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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alberto da Costa e Silva

Olho para o alto e vejo o teto forrado de bandeirinhas.

Senhor Presidente da Academia Brasileira de Letras, Senhor Fábio Magalhães, Secretário de Cultura do Estado de São Paulo, representando o Senhor Governador, Acadêmico Arnaldo Niskier, Secretário da Educação e representante da Senhora Governadora do Estado do Rio de Janeiro, Senhor Secretário-Geral da ABL, Senhores Acadêmicos, minhas Senhoras e meus Senhores:

não ouvirem, como ouço, a banda lá fora com os foguetes a quebrarem o ritmo do dobrado, é porque eu trouxe para esta sala tudo o que na minha alma enroupa a festa.  E no meio dela, Acadêmico José Mindlin, reparo que se pergunta por que o vivam e o levantam nos ombros, quando não passa, desde rapazola, de um amador de livros. Seria preciso que alguém lhe revelasse  o que não é segredo: que o laço mais forte que nos une é termos sido, todos os quarenta, adolescentes que amavam os livros e que disso jamais se corrigiram.
 
Um dos nossos, que tenho sempre perto do coração, Herberto Sales, certo dia me disse ser todo leitor um escritor em potencial, que, não podendo redigir Crime e castigo, lê o livro de Dostoievski como se o estivesse a escrever. Somos todos, assim, co-autores das obras que lemos. E nelas nos pomos inteiros como naquelas que saem de nossas mãos.

Se, hoje, recebemos o escritor que nos deu Uma vida entre livros, José conta suas histórias, Memórias esparsas de uma biblioteca e os belos textos de Destaques da biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin, o memorialista que dos amigos só guarda os gestos bons e os momentos afetuosos, o editor de domingo que, confiando no saber gráfico de sua filha Diana, nos ofereceu alguns dos mais belos livros já impressos no Brasil, o empresário que fez da sua indústria  exemplo de eficiência, criatividade e harmonia nas relações de trabalho, o homem público que jamais desmereceu o homem de cultura  e a ambos o país tanto deve , acolhemos também o grande leitor, atento e sensível, incansável e voraz, o grande leitor que se aproximaria de suas numerosíssimas estantes, desalentado e entristecido por não conseguir ler todos os volumes que nelas se encontram, se não tivesse escolhido a alegria como farol da vida, conforme deixa claro na frase de Montaigne que pôs em seu ex-libris: “Je ne fay rien sans Gayeté”.  

Numa página de seu Journal, André Gide nos conta que, tendo um visitante lhe perguntado se havia lido todos os livros que tinha em casa  e eram algumas dezenas de milhares , deu-lhe a resposta que daríamos: não, mas algum dia talvez os leia e é bom que estejam ali. José Mindlin, por sua vez, diria: é bom que estejam ali, ainda que sequer sonhe um dia a todos ler, porque cada um deles me deu o contentamento de encontrá-lo e adquiri-lo, muitas vezes após uma procura e de um noivado de muitos anos. E, ademais  acrescentaria Midlin , não estão ali apenas para mim, mas também para os outros, pois, se não os li, alguém um dia os lerá. E estão ali para tê-los à mão e acariciar-lhes as encadernações, sentir na ponta dos dedos as diferentes texturas dos papéis, admirar a diagramação e o talho das letras, esta gravura em preto e branco e aquela outra que se completa em aquarela, e as inscrições em ouro das lombadas, e o carinho com que foi feito e conservado o que por si só, independentemente de seu conteúdo, pode ser, e muitas vezes é, uma obra de arte.  
 
José Mindlin seria, assim, não apenas o co-autor de todos os livros que leu, mas também o co-impressor e o co-encadernador de todos os livros que possui, numa biblioteca que tem o seu quê de mágica e sussurra feminina e poeticamente na alma de todos os que têm o privilégio de conhecê-la. E essa impressão de plenitude acrescenta-se naqueles que alguma vez foram acompanhados na viagem pela leveza amorosa de Guita Mindlin, tão presente na saudade desta sala.

É Guita a personagem principal dos reencontros com o tempo de José Mindlin. Não precisa ele mencioná-la expressamente, porque está, discreta, quase a esconder-se, nos melhores momentos de suas memórias, desde o dia em que a conheceu, caloura, na Faculdade do Largo de São Francisco. Ela nos chega, de mansinho, nesta e naquela página, a pôr as mãos em cada um dos livros que José Mindlin logrou obter, e a recompô-los, quando machucados pela umidade, o uso, o desleixo ou o tempo. Pois são os livros que marcam o ritmo dessas escavações no passado, muitos deles com histórias a pedirem para ser contadas  e, se esta é esquecida em Uma vida entre livros, procura espaço em Memórias esparsas de uma biblioteca ou num dos textos dos Destaques de uma biblioteca indisciplinada. Outras, menos venturosas, não passaram ainda da lembrança para o papel.

Os escritos autobiográficos de José Mindlin e o discurso que há pouco pronunciou é mais um deles não se corrigem uns aos outros; completam-se. E ficam a pedir mais. Porque contam histórias que, sendo dele, são também, muitas vezes, nossas. Como tantos memorialistas, ele fala mais dos outros que de si próprio e se demora, sobretudo, nos livreiros, nos bibliófilos e nos escritores com quem privou. Nos abençoados pelo vício do livro, como ele. Ao fazê-lo, restaura os muitos anos que se foram, e que eram menos apressados e, por isso, nos parecem mais longos, e neles repõe as emoções que lhe deram os grandes livros, e os livros raros, e os livros de todos os dias, e os livros sobre ameríndios escritos por sua filha, Betty Mindlin, de quem sou, eu também, leitor cativo e devoto. De volta traz-nos as alegrias dos grandes encontros e das grandes amizades. E amizade é, de resto, a palavra que lhe marca a vida.

