RESPOSTA DO SR. LAURO MULLER
SENHOR Acadêmico,
Das vozes desta Casa nenhuma outra mais do que esta vos seria de timbre familiar, habituado que fostes a ouvi-lo aqui e no estrangeiro, numa intensa colaboração de serviço público que durou alguns anos. Por demudado que esteja o cenário em que ora, de novo nos encontramos neste primeiro dia de coleguismo que, em boa hora, elimina a hierarquia de outros tempos, ouso esperar que na recordação desse passado não encontrareis motivos para reputá-lo agora mais suave que outrora, nem de maior apreço o atual julgamento dos méritos que até aqui vos trouxeram.
A educação militar, que alia o carinho ao império, conjugando a autoridade do comando ao espírito de camaradagem, facilita, quando transplantada para a direção de atividades civis, o trato cordial e respeitoso entre os que tenham a responsabilidade de chefiar e os que saibam manter a dignidade e capacidade indispensáveis ao exercício de funções públicas.
Essa verdade, que só encontraria contestações em observações superficiais, esplende de intensidade quando aplicada à Secretaria de Estado em que ambos servimos, não somente pela escolha de seu pessoal, mas principalmente pela natureza delicada do serviço, que faz daquele departamento a sentinela de todas as fronteiras.
Suponho que essa vida em comum influiu na designação, que me fizeram, para vos dar, ao entrardes neste cenáculo, as boas-vindas, que ora vos apresento.
O dever de obediência que, por índole e educação, foi sempre para mim motivo de prazer, impediu-me de advertir – respeitoso e convencido – ao presidente desta Casa de que aquela circunstância mais me deveria afastar que indicar para a missão que aqui desempenho.
Não que o conhecer-vos mais de perto possa desfazer ou atenuar a impressão criada pela velha e contemporânea trombeta da Fama, sem cuja sonoridade não se compreende a imortalidade que nesta Casa se consagra.
A razão é bem outra e vale talvez a pena dizê-la.
Sois por uma hereditariedade, que tanto vos honra, como pelo ambiente serrano da vossa adolescência, dessas criaturas que facilmente coram ao receberem um cumprimento lisonjeiro.
A distinção de maneiras, fruto primordial de uma boa educação doméstica, não esconde no vosso trato um natural acanhamento que o convívio do mundo atenua, sem dissipar de todo.
Herdaste-lo daquele modelar republicano, singelo e modesto, cuja austeridade o fixará na tradição mineira do novo regímen político como uma dessas raras figuras que, por sua superioridade moral e conseqüente intransigência, incomodam a turba dos políticos utilitários até que lhes chegue o dia de viverem definitivamente no conceito os seus vindouros.
Não me animo com isso a dizer que tenhais guardado intacta aquela adorável inocência provinciana, que ele virtuosamente conservou até os quase setenta anos de uma vida que tantas e tão elevadas atividades abrangeu.
Sou antes propenso, sem malícia, a admitir que o convívio desta nossa grande e bela metrópole e as repetidas visitas que, no velho e no novo continente, tendes feito às maiores metrópoles forasteiras, sem vos desmerecerem o caráter, nem desfigurarem as maneiras, vos deram talvez, com o conhecimento do mundo, um tempero de sonsice, que é uma espécie atenuada de hipocrisia defensiva, e, como tal, um belo estofo para cobrir o instinto de conservação na luta de cada minuto no convívio diplomático.
Mas ainda que assim seja, ou que assim fosse, – porque eu não afirmo e apenas admito, – a verdade é que conservais aquela expressão de íntimo e invencível constrangimento, sempre que percebeis a evidência de um louvor, o que para mim, que vos conheço mais de perto, é também, para vos louvar, um constrangimento de que não participaria quem, vos conhecendo o nome, não vos conhecesse a pessoa.
Certo, não faltará quem pense que fora daí existe ainda o vasto campo dos reparos e corrigendas, que é a forma habitual e preferida da crítica indígena, feita ordinariamente para desancar quantos não estejam sob a proteção do compadrio literário.
A observação nasceria aqui de uma deficiência minha de expressão, defeito de linguagem que me não permitiu dizer, como deveria, que, mortal como todos, mais que o louvor vos constrange e desagrada a censura.
