigarem em versos. E de maneira elevada. E era ele, anonimamente, o poeta de ambas. Um dia escrevia um soneto para esta, no dia seguinte um soneto para aquela.
E havia um agente, estudante como ele, que ia a cada uma das casas levar o soneto do dia. A peça poética custava dez mil réis – cinco para o agente e os outros cinco para o poeta.
E era com esse dinheirinho, conseguido com a animação da querela das duas casas de comércio, que ele pagava as contas de livros literários comprados numa livraria de São Luís. Os Gatos, de Fialho de Almeida, foram comprados por esse recurso – com seis alexandrinos! E com rimas ricas!
Quando concluiu o seu curso do Liceu Maranhense, as botas de sete léguas, que ele trazia nos pés sem saber, começaram a levá-lo para a beira do cais, defronte da baía de São Marcos. E ele seguia, horas e horas, com os olhos compridos, os navios que partiam.
Um dia, ao sair da beira-mar, ouviu que o chamavam.
Era o poeta Ribamar Pinheiro, seu amigo.
– Queres ir a Belém?
– Como?
– Como jogador de futebol. Eu te incluo no time. E assim ganhas a
passagem. É preciso que haja alguém na delegação que saiba falar.
Josué não refletiu um minuto. Foram as botas de sete léguas que falaram
por ele:
– Aceito.
Quando o destino quer, minhas senhoras e meus senhores, tem os seus caprichos mais estranhos. E escreve direito por linhas tortas. Josué não sabia chutar uma bola. Não conhecia nada do jogo. Mas sabia discursar. E por saber discursar – lá se foi, barra a fora, no rumo de Belém, num time de futebol.
Em Belém, Josué demora apenas o tempo suficiente para publicar um livro, manter-se como o primeiro aluno do curso pré-jurídico do Ginásio do Estado, ser eleito para o Instituto Histórico e Geográfico e esmiuçar o Arquivo e a Biblioteca Pública. Podeis imaginar, ao menos de longe, em quanto tempo isto se passou? Em oito meses, minhas senhoras e meus senhores.
Mas as botas de sete léguas, que sempre trazia nos pés, não o deixariam sossegar. Em dezembro de 1936, abre-se para Josué a perspectiva de uma nomeação para professor estadual. Outro qualquer teria agarrado a oportunidade pelos cabelos. Mas as botas não deixam. Josué troca a nomeação de professor por uma passagem para o Rio de Janeiro.
E aqui chega com três malas – duas de livros e uma com livros e roupas.
Aqui no Rio a sorte veio ao seu encontro com a dureza e crueldade com que costuma apresentar-se às criaturas que iniciam a caminhada da vida partindo da estaca zero.
Mas o moço, nos seus dezenove anos, vinha forrado de resignação e de coragem para enfrentar as surpresas do caminho. Contanto que pudesse ler e escrever – o mais não tinha muita importância.
Quando arranja o primeiro emprego é para escrever sobre assuntos de economia e finanças E ele aceita. Diariamente escreve sobre esses áridos assuntos, lidando com cifras astronômicas, em troca de minguadas cifras.
E deu-se então um episódio que é preciso contar para que se avalie o pendor inelutável do rapazinho maranhense pelas coisas de Literatura.
Josué, naquele dia, tinha acabado de receber os magros trezentos mil réis do seu primeiro ordenado. Vinha pela Rua São José, quando, ao passar pela porta de uma livraria, ouviu lá dentro a voz de um leiloeiro. Era um leilão de livros. Naquele momento o leiloeiro apregoava as obras de Balzac, edição de Olendorf.
– Duzentos e noventa mil réis!
– Duzentos e noventa mil réis!
– Duzentos e noventa mil réis!
Josué sentiu uma sacudidela em todo o corpo, assim que folheou um exemplar e lhe viu as gravuras:
– Trezentos! bradou.
– Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!
E o leiloeiro entregou-lhe a obra.
Josué voltou para casa a pé. E se não fosse a valia dos colegas de pensão, teria ido e vindo a pé, durante trinta dias, da cidade para Botafogo, por culpa de Balzac.
Com uma carta de Antônio Carlos para Vitor Viana, então diretor do Ensino Comercial, Josué pretendeu conseguir um cargo de inspetor de ensino, aqui no Rio.
O gabinete de Vitor Viana não era de fácil acesso. Mas Josué não se intimidou. Comprou num sebo os nove volumes do diário dos irmãos Goncourt. E decidiu que só pessoalmente entregaria a carta. Cedo, anunciavase. E começava a ler. Um belo dia mandaram-no entrar. Quando saiu foi com o emprego. Com a leitura do diário dos Goucourt no finzinho do oitavo volume.
Aos vinte anos, Josué inscreve-se no concurso que vai dar estabilidade e segurança à sua vida. Ele nunca entendera de assuntos técnicos de Educação. E é esse concurso que ele decide fazer. Isola-se, durante seis meses. E quando sai de seu isolamento é com a sua tese de concurso: “O sentido educativo da arte dramática”. E toda a matéria técnica na ponta da língua. Dos trezentos e tantos candidatos inscritos passam vinte e poucos. O concurso é de provas e títulos. Títulos – ele não os tem. Mas é aprovado, entre os primeiros colocados, apenas com as suas provas. E é então – como aqui – o benjamim da turma.
