Autor de mais de trinta livros, numerosos artigos em revistas e jornais, além de importantes conferências, ensaios e discursos, foi como escritor que a Academia vos elegeu.
É verdade que, tendo concluído, com brilhantismo, os diferentes cursos militares, destacando-vos, como oficial, em todos os postos da carreira até atingirdes o de ministro do Exército, diplomado em Engenharia e Direito, podíeis também, a justo título, ter sido eleito como indiscutível expoente de nossas Forças Armadas. Mais de uma vez tiveram elas representantes nesta Casa, a exemplo do que ocorre na Academia Francesa, à qual pertenceram, neste século, além do General Weygand, os marechais Lyautey, Franchet d’Esperey, Foch, Joffre, Pétain e Juin, que, como vós, também escreveram, sobre assuntos militares, livros que se tornaram fontes de consulta.
Ao receber, há 21 anos, Aníbal Freire, observava João Neves da Fontoura ter-se encerrado, havia muito, o velho debate que, na Casa de Machado de Assis, opunha aos grandes expoentes da inteligência criadora, em quaisquer domínios da Cultura, os homens exclusivamente de letras. E mostrava que a nossa Academia, assim como a Francesa, pela qual foi modelada, sempre se recusou a fazer distinções no dogma que Renan denominava a “unidade da glória”.
O estilista da Vida de Jesus sustentava, na verdade, que o poeta, o orador, o filósofo, o sábio, o político, o homem que eminentemente representa a civilidade de uma Nação, todos são confrades, porque todos trabalham para uma obra comum – a de constituir uma sociedade grande e liberal, sendo, ademais, “Literatura tudo que se escreve com talento”.
Sois um escritor nato e empunhais a pena, como quem respira, por irreprimível impulso, a fim de externar as manifestações de uma inteligência forte, cultivada em todos os ramos do saber e dotada de acentuadas aptidões literárias, não só na Prosa, mas até na Poesia, como, sem vaidade, declarastes na oração que acabais de proferir. Um de vossos sonetos foi por Gustavo Barroso, em 1926, publicado na Revista Fon fon e ainda recentemente, numa noite de grande calor, de volta de uma visita acadêmica, escrevestes “A sina do candidato”, onde assinalastes as agruras do caminho da glória: ad astra, per aspera.
Amigo de Adelmar Tavares, entregastes-vos também à composição de trovas, que vos transportavam ao vosso longínquo e querido Nordeste.
De vossa autoria é a “Canção da Arma de Engenharia”, musicada e adotada em todo o Exército, a começar pelos cadetes da Academia Militar.
Quaisquer que sejam, porém, as vossas aptidões literárias, sois, antes de mais nada, um general, e, nesta qualidade, realizais o que, segundo Múcio Leão, constitui o encanto da Academia:
[...] o desencontro das sucessões num feliz acaso mediante o qual vemos a substituição de um grande romancista, como Machado de Assis, fazer-se com a escolha de um jurista; a de um filósofo embebido em Poesia, como Nabuco, fazer-se pela escolha de um guerreiro, e a de um poeta soberano, como Raimundo Correia, fazer-se pela escolha de um sábio, de um médico, de um sanitarista.
E tal se dá, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, porque, na ponderação de Afrânio Peixoto, “a Academia Brasileira pretende ser o índice abreviado da Cultura nacional”.
A PARAÍBA
Nascestes em 7 de novembro de 1905, na capital da indomável Paraíba, pequenina em área, mas imensa pela bravura e pelos homens que tem doado ao Brasil.
Enumero apenas alguns: na guerra, Vidal de Negreiros; nas Artes, Pedro Américo; na Política, Aristides Lobo, o Barão de Lucena, o Senador Venâncio Neiva, o Presidente Epitácio Pessoa e seu intemerato sobrinho João Pessoa; no Jornalismo esse êmulo dos titãs da Renascença, abruptamente surgido no Brasil de nossos dias – Assis Chateaubriand – e um de seus melhores colaboradores, Teófilo de Andrade; e, finalmente, nas Letras, entre outros, os poetas Rodrigues de Carvalho, Augusto dos Anjos e Pereira da Silva, este último sucessor, nesta Casa, de Luís Carlos, além do romancista que, entre nós, inaugurou um novo ciclo: o da cana-de-açúcar, nosso eminente Confrade José Américo de Almeida, logo seguido pelo fecundo José Lins do Rego, que enriqueceu, no gênero, as nossas Letras com tantas obras-primas a um tempo líricas e fortes.
Sois, assim, o quinto paraibano a ter assento na Academia Brasileira.
Contastes, certa vez, como ocorreu vosso primeiro contato com Assis Chateaubriand. Fostes procurá-lo em nome do Clube Militar, a fim de esclarecer um incidente ali ocorrido com um de seus repórteres e estabeleceu-se o seguinte diálogo: “Você tem jeito de quem é da Paraíba, não é?” – disse-vos Assis Chateaubriand. “Sou, e mais do que você.” – “Como assim?”, voltou a perguntar-vos, e esclarecestes: “Porque nasci no Ponto de Cem Réis, na capital, e sei cantar o Hino da Paraíba e Você não sabe.” – “Chega!” – concluiu Chateaubriand e convidou-vos a colaborar em seu jornal. E de 1933 a 1935 aí publicastes, com o pseudônimo de Observador Militar, notáveis artigos, em alguns dos quais propugnastes pela criação do Ministério da Aeronáutica, conforme assinalou, por várias vezes, Assis Chateaubriand, e, mais recentemente, o Ministro Márcio de Souza e Mello.
A FAMÍLIA
Filho do Senador João de Lyra Tavares e de D. Rosa Amélia de Lyra Tavares, guardais, nos traços fisionômicos, vestígios de ascendência holandesa.
Vosso pai, que só frequentou a escola primária, constitui pasmoso caso de autodidatismo: fez-se, por seu próprio esforço, professor de História de uma Escola Normal, e, na Câmara Alta de nossa Primeira República, sobressaiu-se como um de seus mais prestigiosos financistas.