Essa impressão não vos é peculiar e resulta naturalmente do elevado juízo que cada um de nós faz de si mesmo. Daí grandes surpresas na vida, que somente de surpresas se compõe. Digo somente, porque reputo vão o apelo à experiência, dado que da alheia não nos aproveitamos e da própria só a temos da idade passada, que nos faz conhecida a futura.
A vida é uma ascensão em declínio: sobe-se na idade vivida, descendo no tempo a viver. Entre os tropeços dessa caminhada está a dificuldade de conhecer-se a si próprio. Quando exageramos, além do limite que a tolerância e as cousas humanas permitem, o valor que nos atribuímos, fica entre ele e a realidade uma diferença de nível que explica muito a contento certos lamentáveis trambolhões.
Por isso bem fazeis sendo modesto e retraído até o ponto em que se não perde o dever de trabalhar e com ele o direito de ascender.
Cedo começastes na publicidade, não só pelo diminuto dos anos como principalmente por serem de alta ponderação os assuntos escolhidos.
Nós somos, aliás, um país de precocidades intelectuais e de prática retardatária. Talvez vos lembre ter visto, nos Estados Unidos, moços, quase adolescentes às vezes, dirigindo atividades práticas de indústria ou de comércio, manejando homens por milhares e capitais por milhões. Dificilmente encontraríeis por lá quem nessa idade pudesse ler catálogos com a tranqüila e vaidosa satisfação de não encontrar, entre autores de renome, livro não lido. Nem nessa idade, nem noutra qualquer, mesmo nos centros universitários, onde a cultura é grande, mas prudentemente proporcionada à capacidade cerebral de assimilação.
Naquelas, como noutras terras ainda mais cultas e experientes, radicou-se o preconceito – caruncho habitual das terras e gentes velhas – de que os problemas de atividade material são mais simples e mais acessíveis que os confinados nos domínios da Sociologia e da Moral.
Daí atividades jovens, pensadores maduros. Escapa-lhes com isso a vantagem de iniciarem a vida dando regras ao mundo e de aguardarem os cinqüenta anos para começarem, por uma atividade ajuizada, a dar regras à própria vida.
Pensadores jovens, homens de ação reumáticos.
A comparação dos países e a própria observação dentro do nosso, vislumbram a idéia de uma influência mesológica nessa inversão, talvez de conseqüência tropical pela hipertrofia da imaginação.
Obedecestes à regra ambiente através de um temperamento cauto, quase tímido. Com serdes assim, insensivelmente corrigistes pela prudência na reflexão e o arrojo das primeiras investidas. Para tanto estáveis, aliás, armado com uma carta que vos diplomava, com louvor, bacharel, não direi como toda a gente, porque a exceção já não nos é tão rara, e antes se nota agora um crescendo animador de moços que entre nós se propõem a trabalhar fora das funções públicas.
Auspicioso sintoma em tempos mais que nunca, de empregomania, num país que anda arriscado a ter como indústria principal a do funcionalismo, numa cidade que parece tomar socialmente o caráter de capital do emprego público. Conseqüências de um empirismo político, radicalmente contrário ao programa da propaganda republicana, praticado para agadanhar votos e criador para o tesouro público, como para os funcionários que honradamente o servem, de um paralelo e fraternal estado de penúria.
Do escritório paterno de advocacia, a que vos acolhestes naquela sorridente e asseada cidade mineira, que o Paraibuna poetiza, saíram as vossas primeiras produções sob a forma de colaboração em revistas públicas, de que fizestes mais tarde um livro. Dali também saístes em breve para iniciar a carreira, que vos foi definitiva, como auxiliar do nosso árbitro nos Tribunais Arbitrais Brasileiro-Boliviano e Brasileiro-Peruano, criados pelo Tratado de Petrópolis.
Deles vos tirou Rio Branco designando-vos secretário da Quarta Conferência Pan-Americana, em Buenos Aires, de onde regressastes para receber a vossa primeira investidura, no quadro do Itamarati, como terceiro oficial.