A PAIXÃO PELA ACADEMIA
Na inclinação de Josué Montello pelos assuntos espirituais floresce uma ternura de namorado pela Academia.
Sente-se, em todos os passos de sua vida, que ele não nasceu para mourejar no comércio nem para pregar sermão – nasceu para acadêmico.
A sua primeira entrada nesta Casa fê-la quando apenas lhe apontava o buço. Foi em 1939, por ocasião do centenário de nascimento de Machado de Assis. Nesta sala e naquela tribuna – a tribuna que agora também lhe pertence – realiza ele uma conferência sobre o patrono máximo de nossa Academia.
É um trabalho de profundidade, em que o conferencista situa o estilo de Machado de Assis na tradição de sobriedade vocabular dos clássicos da língua portuguesa. É uma surpreendente revelação de cultura e de elegância literária, raríssima nas criaturas que ainda estão na aurora da juventude.
A Academia, minhas senhoras, é feminina – gosta de ser namorada.
A conferência de Josué sobre a figura do criador de Capitu corresponde ao seu primeiro colóquio amoroso com a imortalidade.
Quatro anos depois percebe-se que a Academia não foi insensível ao namoro e está visivelmente caída pelo namorado, ao publicar-lhe, na Coleção Afrânio Peixoto, o ensaio bibliográfico Gonçalves Dias.
Os laços afetivos vão se apertando de lado a lado. Em 1946, o namorado apresenta uma obra – Histórias da Vida Literária – para o novo concurso de ensaio e crítica e a Academia prontamente lhe confere a láurea.
Dois anos depois, ei-lo novamente em busca de mais uma conquista. Agora é uma peça de teatro “Escola da Saudade”. Nova láurea – a do prêmio Artur Azevedo.
Em 1952 o namoro já havia ganho tanta altura que estava francamente na fase do noivado.
Os corações femininos, desde que o mundo é mundo, sempre se sentiram enternecidos quando os namorados os presenteiam. Josué entregou à Academia um presente régio – o romance Labirinto de Espelhos. A Academia conferiu-lhe a terceira láurea.
Não era necessário ser profeta para ver o que se ia passar. E ao findar o ano de 1954, deu-se o que toda gente previa – o enlace. Eleição disputada por muitos nomes ilustres. Vitória brilhante que todo o País aplaudiu, reconhecendo nesse triunfo a conquista de um legítimo homem de letras, dos maiores de sua geração.
ENFERMIDADES PROVIDENCIAIS
Minhas senhoras e meus senhores:
A Academia não dá nome a ninguém. Aqui dentro ninguém edifica a sua glória. E mais ainda: a Academia não permite que alguém transponha de mãos vazias os seus umbrais. Aqui só se entra carregando a bagagem. A bagagem é o Abre-te Sésamo destas portas.
Estas portas não resistiram à força da obra literária de Josué Montello. Não sei, meus senhores, onde li esta sentença curiosa – uma doença faz, às vezes, bem à saúde.
À saúde do corpo porque o indivíduo é obrigado a ficar na cama e assim descansa das fadigas. À saúde do espírito porque pode meditar enquanto repousa.
Foram duas enfermidades que ajudaram Josué Montello a encontrar o caminho de sua vocação para as letras.
Era ele estudante do Liceu Maranhense, quando adoeceu gravemente. A doença durou vários dias e a convalescença muito mais que a doença. E foi ao convalescer, ao embalo da rede, que o menino leu, de uma ponta a outra, um tratado de metrificação.
Ao restabelecer-se estava inteiramente escravizado às Musas. O verso não tinha mais segredos para ele.
Começou fazendo trovas, à maneira do nosso Adelmar Tavares. Metia a pena no tinteiro, convocava alguns suspiros, atirava a imaginação no rumo de uma namorada, e lá vinham trovas assim:
Queres fazer um juízo
De todo o bem que eu te quero?
Escuta: se for preciso,
A vida inteira eu te espero.
Ou então assim:
Viverias fatigada
De meus olhos encontrar,
Se estivesse em minha alçada
Dar destino ao teu olhar.
Mas o poeta não se prendeu apenas às musas do amor, prendeu-se também à musa ligeira da galhofa. E fez epigramas rimados que são pequenas jóias de humorismo.
Alguns exemplos.
A um padre de nariz enorme, que acabara de se ordenar:
Se se subisse na Igreja
Pelo apêndice nasal,
Este padre, sem peleja,
Subiria a cardeal.
A um médico que acabara de ter notícia de que o deputado, de quem era suplente, havia adoecido:
Diz o médico suplente,
Ao ver o chefe acamado:
– Se ele fosse meu cliente,
Eu já era deputado.
Durante mais de seis meses, numa luta política do Maranhão, esse poeta satírico dava o ar de sua graça, fazendo remoques diariamente nas colunas de um jornal de São Luís.
De um panfletário, que se decidiu a contar num livro a sua própria vida, Josué lhe fez o perfil nestes versos certeiros:
Pasquino, certo dia,
Resolveu escrever, com ternura e saudade,
A autobiografia
Capaz de o redimir ante a posteridade.
E teve esta surpresa:
A pena panfletária, hostil, áspera e dura,
Fiel à natureza.
Passou no próprio dono uma descompustura.
