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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Marques Rebelo

O destino não é inconsequente, às vezes. E não o foi convosco, Sr. Herberto Sales, homem modesto, tímido e esquivo, sujeito na intimidade a divertidos acessos de cólera e desespero, pena de quilate nunca superado pelos das mais preciosas gemas do vosso rincão natal e amigo admirável em dedicação, complacência e fidelidade. Apanhou-vos na pequenina e distante cidade, nas lavras diamantíferas baianas, tão orgulhosa hoje de vos ter por filho, após vos ter condenado e ameaçado sob a pecha de péssimo fotógrafo, e vos deixou nesta Casa, tida e havida como ápice consagratório duma Cadeira Literária, mas cujo ingresso oferece quase sempre uma soma tão alta de angústias, obstáculos, incertezas e azares, que não sei se seria melhor, para os corações frágeis, ficarem esperando lá fora o voto da posteridade, que tem mais de trinta e tantos eleitores. Tanto assim que a vossa primeira manifestação, ao receberdes a notícia da disputada vitória, de cujo campo ameaçastes debandar com os nervos em pandarecos, foi o desabafo tão peculiar ao vosso gênio: “Que alívio! Não irei mais nunca ser candidato à Academia!”

E, cioso da praxe que o regimento acadêmico lhe confere, o Presidente Austregésilo de Athayde, sábio como é de nascença e aprimoramento, reconhecendo um direito inalienável de que tão intimamente me orgulho, escolheu para vos receber aqui o diabo da guarda, que acompanhou, constante e sulfuroso, a vossa desrumorosa mas segura trajetória e cúmplice foi da vossa chegada a este plantel ambicionado por uns quarenta milhões de brasileiros.

Em agosto de 1941, o ágil Joel Silveira, em Diretrizes, que também foi exemplo de agilidade e inteligente realismo jornalístico, sem estagiários bisonhos e sem vocação, publicava uma reportagem sobre o problema doméstico dos escritores, relativo aos seus orçamentos, é claro, exíguos então, e ainda agora, dolorosamente parelhos aos dos artistas plásticos, dos músicos, dos historiadores e dos cientistas, pois, como é do lamentável e não raro humorístico conhecimento geral, a Cultura, única forma, nada mágica, mas decorrente de ampla e superior visão, de persistência e de largas e jamais podadas verbas, única forma pela qual as nações se impõem, se emancipam, se dignificam e subsistem, não tem sido o forte das preocupações político-administrativas nacionais, salvo alguns mirabolantes ou demagógicos projetos, polvilhados de publicidade oficial, que felizmente ficam sempre no papel como letra morta. Mas não percamos a esperança. Dia virá em que serão assistidos os museus, as bibliotecas, os arquivos, os laboratórios, os serviços de defesa do Patrimônio Histórico e Artístico, organismos que são os favos do mel cultural. Por enquanto, contentemo-nos com a recente ênfase que se pretende imprimir à cultura física obrigatória, dos jardins de infância às universidades, que seguramente começará a impor ao mundo estarrecido a potencialidade cultural brasileira. E, com tais palavras, longe estaremos de negar a importância do atletismo e a alegria das competições esportivas – quantas vezes, do resultado delas, tivemos alguns dos nossos maiores júbilos. Mas, num país no estágio do nosso, o aparelhamento vigoroso do espírito é que deve constituir o alvo prioritário.

Fato curioso é que constavam da relação dos entrevistados, José Lins do Rego, Álvaro Moreyra, R. Magalhães Júnior, Joracy Camargo e o criado que vos fala, figuras que passaram, ou ainda permanecem neste Cenáculo, além de um outro, Aníbal Machado, que aqui não chegou simplesmente porque era muito cauteloso com as suas coronárias.