Não cabe agora falar do funcionário, que alhures já louvei, mas do escritor. Aqui vos noto inicialmente uma virtude qual a de vos terdes sempre dedicado a assuntos atinentes à carreira que adotastes, evitando destarte um divórcio entre o funcionário e o escritor. Não é de somenos valor essa circunstância, sabido que noutros acontece por vezes andar o serviço regulamentar, a que são obrigados pelo cargo que ocupam, em luta com as lucubrações divergentes a que deram sua preferência espiritual.
De um sei eu que escrevia versos para comédias nos intervalos de pareceres que dava sobre matéria de administração ferroviária: doutro me contaram que enrolava tubularmente minutas de ofícios para experimentar a sonância de trechos musicais prediletos.
Bipartido o espírito entre os estudos indispensáveis ao desempenho do cargo e os que aprimoram os da arte preferida, repartidos ficam o tempo e o entendimento entre a obrigação e a devoção, e, não raro, acontece que esta sacrifique aquela fazendo de um espírito de escolha um mau serventuário. O mais comum, aliás, é que façam mediocremente as duas cousas, o que não elimina exceções, que encontrareis também no convívio desta Academia. Não assim, convosco: – os vossos livros saíram do material colhido no estudo que quisestes fazer para melhor desempenho do encargo oficial. Dessa boa tendência nasceu o primeiro dos vossos livros diplomáticos que singelamente resume a origem e a orientação do Tribunal Arbitral no qual éreis apenas um modesto auxiliar do árbitro brasileiro.
Da história e da tradição diplomática, colhidas em livros e sobretudo nos arquivos, fostes depois haurir elementos para escrever sobre cousas úteis. De Monroe a Rio Branco estudais vários casos da política pan-americana. Precipuamente no rápido esboço de uma época fecunda de atividade diplomática, empolgante na contextura da trama em urdidura nos gabinetes de Viena, Paris e Londres, aqueles, com o apoio da Rússia, da Prússia e da península reacionária, criando a catedral da Santa aliança, sem portas para o futuro.
De outro lado a Inglaterra, emancipada dos seus compromissos no continente, com a queda definitiva da epopéia napoleônica, volvendo à sua natural situação de máxima potência naval e às suas tendências liberais, não mais contrariadas e antes conjugadas aos altos interesses do seu comércio e da sua expansão mundial.
A política de retrocesso, que a Santa Aliança proclamara, repugnava ao sentimento inglês; as conseqüências desse retrocesso feriam fundamente os interesses da Inglaterra. Enquanto no continente europeu, onde a luta terrestre dava vantagem aos exércitos reacionários, o Gabinete inglês assistiu sem intervir, embora ressalvando franca e tenazmente a sua responsabilidade.
Assim não seria, se a Santa Aliança houvesse pretendido transpor os mares. Luta de Titãs! Basta recordar-lhes os nomes de maior repercussão histórica: Talleyrand, Maetternich, Canning e Chateaubriand. A reserva hostil e liberal da Inglaterra deteve o absolutismo político da Europa e permitiu tempo e condições para o advento da intervenção americana pelo conceito de Monroe, substancialmente resumido num veto à recolonização do continente. Primeiro e nobre ato de solidariedade continental que só por uma imoral inversão de princípios políticos poderá, em qualquer tempo, ser tido ou reputado como instrumento de domínio político!
Primeiro ato o chamo sem olvidar que exprime um sentimento já incorporado à história do continente com Bolívar, tanto pela sua ação libertadora, que San Martin completou, quando precisamente pela sua tentativa de 1826.
Rememorando a Assembléia do Istmo e a Primeira Conferência de Lima, com felicidade conduzis o leitor a ver na obra de Blaine o coroamento da iniciativa de Bolívar, ainda que a deste vos aprouvesse qualificar de devaneio.
Os contemporâneos, presos aos interesses e soluções do momento, podem julgar com essa severidade prática a atuação de homens que antecipam as idades; a história deve-lhes, ao contrário, a gratidão que merecem os que primeiro lançam na terra a boa semente e a admiração por terem sabido viver para além de seu tempo.