A facilidade de exprimir-se em verso – com a qual pode iniciar, com a rivalidade entre duas casas de comércio do São Luís, a sua biblioteca literária – faz com que em cartas para os amigos distantes, seja em verso e não em prosa que lhes manda as suas notícias, como neste soneto enviado de Lima ao seu amigo João Condé (o dos Arquivos Implacáveis), logo depois de visitar a Catedral peruana.
Na Catedral de Lima. A cada instante
Em relíquias históricas esbarro,
Até que o assombro salta ao meu semblante,
Quando avisto o esqueleto de Pizarro.
De emoção quase caio. E vacilante
À grade em frente, trêmulo, me agarro,
Enquanto à mente surge, extravagante,
Um pensamento trêfego e bizarro.
E eu me ponho a dizer: “Pizarro amigo,
Se não fosse o fulgor da luz diurna
E a antevisão prudente do perigo
Apesar de teus feitos formidáveis,
Por minhas mãos, saías dessa urna
E ias para os Arquivos Implacáveis.”
Mas o poeta, marcadamente cerebral, que assim se revela no tom jovial
destes versos, sabe encontrar também os seus belos instantes de poesia lírica,
de que é exemplo este soneto:
Olha bem nos meus olhos. Na pupila
Que te contempla, um rosto logo aflora.
Se lhe sorris, sorri. E se intranqüila
Estás, ele contigo sofre e chora.
Nas humanas fraquezas desta argila,
Onde esse rosto misterioso mora,
Ele, ao te ver, no meu olhar cintila,
E desce ao coração, se vais embora.
Aqui fica escondido e sempre atento
Ao rumor de teus passos. Não te esquece
Esse rosto, que é teu, um só momento.
Filha: tem pena dele. Nos refolhos
De seu abrigo, eu sei que ele padece,
Querendo vir à tona de meus olhos.
Passam-se os tempos e uma outra enfermidade assalta impiedosamente Josué Montello.
Sem pausa nos estudos e sem repouso total, ao que diziam os médicos não teria ele muitos meses de vida.
Tem razão quem afirma que uma moléstia às vezes faz bem à gente.
O doente é levado para o vilarejo do Anil, arrabalde tranqüilo pouco distante de São Luís, e, no Anil, à sombra de mangueiras centenárias, viveu ele o tempo necessário para restaurar a saúde.
Estava Josué, por esse tempo, naquela idade em que o cérebro juvenil é uma chapa fotográfica, sensível a tudo que os olhos vêem e a tudo que sente a alma. A paisagem do Anil, as criaturas do Anil, o ambiente do Anil, as abelhudices, as intriguinhas, os mexericos, as miserinhas do Anil, tudo lhe ficou gravado na memória, como numa fita cinematográfica.
E dessa fase, tudo lhe veio à pena naquele romance que é o mais rico e o mais humano de seus romances: – Janelas Fechadas.
É possível que Janelas Fechadas não mereça a estima do autor. É próprio dos escritores o desamor pelo primeiro livro.
Mas, a verdade é que a primeira obra é a reveladora máxima do valor de um artista.
A primeira obra (não estou dizendo novidade alguma) é quase sempre feita sem molde, sem figurinos e sem peias de escola, sem vaidades, sem intenções (usemos uma expressão da gíria, que a gíria, às vezes, tem expressões exatas), sem intenções de “abafar a banca”. É o autor na pureza de suas virtudes de inteligência, de sinceridade e de emoção. É a vibração espontânea de todo o seu ser, de todo o seu poder, de todas as forças cósmicas de sua intelectualidade.
Tive sempre grande reverência pela florada inicial dos escritores. Foi na sua primeira florada que Gonçalves Dias produziu a maravilha da “Canção do Exílio”, que Aluísio Azevedo escreveu O Mulato, que Euclides da Cunha lançou Os Sertões, que Gustavo Barroso nos deu a Terra de Sol, que Rachel de Queiroz nos surpreendeu com O Quinze, que José Lins do Rego se firmou em Menino de Engenho.
O primeiro romance de Josué Monteilo é, na verdade, uma surpresa. Escrito no meio-dia da adolescência, revela no entanto, um escritor maduro, na plenitude de todos os tesouros da arte novelística.
É um romance de costumes e de tipos e ao mesmo tempo um claro laboratório de almas que se agitam no conflito da vida.
Tipos exóticos na Novela ou no Teatro não impressionam a ninguém. É fácil fazê-los e, como são obras sem consistência, não permanecem na nossa memória. O dificil é firmar o tipo que acotovelamos na rua, ou melhor, o tipo humano. Difícil porque é preciso ir buscar dentro da vulgaridade o segredo da individualidade ou, melhor, a originalidade que todas as criaturas humanas possuem no âmago de sua alma.
Os tipos de Janelas Fechadas são profundamente simples e, por isso mesmo, profundamente humanos.