Sem a menor cerimônia forneci ao brilhante jornalista o balanço das minhas ganhanças e despesas, mais edificantes as segundas do que as primeiras, tal é a abnegada conjuntura dos nossos homens de letras, teimosos que são. Profissional exigente, não deixou o entrevistador de mencionar o endereço de todos os inquiridos. Morava, na ocasião, num edifício da Praia de Botafogo, fronteiro a um monumento em mármore a Eça de Queirós, de duvidoso bom gosto, e mais tarde transferido para diante de um clube de futebol, ou pela mania municipal de brincar de quatro cantos com as estátuas, ou por ter sido comprovado que nada influenciando para a melhoria estilística dos moradores do quarteirão, poderia atuar sobre o virtuosismo dos futebolistas, habilitando-os melhor a tirarem a bola de letra. E por certo também não surtiu efeito, pois já lá não mais está e para onde foi não sei. O edifício em questão, não exageradamente grande e de funestos elevadores, merece registro especial: tem sido uma espécie de chocadeira acadêmica, pois dele saíram para a Casa de Machado de Assis, em ordem cronológica, Álvaro Lins, águia da Crítica, clarividente e destemido, R. Magalhães Júnior, que é o mais exato sinônimo de incansável operosidade, mestre Aurélio Buarque de Holanda, eu, o sentimental cronista deste Rio de todos os brasileiros, e agora vós, Sr. Herberto Sales, ave da melhor raça de romancistas.

É pequeno esse nosso imenso Brasil e a reportagem foi parar na longínqua Andaraí, cuja mala postal chegava em lombo de burro, ou em trôpego caminhão, com memorável atraso, sujeito ainda a agravo se o Paraguaçu não fazia uma das suas, derrubando pontes precárias ou eliminando os vaus que a esperteza cabocla demarcava. Ávido éreis vós, Sr. Herberto Sales, das notícias federais, mormente as literárias, que a literatura foi a vossa única paixão, fora aquela de possuir um caminhão para, comercialmente explorado, enfrentar as ásperas estradas do vosso município, ambição que felizmente gorou para a perfeita integridade do veículo e do proprietário.

E é quando entra em cena o diabo da guarda, na perfeita exemplificação do ex-máquina. No meio dos endereços ilustres e generosos inseridos na reportagem, foi o meu o escolhido, o que é realmente um desses caprichos do destino.

Nunca na minha vida, já de dilatados anos e de considerável correspondência, recebi carta tão comprida. Eram dezoito páginas datilografadas maciçamente em espaço um e em tinta vermelha! Mistura de biografia, insulação, ingenuidades e sonhos controversos, tudo com um travo de desesperança e desencanto, que me tornava a leitura, ora irônica, ora pungente, e que era bem um melancólico exemplo do desamparo em que se perdiam, por estes Brasis afora, messes de inteligência e de sensibilidade.

Dáveis-me conta de que, entre os devaneios literários e os maravilhosos encontros com alguns mestres de aquém e de além-mar, e aí muito instruído fostes pelo faro do vosso irmão Fernando, que era inveterado leitor, vós, que não passastes de um truncado curso ginasial, quando a Física e a Química vos surgiram como barreiras intransponíveis, na necessidade de sobrevivência em tão limitado meio, como era o da rude Andaraí, montastes uma venda, abristes um negócio de exploração de lenha, matastes porcos e carneiros para venda em retalho, com mais calotes do que pagamentos, tentastes a garimpagem com um humilde sócio, fizestes vida boêmia como numa fuga aos sucessivos naufrágios comerciais e a tantas mortes brutais, a tantos facínoras a serviço da cobiça e da traição, a tantas miseráveis explorações do trabalho humano, a tantas torpezas, em suma, que presenciastes, mas que seriam a acumulada riqueza que daria ao vosso mais famoso romance a solidez do sereno protesto dos artistas e a grandeza diamantina da perenidade.

Não sou tardo nas respostas e levarei para o orgulhoso Mausoléu dos Imortais a consoladora convicção de nunca ter negado apoio a jovens promissores, nunca ter temido a concorrência deles. Mas, severo que sou, mais realístico do que severo, não me contento apenas em estimular e não temer, mas duramente abro os olhos daqueles que se iniciam, ou tentam alçar voo, para os perigos das facilidades, para a desconfiança da pura bossa como único esteio de uma obra de real significação e que almeje ficar de pé.