O devaneio de ontem é o centro vital da realidade de hoje, como semente soterrada no passado que a ação do tempo e dos homens traz à flor da terra para germinar, crescer, florescer e frutificar. Das vicissitudes dessa germinação e crescimento, nos dão conta os vossos trabalhos sobre a Assembléia de Buenos Aires e Tentativas de uma Codificação. Em todos eles tendes sempre o cuidado de dizer muito por alto, é verdade, a atitude brasileira, cuja defesa mais especialmente experimentais na última, sob o título de “América Latina e a Diplomacia do Império”.
De que essa defesa fora perfunctória e deficiente vos mostrastes também convencido, volvendo anos depois a insistir nessa intrincada tarefa.
Valeram-nos os vossos primeiros trabalhos transcrições sucessivas nas páginas da Nación, de Buenos Aires, e o convite para colaborar nas suas colunas, que não têm na imprensa do continente quem as supere no critério e na elevação com que sabem tratar os assuntos mais graves e mais delicados da política continental.
Deu-vos o êxito estimulo e coragem para continuar pesquisas em arquivos que já tiveram o mérito de derruir inverdades, mesmo entre nós repetidas.
Grande mal tem sido para o Brasil a falta de seus filhos em não escrever-lhe as páginas da história que viveram, ou que dos arquivos poderiam reviver. Quantas vezes a nossa juventude exulta de entusiasmo ou sente marejados de lágrimas os olhos, que se lhes abrem para o futuro, ouvindo ou lendo narrativas estrangeiras de heroísmo e sacrifícios, na trevosa ignorância de que a sua terra e a sua gente lhes legaram exemplos de igual nobreza, sepultados no esquecimento pela indiferença dos seus maiores!
Mais dolorosa, se possível, é a leitura e a audição diturna nas tribunas e na imprensa, no livro como na palestra, de exemplos antecedentes e episódios exóticos e nobilitantes ou instrutivos; descrições admirativas de belezas naturais e de atividade humana, que no nosso passado, ali, e no presente, aqui, poderíamos ver sem jactância dentro da nossa vida e as nossas fronteiras.
Alma de colonos será a de nossos filhos, se os não advertirmos por uma educação brasileira contra esse culto imoderado da história e da cultura de terras e gentes estranhas, embelezadas e purificadas pela arte consumada de escritores de eleição, empenhados em apresentá-las ao mundo como exemplares de beleza e de virtudes.
Mal e – e grande – que, absorvidos em admirá-los, não nos ocorrestes dizer com justiça do que é nosso como eles, tantas vezes com exagero filial, vão dizendo e repetindo do que lhes é. Verdade seja que temos às vezes expansões equatoriais de exaltadas e imaginativas superioridades, ordinariamente, aliás, para recusar o ensino em cousas que os mais velhos já longamente praticaram. Rajadas intempestivas que nos não levam adiante, nem contribuem para emancipar-nos, porque lhes falta continuidade e bom senso.
Ainda não temos o orgulho varonil do nosso saber e ainda conservamos a vaidade adolescente da nossa ignorância.
Não ousamos repetir desvanecidos os grandes nomes que entre nós vivem; gozamos com inconsciência de uma democracia sem par e vamos nos despercebendo das terríveis misérias do mundo para não reconhecermos que habitamos o reino da fartura. Talvez, por isso mesmo, tenhamos alcançado viver dentro dele como um dos povos mais pobres do mundo. Porque cuidamos mais deste que de nós, não havendo, que eu saiba, quem tanto conheça o que acontece nos outros países, nenhum outro povo existe que menos conheça a sua terra e a sua gente.
Escrevendo episódios da nossa história internacional, fazeis obra salutar de reação contra o esquecimento do passado que nos formou, dando-nos vida e caráter.
Desconhecê-lo seria mutilar-nos.
Antes da Guerra, estudando a missão Saraiva, e Às Portas da Guerra, examinando os fatos que àquela se seguiram, destes à narrativa o apoio vigoroso e decisivo de uma abundante documentação tirada dos nossos arquivos. Não querendo alegar, mas provar, compusestes um livro em que apenas colaborais para dar nexo aos documentos e ordená-los de forma a destruírem de vez graves injustiças que o desconhecimento dos nossos propósitos e instruções criara entre publicistas estrangeiros.