É Benzinho, leviana e sexual, com a vida inteiramente arruinada pelos seus pecados da carne. É Dona Binoca, mãe suave e resignada que perde o sono a pensar na queda de Benzinho e na pouca sorte do filho. E Zé Sinhô, que tomou conta de Benzinho, unha de fome, apesar de ser a maior fortuna do arrabalde, não guardando um vintém nos bancos, com medo que eles falissem. É a desgraçada Maria das Virgens, lavadeira e vendedora de mingau, que enlouqueceu depois da morte do filho tuberculoso. É o Crispim Fonseca – a Dr. Crispim – a mais interessante figura da novela, querendo passar por doutor, fazendo questão que de doutor seja tratado, quando apenas entende de farmácia. É D. Almira, mulher de Crispim, imensa, gordalhufa, enchendo a casa com o seu mau gênio e com as suas banhas. É Claudemiro, o caixeiro da farmácia, pobre diabo apaixonado pela música e que babava de gozo quando ouvia o Dr. Crispim executar os acordes românticos do Danúbio Azul.
E tantos e tantos outros tipos, como o Anastácio, vendedor de jornais, a Nhá Cândida, a parenta, e o piedoso frei Hilário que fez no púlpito um sermão contra Benzinho.
Em Janelas Fechadas há a esplêndida revelação de um pintor. Josué Montello não é apenas o escritor que sabe pintar costumes, que modela tipos humanos e que mergulha na profundeza da alma dos personagens, é também um paisagista que se serve de tintas finíssimas para realizar a exatidão do colorido.
A descrição, na sua pena, quer a dos panoramas, quer a das cenas de movimento, ganha um porte que só um escritor de alto porte pode produzir.
Aqui está um exemplo. É a dança do bumba-meu-boi numa noite feérica de São João:
“O ‘boi’ desce pela rua da estrada e se detém no adro da igreja. O povo se reúne na praça, apinhando-se, e começa a batalha dos fogos de artifício numa fuzilaria policrômica jorrada de todos os pontos sobre o bumba-meu-boi. Silva, agudo, um apito estridente. As cantigas, as danças e os tambores cessam, num momento. Os ‘índios’ se dispersam – e o ‘boi’ ficou esticado no terreiro, enquanto os tocadores de pandeiro aquentam o couro dos instrumentos na chama das fogueiras. O apito silva outra vez. A dança recomeça numa cantiga sentimental pela morte do ‘boi’. O sapateado ressurge, os penachos se agitam. Irrompe, mais intensa, a fuzilaria dos fogos, dos foguetes e das bombas. O ‘pai Francisco’, de máscara de meia, com uma espingarda de pau, faz piruetas entre os assistentes, angariando compradores para uma tira vermelha de papel, que é a língua do ‘boi’. Desaparece na multidão. Quando ressurge, sopra as ventas de veludo da armação de madeira. O coro se eleva mais forte, num baticum de matracas e pandeiros. Entoa-se agora o canto de ressurreição do ‘boi’, com o ronco compassado e grave do tambor-onça. Os fogos chovem coloridos no grupo rumoroso – e as cantigas vão longe e se perdem além, nos confins do lugarejo. O ‘boi’ continua o seu caminho. As vozes ficam suspensas por um instante, apenas as matracas aceleram as pancadas secas, solitárias. Vai o cortejo pela rua da estrada, em direção de João Paulo, que fica distante do povoado numa boa meia légua. As cantigas tornam a acompanhar a zoada dos pandeiros. Os besouros e as pistolas rareiam. E o ‘boi’ se some, para dançar adiante, na larga curva da rua da estrada.
Pela manhã no dia seguinte, os dançadores fatigados dormem pela estrada, ao pé das fogueiras desfeitas em mornos montões de cinza. E pelo espaço parece errar ainda, como um eco ao longe, a zoada ressoante e dolente dos tambores e dos pandeiros, por entre o estrondo das bombas, dos besouros, dos foguetes, das bichinhas e dos busca-pés.”
O entrecho de Janelas Fechadas é o mais simples do mundo: uma rapariga sensual e leviana que vai esconder num arrabalde a triste situação de mulher que se perdeu nos braços do namorado, e que, não contendo os impulsos da carne, no arrabalde se torna comborça de um negociante.
E dessa fabulação corriqueira, que todos os dias acontece no mundo, o escritor consegue extrair riquezas que enchem os olhos de belezas que a nossa sensibilidade nunca mais esquece.
É como se ele realizasse o milagre de extrair o ouro de um solo onde o nobre metal já estivesse esgotado.
O ouro ele no-lo apresenta extraindo-o da alma das figuras que se agitam na gravitação da novela.
Essa capacidade de transformar em grandeza o que é pequenino e vulgar é uma das mais altas virtudes neste escritor.
O LABIRINTO DE ESPELHOS E A LUZ DA ESTRELA MORTA
No Labirinto de Espelhos que veio à luz depois de Janelas Fechadas, lá está a virtude em dimensões maiores.
Qual o enredo de Labirinto de Espelhos? Um nada: uma velha rica e má que, ao morrer, não deixa vintém aos parentes que têm os olhos cravados na sua fortuna.
Pois esse pedaço de barro insignificantíssimo o escritor, como alquimista prodigioso, consegue transformar em pepita maravilhosa.
Um tipo de romance ou de teatro não vale pelas exterioridades, pelas roupas que veste, pela caracterização que apresenta. Vale pelo caráter que o escritor lhe deu, ou melhor, pelo feitio da alma que o seu criador lhe impôs.
O Conselheiro Acácio, barbado ou não barbado, vestido de sobrecasaca ou de paletó saco, é sempre o Conselheiro Acácio.
O Labirinto de Espelhos é um curiosíssimo belchior de almas sovadas pela gula do dinheiro.
