DISCURSO DO SR. HÉLIO LOBO
SENHORES da Academia.
Ao entrar esta Casa, para a festa ritual da investidura, indago entre mim dos motivos de vossa generosidade. E outros me não acodem senão o zelo mesmo das letras, que aqui sempre vos extremou.
Esta é, ao parecer, a cadeira sinistra que as sombras povoam. Se nomes de porte nela pouco perduram, outros de tomo nem à posse logram chegar. Entendeu a Academia de burlar da morte, preservando com a minha desvalia aos vivos eminentes, e assim interrompendo a ceifa ingrata. Eis por que, tão ao desamparo do saber, tomo lugar após Sousa Bandeira, Martins Júnior, Francisco de Castro e Taunay.
Eu vos agradeço. Reconheceis ao neófito de hoje existência dilatada, muito de apreciar, além de lhe permitirdes o trato íntimo convosco, honraria inestimável de que haverá proveito seu desataviado amor do português.
Era de meu Pai a palavra diária de que, sem blasonarmos de letrados, devemos todos querer a este esbelto idioma natal. Podem seduzir-nos as linhas do edifício sem que presumamos de arquitetos. E a toda hora nos ensinou o culto da língua, quando meninos não sabíamos o preço daquela lição e o volume velho dos Lusíadas se não tinha transformado, nas mãos da doce companheira, de minha doce Mãe, nessa escola de sofrimento que é a Imitação.
Vivente fosse a exultaria desta cerimônia, não pelo que eu acaso nela valesse (e sabia que era nada), mas pelo ensejo, que ora se me abre, de aprender convosco, modesta e sinceramente, ao estímulo dos vossos predicados. Estou a vê-lo presidindo a mesa austera, pausada a voz, largo o gesto, generosa a boca nazarena, no olhar certa expressão de bondade, que não enganou jamais, a ensinar a cada um o passo na vida, que para ele sempre valeu e só valeu como uma longa estrada de serenidade, retidão, e nobreza.
Eu resumi o Brasil em meu Pai, porque foi ele quem me doutrinou como amá-lo, e com ele foi que aprendi a servi-lo. Uma existência, tal a dele, cursada inteira no zelo da nação havia por força de transfundir-me esse amor das cousas brasileiras, em que cedo comecei e será, no curso da sua política exterior, o mais grato prazer de evocação para meus velhos dias.
Por isso é que se dobra minha alegria ao vosso contato. Se todos aqui servem às letras, cada uma linda a seu feito, e ninguém deixa de pensar pelo Brasil. Vede esta cadeira cujo nome tutelar é o gênio de Otaviano. Nela teve sítio a constelação que eternamente a iluminará, suma, entre nós, do jornalismo, da diplomacia, do romance, da poesia, da arte militar, da Medicina, da Filosofia e do Direito.
OTAVIANO E A TRÍPLICE
Foi Otaviano a pena de oiro do Segundo Reinado, mas foi também a inspiração que nos permitiu, aos povos atacados, defender-nos com as armas na mão e zelar nossas tradições de autonomia. Toda sai luminosa inteligência, ao serviço das causas liberais do Império, ou as formas peregrinas de sua poesia, que deixou modelos para a eternidade, não valem a improvisação de 1865, dolorosa mas necessária, que o sentimento brasileiro não propiciou, o arbítrio argentino não pretendeu, o pensamento uruguaio não procurou, mas a todos nos foi imposta pelas circunstâncias, ao atropelo das cargas inimigas, que nos invadiam as terras, nos talaram os campos e nos obrigaram à contingência de cinco anos de guerra calamitosa.
A ventura de viver ao lado de nossos arquivos mais caros azou-me ensejo, por duas vezes, de dizer com as provas deliberadamente em punho, dessa época caluniada e como nela andou a nobreza de nossos maiores. Erramos, sim, porque não vimos que no nosso flanco, com a anuência da América também desprevenida, uma nação heróica se rebaixava ao jugo da tirania para lançar sobre a vizinhança inerme e pacífica e vaga dos seus regimentos. Mas erramos sem maldade; e não foi do Brasil nem da Argentina, nem do Uruguai o crime da guerra sanguinolenta.