Pródiga de ternura para com o marido e os filhos, vossa Mãe unia à bondade o estoicismo, conforme registrou, em comovente crônica, Rosalina Coelho Lisboa. Ao abraçá-la no velório de um filho, brutalmente assassinado em plena juventude, dela ouviu, entre lágrimas, as palavras: “Ainda mais infeliz é a mãe que tem um filho assassino.”
Formais, com vossos irmãos, uma dinastia intelectual: Paulo, Roberto, João, Fernando, Carlos são apenas alguns dos seus componentes, e a fim de não faltar quem alcance o céu para todos, a ela pertencem ainda três freiras – Maria do Santíssimo Sacramento, Gertrudes e Maria Eleonora.
Desfrutais o privilégio de ter a tranquilidade de vosso lar admiravelmente assegurada pela dedicação de vossa esposa – D. Isolina Abreu de Lyra Tavares, de duas encantadoras filhas e de um neto, que vos tem embelezado a existência, propiciando-vos a serenidade de que careceis para as absorventes tarefas de vossa carreira. E, assim – segundo vossas próprias palavras –, “fruís das graças essenciais que fazem a alegria da vida e lhe dão substância e sentido para que ela seja vivida na sua plenitude e na sua própria razão de ser”.
Consagrando-vos exclusivamente à família, à Pátria e aos deveres profissionais e cívicos, encontrais tempo para manter em dia, de próprio punho, enorme correspondência e aprofundar vossa cultura, que se estende a vários domínios das Ciências e das Letras.
A CARREIRA
Aos onze anos entráveis para o Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde tivestes, como professor de Geometria, nosso Confrade Laudelino Freire. Concluístes o curso em 1922, tornando-vos praça em fevereiro de 1923, quando vos matriculastes na Escola Militar. Fostes declarado aspirante a oficial da Arma de Engenharia em dezembro de 1925, logo após haverdes completado vinte anos, recebendo nessa data, da Missão Militar Francesa, o Prêmio de Tática Geral.
Promovido a segundo-tenente em janeiro de 1926 e a primeiro-tenente em janeiro do ano seguinte, vos diplomastes em Direito, em 1929, e, em Engenharia, em 1930, recebendo, em 1931, o Prêmio Rio Branco, conferido pela Congregação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Se eu devesse referir aqui todos os postos que ocupastes ao longo da vossa carreira, não disporia de tempo para fazer, nesta saudação, rápido apanhado de vossa extensa obra.
Limito-me, pois, a dizer que, promovido, por merecimento, a major e a tenente-coronel, fostes, em 1943, designado “Observador Militar”, junto ao Exército norte-americano, nas operações de invasão da África do Norte, onde assististes, em Medjez-El-Bab, à heroica odisseia do Exército francês. Nesse mesmo ano, concluístes o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército norte-americano, no Forte Leavenworth, em Kansas, e aí tivestes, como companheiros, morando juntos numa espécie de “república de estudantes”, os então Tenentes-Coronéis Humberto de Alencar Castelo Branco, Amauri Kruel e Teófilo Arruda.
Em dezembro de 1945 fostes nomeado subchefe da Missão Militar Brasileira na Alemanha durante a ocupação daquele país. Promovido, por merecimento, em junho do ano seguinte, ao posto de coronel, passastes a chefiar aquela missão em 1948, permanecendo mais de quatro anos na pátria de Humboldt.
Promovido a general de brigada em dezembro de 1955, assumistes a Chefia do Estado-Maior do I Exército de fevereiro de 1960 até setembro de 1961. Chegando, neste último ano, a general de divisão, comandastes a 2.ª Região Militar, sediada em São Paulo, de janeiro de 1962 a março de 1963. A partir de 1.º de outubro de 1964, vos coube o comando do IV Exército, e obtivestes, em 25 de novembro daquele ano, a promoção a general de exército. Desde 28 de setembro de 1966 comandastes a Escola Superior de Guerra, vindo a ser ministro do Exército em 15 de março de 1967. Nesta qualidade, participastes, em 1969, da Junta Governativa formada com o impedimento do Presidente Arthur da Costa e Silva, até ser empossado o Presidente Emílio Médici.
Sois, assim, na verdadeira acepção do termo, um “general”, porque conheceis todas as particularidades do Exército, havendo passado por todos os postos da hierarquia militar a partir do de praça, e, por isto, possuís, como poucos, o que a Taine se afigurava a característica do espírito superior: a visão de conjunto.
Não enumero as condecorações nacionais e estrangeiras que tendes recebido, porque, a meu ver, muito mais do que elas, valem os vossos livros que poucos são capazes de produzir na qualidade dos vossos.
Em França, para onde partireis dentro em breve na qualidade de embaixador, representareis não só o nosso Governo, mais ainda, como integrante da Casa de Machado de Assis, a Cultura do Brasil.
Cedo acordou vossa propensão para as Letras. Aos 12 anos, quando frequentáveis o segundo ano do Colégio Militar, pusestes a circular um jornal manuscrito de que éreis o diretor e um dos redatores. Alguns números desse jornal ainda hoje são guardados por vossos colegas Generais Betâmio Guimarães e Manoel Rodrigues de Carvalho Lisboa.
Mais tarde fostes presidente da Sociedade Acadêmica, redator das revistas Aspiração e Escola Militar, e também da Revista Acadêmica, esta última publicada pela Confederação dos Estudantes.
Em 1923, quando o Ministério do Exterior patrocinou a remessa, à Liga das Nações, de uma Mensagem dos Estudantes das Escolas Superiores do Brasil, a redação escolhida e adotada foi a vossa.
Abrange a vossa obra, como disse, mais de trinta volumes, frutos de acurado estudo e longa experiência, vazados, no dizer de José Américo de Almeida, “num estilo notável pela precisão, pela clareza e pela síntese, sem ornamentos ociosos, guardando sempre um tom envolvente que atrai e persuade”.
Típico de vossos livros é que, em consequência de vossa formação científica, sois muito sóbrio de palavras. E nisto seguis o conselho de Renan: “Sede tão pouco literato quanto possível, se quereis ser bom literato!”