O mais curioso desses tipos é tia Marta, a figura principal do romance.
É uma velha rica, perversa, que martiriza voluptuosamente os parentes que lhe cortejam a fortuna, para depois os lograr no testamento.
Outra figura interessante é o velho Alberto, cunhado de Marta. Vive o dia todo numa cadeira de balanço lendo peças de teatro e decorando Molière. É tão viva a sua paixão pelas letras cênicas que atinge o delírio: julga-se, às vezes, em Paris, assistindo a comédias de Guitry ou de Bernstein.
O Teles é outro tipo bem marcado. Almoxarife de secretaria de palácio do governo, aposentado à força, espera pacientemente a morte de sua tia Marta para melhorar de vida. Não tem, como Alberto, a paixão do teatro. Tem-na por Belém, capital do Pará. Não se admira de nada – já viu tudo em Belém. A paixão de Proença é a sua própria terra – o Maranhão. Para ele nem Paris se compara à capital de sua terra natal.
Não há Maranhão como este, afirma constantemente. – Onde um clima como o nosso? Onde se fala melhor o português? Quem deu um João Lisboa, um Sotero, um Odorico, um Gonçalves Dias, um Aluísio, um Coelho Neto?
Figura traçada igualmente com mão segura é o Paixão, espertalhão cordial, dono do jornaleco Chibata que, pelo título, parece zurzir reputações, mais que, por esperteza do dono, é um periódico amabilíssimo, que elogia todo o mundo.
O Labirinto de Espelhos é um punhado de gente à espera de que tia Marta espiche as canelas. O Clementino, locador de flauta, quer mudar-se para o Rio, mas só o fará quando a velha fechar os olhos. A solteirona Cotinha pede a Deus que a velha morra, pois, herdando as jóias que espera herdar, com facilidade arranjará casamento. O Quincas Peixoto, político de vivacidade turbulenta, homem do mar, aguarda a morte da tia rica para comprar um barco. E a velha resiste a tudo, enquanto mortifica a pobre da Carmencita obrigando-a a tocar as polcas e mazurcas que lhe encheram a mocidade.
Em A Luz da EstreIa Morta, Josué Montello é o novelista da loucura. A sua pena consegue realizar a celeridade e o rodopio atordoante das narrativas em que o espírito se desagrega. Ao acabar de ler o livro está a gente extenuada como se acordasse de um pesadelo e cheia de pavor como se tivesse visto urna farândula de fantasmas.
E foi isso que o romancista quis realizar e que realizou com tanta habilidade e tanta volúpia, que se fica a pensar que ele, se não esteve louco algum dia, conhece a loucura com uma intimidade de arrepiar.
O ESCRITOR DE CRIANÇAS E O ESCRITOR DE TEATRO,
O ENSAÍSTA
Minhas senhoras e meus senhores:
Não é unicamente como novelista que a Academia recebe Josué Montello. Também como escritor, que sabe falar às crianças, na linguagem da simplicidade que Monteiro Lobato ensinou a todos nós.
Escrever para crianças o mundo inteiro reconhece como um dos gêneros mais árduos da Literatura. É tão difícil que, à maneira do que ocorre com os poetas, não é ecritor de criança quem quer e sim quem já nasce escritor de criança.
Josué nasceu sabendo contar histórias para a infância. Calunga, Tesouro de Dom José, Bicho do Circo, Cabeça de Ouro são histórias de simplicidade, feitas em dose exata do surpreendente e do maravilhoso – atributos indispensáveis às histórias escritas para os leitores de calças curtas.
As boas fadas, acreditem minhas senhoras, não são figuras fabulosas.
Existem e, às vezes, presidem ao nascimento das criaturas humanas.
O nascimento do homem que vem substituir Cláudio de Sousa foi,com certeza, presidido pelas boas fadas.
E elas encheram-lhe o berço de todos os tesouros que um escritor precisa para realizar a sua fortuna intelectual.
Em todas as modalidades literárias, este escritor tem conseguido vitória:na poesia de amor, nos versos satíricos, na Prosa, na Novela, no Conto, na Crítica, na conferência, na História, no Ensaio, no Teatro.
Os triunfos, no teatro, chegam sempre tardiamente. Só depois de muita experiência e de muito treino é que o escritor os alcança.
Josué consegue-os às primeiras investidas. A “Escola da Saudade” é uma das comédias mais engenhosas e mais equilibradas da Literatura dramática do Brasil atual.
A ação desenrola-se no pátio de uma casa de doentes mentais. Esperase que, em se tratando de loucos, estoirem cenas violentas. Mas o autor, com surpresa do público (a surpresa é essência fundamental do teatro), conduz a cena para sentido oposto, em que tudo é suave, emotivo e humano.
Não se pode, com exatidão, aferir o valor de uma peça apenas pela leitura. O teatro não é feito para ser lido no gabinete, é feito para ser vivido no palco.
O “O Verdugo”, que o autor concluiu há pouco tempo no Peru, ainda não passou pelas provas do tablado. Mas, tanto quanto é possível avaliar-se uma obra dramática por uma simples leitura, pode-se augurar para “O Verdugo” uma sorte brilhante.
Urna das modalidades literárias do escritor que hoje festejamos é o Ensaio.
É a mais eloqüente das provas que ele nos dá do seu grande amor pela Cultura.
