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José Mindlin

 

AS OBSESSÕES DE UM BIBLIÓFILO

O amor ao livro e o hábito da leitura vêm de longe e constituem um dos interesses centrais de minha vida. Esses interesses poderiam ter sido atendidos sem que tivessem resultado numa biblioteca de proporções talvez excessivas, se eu me tivesse sempre limitado aos livros que conseguisse ler, comprando um livro de cada vez, e só comprando o seguinte depois de ter lido o anterior. Mas não foi o que aconteceu, e não creio que tenha acontecido a ninguém que eu conheça, e que realmente goste de livros.

O livro exerce uma atração multiforme, que vai muito além da leitura, embora esta seja um ponto de partida fundamental. Em primeiro lugar, existe sempre a ilusão de que se vai conseguir ler mais do que na realidade se consegue. Depois vem o desejo de ter à mão o maior número possível de obras de um autor de quem se gosta – já é o começo de uma coleção. Conseguido o conjunto, que sempre se quer o mais completo possível, surge o interesse pelas primeiras edições, geralmente raras, e a atração pelo livro como objeto, e também como objeto de arte, em que entra a qualidade do projeto gráfico, a ilustração, a diagramação, o papel, a tipografia, a encadernação; e aí já surge a busca da raridade. Quando se chega a esse estágio, aquele que pensava em ser na vida apenas um leitor metódico, está irremediavelmente perdido. Sua relação com o livro passa a ter uma dimensão quase patológica, pois a compulsão de possuí-lo é mais ou menos irresistível (mais mais do que menos).

Foi o que me aconteceu, mas costumo a dizer que sem me causar muita preocupação, pois passei a argumentar, para mim mesmo, que se tratava de uma doença que me fazia sentir bem, ao contrário das outras, e que, além do mais, era incurável. Minha biblioteca, que começou aos treze anos, com a compra de poucos livros, foi crescendo, continuou a crescer no correr dos anos, e cresce ainda hoje. Mas, durante toda a minha vida, a leitura sempre foi o fulcro da biblioteca, e sua razão de ser. Os demais fatores de interesse surgiram depois, e são complementares. Muito mais do que um colecionador, considero-me um leitor incansável e, o que é mais grave, um leitor indisciplinado. Leio muito desde a infância, livros sobre os mais variados assuntos, desde que atraiam o meu interesse, e muitos livros releio, o que é um complicador, mas que não se consegue evitar, nem há razão para querer evitar.

O que não gosto, e raramente acontece, é de ler por obrigação.

Desconfio dos livros de sucesso, e desses, em geral, só vou ler os que tiveram um tempo de decantação. Se os próprios escritores, especialmente os principiantes, pusessem o livro na gaveta, depois de escrito, por um ou dois anos, e depois disso vissem se o texto resistiu a uma releitura – é provável que a massa imensa de livros que se publica no mundo se reduzisse substancialmente. Reconheço, é claro, que isso é meio utópico, e compreendo perfeitamente a impaciência do autor, especialmente de um jovem autor, de se ver publicado. A rigor, eu, mesmo não sendo jovem, nem propriamente um autor, também deveria fazer o mesmo com este texto e, se não o faço, é porque o considero uma simples conversa, e não sei quanto tempo tenho pela frente para testar sua validade e interesse. Em compensação, ninguém tem obrigação de ler. Pode parar por aqui.

Procuro, neste assunto, ter em mente a frase de Thomas Mann, segundo a qual a leitura de bons livros deveria ser proibida, porque existem os ótimos – mas não sou tão radical. Há muitos livros apenas “bons” que merecem ser lidos, e nem sempre o bom e o ótimo são classificados uniformemente por leitores diferentes.

Não gosto de livro difícil, a não ser excepcionalmente, e só com boas razões, como com Proust, Joyce e Guimarães Rosa, por exemplo, a propósito dos quais houve histórias que contarei mais adiante. Essa é, devo confessar, uma das muitas razões de minhas afinidades com Montaigne, cuja obra li desde a mocidade, especialmente durante as aulas da Faculdade de Direito, em que geralmente ficava sentado no fundo da sala, lendo os ensaios, e muita coisa mais, enquanto os professores liam, durante cinquenta minutos,  em voz alta e geralmente monótona, suas preleções – que depois em casa, eu lia em quinze.