Adverso nos apareceu, ao tempo, o juízo do mundo; mas cedo a justiça se fez por obra mesma dos que mais nos injuriaram. Em vez de oprimirmos, viu-se que libertamos. Sacrifícios se não pouparam na porfia terrível. Ninguém se engrandeceu à custa do glorioso vencido. E, afinal, presenciou a civilização o espetáculo singular de uma monarquia, a única existente na América, montar a máquina de um governo republicano, facilitando assim à terra, onde se inaugurava pela vez primeira, o gozo da ordem, da liberdade e da justiça. Bela página para a nação que soube poupar seu sangue na independência, na abolição e na república, e não hesitou em derramá-lo, como ainda em Caseros, pela libertação de seus vizinhos.
Chamou-se a guerra do Paraguai de divisor das águas sul-americanas, e realmente com ela é que se avolumam e explodem, desaparecendo definitivamente velhos mal-entendidos que o anseio geral queria ver dissipados, a fim de que pudéssemos todos enveredar pela estrada da confraternidade, como hoje aos povos deste lado do oceano. Por isso é que sobreleva, à luz dos sucessos, a obra do plenipotenciário brasileiro, generosa, flexível, democrática e fecunda como no seu gênero não conheceu a história.
Se tratado não houve tão discutido como o do 1.o de maio, nenhum como ele perdurou tanto a contento dos que o pactuaram, poucos, como ele ainda, puderam tão nobremente servir aos altos intuitos com que nasceu. Na linguagem oficial brasileira averbou-se “não registrar a história mais eloqüente exemplo de conformidade de vistas, perfeita solidariedade, ininterrompida harmonia, entre nações aliadas, regias por instituições antagônicas, em tão largo período”; e esse foi o julgamento definitivo, posto ontem em prova pelo inferno de sangue e fogo que flagelou, durante mais de quatro, quase cinco anos, a humanidade martirizada.
A EPOPÉIA DA RETIRADA
Já se disse que nos sucessos de 1914 está a mais cabal absolvição do Brasil imperial em o nono lustro de sua proclamação. Pois provam aqueles tristes dias como uma cabeça mal inspirada pode ceifar, nos seus melhores destinos, a um país bem-fadado.
Vede o espetáculo da Bélgica saqueada, e comparai-o ao quadro de Mato Grosso e Rio Grande inopinadamente inválidos. Escrúpulos não existem. Fala o país agressor pela boca do seu rei, e a ordem é ser cruel para vencer depressa. A pilhagem sistemática, o justiçamento sumário, a destruição, a morte, tudo prova o instinto da guerra pela guerra, que a consciência moderna repulsa e o delírio das hegemonias pratica implacavelmente. Eu vi, já lá vão quase três anos, em Ham, em Coucy-le-Chateau, em Noyon – que sei eu? – em todas as terras setentrionais onde entrou a tremer, para agonizar, o monstro da maldade prussiana, eu vi o que foi a ocupação germânica, os antecedentes com que se anunciou, os horrores sobre que se ergueu, os extremos da selvageria, desolação e sangue com que se despediu. Estaca a imaginação espavorida. Não há sinal de vida na terra esbraseada. Tudo rui ao fragor da metralha. Cresta-se o solo ao sopro maligno. É de chumbo o céu. E o pensamento confrange-se ante aquela imagem da assolação, que se esgueirou pelos séculos superior a todos os cataclismos, para afinal estalar numa era de risos, flores e esperanças.
Foi então em Taunay, – um de vossos cumes e o primeiro desta cadeira de glória, – que pensei. Tinha sido soldado bravo e soubera evocar uma hora trágica da vida brasileira, quando um troço de homens, defendendo seu pavilhão e seus canhões, deixou na história essa página de heroísmo e abnegação, que se chamou A Retirada da Laguna. Outros títulos não possuísse para aqui ter assento, e este só o sagraria maior entre os maiores. “Livro talvez sem igual nas letras antigas e modernas”, como dele escreveu uma pena estrangeira, valeu assim como documento literário que foi de porte, como quadro das qualidades do soldado brasileiro que as possui excepcionais.
É a Retirada o retrato fiel dos feitos militares nos chacos paraguaios, onde nossa abnegação, nosso denodo e a nossa nobreza fizeram o renome de uma geração. A guerra universal de 1914 ainda ali pode rever-se reduzida, porque também já pugnávamos com honra e humanidade, malgrado as vicissitudes do destino, que nos multiplicou os tropeços, nos exigiu em dobro a vontade e nos deu por opositor uma ambição desejada: essa marcha do Chaco, tal a evocou Joaquim Nabuco, a pedir a tenacidade dos deuses; os entrincheiramentos colossais, medindo léguas e léguas de extensão; a solidão pesada do quadrilátero; os juncais do Estero-Bellaco; e o ossuário do Tuiuti, “sobre o qual flutua, aqui e ali, como a bandeira branca da paz, da reconciliação eterna, um floco de ñanduti...”