Inteligência não é mérito de niguém. Nada fazemos para possuí-la; ela nos vem como uma graça de Deus.
O que é mérito é o aprimoramento da inteligência, é a Cultura, porque é o produto do nosso esforço e do nosso brio.
Um conto, uma novela, uma peça de teatro ou qualquer outro trabalho de ficção, pode ser apenas produto da imaginação que Deus nos deu. Mas sem estudo ninguém escreve ensaios.
Gonçalves Dias, Histórias da Vida Literária, O Hamlet de Antônio Nobre, Cervantes e o Moinho de Vento, Ricardo Palma – Clássico da América são trabalhos de erudição literária que honram não apenas quem os escreveu, mas a própria cultura nacional.
E agora eu vos pergunto, minhas senhoras e meus senhores: podia a Academia deixar de abrir as portas a um escritor de tanta solidez, de tanta operosidade, e de tanta fulguração, apenas por ele ainda não ter a idade para cobrir de cabelos brancos a sua cabeça fecunda?
ESTACA ZERO
Senhor Josué Montello. Acabo de fazer a vossa defesa. Não sei se me saí bem, sei que não fui buscar prata alheia para fazê-la. Fi-la unicamente com a prata da Casa, ou melhor, desse amplo e sólido e belo palácio que é a vossa inteligência.
E agora volto a vos falar diretamente. Para o seio da “ilustre Companhia” não trazeis apenas a obra que está encerrada nos vossos livros, trazeis também a grande obra de vossa vida, obra que não se escreve com a pena, mas que se realiza com a luta, com o sofrimento e com a dignidade.
Os homens que nascem na estaca zero e conseguem os triunfos rutilantes que tendes conseguido, têm duas vidas – aquela que Deus lhes deu e aquela que eles realizaram.
Nascer em berço pobre e caminhar sozinho pelo mundo, não é castigo da Providênca – é prêmio. Quando se chega ao meio da estrada, pode-se estar cansado, mas há uma alegria infinita, um infinito bem-estar no cansaço. O bem-estar e a alegria de quem construiu, polegada a polegada, a própria vida. Na vida do homem que nasceu na estaca zero, tudo é obra sua, tudo foi conseguido pelos seus braços, tudo foi moldado pelas suas próprias mãos.
Para erguer o edifício do seu nome contou ele, apenas, com ele próprio. E sozinho teve que fazer tudo. Teve que amassar o barro com os pedreiros, sozinho britou as pedras para os alicerces, sozinho coseu os tijolos para as paredes, sozinho lavrou as vigas mestras, para a cumeeira, para o telhado e para os torreões.
Não sei qual das duas obras é a maior no homem que inicia a caminhada como iniciastes – se a obra dos livros ou a obra da construção da própria vida.
A Academia tem uma forte predileção por homens de vosso feitio. Machado de Assis, a nossa figura solar, está sempre presente aos nossos olhos, com a magnitude de sua humildade. Sem exemplo não se apaga um instante de nossa memória: vêmo-lo menino pobre, de origem obscura, descendo do morro para subir a esplanada resplandescente da glória.
Conta a história que a Academia Francesa só tinha uma Poltrona – a Poltrona do escritor que presidia os seus trabalhos.
Até aquela época (toda gente sabe disso) havia na França uma profunda distinção de classes. Clero, nobreza e povo eram coisas absolutamente distintas. Eram assembléias onde se sentassem aristocratas e dignitários da Igreja, os outros ficavam de pé. E na Academia Francesa, havia escritores pertencentes às três classes.
Mas, acontece que La Monoye se fez candidato à imortalidade e o Acadêmico Cardeal d’Estrées queria dar-lhe o voto. Mas, como príncipe da Igreja, o cardeal, no momento da eleição, não podia ficar de pé nem também sentar-se em banco comum. Criou-se o impasse: ou se arranjaria uma poltrona para o cardeal ou ele não iria à Academia. O fato chegou aos ouvidos de Luís XIV.
Não haja dúvida, disse o rei, dêem-se quarenta poltronas aos senhores acadêmicos.
A Academia Francesa era, como ainda hoje, uma instituição retintamente aristocrática. Mas, com o oferecimento das quarenta cadeiras, Luís XIV, sem lhe tirar o feitio fidalgo, impunha-lhe um colorido de Democracia.
A Academia Brasileira, como grêmio de seleção de valores intelectuais, reveste-se de tons aristocráticos, como todas as academias do mundo. No entanto é impecavelmente democrática, impecavelmente fraternal.
Aqui dentro não há preconceitos de raça, nem preconceitos de classe, nem preconceitos de Escola. Para a Academia, a inteligência não tem pigmento. Tem ela as portas abertas para quem vem dos berços de ouro como para quem desceu do morro como Machado de Assis. Assim como no mar flamejam as bandeiras de todas as nacionalidades, as bandeiras de todas as escolas literárias tremuIam aqui dentro.
Teria a Academia encontrado no mundo um modelo que servisse de plasmar a beleza de sua estrutura? Encontrou. A Igreja. A Igreja, uma instituição milenarmente aristocrática. Os seus altos dignitários são considerados príncipes. O trono do pontífice é uma cadeira de ouro maciço.