E é justamente Montaigne que diz no capítulo décimo do Segundo Livro dos Ensaios (de que tenho a primeira edição completa de 1588): “Quando encontro dificuldades na leitura, não me preocupo demais, pois se insistisse perder-me-ia e o meu tempo; meu espírito é de compreensão imediata. O que não entendo à primeira vista, entendo menos me obstinando. Não faço nada sem alegria”.

Posso dizer que é também o meu caso. Este é, aliás, o lema do meu ex-libris. Daí eu me considerar indisciplinado, e a biblioteca, por tabela, também o ser. Ando sempre com um livro, e é isso que me permite ler em média uns oito livros, ou melhor, cerca de 1.500 páginas por mês, porque minha leitura é feita através da soma de pequenos períodos.

Os enguiços de trânsito, por exemplo, ajudam a ler mais...

Às vezes, o esforço de leitura é necessário, e o aceito, mas isso, geralmente só quando tenho boa informação, ou quando alguém, cujo critério respeito, recomenda o livro. Não me lembro de ter lido até o fim uma obra que, depois das primeiras vinte ou trinta páginas, em estilo rebarbativo ou pedante, excedesse a minha compreensão, ou o meu prazer.

Das que mencionei como difíceis, Proust e Guimarães Rosa passaram a ser leituras e releituras constantes. Mas isso não foi imediato. Proust, por exemplo, comecei a ler o Em Busca do Tempo Perdido quando tinha vinte e poucos anos, achando difícil, e estando em dúvida se iria continuar ou não, quando uma noite encontrei Tristão de Ataíde em casa de Luís Camilo de Oliveira Neto – um de meus maiores amigos – e Proust surgiu na conversa. Não sei se por rompante da mocidade ou por querer ser espirituoso (o que em geral não dá certo), fiz um comentário meio bobo, dizendo que “Proust descrevia o sono tão bem, que a gente adormecia”. “Você está muito enganado, rapaz”, disse-me o Dr. Alceu. “Leia com todo o esforço que seja necessário as primeiras cinquenta páginas. Se nessa altura, você não sentir que entrou no universo de Proust, leia, também com todo o esforço, mais cinquenta, que aí você não vai largar mais”. Segui o conselho, e fiquei devendo àquele grande crítico um serviço inestimável, pois o que ele disse aconteceu. Ao todo, li a Recherche cinco vezes, com intervalos de mais ou menos dez anos, e cada leitura foi diferente, mas todas me deram muito prazer.

Já com Guimarães Rosa a história foi diferente, mas essa vou deixar para contar mais tarde. Quanto a Joyce, não consegui me integrar tão bem em seu universo, mas aí certamente por falha minha. Assim mesmo, li Ulysses três vezes: a primeira na tradução francesa revista por Valery Larbaud e pelo próprio Joyce, que é muito boa e que, por ser tradução, tem a vantagem de decodificar muitos mistérios; depois, o original, e ainda a tradução brasileira de Antônio Houaiss, que é um trabalho extraordinário, mas devo confessar que não cheguei à mesma empatia que tive com Proust e Guimarães Rosa, e por isso não houve, pelo menos até agora, nova releitura. Com outras obras de Joyce não tive problema – pelo contrário, li com prazer Dubliners e Portrait of the Artist as a Young Man. Já com Anna Livia Plurabelle, a dificuldade voltou. Estou começando a ler agora, aliás, um livro de Joyce que acabo de receber, Poems in Verse and Prose.

Gosto muito de ficção, de biografia, de ensaios, de história e relatos de viagens (especialmente pelo Brasil), de crítica literária, de diários e, naturalmente, de poesia. Teatro, desde o grego e o romano, passando entre muitos outros, por Shakespeare e Molière, e chegando aos nossos dias; roteiros de cinema e, ocasionalmente, um bom livro policial ou erótico também fazem parte da minha pauta de leituras. Mas leio meio desordenadamente, passando de um assunto a outro muito diverso, ou mesmo lendo mais de um livro ao mesmo tempo. Quanto aos livros de arte, são parte significativa da biblioteca, mas confesso que os olho muito mais do que leio, pois as técnicas de reprodução progrediram tanto, e os detalhes nos livros são tão destacados, que acontece às vezes de se ficar conhecendo melhor a obra quando reproduzida em livro do que vendo a original.

Há um outro detalhe: gosto de arriscar a leitura de autores inteiramente desconhecidos por mim, mas que, por motivos às vezes difíceis de definir ou explicar, me atraíram. E fiz descobertas que me deram um prazer muito grande, um outro tipo de garimpagem, além da busca do livro raro: este a gente normalmente procura porque já conhece.