Como Machado de Assis, detestais o estilo derramado e conciliais a concisão com a transparência, parecendo inspirar-se a vossa maneira de escrever nos Comentários de César, que, no dizer de Cícero, agradam exatamente pela falta de atavios, “sendo naturais, simples e graciosos, despojados de qualquer ornato oratório, como um belo corpo sem veste”: nudi enim sunt, recti et venusti, omni ornatu orationis, tamquam veste detracta.
Não podendo apreciar aqui todos os vossos importantes trabalhos, restringir-me-ei a alguns.
POR DEVER DO OFÍCIO
Neste livro, publicado em fins do ano passado, ao deixardes o Ministério do Exército, estão reunidos discursos, conferências, aulas inaugurais, entrevistas, ordens do dia, contribuições para revistas militares e outros trabalhos ligados à vossa gestão naquele Ministério.
Desse volume destaco a aula magna proferida na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército em março do ano passado, acerca das “Missões e Rumos do Exército”.
Começais relembrando a opinião de Augusto Comte sobre a função social dos exércitos modernos. Em sua Dinâmica Social, escrita em 1841, aprecia, de fato, o filósofo a situação mundial decorrente da Revolução Francesa e mostra que, já então, assistia a humanidade a um fim de época. E, a este propósito, tece, sobre os exércitos modernos, ponderações que se transformaram em realidade.
Ao contrário do que aconteceria com o clero teológico, seria possível – frisava o fundador da Sociologia – se adaptasse a organização militar à mentalidade científica que dia a dia tenderia a prevalecer, porque a precisão das cogitações militares, pela sua própria natureza, favorece o cultivo do espírito científico. Por outro lado, além da contribuição educativa para o desenvolvimento intelectual e social das populações através do serviço militar, os exércitos apresentariam permanente utilidade em tempos de anarquia, como os que tumultuariamente se sucedem desde a Revolução Francesa. Na convulsão intelectual e moral, que cada vez mais assustadoramente se agrava, ao Exército – observava Comte – está reservado importante papel em consequência do instinto orgânico nele cultivado pela disciplina e hierarquia militares.
Quando assistimos à perplexidade em que se debate hoje o Sumo Pontífice Paulo VI diante da crescente onda de insubordinação que tem chegado ao próprio clero católico, em parte atingido, de um lado, pelo espírito protestante, e de outro, pelas ideologias de fundo marxista, as considerações do filósofo revestem-se de oportunidade tangível e confirmam o que, em 1927, comentou, num jornal de Londres, o historiador Guglielmo Ferrero:
Nas páginas maciças do grande positivista dorme um sono profundo, esperando, sem dúvida, a hora do despertar, uma visão histórica, que a nossa época nem refutou, nem aceitou, como se tivesse medo de descobrir, depois de sério exame, ser verdadeira. Que diz essa doutrina? Que durante os três últimos séculos o espírito ocidental não tem produzido, no campo social, senão teorias críticas: essas teorias deram origem a revoluções que, por sua vez, geraram teses mais audaciosas ainda, as quais engendrarão ou não tardarão a engendrar revoluções mais profundas. De uma doutrina à outra avança o Ocidente para uma anarquia argamassada de sofismas que tornam o problema da ordem e da autoridade quase insolúvel. Nas últimas páginas do Curso de Filosofia Positiva – concluiu Ferrero – encontram-se, sobre a sociedade moderna, certos passos que sempre me pareceram conter algumas das verdades mais penetrantes escritas em nossos tempos.
Augusto Comte deu-se perfeitamente conta das devastações de toda ordem que a anarquia intelectual e moral, já existente em seu tempo, iria sucessivamente produzir, ameaçando subverter as instituições sociais mais sólidas – a família, a moral, as Letras, as Artes, a propriedade, a Educação, até se vir a duvidar do teorema de Don Juan, isto é, de formarem dois mais dois, quatro.
Os escritores marxistas, sobretudo russos e franceses, investem contra o fundador da Sociologia por apresentar soluções sociais de caráter pacífico, por eles consideradas protelatórias do Comunismo, que desejam ver violentamente implantado no mais breve prazo. E fazem a Comte cerrada carga visto considerar ultrapassadas as guerras de conquista.
A eles, todavia, responde Raymond Aron em recente livro:
Seria fácil, e muitos não resistiram a essa tentação, fazer ironia a propósito das profecias de Augusto Comte. Na medida em que este proclamou haver passado o tempo das guerras europeias e das conquistas coloniais, evidentemente se enganou. Se, porém, o considerarmos, não como um profeta, mas como um conselheiro de príncipes e povos, ele foi mais sábio do que os acontecimentos. Não anunciou o futuro tal como ocorreu, mas tal como poderia ter ocorrido se a história se tivesse desenrolado de acordo com a sabedoria dos homens de boa vontade. No atinente às relações entre o trabalho e a guerra, ele empreendeu, com incontestável clarividência, a revolução que governantes e povos vêm penosamente admitindo hoje: as guerras entre sociedades industriais são, a um tempo, ruinosas e estéreis. Para que serve matar, dominar, pilhar? O ouro e a prata não são mais verdadeiras riquezas. Só é riqueza o trabalho racionalmente organizado. As guerras são, pois, anacrônicas, assim como as conquistas coloniais.
Disto estais bem certo, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, porque tendo travado conhecimento com as concepções de Comte através de vosso convívio com Agliberto Xavier, de quem fostes discípulo de Astronomia, tendes consciência do imenso arsenal de ideias e teses científicas que elas encerram para a defesa da família, do capital e de sua apropriação individual. Conciliando a ordem com o progresso, a Sociologia de Comte prova ser possível, sem violentos entrechoques, conseguir-se a melhoria das condições gerais da humanidade que propiciarão enfim a incorporação social do proletariado, sonho de filósofos e futurólogos, a partir de Tomás Morus e Campanella, e que se torna um anseio cada vez mais obsessivo das novas gerações em todo o mundo. Só então se porá termo a uma época de dissolução e decadência que muito se assemelha à do Império Romano em sua fase final. Tal como naquele tempo, jamais existiu, nas mãos de uns poucos, tamanha condensação de forças e riquezas, associada a tão grande ausência de preocupações sociais e morais. E, por isto, assistimos a novos festins de Trimalquião, onde homens, dominados pelas mais grosseiras inclinações, só aplicam o que lhes resta de inteligência em requintar o vício, como, no Baixo Império, os Caracalas e os Heliogábalos.