Um tópico da caudalosa missiva era desencantada informação e balbuciante incumbência. Enviastes um romance para um concurso de ampla repercussão aqui e fora rejeitado. Ciente do malogro, tivestes um daqueles impulsos característicos: queimastes, sob frondoso jasmineiro, a cópia do romance. Mas, acalmado, apelastes para os meus préstimos. Poderia eu reaver o manuscrito? Poderia lê-lo e opinar sobre um possível mérito? Quem sabe se com uma dirigida revisão, de mão mais experiente, seria salvo o esforço do estreante? Sim, podia. E o já falado destino funcionou. Era do regulamento do concurso que os originais não seriam devolvidos – seriam destruídos. Mas os do Cascalho não o foram. Aurélio Buarque de Holanda era o secretário do concurso. Dá-se que o romance trazia um glossário que interessou profunda e profissionalmente o nosso grande dicionarista. Aurélio poderia ter retirado as páginas do glossário e mandado a literatura concorrente para o lixo. Não o fez – guardou o calhamaço todo. E, a pedido, mo entregou. Trouxe-o para casa. Pesava como chumbo! O copioso missivista era também torrencial romancista: oitocentas cerradas páginas da vida garimpeira, com uma dramaticidade impressionante. Repetia-se o entusiasmo que me tomara, como julgador, poucos anos atrás, em outro concurso de inéditos, quando Sagarana fora relegado. E as duas obras guardavam, pelo menos, uma paridade: a extensão – valentia que parecia desaparecer das letras nacionais. E tal como reconhecera no livro de Guimarães Rosa, o baianinho tinha a extraordinária força que só possuem aqueles que ligados estão medularmente ao solo nativo e às desgraças sociais que nele campeiam e o amesquinham. Não cuidemos que os juízes sejam cegos. Não duvidemos da sua honestidade. Mas compreendamos e aceitemos o impacto negativo que oferecem certas obras que fogem ao ritmo em voga, de muita influência nas decisões, como é perfeitamente natural. O ritmo, então, era o do empolgado e linear engajamento, expresso em termos quase telegráficos. É preciso muita coragem, muita convicção ou muita inocência para escapar ao capitoso mimetismo dos vitoriosos compassos semestrais! Parecia-me, como Guimarães Rosa, que o jovem escritor também escapava ao figurino. Parecia-me. Mas deixemos a resposta para os críticos do futuro, que o tempo, tal como a morte, é o melhor juiz, tanto mais que meus olhos julgadores são afeitos a ir um tanto sistematicamente contra os entusiasmos de cada época, mesmo os mais lucrativos.

Escrevi ao romancista saudando as extraordinárias qualidades que nele encontrava, mas sugerindo retoques a que poderia me aventurar, caso fosse consentido. Disse “retoques”, quando, na verdade, deveria dizer “cortes” – tais são as facilidades epistolares. O consentimento veio numa carta que era uma lição de humildade, tão rara entre os que escrevem – e quanta prova tenho disto! A tesoura podadora foi impiedosa como tem de ser aquela que tosa a galharia de certas árvores para que os frutos venham a ser mais sumarentos.

Encontrar um editor para um escritor estreante é como buscar agulha em palheiro, tal a distância que existe entre a Literatura e a indústria livreira. Mas encontrei a agulha: o caro Freddy Chateaubriand, que dirigia as edições de O Cruzeiro. Pouco valeria, porém, uma agulha se não houvesse linha – coisa de apologia, que não fica mal acentuar numa casa machadiana. Freddy Chateaubriand foi agulha e linha. Não só publicaria o livro como facilitaria a presença do romancista para acompanhar pessoalmente as provas, o que era uma forma de apresentá-lo ao arraial federal das Letras. E vós, Sr. Herberto Sales, aportastes ao Rio de Janeiro. Minha casa foi vossa durante pouco mais de três meses. Inesquecível convivência! Vossa timidez, vossa modéstia, vossa curiosidade provinciana, vossa delicadeza de sentimentos, vosso assombramento ante as mesquinhezas da vida literária – ó longas madrugadas de risonhas confidências.

Acompanhastes as provas; na longa espera palmilhastes o cenário da vossa permanência futura, mas dificuldades surgidas impediriam a publicação do livro no tempo combinado, que era tempo de guerra e a guerra perturbava tudo.

Retomastes ao seio familiar – seu primeiro filho estava para nascer. E o livro saiu – um outro filho, mais penosamente gerado. Soubestes por um anúncio radiofônico e tempo custou para que os exemplares vos chegassem às mãos. Para espanto meu trazia uma epígrafe, que não passara pelas minhas vistas...