Como exemplo dessas descobertas, mencionaria três livros que me atraíram sem que eu soubesse bem por quê, mas cuja leitura recomendo enfaticamente. Um deles é O Evangelho da Incerteza, de Wanda Fabian, editado pela Nova Fronteira, de que eu nunca tinha ouvido falar, mas que me entusiasmou já há mais de vinte anos, e que reli há algum tempo com o mesmo prazer. Com esse livro aconteceu uma coisa curiosa. Eu não sabia nada sobre a escritora, e pensei, pelo enredo e estilo do livro, que fosse mineira. Nem sabia se era viva. Pois em 1993 tive a surpresa de receber um telefonema de Wanda Fabian, carioca, e não mineira, muito simpática, dizendo-me que, por conta de minhas referências, a Nova Fronteira tinha resolvido reeditar o livro! Fui ao lançamento no Rio, conheci a autora, e ficamos amigos – o que é sempre uma das boas coisas da vida. Os outros dois livros também são de mulheres, mas com elas não deu para ficar amigo, desde logo por motivos cronológicos. Não fosse isso, bem que gostaria...

Um deles foi o diário de uma moça da corte japonesa do século X – O Livro de Travesseiro de Sei Shonagon, onde se vê que as emoções, as intrigas e os interesses humanos fundamentais são muito semelhantes através do tempo e do espaço. O outro foi Lettres de Belle de Zuylen, publicado na França em 1909, que encontrei num sebo. É a correspondência de uma moça holandesa do século XVIII, Isabelle de Tuyll, a Belle de Zuylen, que depois ficou conhecida como Mme. Charrière – uma personalidade fascinante por sua inteligência, seu estilo, vivacidade, desinibição, humor e beleza. Uma moça que nos nossos dias poderia ser considerada bem fora de série. Pode-se imaginar então o que deve ter sido no contexto em que viveu. James Boswell, o famoso autor da biografia de Samuel Johnson, conheceu-a na Holanda, e até tentou se casar com ela, mas sem resultado. A correspondência que ela manteve, aliás, sobre outro projeto de casamento, e que está justamente no livro que eu li, é muito saborosa. E já que falei de Boswell, posso também recomendar a leitura de seus Diários, de meados do século XVIII, descobertos somente nos anos 20 deste século.

                       (Uma vida entre livros: reencontros com o tempo, 1997.)

 

O ESTUDANTE

Entrei na Faculdade de Direito (a velha Faculdade do Largo de São Francisco), em 1932, continuando a trabalhar como jornalista, mas em 34, quando já estagiava com Walfrido Prado Guimarães, que depois se casou com minha irmã Esther, o acúmulo de funções se tornou difícil, e tive de fazer opção entre advocacia e jornalismo. Optei pela advocacia, mas meu interesse por jornalismo, e meu respeito pelo Estado como instituição, se mantiveram por toda a minha vida. Senti por isso surpresa e uma certa emoção, quando, no princípio dos anos 80, recebi de meu amigo Júlio Mesquita Neto convite, que aceitei com prazer, para integrar o Conselho de Estado que estava querendo formar, e de que faço parte até hoje. São realmente curiosas as voltas que o mundo dá!

Antes de entrar na Faculdade, uma particularidade no meu curso ginasial influiu, creio eu, na minha formação. Estudei no Liceu Rio Branco, que tinha três mentores de excepcional gabarito – Antônio de Sampaio Dória, Lourenço Filho e Roldão Lopes de Barros, que procuravam despertar nos alunos interesses que iam muito além do currículo escolar. E para nos dar uma ideia de como se processava a vida fora da escola, sugeriram e ajudaram a formação de uma Associação Escolar Rio Branco, para ser uma verdadeira miniatura da organização política do Brasil. Havia um Presidente, um Vice, os Ministros (chamados Secretários), e uma Assembleia, composta de representantes de todas as classes, eleitos pelos respectivos alunos. Curiosamente, eu fui, nesse “Governo”, Secretário de Letras e Artes, além de dirigir uma revista, a Rio Branco, que a Associação publicava. Imagino que já dava, em 1928 e 1929, indicação de inclinações culturais, mas o mais importante é que me parece ter sido aí que se originou meu interesse pela política, que se manteve a vida toda, embora nunca tenha pertencido a nenhum partido, pois, individualista por natureza, não conseguia imaginar-me submetido a uma disciplina partidária.