JURISTA, MÉDICO E FILÓSOFO
Uma sociedade capaz de tais sacrifícios devia pautar-se segundo os mais belos sentimentos. E a Justiça e a Medicina puderam desenvolver nela sua ação benemérita, como ainda é expoente esta Cadeira, com dois dos seus nomes aureolados.
Francisco de Castro morreu prematuramente, mas a tempo de legar ao país patrimônio de grande valia. As letras foram nele tão apuradas quanto a prática do ofício, em que se doutorou. Artista da pena, era também, e assim se julgou na sua profissão, o maior espírito de síntese, e a mais vasta erudição médica de nossos dias.
Em Martins Júnior deparamos o jurista consumado, que deu trabalhos de vulto, e outros teria produzido se também para ele houvesse a vida sido mais compassiva. De seus livros pode dizer-se aquilo do clássico, que a lima surda do tempo não fez senão acrescentar lustre.
Com um, a Medicina operou prodígios. O outro viu no Direito um fenômeno da vida real, que no Brasil amplamente frutificou. Somos, malgrado nossa aparente vibração política, a nação da ordem; e todas nossas reformas capitais se alcançaram sem sangue. À sombra de uma lei austera resistiu o Império às impaciências dos primeiros anos, que o iam subvertendo. Não se implantou aqui o regímen dos tribunais de exceção. Constituiu o habeas corpus a arma contra todas as demasias. Formou a prática dos poderes autônomos a salvaguarda do mecanismo do Estado. E no mundo exterior a aplicação de uma moral severa traçou ao nosso idealismo o caminho do dever pela defesa digna dos direitos próprios e o respeito dos alheios.
Ninguém melhor do que o último ocupante desta cadeira ingrata podia fazê-lo. Porque aos seus cabedais de Letras e Filosofia acrescentou João Carneiro de Sousa Bandeira o renome de jurisconsulto.
Foi primeiro filósofo, e assim pertenceu à Escola de Recife, cujos dilatados ecos ainda hoje nos chegam. Saiu-se então com os Estudos e Ensaios. Era o tempo de moço, quando cantam aleluias e todos queremos, como aquele malogrado Prévost-Paradol, tomar bravamente o mundo de assalto. Veio depois a idade madura, e surgiram os desenganos, rosário de surpresas que logram sempre ganho de causa na vida. O temperamento pouco e pouco se transformou para atingir essa doce maneira de encarar homens e cousas, ironia misto de piedade, que constituiu o mais encantador aspecto do seu humor. Que somos senão a areia movediça da lenda cristã? Já houvera escrito Heitor Pinto que “esta é a propriedade do mundo, apontar no alvo das esperanças e desfechar na barreira das desventuras”; e, como todos os atormentados, teve Sousa Bandeira seu quinhão nessa filosofia de tolerância e desengano. Refletem as Páginas Literárias a feição definitiva do escritor, razão por que as dissera embora não tivesse chegado aos cabelos brancos, seu livro de velhice. A serenidade do juízo casa-se ali com o mais fino sentimento. É uma obra de impressionista, desartificiosa e serena, como já fora a anterior, das Peregrinações, com páginas dignas da Academia. Eu tomo um lanço ao acaso:
“Desta doce simpatia pelos homens e pelas coisas, desta deliciosa tolerância que compreende e absolve as mais disparatadas correntes, desta adorável negação do absoluto e do irredutível, nasce um amor vivíssimo por todo o profundo mistério que nos envolve e de onde saem, para viverem, brilharem um momento e logo se engolfarem no infinito nirvana, sistemas planetários e filosóficos, nebulosas e raças humanas, metafísicas transcendentes e correntes estéticas...”