No entanto, não há, no mundo, entidade mais democrática do que a Igreja. Apanha no campo um pastorzinho qualquer, mete-o numa escola, guia-o para o sacerdócio, dá-lhe
um bispado, veste-lhe a púrpura cardinalícia, eleva-o ao trono papal e, às vezes, até faz dele santo. A figura de Hildebrando (filho de uma mulher do povo e de um guardador de cabras), que se tornou o grande Gregório VII, é um exemplo maravilhoso da conjugação – aristocracia e democracia, que a Igreja, secularmente sábia, vem fazendo através dos tempos.
INTELIGÊNCIA SEM INFÂNCIA
Nos idos de abril de 1927, radiante de mocidade, Olegário Mariano, esse grande poeta que nós todos admiramos e a que nós todos queremos bem, entrou nesta Casa.
No discurso de recepção, Gustavo Barroso, exaltando a precocidade do autor de Enamorado da Vida, fez esta pergunta:
– Senhor Olegário Mariano, dizei-me, que idade tendes?
A mesma pergunta eu vos faço agora, Senhor Josué Montello.
Não me importa a vossa idade cronológica, que essa já aqui repeti tantas vezes. Quero saber é da idade de vossa inteligência e da vossa cultura.
Quando começastes a ser escritor? Há trinta, há quarenta, há cinqüenta, há cem anos passados? É que a vossa maneira de escrever não teve infância.
Como apaixonado das coisas simples, gosto imensamente de me servir de expressões populares. O povo, na sua candura, exprime-se às vezes com propriedade maior que os próprios homens de letras.
Há uma expressão popular que é uma obra-prima de expressão. É esta:“o que é bom já nasce feito.”
Nascestes escritor. Não há que encontrar nos vossos livros os sinais de criancice.
O vosso estilo já nasceu perfeito. É um estilo sóbrio, bem medido, nobre, disciplinado. E espontâneo, sonoro, e enxuto, de beleza serena e de fascinante cristalinidade.
Se fosse possível comparar prosa com paisagem, eu diria que o vosso estilo é uma paisagem ensolarada, não pelo sol do verão tropical que sorve as fontes e cresta as plantas, mas pelo sol da primavera que doira os vergéis e desabrocha as flores.
Vindes do Maranhão, Senhor Josué Montello, a terra em que, outrora, melhor se escreveu no Brasil.
O destino teve o capricho de criar para a vossa terra, que também é minha, a predestinação literária. Essa predestinação, vista através da História, apresenta, às vezes, curiosidades interessantes. O homem a quem el-rei de Portugal deu o imenso latifúndio da capitania do Maranhão era João de Barros, o grande escritor da era quinhentista. O primeiro colégio de jesuítas que se fundou na capital maranhense e que foi a primeira célula da formação intelectual de nossa terra, teve a dirigi-lo um homem de letras – o Padre João Felipe Bettendorf, autor da Crónica da Missão dos Padres Jesuítas no Maranhão.
A cultura das Letras é companheira da história maranhense. Desde os primeiros albores da evolução brasileira, os homens do Maranhão estão preocupados com a pureza vernacular, com o estudo dos clássicos e com os problemas das belas-letras.
O Maranhão do passado teve, de fato, a hegemonia da inteligência nacional. O estudo de humanidades era, nas suas escolas, um culto sagrado.
Os humanistas maranhenses (e eles eram tantos), o Brasil da época apontava-os como os seus maiores humanistas.
Isso foi naquele período em que a terra onde nascemos teve o belo cognome de Atenas brasileira – período dourado que encheu de resplendência a história espiritual do país, período em que fulguraram um filólogo como Sotero dos Reis – o criador da filologia brasileira – um erudito como Odorico Mendes, um jornalista como José Cândido de Morais e Silva – o Farol, um cientista do pulso de Gomes de Souza, um prosador da sonora sobriedade de João Francisco Lisboa, um poeta da grandeza e do esplendor de Gonçalves Dias.
Foi realmente uma época de alta beleza, de solidez e de profundidade, mais duradoura e mais fecunda do que as épocas denominadas Escola Mineira e Escola Baiana.
Três gerações de escritores gravitam na história literária da terra maranhense. A primeira é a grande fase da Atenas brasileira que teve como chefe a figura veneranda de Sotero dos Reis. A segunda (aquela a que pertenço) é a da chefia de Antônio Lobo, aquela formosa inteligência que a atmosfera provinciana acabou matando. Antônio Lobo chefiou a terceira, que é a vossa.
E na rotação desses três períodos, desgraçadamene se vai tornando uma acentuada tendência para o esmorecimento. A terra não deixou de ser opulenta na seara da inteligência. Mas não há o entusiasmo antigo, que sacudiu o País, com a cintilação literária da nossa gente.
O Maranhão de hoje não é mais o Maranhão dos velhos tempos. É a lei natural: tudo passa no mundo. Aquele período de grandeza passou, como passou a Escola Baiana como passou a Escola Mineira.
Mas vós, Senhor Josué Montello, constituís, com o brilho de vossa inteligência e a solidez de vossa cultura, um remanescente do Maranhão de outrora.
O vosso amor ao estudo, a vossa preocupação em dominar as Letras clássicas, a vossa constante curiosidade espiritual, a limpeza vernácula de vossa prosa, a sobriedade ática de vossa maneira de escrever, a justa medida do vosso estilo revelam que, apesar de terdes nascido muito depois da hora solar da cultura do Maranhão, sois a ressurreição do escritor maranhense dos luminosos tempos em que a nossa terra era uma soberba constelação de altos espíritos literários.