O curso de Direito, de 1932 a 1936, foi também um importante elemento de minha formação, na qual, no entanto, o aprendizado jurídico não foi o fator predominante, pois ele se fez mais através da leitura, e do estágio de advocacia, do que de frequência às aulas. Isso porque, naquela época, raros eram os professores que prendiam a atenção dos alunos. A maior parte lia suas preleções – provavelmente as mesmas durante anos seguidos – sem nenhum contato ou diálogo com os estudantes, o que não estimulava a presença, que no meu caso foi intermitente. E eu, normalmente, como já disse, só ia lá por causa da leitura no fundo da sala.

Houve exceções, naturalmente, como Antônio de Sampaio Dória, professor de Direito Constitucional, que tinha um excepcional talento dialético, pois convencia-nos numa aula do acerto de determinada tese, para na aula seguinte convencer-nos do contrário; Antônio de Almeida Júnior, de Medicina Legal; José Augusto César, de Direito Civil (que dava aulas logo após o almoço, mas conseguia manter todos os alunos acordados...); ou Mario Mazagão, de Direito Administrativo, todos com fascinante clareza de exposição.  Valdemar Ferreira e Vicente Ráo tinham fama de grandes professores, mas do primeiro só assisti a uma, porque faltei às outras, por causa de uma viagem de que vou falar logo mais; e do segundo não cheguei a assistir a nenhuma, porque ele faltou a quase todas, e quando vinha, quem não estava era eu... Mas dos outros professores, a maior parte parecia ter começado a dar aulas no século XIX. Outra exceção, que não posso esquecer, foi Spencer Vampré, catedrático de Introdução à Ciência do Direito, que na realidade nos ensinou muito pouco de Direito, mas estimulou nosso interesse cultural nas mais variadas áreas – sugeria o estudo de línguas, falava de literatura, abriu novos horizontes para todos nós. Deixou uma lembrança carinhosa.

O ambiente na Faculdade era de agitação política, a Revolução de 32 absorveu boa parte do ano, esquerda e direita começavam a se defrontar, despontava o integralismo, mas o centro predominava, e o clima de relacionamento era razoavelmente cordial, embora as amizades que se formaram seguissem naturalmente as afinidades de ideias. A radicalização das divergências pessoais começou com o crescimento do integralismo, mas durante o curso, e mesmo mais tarde, só afetou os mais radicais.

Creio que já disse que aproveitava as aulas para leituras variadas, especialmente literárias, sentado no fundo da sala. Foi um tempo bem aproveitado. É claro que lia também livros jurídicos, principalmente dos campos que mais me interessavam – Direito Constitucional e Direito Penal, onde o que me atraía era a doutrina, e não a perspectiva de prática da advocacia criminal. Estudei muito Direito Romano, mas isso aconteceu fora da Faculdade, pois não fazia parte do currículo de nossa turma: em 1932, Direito Romano era matéria do quinto ano, e em 1934, quando estávamos no terceiro ano, passou a ser matéria do primeiro! Apesar de ser fundamento de nossa estrutura jurídica, nossa turma na Faculdade oficialmente não estudou Direito Romano!

De todo modo, meu curso de Direito foi um período feliz, em que também aprendi muita coisa que me foi útil na vida. Também aí fiz grandes amizades, muitos colegas já morreram, mas algumas amizades felizmente perduraram. Não vou me alongar sobre essas lembranças, mas há três episódios, relacionados à Faculdade, que me parecem merecer destaque.

O primeiro foi um convite que recebi, creio que no segundo ano, de um amigo e colega de turma, João Paulo Arruda, para uma reunião que ele dizia ser muito especial e muito interessante, mas que eu deveria manter secreta. Fiquei curioso, e fui. Encontrei um ambiente meio misterioso, fui muito bem recebido, mas tive que prometer que não revelaria a ninguém o que iria se passar. Se o revelo agora, é porque, depois de mais de sessenta anos, creio que o segredo já está prescrito...

Foi um convite para integrar uma associação que iria me oferecer oportunidades atraentes, e assegurar favoravelmente meu caminho futuro, desde que eu seguisse a orientação que fosse recebendo do grupo ali reunido. A primeira oportunidade, se aceito o convite, seria a direção de um jornal que pretendiam lançar. Naturalmente pedi maiores detalhes sobre quem integrava a associação, e sobre a própria entidade, pois já naquela ocasião não gostava de entrar nas coisas no escuro, mas a resposta que recebi, de que só gradualmente eu seria apresentado a escalões mais altos, e conheceria a estrutura da associação, provocou minha recusa ao convite, com grande decepção dos colegas.