EXÉRCITO E NAÇÃO
Neste livro fazeis a história do Exército Brasileiro, desde a Colônia até os nossos dias, considerando haver sido ele, como precursor da organização civil, a base através da qual alcançamos e consolidamos as grandes conquistas que marcaram os rumos definitivos da nacionalidade.
E adotais o ponto de vista de Alcindo Guanabara segundo o qual “se confunde, em nossa História, o soldado com o cidadão”.
Em Caxias glorificais não só a figura do Chefe Militar e estrategista, mas ainda “a do cidadão, do estadista civil, porque não foi menor, nem na relevância, nem na significação para os destinos da Pátria, a obra que realizou, dentro do País, pela sua pacificação, pelo seu fortalecimento, pelo predomínio da lei e pelo acatamento de todos ao poder civil”.
Mais adiante condenais “a falsa concepção de que deve o Exército tutelar ou substituir o poder civil”. Sua atuação, em vossas palavras,
[...] tem de inspirar-se sempre no dever de assegurar o funcionamento livre e autêntico da autoridade civil legítima, dando-lhe o prestígio que lhe é indispensável e essencial no sistema democrático de Governo. Ele socorre e defende a Democracia quando se trata de garantir a sua sobrevivência, para recolher-se aos quartéis, obediente ao poder civil, quando entra em consonância com a vontade do povo.
E acrescentais:
É evidente que não cabe ao Exército papel de exceção no quadro de uma Democracia amadurecida, autêntica e estável. Ele se explica, apenas, como fenômeno transitório, pelas contingências próprias da formação da nacionalidade, resultante da natureza especial dos problemas peculiares à evolução política do Brasil.
Encerrando vosso livro, escreveis:
As Forças Armadas começam a fugir do seu papel e a perder a popularidade dele mesmo decorrente – fruto da tradição de renúncia e de devotamento ao serviço da Pátria – todas as vezes que, sem grave motivo determinante, de ordem nacional, reconhecido pelo consenso geral do povo, de cujo seio emanam e cujo trabalho as mantém, venham a imiscuir-se nas questões políticas, que não lhes são pertinentes. E não apenas elas fogem à sua missão constitucional, como a comprometem seriamente, quando a paixão política, muito própria das atividades da vida democrática, se infiltra no interior do quartel e perturba o clima de ordem, de disciplina e de trabalho, essencialmente profissional, que constitui, em última análise, o grande esteio da vitalidade e do equilíbrio da Instituição Militar.
A propósito dos perigos da paixão partidária, ou seja da política de interesses exclusivamente carreiristas, podíeis ter citado os versos de Musset:
La politique, hélas! – voilà notre misère
Mes meilleurs ennemis me conseillent d’en faire
Era tendo em vista essa espécie de política que Churchill estabeleceu a distinção – “o estadista preocupa-se com as futuras gerações, enquanto o político planeja as próximas eleições”.
A ENGENHARIA MILITAR PORTUGUESA NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL
De vosso pai, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e autor, entre outros trabalhos, de uma História Territorial da Paraíba, em dois volumes, herdastes o pendor para as pesquisas históricas e assim vos entregastes a investigar o que foi a obra dos engenheiros militares a serviço da Coroa Portuguesa no Brasil, construindo, não só fortalezas e redutos ao longo da orla marítima, em regiões interiores e nas longínquas fronteiras, mas ainda contribuindo valiosamente para a nossa construção civil e urbanística. À glorificação desses profissionais, consagrastes esplêndido volume – A Engenharia Militar Portuguesa na Construção do Brasil, editado em Lisboa sob os auspícios do Governo português.
Em 1939 publicastes uma História da Arma de Engenharia do Brasil. Apreciando este livro, o General Tasso Fragoso, nosso maior historiador militar, no conceito de quantos lhe conhecem a obra, vos sugeriu escrevêsseis um volume sobre os técnicos que, desde a Colônia, vieram ao Brasil e aqui executaram ou planejaram obras militares e civis. Aceitando o alvitre, vos consagrastes a penoso trabalho de pesquisa, coligindo e coordenando dados e documentos, e, ao invés de rápido ensaio, nos destes magnífico estudo, que, como ressalta o Marechal Décio Palmeiro de Escobar, “não só complementa a vossa obra anterior, como vem resgatar velha e grande dívida do Exército Brasileiro para com esses valorosos engenheiros, que auxiliaram Portugal a lançar ‘as bases eternas da atual Nação Brasileira’”.
TERRITÓRIO NACIONAL: SOBERANIA E DOMÍNIO DO ESTADO
Além de temas históricos e militares, vossa pena tem-se exercitado em outras esferas, porque, com desembaraço, incursionais ainda no campo do Direito.
Território Nacional: Soberania e Domínio do Estado, editado em 1956, mostra as vossas aptidões como jurista, fazendo lembrar aqueles generais do Lácio, que não só comandaram legiões, mas contribuíram para construir o Direito romano.
Em vosso livro, de clareza meridiana, discorreis sobre o domínio territorial do Estado, as ilhas oceânicas, o patrimônio da União, terrenos de marinha, terrenos de fortificações, e traçais a história da propriedade territorial do Brasil desde a Colônia até hoje.
E fostes mais longe. Enfronhado no que há de mais recente sobre o tema, apreciais o Estado, como pessoa internacional, e, em decorrência, dissertais sobre o Território Marítimo, o Território Aéreo e a Plataforma Continental, concluindo com uma exposição acerca das Nações Unidas e da Comissão de Direito Internacional.
O ilustre Professor Ruy Cirne Lima, de quem tanto se orgulha o Rio Grande do Sul, visto juntar, às qualidades de homem de bem, profunda e variada cultura jurídica, teceu, a propósito deste livro, o seguinte comentário: “Sobre a história do território nacional, nenhum País tem um estudo tão completo, desde a sua origem, como este”.