Uma recomendação fizera-vos, que seguida foi, quando muita vez não foi compreendida por outros jovens escritores interioranos que de mim se acercaram. A recomendação era de que não enfrentásseis a terrível área da competição federal, apenas com o êxito do primeiro livro, por mais animador e desvanecedor que ele fosse, como exatamente aconteceu com Cascalho, tanto junto à melhor crítica, quanto junto ao melhor público. Procurásseis durante certo tempo, na vossa cidadezinha mais propícia à quietude e à sedimentação, estudar certos problemas, reforçar outros conhecimentos literários e, então, já armado cavaleiro, comparecêsseis à liça das nossas disputas.

Assim o fizestes, por quase três anos. Mergulhastes em mil leituras indispensáveis, pesastes ou repesastes muito conteúdo duvidoso ou firmado, muito trejeito estilístico ou conceituado ardil artístico, elaborastes uma hierarquia de valores, consolidastes uma diretiva. E começastes a reformular o próprio livro de estreia que passara em julgado pela mais respeitável crítica vigente, despindo-o da enxúndia que eu não pudera ou não achara justo evitar, tornando-o enxuto totalmente, conciso e eficiente, tal como se apresentou na segunda edição, escoimado da epígrafe que era, pelo menos, uma prova de ingenuidade a respeito de certas glórias indígenas. E deu-se que, por vossa própria maneira de ser, vos amedrontastes com a vinda definitiva para o Rio no momento que me parecia azado. Muita luta íntima foi travada ante aquele passo decisivo.

E quando já a caminho, tomado por vossos pavores, parastes a meio dele, precisamente em Feira de Santana, disposto a retornar a Andaraí e dali nunca mais sair, dividindo-se entre um magro cartório e o balcão da farmácia paterna. O destino que me pôs na vossa trilha, ditou-me um telegrama à vossa mãe, que forte império exercia sobre vós: “Obrigue Herberto a vir.” E ela própria marchou, resoluta, a entregar-vos o meu apelo na cidade onde empacastes. Foi quando prosseguistes e, novamente, minha casa passou a ser vossa. Senti, jubiloso, o vosso sazonamento literário, a cristalização de tantas certezas, repetiram-se as madrugadas confidenciais, das quais minha memória e meu coração guardam inesquecíveis lembranças. Mas as inquietações de colocação vos desesperaram no torvelinho carioca. Mais uma vez a alma generosa de Freddy Chateaubriand vos acolhe – e eis-vos empregado na poderosa organização jornalística onde ainda hoje estais luzindo nos mais altos escalões.

A radicação estava feita, mas só se consolidaria realmente alguns meses depois, com a chegada do vosso anjo da guarda: Juraci – valente morena das barrancas do São Francisco, a quem não assustavam os traiçoeiros vultos de Andaraí ou de outras terras. Era o apoio que faltava para a vossa estabilização, tão emocionais sois. Para tanto, o vosso diabo da guarda de nada valia. Lá fomos ao aeroporto recebê-lo. Se era anjo, não voara, com as próprias e amorosas asas uma tão longa distância.

E a vossa obra continua, séria, consciente, sem alaridos. Sois lento no vosso processo de elaboração, o que quase sempre é uma virtude. Vagarosa, cautelosamente escreveis Além dos Marimbus. Vagorosa, cautelosamente escreveis Dados Biográficos do Finado Marcelino. Vagarosa, cautelosamente escreveis Histórias Ordinárias. A lista não é longa, mas a qualidade é incontestável, primando a cada livro pela firmeza e plenitude do estilo, pelo apuro da técnica. Mas é de Cascalho que vem para mim, e talvez para o Tempo, a grande luz, tal a daquela estrela que a mãe de Mistral via esplender sobre a cabeça do filho poeta.

Sois premiado pela Biblioteca do Estado da Guanabara, com o Prêmio Paula Brito, pelo Pen Clube do Brasil e pela Academia Brasileira de Letras. Vosso renome ultrapassa as fronteiras pátrias. E agora a consagração da Imortalidade Acadêmica. Aqui estais para sempre. Com a vossa entrada completa-se o tripé do romance baiano – Jorge Amado, Adonias Filho e Herberto Sales – capítulo gigante da nossa história literária. A mão que vos apanhou em Andaraí, tão longe, é a mesma que vos recebe hoje aqui, apenas sem o mesmo vigor, mas felizmente com o mesmo calor. O destino não é inconsequente, às vezes, Sr. Herberto Sales.

21/9/1971