José Mindlin não se confessa o que é, um escritor. Quase que nos pede desculpas por escrever. Mas é um escritor. Um escritor que segue a lição de Almeida Garrett, nas Viagens na minha terra: isto pensava, isto escreve, isto tinha na alma, isto põe no papel, que de outro modo não sabe fazer. Daí a fluência de seus parágrafos, a naturalidade de sua narração, que jamais se afasta do ritmo e das entonações da fala. Nós o lemos como se o estivéssemos ouvindo, e ouvindo alguém que sabe, e admiravelmente bem, ler em voz alta. Quem duvidar da excelência do leitor, ouça José Mindlin a recitar, entre outros, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa nos CDs O prazer da poesia e Sete episódios de Grande Sertão: Veredas. Não resisto a dizer que reli Uma vida entre livros, a ouvir em cada palavra impressa a sua voz. Sem ênfase maior, limpa e correta, a voz de quem conversa.     
Entra José Mindlin nesta Casa como escritor. Entra também como uma personagem paradigmática da cultura brasileira, como um dos grandes nomes de nosso tempo, como aquele que escolhemos para suceder a um outro grandíssimo homem de cultura, alto em nossa admiração, em nosso afeto e, sobretudo, em nossa saudade: Josué Montello.

Todos sabem o quanto me é difícil falar, sem comover-me, sobre Josué Montello. Foi meu amigo desde os meus 19 anos, uma amizade que era ainda mais antiga, porque eu a herdara de meu irmão Mário, que dele fora companheiro de carteira escolar no Liceu Maranhense, convívio que se alongava no casarão de minha tia Sinhá da Costa e Silva Pacheco, na praça da Alegria, que antes se chamava Praça da Forca Nova. Ou da Forca Velha, não sei mais. O primeiro livro que dele li, mais menino do que moço, A luz da estrela morta, causou-me uma funda impressão. E o que veio depois  especialmente Cais da Sagração, Os tambores de São Luís, A noite sobre Alcântara e Largo do Desterro   fazem parte do melhor da história de minhas leituras. São esses quatro romances grandes livros, densos, vividos, humanos. Os tambores de São Luiz  é a mais bela obra de ficção sobre o regime escravista no Brasil e suas conseqüências, um romance tão bem ancorado na realidade histórica quanto Rei negro, de Coelho Neto, por trás de cujos parágrafos podemos ouvir o que lhe contaram sobre a África e o exílio os escravos africanos.

José Mindlin sucede a um romancista que era, como ele, um servidor dos livros. Também Josué Montello tinha o gosto pelos livros raros e pelos livros belos, pelos volumes em que encontrava correções do autor ou dedicatórias curiosas, e pelos originais manuscritos ou datilografados, e pelas provas tipográficas depois de revistas. Vários dos seus achados hoje se encontram nas bibliotecas desta Academia  e muitos de nós recordaremos sempre a felicidade com que nos surpreendia com as doações. Outros continuam sob a guarda carinhosa de sua companheira bem-amada, a nossa Yvonne. E outros ainda foram parar, com milhares de outros volumes que passaram pelas suas mãos, nas estantes do centro cultural que, em São Luís, leva o seu nome.

Por suas mãos passaram, aliás, quase todos os livros de literatura que saíram dos prelos brasileiros e portugueses no século XX. De muitas de suas leituras, deixou testemunho em incontáveis ensaios e artigos de crítica se não incontáveis, pelo menos difíceis de se contarem, porque era rara a semana, desde os dias da mocidade no Maranhão, em que não os estampassem, e, às vezes, mais de um, as revistas e os jornais. De outras, falou-nos, breve ou longamente, nas três mil páginas de seus Diários, de percurso indispensável a quem quiser conhecer não só a história cultural, mas também a história política brasileira dos últimos cem anos. Embora o primeiro deles, Diário da manhã, só comece em junho de 1952, em muitas de suas páginas as observações sobre o presente vão buscar origem, semelhanças, comparações e contrastes no passado, quando este não é o principal tema da anotação diária. Nos Diários estão as memórias de Josué Montello e as memórias de nosso tempo.

José Mindlin:

Essa cadeira 29 bem o merece. Nela, sentou-se, durante 50 anos, quem, para nós, chegou a personificar a Academia. Amou-a sempre, desde antes de nela ingressar, e a serviu e protegeu, convicto da importância das instituições, sobretudo num país com um estranho desapego ao passado. Que um homem do livro suceda a outro homem do livro. Que um grande leitor chegue depois de outro grande leitor. A mão de um sustenta a mão do outro a tirar um volume da estante. São tão diferentes entre si, na altura, na compleição, nos gestos, no andar, na fala e na maneira de sorrir, e, no entanto, um quase se superpõe ao outro, e com ele se confunde, no devotamento à cultura, no amor às criações do espírito e, sobretudo, ao que a alma do homem põe no papel.

Muitos nos procuram; por uns poucos esperamos. E, quando um desses chega, como é, José Mindlin, o seu caso, acende-se ainda mais a festa. Peço a mim mesmo que fale mais baixo, para que possamos melhor ouvir os tambores e os taróis, os metais e as madeiras, e, finalmente, claro, vibrante, dourado, o ressoar dos pratos. Estamos felizes demais para as palavras. E a nossa alegria chega ao pé de mim e manda que me cale.