E Gilberto Amado, cioso, como ninguém, das autoridades em que alicerçava seus pareceres jurídicos, citou o vosso livro no episódio das lagostas.
Há, contudo, nesse volume, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, um ponto ao qual me permitireis fazer restrições, seguindo velha e boa tradição desta Casa. É quando escreveis:
O regime republicano foi, de início, muito negligente nos assuntos mais diretamente ligados à segurança nacional. O fenômeno pode ser atribuído a várias razões, entre as quais a mentalidade dominante no Exército, onde as ideias positivistas tinham adeptos fervorosos entre os seus líderes mais influentes.
O Positivismo, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, tem tido curiosa sorte no Brasil – ninguém se lembra do bem que praticou, nem se esquece do mal que não fez...
Contraditoriamente visado, ao mesmo tempo, pelos reacionários e pelos marxistas de diversos matizes, tem-se tornado aquele Bei de Túnis contra o qual investia Eça de Queirós sempre que lhe faltava matéria para as suas crônicas.
Foi o Positivismo que exemplarmente assegurou, através das emendas de Demétrio Ribeiro e demais constituintes seus correligionários, a perfeita liberdade da Igreja, contra os dispositivos legalistas de Rui Barbosa que mantinham a legislação de mão-morta, expulsavam do Brasil a Companhia de Jesus e proibiam a fundação de novos conventos e ordens religiosas. E, entretanto, quando se fala em liberdade da Igreja, todos paradoxalmente a atribuem ao tradutor de O Papa e o Concílio...
Estou certo de que, em nova edição, reconsiderareis esse passo de vosso livro, em primeiro lugar, porque os únicos ministros positivistas que teve a República, foram, no Governo Provisório, Demétrio Ribeiro durante menos de dois meses, e Benjamin Constant durante apenas um ano, a princípio, como ministro da Guerra, durante sete meses, e, por fim, como ministro da Instrução, durante cinco.
Em segundo lugar, tomaram os positivistas clara posição em defesa de nossa segurança e soberania através do protesto que, em 1896, lançou Miguel Lemos, nos “Apedido” do Jornal do Commercio contra os Protocolos Italianos, que propiciariam a formação de quistos étnicos capazes de ameaçar a nossa unidade cultural e até a nossa independência política.
Sob o ponto de vista, já não mais da legislação, mas da realidade concreta, quem concorreu mais para a integração do território nacional e a defesa de nossas fronteiras do que Rondon e seus colaboradores positivistas?
É o que ressalta o General Tasso Fragoso:
É certo que existiam no seio da Força Armada alguns discípulos confessos do Positivismo. Nunca, todavia, periclitou com isso a defesa nacional. Ao contrário, procederam de modo que ninguém mais do que alguns deles deu maiores provas de amor ao País e soube morrer por ele. Escrevendo estas linhas, tenho em mente o General Rondon e sua obra nas fronteiras do Brasil. Quem mais do que ele e seus abnegados companheiros patenteou maior bravura na paz? Pois não é bravura afrontar o desconhecido, sofrer intempéries e morrer quase ignorado no sertão longínquo? Onde se cultivavam melhor os sentimentos elevados que animam os verdadeiros guerreiros – ali ou na faina pacífica e segura dos quartéis? Dezesseis oficiais lá ficaram para sempre, pagando com a vida a sua fé no porvir do Brasil.
Aliás – continua Tasso Fragoso –, forçoso é reconhecer que qualquer doutrina capaz de desenvolver os mais nobres sentimentos da alma humana também é apta a preparar defensores da Pátria, quando deles haja mister. O Catolicismo também é contra a guerra, no entanto são numerosos os sacerdotes católicos que se bateram com denodo na guerra de 1914.
Entre eles – acrescento eu – distinguiu-se o atual Deão do Sacro Colégio, Cardeal Tisserant, que, em abril de 1917, comandou, no Oriente Médio, um pelotão e participou da tomada de Gaza.
Há, porém, mais, Sr. Aurélio de Lyra Tavares: vós mesmo citais um discurso proferido no Congresso em 21 de agosto de 1895, por destacado discípulo de Benjamin Constant, Serzedelo Corrêa, o qual, preocupado com a faixa de nossas fronteiras, sustentava que atribuir a essa faixa a extensão de sessenta quilômetros seria insuficiente para estabelecer um cordão estratégico satisfatório.
Não tenho dúvida, pois, de que, em edições futuras, havereis de absolver o Positivismo de um pecado que não cometeu.
O SOCIÓLOGO
Vossa conferência – “A pesquisa social e a segurança da Democracia” – é uma análise da contribuição que, aos estudos de nossa vida política e administrativa, pode trazer esse importante ramo da Sociologia.
Em Aspectos Políticos, Econômicos e Psicossociais da Região Nordeste abordais um dos problemas mais angustiantes da atual realidade brasileira.
Com o conhecimento direto daquela região e de suas dificuldades, aprofundado quando desempenhastes o Comando do IV Exército, chamais a atenção para o agravamento “cada vez maior, da condição do homem, como ser social e fator predominante de progresso”.
E, depois de apontar medidas tendentes à solução, acrescentais:
Até mesmo na região úmida, onde mais se adensa a população, o trabalhador da atividade básica da economia do Nordeste, que é a agroindústria açucareira, não tem vida menos infeliz. Ele também chega a passar fome e até a morrer de fome, como nos comprovam episódios bem recentes.
Por incompreensível mentalidade empresarial, é raro a indústria açucareira precaver-se, na aplicação dos lucros auferidos, com a poupança destinada a atender tanto aos reinvestimentos requeridos pela própria indústria, como a qualquer fundo de finalidade social, em proveito dos trabalhadores, nem mesmo para apoia-los nas situações críticas, apresentando-se essa imprevidência contrastante com o padrão de vida que usufrui o industrial.
E concluís que a questão social do Nordeste será resolvida “mais por medidas de ordem econômica, para remover as suas causas, do que por medidas de ordem militar para reprimir seus efeitos”.