Tão vinculadas andavam essas increpações à história daqueles acontecimentos, por falta de confutação documentada, que até mesmo na literatura indígena, inspirada na platina, se poderia lê-las repetidas. Não as leremos mais depois das vossas pesquisas, tão asperamente recebidas, pelo uso, havido por imoderado, que fizestes das aspas de citação. Com elas, entretanto, avigorastes o livro no conceito dos estudiosos, dando-lhe o valor de verdade documentada, o que aumenta a benemerência com que arriscastes a fama do escritor.
Desta não sei o que dirão os vindouros quando falarem do estilo, ainda que lhe não possam recusar a correção gramatical; mas julgo-me autorizado antecipando que reconhecerão nas obras que escrevestes um alto e constante propósito de inspiração patriótica, paciente e laboriosamente realizado, com lucidez e bom senso, mercê de pesquisas em arquivos que beneditinamente compulsastes.
Um grande pensamento, servido por uma persistência que se vai fazendo grande num ambiente que tem na inconstância o seu maior calcanhar de Aquiles.
Nos livros que apontei, como no Brasil Terra Cara, O Brasil e Seus Princípios de Neutralidade, Cousas Diplomáticas, em tudo que escrevestes, predomina invariavelmente o empenho de mostrar aos coevos como foram e como agiram na política internacional os nossos antepassados, dissipando dúvidas e destruindo inverdades ou injustiças que a crítica apaixonada de adversários, tanto quanto o nosso descaso em refutá-la, ia, mercê do tempo, sedimentando nas páginas da história continental. Demonstrando que o bombardeio de Paissandu não se continha nas instruções do Governo Imperial, tirastes das almas bem formadas dos que no Uruguai descendem dos blancos daqueles agitados tempos a ruga de uma dolorosa reminiscência contra o nosso povo e o seu governo de então.
Exaltastes o valor da nossa diplomacia, homens de governo e diplomatas, mostrando quão pouco a Conferência da Haia criou em matéria de guerra marítima que já não estivesse proclamado e praticado pela nossa liberal política exterior. Bem merecida foi a culminância que reconhecestes na nota do nosso Ministro Taques, sobre a estadia de navios beligerantes em águas neutras, a propósito do famoso caso Alabama, de que nos saímos, como sempre, com honra para o nosso pavilhão e conceituoso relevo para o nosso renome.
Escapou-me escrever “como sempre” e já agora não me retratarei, sujeito embora à pena de vitupério, fazendo abranger no conceito os anos de neutralidade que o Brasil, em presença da mais generalizada e terrível das guerras, viveu – cauto e digno – em mórbido período cuja convalescença, em graus diferentes para as diferentes nações, é nesta hora o pesadelo dos estadistas e o sofrimento dos povos esgotados.
Uma falsa modéstia, que poria a pessoa antes da Pátria, não autorizaria quem quer que fosse, para esconder-se, a calar, mutilando a história, uma prolongada ação que houvesse merecido de grandes e liberais nações o conceito de modelar. Não vi nisso senão o prazer intenso e profundo de haver mantido, sem desmerecimento, uma linha de conduta já incorporada com ilustre para o nosso país no patrimônio das suas tradições.
Destas cuidastes com desvelo e propriedade, quando os vossos trabalhos publicados e a vossa conduta em congresso pan-americano, de cuja política sois dedicado cultor, vos deram credenciais para falar, por convite, que é uma honra assinalada, em Harvard, na Columbia University, e na Universidade de Buenos Aires.
Naquelas, mostrastes quão cordiais foram sempre as relações entre o Brasil e os Estados Unidos, criando um apoio recíproco, que é elemento ponderoso da segurança na vida internacional do continente.