Tenho para mim que o escritor se revela quando, como uma água-forte, levanta do papel com o só traço da pena, a imagem desejada. Assim Sousa Bandeira. Ele escreve de José do Patrocínio, no Clube Beethoven, e cresce-lhe dos dedos, vivo, o perfil. Machado de Assis, para só falar da mais pura glória desta companhia, revive em nossa lembrança através o esboço que lhe dedicou. E estanceando nas margens do Sena, com ele experimentamos, reflexo de sua sensibilidade, a comoção singular que a todos nos senhoreia quando pisamos terras de França. Pareceu ao vosso colega que aí estava a melhor feição da sua arte, porque preparava para os prelos, quando do mundo se foi, suas Evocações. Um capítulo, dado a lume depois de sua morte, discorre dos contemporâneos do Pai, Antônio Herculano de Sousa Bandeira, tronco de ilustre descendência, liberal sincero e professor de nomeada, que Pernambuco tem em tradição. Exala do papel, “Figuras Mortas”, como denominou, um perfume de respeito, amenidade e melancolia, que move à meditação. Vibra em cada um de nós, por menos vincos que tenha a fronte, a corda do passado. Sousa Bandeira soube manejá-la com mestria.
Foi em muitas partes o filho traslado fiel da imagem paterna, professor como ele, como ele conversador elegante e bom letrado. Só lhe não herdou o gosto da política batalhadora, em cujo bulício cresceu, mas teve, como todos nós, embora não lidemos, a preocupação nacional no seu mais nobre significado. Acolhia o velho nos serões caseiros a quantos o buscavam discreteando sempre com ensinamento. O moço apurou o engenho, e contos houve no seu narrar que seduziam. Amava a anedota, que disse com chiste; e, rindo, escondeu muita vez que chorava. Assim são todos os finos, superfície tranqüila de água a esconder um fundo de tormenta. Quem não traz em segredo, nesta terra florida, a mágoa do seu ideal?
HOMEM DA LEI E DIPLOMATA
Havia também em Sousa Bandeira o homem da lei e o diplomata. O homem da lei foi advogado e procurador, escrevendo Reformas. Viveu o diplomata enquanto perdurou na América a veleidade da codificação do seu Direito Internacional.
Um dos seus melhores papéis discorre do Advogado na Literatura e na Vida Real, e, discreto patrono, ele despe a profissão de exageros para deixá-la o que sempre foi, – um nobre ofício entre homens. Estudantes, é a advocacia que nos seduz, porque tem brilho e abre, como um jardim florido, para o Parlamento e as letras. Ansiamos, então, pelo primeiro contacto com o foro, os juízes, as razões, os julgados. Há os que desertam, há os que se mantêm contrafeitos, há os que dão para o ardil, e há finalmente os que se entregam à prática limpa do ofício, sempre diligentes onde exista agravo que reparar. As delícias do processo, a que aludiu na Academia Francesa o Marquês de Ségur recebendo a Albert Vandal, estão para esses, que compõem maioria, no preparo probo da causa e seu desenlace honesto.
Na sua longa vida forense teve Sousa Bandeira vários lances de alegria, que a profissão propiciou. Era hábil no arrazoar, sabido na ciência jurídica, atilado no meneio do código. Há, na verdade, mais belo encargo que o de combater o injusto com o só arnês de sã consciência? A nobreza do ofício é tanto mais para relevar quanto o espírito, em que se personaliza, sabe ser sereno. Tinha vosso confrade dotes que o estremavam de paixões e pôde elevar entre os colegas o nome da profissão, honrando-a com luzimento.
Existiu o diplomata eventualmente. Mas quase fora como se entre embaixadas e representações lhe tivesse discorrido a existência. Dizem que a carreira, – essa roulotte correcte, na frase de Vogüe, – é frívola porque anda a galantear e só se apega às mundanidades. Eu a vi, entretanto, sempre operativa e digna, assim no cenário estrangeiro como no desdobramento quase secular de nossa vida independente, qual a concebeu e executou a plêiade de homens capazes, obscuros uns, aureolados outros, meritórios todos, que formam através do tempo o elo de nossa representação internacional. A natureza da tarefa de si retraída, impediu e impedirá que cá fora se aquilate jamais do estofo das suas dedicações. Mas o depoimento de um arquivo raro, orgulho de uma nacionalidade, atestará invariavelmente, para os que transitarem o Itamarati na confidência da matéria diplomática, o que é a honra e o lustre de uma profissão. Meu foi o dom de versá-lo cedo, quando a vida se me abria em surpresas e as mais formosas desabrochavam para mim, entre aquelas paredes austeras, da linguagem dos seus velhos papéis. Vi, então, passar uma a outra entre canseiras e vigílias, ora arrebatado ora comovido, as sombras dos que a cadeia magistral dos chanceleres, nos fizeram grandes pelos feitos e o renome. Era ao tempo do último deles, quando nove anos aproximados de labor nos interrogavam a veteranos e novatos, sobre a sorte da herança gloriosa, antevista já entre soluços.