QUATRO ANOS NA ALEMANHA OCUPADA
Neste livro registrais observações colhidas, a princípio como integrante, e, depois, como chefe da Missão Militar Brasileira enviada, em dezembro de 1945, a Berlim, atendendo ao convite dirigido pelo Conselho Aliado de Controle da Alemanha aos governos dos países que participaram, de forma ativa, da guerra contra aquele País. É um estudo em profundidade dos imensos problemas surgidos com a capitulação do regime de Hitler, tais como a sua desmilitarização, a sua desnazificação e a sua democratização, o problema dos deslocados e refugiados, os brasileiros na Alemanha, o Tribunal de Nuremberg, os criminosos e as reparações de guerra. A este propósito salientais como é mal recompensada a colaboração dos fracos aos fortes. Ao convocarem, em Paris, os países interessados nas reparações, os governos norte-americano, britânico e francês excluíram o Brasil, concluindo que os danos por ele sofridos podiam ser compensados com os bens alemães controlados pelo nosso Governo.
Estabelecendo um prazo de apenas vinte dias para a apresentação do relacionamento e importância das reparações a que o Brasil tinha direito, o memorando do Governo norte-americano esclarecia que a situação do Brasil seria considerada em relação a toda a América, tratamento que, segundo ressaltais, “evidentemente não correspondia ao grau de participação que tínhamos tido na guerra, nem era autorizado pelas decisões da Conferência do México, a respeito dos bens inimigos sob controle dos governos americanos”.
Verificou o Brasil nessa oportunidade, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, quanta razão cabia a Washington ao advertir “ser uma loucura em uma nação esperar favores desinteressados de outra, não podendo haver maior erro do que aguardar favores de nação a nação ou contar com eles”. Cumpre, todavia, lembrar que, no caso das reparações, não pleiteava o Brasil “favores”, mas legítimo ressarcimento dos seus prejuízos ao participar diretamente da guerra contra Hitler.
Observais que o Tribunal de Nuremberg representou
[...] um passo importante e objetivo no sentido da condenação da guerra como meio de dirimir conflitos internacionais. Por outro lado, prevendo as proporções da catástrofe que constituiria uma nova guerra mundial no estágio atual da Ciência e da Técnica, as nações procuram agrupar-se em torno de programas que assegurem garantias recíprocas de estabilidade econômica, num mundo pacífico. É um ideal que implica, necessariamente, a abdicação de certos privilégios da soberania nacional, cujo conceito moderno – frisais – começa a tornar-se mais flexível para ajustar-se ao sentido de uma fórmula nova em que prevaleçam os altos desígnios da harmonia internacional sem ficarem comprometidos os interesses vitais e as tradições próprias de cada povo.
Confirma-se, assim, o ideal que, desde Marco Aurélio, dia a dia se avoluma: o da subordinação do indivíduo à família, desta à Pátria e de todas as pátrias à Humanidade, “a pátria universal que reúne todos os habitantes do planeta humano”.
Daí ser imprescindível a formação de um organismo internacional, pairando acima de todas as nações, constituído de homens de largo descortino social, capazes, pela sua autoridade intelectual e moral, de evitar novas conflagrações e realizar enfim a Liga Espiritual preconizada pelo Sumo Pontífice João XXIII e resumida no lema de Santo Agostinho:
In necessariis unitas; in dubiis libertas; in omnibus charitas – “nas coisas necessárias a unidade; nas duvidosas a liberdade; em todas a caridade”.
Há um aspecto de vossa permanência na Alemanha, a que não vos referis em vosso livro, mas foi pitorescamente registrado por Assis Chateaubriand em artigo intitulado “Acontece que ele é paraibano...” Esse aspecto era a infalível presciência com que identificáveis os flagelados da fome:
Acontece – comentava Chateaubriand – que o coronel Lyra é paraibano, e na Paraíba somos todos mais ou menos peritos em fome. Seca lá é como guerra aqui (na Europa). Deixa de chover, já se sabe: é miséria certa de alimentação. O coronel Lyra enxerga lindamente fome na barriga de alemão, porque a conhece na canela de paraibano.
SEGURANÇA NACIONAL E PROBLEMAS ATUAIS
Neste livro, que alcançou mais de uma edição e foi publicado, em espanhol, no Equador, desenvolveis temas como a “Guerra Revolucionária”, “Vulnerabilidade do Estado”, “Segurança do Estado Democrático”, “A Educação e a Cultura”, “O Papel das Forças Armadas”, “O Papel dos Transportes”, “A Imigração”, “O Dever Militar e a Luta Ideológica”.
É, segundo declarais, um livro de esclarecimento, visando “à defesa e sobrevivência do Estado democrático ante as ameaças a que está sujeito no mundo de hoje, pelas próprias liberdades que lhe são essenciais, apresentando, por isto problemas novos e graves”.
Em tudo quanto escreveis fugis da obscuridade e formulais vossas opiniões em plena luz, naquela nitidez que Vauvenargues dizia ser “o verniz dos mestres”. Mas, neste volume, pela relevância da matéria, requintastes vossa preocupação de ser claro.
Num dos capítulos versais o conceito de liberdade de cátedra e mostrais mui acertadamente que não pode ser “usada como instrumento demolidor e subversivo”, já que o professor exerce o magistério por delegação do Estado. E aqui está o ponto nevrálgico da questão: qual o critério para determinar-se a partir de onde o ensino de certo professor deve ser considerado “instrumento demolidor e subversivo”? Porque esse critério depende do ponto de vista pessoal da autoridade que fiscaliza e superintende o ensino: o que para uns tem a característica nítida da subversão, para outros deixa de oferecê-la.
Recordo-me de haver sido um professor, há alguns decênios, num dos Estados da União norte-americana, incriminado por ensinar a doutrina de Darwin, tida, naquele Estado, como subversiva dos princípios cristãos. E todos sabemos que o heliocentrismo foi considerado subversivo nos países católicos até ser liberado pela Congregação do Index, em 7 de setembro de 1822, contando, assim, nesses países, tantos anos de livre curso quantos possui o Brasil de Independência.