E isso é surpreendente, Senhor Josué Montello. Surpreendente porque se passa no mundo da atualidade. Na atualidade o mundo é um mundo inteiramente diferente daquele que os homens de cabelos brancos conheceram. A vida como que sofreu uma subversão profunda. O planeta como que se virou pelo avesso. Tudo é inquietação, tudo é irritação, tudo é perturbação. Parece que estamos atravessando um fim de idade.
A mocidade de hoje, a nós os homens idosos, parece que pertence a um outro mundo.
O Rio de Janeiro que Olegário Mariano, nos bons tempos, classificou de cidade maravilhosa, é hoje uma sucursal do inferno. A vida tornou-se urna agonia.
A mocidade, essa passa por uma transformação que alarma e que apavora a gente antiga. Nos velhos tempos, quando três, quatro ou mais rapazes se encontravam, era para trocar impressões sobre os livros que tinham acabado de ler; hoje eles se encontram para discutir a partida de futebol do último domingo. Nas Letras e nas Artes parece haver um pé-de-vento levantando uma poeirada que cega a gente.
E nessa época desabotoada e tumultuosa, vós, Senhor Josué Monteilo, vós apresentais um homem tranqüilo, com uma prosa bem vestida, talhada na serenidade eterna dos moldes clássicos.
Todas essas virtudes formadoras de vossa mentalidade foram meticulosarnente examinadas pela Academia e pesadas na balança dos sufrágios que vos deram a vitória consagradora.
A tendência acadêmica é sempre para aferir valores. Aqui não há coteries, não há achas de lenha para pôr em fervura panelinhas literárias.
A Academia não tem dono. É completa a independência aqui dentro; cada um de nós é senhor de sua opinião e do seu voto e só é senhor de seu voto e de sua opinião.
A Academia é soberana. Premia o que lhe parece merecedor de láurea, sem nenhuma influência lá de fora.
Senhor Josué Montello:
As botas de sete léguas fizeram com que madrugásseis na Academia, e a Academia, por ser eu vosso velho admirador e amigo, escolheu-me para vos saudar, no momento em que transpondes as nossas portas.
E eu o faço com a alma iluminada na mais alta festa da minha alegria e da minha emoção.
A vossa entrada nesta Casa lembra-me um episódio da Bíblia – o livro de vossa infância, lido todos os dias nos serões religiosos de vossa família.
Depois de quarenta anos de caminhadas, o povo de Israel chega às vizinhanças de Canaã – terra que Jeová lhe prometera. Vão acabar os castigos do deserto, onde houve fome, onde houve sede, onde havia escorpiões e serpentes como sopro de fogo.
Agora vai ser feliz a vida. Canaã é terra de regatos, de águas e de fontes. Nos seus campos mugem manadas de bois, balem rebanhos de ovelhas. É terra de trigo, de vinhas, de figueiras e olivais; é terra de linho, de azeite, de mel, de suavidade e de abundância.
Mas nem todo o povo de Israel pode entrar em Canaã. Só entrarão as criaturas que não tiveram uma única vacilação de fé, aquelas que nem um só instante descreram de Deus. O próprio Moisés, que conduziu o povo durante quarenta anos pelo deserto, o próprio Moisés não pisará na Terra Prometida, porque nem sempre foi firme na sua fé e mais de uma vez duvidou de Jeová.
Mas era preciso um homem que conduzisse aquele povo à Canaã que, lá adiante, fulgia bela, rica, iluminada e verde.
Quem havia de ser esse homem? Por inspiração de Deus, Moisés já o havia escolhido. Era Josué, filho de Nun.
Josué tem todas as virtudes para entrar na Terra Prometida. Está ungido de sabedoria e está ungido de fé - fé que nunca tivera um segundo de vacilação e de dúvida.
Ao fechar os olhos na planície de Moab, Moisés entrega a Jesus o povo que vinha conduzindo.
E Josué inicia a jornada em rumo de Canaã.
Para chegar a Canaã, é preciso lutar penosamente. Mas a fé, a grande fé do filho de Nun, vai produzindo milagres pelo caminho. As águas do Jordão abrem-se à sua passagem, como à passagem de Moisés se abriram as águas do Mar Vermelho. Ao clangor de suas trombetas ruem os muros da cidade e as muralhas das cidadelas. Para que o seu povo não tenha que combater na escuridão, manda Josué parar o sol.
E glorioso e feliz entrou ele em Canaã com todo o povo de Israel. Vós, Senhor Josué Montello, me fazeis lembrar o episódio de Josué, filho de Nun. Caminhastes para esta Casa ungido de fé e sabedoria, como o Josué da Bíblia marchou para a Terra Prometida. A vossa sabedoria e a vossa fé fizeram suave o vosso caminho. O Jordão dos julgamentos acadêmicos abriu-se, e de pés enxutos atravessastes para o nosso lado. Ao clangor das trombetas de vossas obras, todos os obstáculos e todas as muralhas ruíram aos vossos pés. Vencestes tudo, tudo, tudo.
Senhor Josué Moutello: a Academia é a vossa Canaã.
Entrai.
4/6/1955