Tratava-se, nada mais, nada menos, da famosa Bucha, a sociedade de auxílio mútuo formada por Júlio Frank um século atrás, a Burschenschaft, que teve poderosa influência na política brasileira até a Revolução de 30, mas que, com o final da Velha República, entrou em decadência. Dizem que os principais cargos públicos eram até então preenchidos por indicação da Bucha, e que Artur Bernardes, por exemplo, teria tido seus estudos financiados por ela, e chegado à Presidência por sua influência. Não posso responder pela veracidade dessas informações, embora fossem voz corrente, mas dadas à boca pequena. Tudo isso fiquei sabendo mais tarde, mas não me arrependo da atitude que tomei. Suponho que a Bucha não existe mais, mas, se por acaso se manteve, certamente não exerce mais nenhuma influência. Quando muito diria que, se existe, pode se ter transformado numa associação equivalente à dos veteranos da Guerra do Paraguai...

O segundo episódio foi outro convite inesperado que recebi, em maio de 1934. Saindo de uma aula do Prof. Valdemar Ferreira (a primeira e única a que assisti), encontrei um advogado amigo, Rui Calazans de Araújo, que me perguntou se eu falava francês e inglês. Quando disse que falava, perguntou-me se queria ir à Europa e, evidentemente, disse que sim. Era para integrar um grupo de estudantes civis na viagem inaugural do navio-escola Almirante Saldanha, que uma comitiva da Marinha iria buscar no estaleiro, na Inglaterra. Parti no mesmo dia (não assisti a mais nenhuma aula do Prof. Valdemar Ferreira, mas não perdi o ano, pois pude fazer exames de segunda época). Foi uma admirável experiência, que durou cinco meses. Visitamos vários países da Europa (a própria Inglaterra, depois a França, Portugal, Gibraltar, Itália e Espanha) e voltamos à vela, de Barcelona ao Rio, em 49 dias. Fiz nessa viagem grandes amizades, desde os guardas-marinhas até os oficiais superiores. Quase todos chegaram a almirantes, e houve um momento em que, se se quisesse, poder-se-ia até articular uma revolução na Marinha... Durante a viagem de volta, li cinquenta livros, assisti à pesca de tubarões, e fotografei o Zeppelin, que cruzou com o Saldanha em pleno oceano Atlântico. Dois outros episódios interessantes da viagem foram uma escala em Fernando de Noronha, que naquela época era colônia penal, em que um preso, que pertencera ao bando de Lampião, me disse: “Nós não matamos, doutor; nós só enterramos a faca. Quem mata é Deus”; outro fato curioso foi ver um cardume de doze baleias, que cercou o navio na altura do Espírito Santo, e o acompanhou por bastante tempo. Nunca vi outro...

Essa minha primeira viagem à Europa, e meu primeiro contato direto com museus, bibliotecas e livrarias europeias, foi uma experiência inesquecível. Em Lisboa, visitando a Torre do Tombo, tive o privilégio de conhecer o grande historiador Antônio Baião, e de ter em mãos a Carta de Pero Vaz de Caminha, que lhe pedi para ver. Pensei que estivesse numa redoma, mas tive a surpresa de vê-lo chamar um contínuo, mandando que trouxesse o manuscrito número tal, e daí a pouco, vejo-o com uma folha almaço dobrada, que me entregou – dentro estava a Carta...! Dizem-me que continua assim, mas custo a acreditar.

Quando estava iniciando o quinto ano, ocorreu o terceiro episódio: chegando um dia à Faculdade, vi uma caloura (por sinal loura), que depois vim a saber que se chamava Guita Kauffmann. Estava cercada por um grupo de rapazes, que insistiam para que ela se inscrevesse num dos vários partidos acadêmicos – Libertador, Liberal e outros de que não me lembro. Olhei para a moça, e na mesma hora resolvi entrar na conversa, dizendo-lhe que tudo isso era bobagem, porque um bom partido seria eu. Pois ela também topou na hora, e a consequência foi que durante o curso nos casamos. Recentemente estivemos no Recife, e um velho amigo, Odilon Ribeiro Coutinho, comentou que era um caso raro, esse de sessenta anos de fidelidade partidária...

                       (Uma vida entre livros: reencontros com o tempo, 1997.)