Soubemos, enfim, todos como a angústia se frustrou, porque os ombros, em que a sucessão veio a descansar, foram sobradamente dignos dele pelos cabedais, a experiência, o afincado zelo da nação. Vós designastes para receber-me a quem também veio ocupar de direito a cadeira de Rio Branco; e estou que falará com ele a linguagem do coração, pois, chefe sumo é, do mesmo passo, amigo invariável.
Diplomata por acidente, reunia Sousa Bandeira muitos predicados, e nisso está o êxito dos seus encargos em 1912, como secretário geral da Conferencia de Juristas Americanos. Que belo sonho esse e que doce sombra aquela em que se esvaiu. Era antes da guerra grande, quando a sobrecarga de armamentos desfechava de vez em quando numa assembléia destinada a equilibrar o sossego do mundo. Cobriu-se o Rio de Janeiro de flores para acolher aos emissários da América, e chegada parecia a era prevista do ano da graça de 1623, por Emery Crucé, do reinado da razão, que é do homem, e da repulsa da violência, que é da besta.
A Conferência abriu-se, e logo ficou evidente que cedo era para tão formosos ideais. Quem conhece a natureza dos trabalhos de um Congresso, sabe residir nos corredores a chave das deliberações. Não passa o plenário de uma cerimônia convencional. O secretário geral tem mais que o presidente o pulso da assembléia, porque com ele discreteiam os grandes e desafogam os pequenos. Sousa Bandeira, colocado nesse sítio difícil, não conheceu repouso. Foi considerável seu esforço para evitar o malogro público da Conferência. Acompanhei-o naquelas horas afanosas, e vi que delas se doeu. Alguém lhe leu certa passagem de Grotius, precursora do desenlace; Sousa Bandeira ouviu e calou-se. Sua grande alma pungia do grande ideal inatingido.
Tivesse alcançado mais longe, e não sei que diria dos sucessos da celebração da paz, ontem universalmente comemorados. Jamais vi, nem é da memória de ninguém, pôr em prova tamanha a capacidade humana. Cataclismo que aluiu todas as terras e todas as gentes, houve quem cuidasse pudesse ele corrigir-se, em alguns meses de bom trabalho, por obra de guieiro magistral. De enganados enganos vivemos. Cinco anos de subversão total estão a exigir largos decênios de restauração, que os homens, mercê de Deus, saberão levar a termo. Plenipotenciários nominais, teriam sido os de Versalhes dignos do mandato, se o remoinho da guerra, abrindo as comportas à maré social desapoderada, os não houvesse reduzido a menos que simples sombras.
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Lembra-me bem, senhores da Academia (eu não ousaria chamar-vos confrades), a derradeira vez em que o vi, velho pela doença, minado pelo cansaço, desfeito de corpo e espírito pelo mal que pouco a pouco o vinha matando. A noite era de festa, e o salão esplendia de graças, luzes e ombros nus. Cadenciavam os pares à toada da valsa lenta, enquanto do alto, da galeria, alguns contemplávamos a assembléia da gente, as variantes do gosto, o colorido dos grupos que ali e acolá, entre colunas de mármore e ouro, se faziam e desfaziam sorrindo.
Sousa Bandeira era dos nossos. Assim o vi, logo me avizinhei, inquirindo da saúde, dos seus aos quais tanto queria, dos trabalhos e das letras. E a resposta foi, nos grandes olhos cismadores, de um desengano fundo. Deve ser doloroso o primeiro rebate da morte para um engenho como o ele. Eu bem senti que, ante aquela gala e aquele mundo, Sousa Bandeira se despedia. Pouco depois veio o trepasse e o houvera merecido menos angustiado. Assim é a vida, trama de contradições e pesares, mesmo para os que mais a dignificaram. Que somos senão aquilo de Gringoire, – pena e miséria?
Seu espírito aqui viverá para nossa perene lembrança. E ao mais obscuro de quantos o freqüentaram, grato é evocar-lhe, aqui nesta cadeira que honrou, o nome ilustre e a obra vivedoira.