Ao sul a vossa missão, falando de um passado de divergências, que produziram lutas, ia arrostar uma situação delicada que elegestes com destemor, quase destoante da habitual prudência. É que no estudo daquela época havíeis adquirido a certeza de que, sem resquício de retratação, a nossa política histórica ali poderia ser, no seio da feliz amizade de hoje, apresentada ao julgamento desprevenido dos nossos vizinhos escoimada das acerbas censuras com que a paixão de outrora a combatera. Falastes a uma mocidade que faz honra à juventude do continente e, porque nela encontrastes retidão e inteligência, guiada por mestres de real valor, contente regressastes da jornada trazendo a impressão de uma grande estima pelos vossos ouvintes, em troco de salutar impressão que lhes deixastes como uma contribuição a mais para vincular uma amizade que se do coração não vivesse, deveria nascer da razão.
Para falar-lhes, embarcastes justamente no dia em que éreis eleito para substituir Sousa Bandeira, em cuja cadeira vos assentareis de hoje em diante. Dela se diz que é a fatídica da Academia, impressão de mandinga que tantos enxergam no seu número 13 e que lhes parece justificada com ser ela a única que já viu desaparecer quatro titulares. Superstições de gente sarapantada e esquecida de que na própria existência o número 13 lhes ficou para trás, marcando, com seus convizinhos, uma das quadras mais felizes da existência humana, pelo que nela, descuidosos, gozamos das afeições no lar paterno, como pelo alvorecer das primeiras esperanças, nessa quase primavera da vida. Mal lhe não encontrareis, mas nos seus múltiplos, quando estes vos advertirem, como já me acontece, de que o tempo da vida humana tem limites, como tudo neste mundo. Desse limite não escapa a nossa companhia, ainda que se componha de imortais, atributo que só tem caráter subjetivo e ainda assim, sem malícia o digo, de relativo valor no julgamento dos vindouros.
Deles deve esperar justiça com estima o eminente confrade a que sucedeis. Foi-lhe a vida um campo de trabalho em que laborou com afinco e entusiasmo no seu início, com constância e resignação nos últimos tempos. O entusiasmo foi-lhe motor de atividade quando no Recife correu com a sua geração a batalhar ao lado de Tobias Barreto. Não serei eu que vos lembre esses tempos de revolução intelectual em que o Messias de Sergipe se fez da chamada Escola de Recife, para dar combate vitorioso à velha concepção do Direito.
Valeria entretanto a pena recordar com maior explanação do que o fizestes, essa luta em que, atônitos e resistentes, os velhos mestres defendiam com pertinácia as doutrinas do seu tempo, enquanto Tobias e, com ele, a nova geração, que soubera atrair, apóstolos das novas concepções, construíam, sobre os destroços do passado, os fundamentos renovados da moderna concepção do Direito. A Faculdade do Recife, da qual já escrevi que era o pólo norte da cultura jurídica e social do Brasil, teve nessa quadra de intensa elaboração mental o apogeu da sua colaboração na educação jurídica do Brasil.
Sousa Bandeira, como Martins Júnior, Sílvio Romero, Artur Orlando e tantos outros, teve notoriedade nessa memorável campanha pela evolução da nossa cultura. Foi o início do período em que velhos e notáveis mestres começaram a ceder aos representantes do novo credo a direção mental da Academia, donde vieram João Vieira, que ainda moureja entre os lidadores jurídicos, e José Higino, o lumiar jurídico da Comissão dos 21, eleita pelo Congresso Constituinte, na qual tive ocasião, ainda bem jovem, de admirar o seu vasto e ordenado saber a que a nossa Constituição deve em grande parte, além de textos notáveis, a eliminação de várias incongruências e o aprimorado estilo de sua redação atual. Foi desse período que recebemos Clóvis Beviláqua, cujo profundo saber se pode hoje admirar em toda a profundidade como em certos e fundos rios do Amazonas se alcança ver as areias do leito, tão límpidas e claras lhes são as águas correntosas, que o estilo relembra no escritor.