A dificuldade da solução dos problemas relacionados com a liberdade de cátedra decorre da confusão dos dois poderes – temporal e espiritual, exercidos cumulativamente pelo Governo em matéria de instrução, como sempre ocorreu entre nós, em França, Itália, Espanha, Portugal e países hispano-americanos.
Quando, no Brasil, se fez a separação da Igreja relativamente ao Estado, os positivistas acharam que devia ter sido acompanhada da liberdade de ensino, por constituir este um outro ramo do poder teórico ou espiritual.
Se, porém, o professor aceita ser um funcionário púbico e dispõe, durante o curso que ministra, de um auditório forçado de jovens em sua maioria ainda imaturos, é óbvio que não pode deixar de submeter-se à orientação doutrinária do Estado, tal como acontece com o clero católico em regime de união. Aludindo à liberdade estabelecida pela República, ponderavam os bispos do Brasil na Pastoral Coletiva de 1890:
“Não mais se hão de ver ministros de Estado, que deviam ocupar-se só de negócios civis, sujeitando à aprovação do Governo os compêndios de Teologia por que se há de estudar nos seminários.”
Os que, entre nós, sonham com a implantação do regime comunista e reclamam contra as restrições à liberdade absoluta de cátedra, se esquecem de que ela não existe, em grau nenhum, na Cortina de Ferro. Não só o ensino é aí orientado de acordo com a doutrina do Estado marxista, como também o são a Imprensa, a Literatura, as Artes, a Filosofia e a Ciência. E, por isto, o Pequeno Dicionário Filosófico Soviético é permanente distorção acerca de todos os filósofos que não possuem tendências comunistas. Basta dizer que Santo Agostinho, um dos cérebros mais fortes da Humanidade, é nele apresentado como “pregador fanático e militante do obscurantismo religioso”.
De tal modo deturpa esse Dicionário que, no verbete consagrado a Comte, diz ter a Ciência, segundo ele, “por exclusivo objeto a descrição das sensações subjetivas do homem”. Não era possível maior falseamento em relação ao que seja a Ciência para Augusto Comte.
Nos Estados Unidos, ao contrário, reina hoje a mais ampla liberdade de ensino. Ali, o valor de um diploma depende – no dizer de um educador – “não do selo oficial, mas do prestígio e integridade moral da escola que o expede. Os colégios não se assemelham a uma repartição pública, onde ninguém pode dar um passo sem preencher certas formalidades”.
A liberdade de cátedra, sem a supervisão do Estado, somente será possível quando o ensino dele se desprender e for custeado pelos que o ministram e o recebem. No Brasil tal situação constituirá, ainda por muito tempo, uma utopia, visto não termos milionários capazes de fundar e custear universidades, nem alunos que possam concorrer, com suas mensalidades, para sustentá-las, constituindo uma exceção extremamente honrosa a Universidade Gama Filho, construída pelo idealismo alicerçado na força de vontade de um só homem, mas que, como as demais, é obrigada a seguir os programas oficiais.
Assim como em matéria de Religião, que pertence, essencialmente, ao foro íntimo de cada qual, ao Estado falece, perante o Positivismo, competência para decretar quais os princípios que devam ser ministrados na formação moral, intelectual e técnica dos cidadãos, cumprindo-lhe, apenas, a manutenção da ordem material. Os únicos ensinos que competem ao Estado, o mais intensamente possível, a fim de acabar com o analfabetismo, são o primário e o normal.
O ORADOR
Entre nós, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, ainda se lê muito pouco. Eis por que livros notáveis como os vossos – Além dos Temas da Caserna, Exército e Nação, A Engenharia Militar Portuguesa na Construção do Brasil, Território Nacional: Soberania e Domínio do Estado e tantos outros, somente têm chegado a leitores de escol. Publicados na Europa, constituiriam sucessos de livraria, visto ser aí grande o público interessado em assuntos sérios, como os de que tratais, obedecendo os vossos livros às três condições que, aos olhos de Aristóteles, fazem o mérito de uma obra: dizem tudo quanto é exigido pelo tema, só dizem o necessário e da maneira pela qual deve ser dito. Assim como os dos Generais Tasso Fragoso e Dionísio Cerqueira, do Comandante Eugênio de Castro, do Marechal Leitão de Carvalho e dos Marechais Lyautey, Foch, Juin e Joffre, vossos livros são hoje de consulta para os que têm de tratar das matérias que versam.
Além de escritor, sois ainda um orador. E, por serdes eloquente, evitais a retórica, ou seja a fraseologia sem fundo, a qual faz com que certos discursos aplaudidíssimos ao serem ouvidos, se tornem detestáveis ao serem lidos, porque se patenteia então o vazio da ideia disfarçado sob a pompa das expressões. Fiel ao preceito de Renan, somente vos servis da palavra para o pensamento e deste para a verdade.
Do que seja a vossa força como orador, é testemunho a sessão do Senado Federal em que, convocado, em fevereiro de 1968, a requerimento do Senador Mário Martins, justificastes a mensagem do Presidente da República acerca dos efetivos militares. Fornecendo, com segurança, os informes que nessa ocasião vos foram solicitados, vos revelastes – no dizer do Senador Vasconcelos Torres – “um bom técnico da melhor oratória parlamentar”.
Comparecendo ao Senado da República, onde vosso pai deixou um grande nome, vos conduzistes – no juízo do Senador Rui Carneiro com inteligência, ostentando profundos conhecimentos.
Depois de ouvir-vos, declarou o líder da Oposição, Sr. Aurélio Viana: “O General Lyra Tavares é um civilista por excelência, sem qualquer tendência ou prurido militarista.”
É que, acessível ao diálogo, mesmo quando participáveis da Junta Governativa, de vós não diria Favorinus o que ponderou a propósito do vaidoso Imperador Adriano: “É perigoso discutir com o senhor de trinta legiões.” Nem também Aristipo vos faria a pergunta que costumava dirigir a Dionísio de Siracusa: “Queres que me manifeste conforme às tuas opiniões, com sacrifício da verdade, ou, ao invés, que diga esta contrariando teus pontos de vista?”