O embate no Recife despertou todas as capacidades em polêmicas memoráveis, pró e contra os princípios fundamentais que o Mestre fora buscar em Darwin, Haeckel e Ihering e o método, que daqueles primeiros trouxera, transplantado das ciências naturais. A vossa cultura vos teria permitido, se quisésseis, observar agora, passados os tempos, a sua ação na reforma dos estudos jurídicos, sujeita ao preceito de que só o monismo nos dá a verdadeira intuição do Direito; e de que a sua instituição é a concepção darwínico-raeckeliana no mundo jurídico. A envergadura desse paladino merece recordação das gerações, não para recusar com ele à Sociologia o caráter de ciência, nem decerto para nos imobilizarmos no monismo de seu tempo, mas para admirar-lhe a superior visão da regra evolutiva, que preside o desenvolvimento de todo o saber humano. Reconhecendo as aparências de constância e imobilidade do Direito, proclamou como uma verdade, que ficará eterna, que ele também se acha, como tudo o mais, em um perpétuo fieri sujeito a um processo de transformação contínua. Divergência fundamental apoiada em Boerne com a antiga concepção de ciência que Platão fixara, afirmando que não há ciência do que passa.
Porque Tobias não criou por si só, mas transplantou com talento e saber, as suas doutrinas vos conduziriam ao estudo de uma época rica em mentalidades superiores que foram: na Alemanha predileta de Tobias, Kant, Hegel, Schopenhauer, Noiré, Hartmann e Haeckel; na França, de mais geral predileção, Augusto Comte, para só citar no seu país a culminância filosófica do seu tempo, e Hume, Darwin e Spencer, na pensadora Inglaterra. E outros, noutros países, que, durante um século, continuando grandes pensadores que lhes foram guias, elevaram a cultura humana à altura de poder transpor as barreiras de concepções em caduquice, para abrir novos horizontes ao estudo humano, sob o critério universal da relatividade.
Seguiu-o Sousa Bandeira por educação científica, tanto quanto, talvez, pela índole que lhe era avessa às intolerâncias, ainda que resignada às opressões do meio e das circunstâncias.
Maior lhe foi a cultura mental de que ficará sendo a obra que nos legou. Fato costumeiro na vida humana que, ente nós, toma proporções desconhecidas nos países em que mais se escreve na quadra da maturidade do espírito. Advogado e professor, lidou até seu termo final com a ciência do Direito, no estudo das suas belas doutrinas e na aplicação estafante dos seus processos em cartório. Mais ainda, a cultivou na colaboração profícua que o seu saber e a sua linha singela de cavalheiro deram a seu país e à nossa diplomacia nos Congressos de que foi parte. Sempre lhe achei no serviço público uma delicadeza de tato muito assemelhável à de Machado de Assis, patriarca desta Casa, cuja amizade, adquirida no convívio do serviço nacional, é uma das mais compensadoras recordações da minha vida de governo. Tinha Sousa Bandeira uma irreprimível e dolorosa contrariedade cada vez que lhe parecia ver nos moços um certo abandono das boas maneiras que o passado nos legara; por efeito, creio eu, da imitação de povos mais prósperos, porém menos educados por seus maiores, do que o fomos pelos nossos. Falando do discurso que eu devera fazer, ao tomar posse da Cadeira que ocupo, nunca lhe esqueceu recomendar-me, sem a aparência de o fazer, que desse relevo à ação de Rio Branco no aperfeiçoamento dos nossos costumes sociais e na educação do convívio, nas relações da vida oficial.
Ninguém poderia suspeitar que pleiteasse com isso pela revivescência das velhas formalidades e intrincadas regras que o tempo sensata e definitivamente simplificou. O que ele queria – e eu sempre desejei também – foi que conservássemos a simplicidade e o comedimento das antigas maneiras e também a do vestir da nossa gente, para que os nossos vindouros não se notabilizem no futuro pela algazarra das conversas e discussões, desgarres ou arrebicados dos gestos, ou pela altura a que elevem os pés nas salas e salões, nem pela efeminada elegância cinturada que faz o desespero daqueles a quem a idade vai arredondando. Desse comedimento deu ele contínuas provas na sua obra e na sua vida.
O domínio, que no seu espírito exercia a educação jurídica, não impediu que fosse no mundo das letras um escritor de mérito. A Academia, que o teve sempre em grande estima, vos será agradecida, vendo-vos proclamar que a serenidade do seu juízo se casa nas Paginas Literárias com o mais fino sentimento, e reconhecendo que do mesmo modo o fora, desartificiosa e serena nas páginas das Peregrinações, que sucederam à fase combativa dos Estudos e Ensaios.
Também recebemos com agradado e carinho as referências que fazeis a Francisco Otaviano, patrono da Cadeira que ides ocupar, e cuja vida, tão alheia à publicidade atual, por uma feliz disposição das regras desta Casa, vos caberá, em boa hora, escrever. Das que lhe fazeis, como das que escrevestes sobre os vossos antecessores mediatos, Taunay, Francisco de Castro e Martins Júnior, trilogia de glórias nas letras pátrias que os irmanaram no seio desta Academia, vindos triunfalmente de elevadas e diferentes fontes do saber humano.
Breve será, por agora, o tempo que conosco, aqui vivereis, obrigado que sois a partir para o desempenho dos deveres que vos incumbem. Tereis que trabalhar desta vez no terreno mais prático das relações consulares que particularmente cuidam da vida comercial e econômica.
Dou-vos por isso os meus parabéns, tendo, como tenho, que a passagem por esse serviço, sobretudo para os brasileiros ordinariamente educados tão fora da vida real, será de grande utilidade para a ação diplomática que, sem pretensões a profeta, vos vaticino no futuro. A ausência nos privará de um convívio que nos seria grato, ainda mais como a esperança de realizações que eles não poderiam mais empreender.
Nas viagens, que tendes feito, como nas peregrinações que cabem na possibilidade da carreira a que servis, tendes tido e tereis ocasião de ver e admirar grandes e poderosas nações. Também eu as vi de perto e toda a gente as pode ver de longe, mas com suficiente nitidez, no decurso da grande crise que o mundo acaba de atravessar, como na continuidade do seu desenlace. Nunca lhes recusei a minha admiração e, antes, confessei a mim mesmo que é um prazer suportável o de acampar algumas vezes nessas paragens forasteiras; mas sempre tive para mim também que só na Pátria se pode morar e morrer, completando, sob o mesmo céu e a mesma paisagem, o ciclo que começou a vida.
Sei que sois desse pensar e que, se bastante gostais das viagens, tendes nelas o maior dos prazeres quando em rumo para a Pátria. O gozo lá fora nunca tem a serena felicidade que a vida patrícia nos dá no seio da família, cercados dos amigos, mal julgados pelos desafetos, mas livres do conceito que no ceticismo do mundo reduz o estranho a matéria-prima de exploração, a benefício de interesses locais.
Desse mal-estar, que deixa atribulações junto de cada prazer, fui eu vítima de uma feita, em circunstância que já agora me permitirão vênia para referir como remate a esta já tão longa saudação de boas-vindas ao novo acadêmico e sem a pretensão de adverti-lo, por desnecessário, contra os perigos que vivem fora da Pátria.
Certa vez, alojado numa grande metrópole, em um dos instantes de reflexiva saudade, que os afazeres me permitiram, vieram-me à memória, entre mil cousas, não sei por que bizarra associação de idéias, tempos já longamente passados e com eles a lembrança, em meio daquelas grandezas todas, da ascensão que outrora aqui fizera ao pico do nosso Itacolomi. Naquele minuto revi na minha imaginação a beleza inesquecível do majestoso panorama que dali se divisa. Insensivelmente, quase sonhando, comecei a perceber analogias gradativas entre a grandeza da obra eterna de Deus e a da obra precária dos homens. Com um temor quase supersticioso ocorreu-me, subitamente, a lembrança de que pela primeira vez – e somente ali naquela altura – me fora dado ver com surpresa e quase repugnância um exemplar vivente de planta carnívora.
Com os meus olhos curiosos e aterrados, eu a vi, fechando as folhas, comprimir e devorar insetos incautos que ousavam tocá-las. E naquela espécie de alucinação, perguntei então a mim mesmo timidamente e hoje ouso perguntar-vos – depois de ter visto autocracias atirarem-se ferozes sobre democracias para dominá-las e devorá-las, e as democracias reagirem varonilmente para acabar retrucando domínio contra domínio, arbítrio contra arbítrio – se também, como nas ásperas e desertas serranias, nas maiores alturas da grandeza humana, floresce a civilização como planta carnívora?