Em discurso de grande repercussão, proferido, de improviso, em 1967, no Paraguai, declarastes saberem os que lidam convosco em assuntos de ordem espiritual ser “compreensão” a palavra a que emprestais maior significado em face do mundo turbulento em que estamos vivendo. E esclarecestes: “O problema do homem, como o das nações, dos continentes e do mundo, tem o seu segredo nessa palavra cujo sentido talvez ainda não seja alcançado em toda a sua profundidade.”
Concordais nisto com velho escoliasta de Virgílio segundo o qual “nos cansamos de tudo, menos de compreender”, porque a compreensão se entrelaça com o amor e este, de todos os sentimentos humanos, é o único que não se exaure. Daí a profunda sentença de Mme. de Staël: “Tudo compreender é tudo perdoar.”
O PODER
Prova de compreensão, além de desprendimento, destes, com os vossos companheiros de Junta Governativa, ao afastar o vosso nome de qualquer cogitação para suceder ao Marechal Arthur da Costa e Silva na Presidência da República. Figurais assim, com os vossos colegas, Almirante Augusto Rademaker e Marechal do Ar Márcio de Sousa e Mello, entre os raros que têm sabido resistir à paixão do poder – a mais ardente a avassalar o coração humano, nas palavras de Tácito.
“O poder”, observava Zweig,
[...] é como a cabeça de Medusa: quem lhe viu o rosto, dele não mais pode desviar os olhos. Quem, uma só vez, provou a embriaguez do poder e do mando, não mais consegue dispensá-la, não renunciando à volúpia, quase sacrílega, de dirigir o destino de milhões de homens.
Historiador e sociólogo, conhecendo a precariedade das grandezas humanas, em certas emergências haveria de repontar-vos ao espírito o episódio da prisão do antigo Regente do Império, Padre Diogo Antônio Feijó, pelo Barão de Caxias, ao ser por este, em 1842, debelado o movimento revolucionário liberal irrompido em Minas e São Paulo.
Escrevendo ao comandante das forças vitoriosas, ponderou-lhe Feijó em 18 de junho daquele ano:
Quem diria que em qualquer tempo o Sr. Luís Alves de Lima seria obrigado a combater o Padre Feijó. Tais são as coisas deste mundo!... Eu estaria em campo, com a minha espingarda, se não estivesse moribundo, mas faço o que posso... Lembra-me de procurar V. Exa. por este meio e propor-lhe uma acomodação honrosa a Sua Majestade e à Província... V. Exa. é humano, justo e generoso, e espero não duvidará em cooperar para o bem desta minha Pátria.
Em resposta, fez-lhe ver Caxias ser impossível qualquer acordo. E, ao entrar em Sorocaba, dirigiu-se à casa onde se encontrava o antigo regente, e, dispensando-lhe toda consideração, disse-lhe:
“Só o dever de soldado me impõe a dolorosa obrigação de vir prender o Sr. Senador Feijó. Quer V. Exa. dar algumas providências ou levar alguns objetos para o quartel-general, onde tudo falta?”
“De nada preciso, apenas de uma esteira.”
Trocadas estas frases, Feijó convidou Caxias a sentar-se e conversou sobre o passado. Entre outras coisas, perguntou-lhe se se recordava dos acontecimentos de 1831, e do ministro da Justiça que o nomeara major do Corpo de Permanentes, acrescentando:
“O senhor é moço, aprenda no que está vendo o que são as vicissitudes do mundo. Naquele tempo eu dava acesso ao Sr. Lima e Silva, hoje vem ele prender o velho Feijó, já moribundo.”
Também a vós, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, possivelmente se vos depararam, no Ministério do Exército e na Junta Governativa, circunstâncias semelhantes à de Caxias naquele episódio, pois fostes compelido a medidas que fundamente feriam vossa sensibilidade visto se relacionarem com antigos amigos e camaradas.
ATUAÇÃO NO MINISTÉRIO E NA JUNTA GOVERNATIVA
Ainda é muito cedo para se apreciar a vossa atuação como ministro e membro da Junta Governativa, porque, como frisastes, em 1966, em vosso discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro:
É precisamente do atual que o historiador deve afastar-se, retrocedendo no tempo, abstraindo-se do quadro que está vivendo no presente, para ver com isenção, com segurança e com fidelidade o fato histórico na pureza das fontes, na idoneidade dos depoimentos e nas circunstâncias do ambiente da época. O estudo da História nos leva a mergulhar no passado, ao contrário das outras ciências, em que examinamos os fenômenos olhando as circunstâncias materiais que os cercam, mas não necessariamente o século ou ano e o clima espiritual e político em que eles ocorreram.
O historiador é, por isso mesmo – concluís –, escravo dessa espécie de servidão voluntária, além de nobre, que o força a sair do presente para poder estudar, livre e isento dos problemas e dos fatos atuais, que serão História apenas para os que vierem depois de nós, porque só eles terão serenidade, isenção e perspectiva para apreciá-los.
E assumistes então o compromisso de servir à História com fidelidade, mesmo porque, foram vossas palavras, “não vejo como seja possível servi-la de outra forma. É como se tem, pelo menos, a certeza de não desservi-la”.
Só aos historiógrafos do futuro, diante das memórias que decerto havereis de escrever documentadamente, caberá, portanto, apreciar a vossa atuação política no Ministério do Exército e no Governo brasileiro a partir de março de 1967, e terão de considerar, como sempre o fazeis, não ser ninguém infalível, sendo inevitáveis os desacertos, sempre que temos de agir. Deles só Deus se livra, e, assim mesmo, ponderava, no século XIII, o rei astrônomo, Afonso X de Castela: “Se tivesse sido consultado pelo Criador ao fazer o mundo, haveria de dar-lhe bons conselhos a fim de evitar erros manifestos” – tão fácil é apontá-los e tão difícil não incidir neles!
Asseguram os que vos conhecem de perto estardes sempre pronto a contribuir para a reparação de excessos e falhas decorrentes de período agitado, como não podia deixar de ser o que se seguiu à revolução de 1964. Se todos se enganam, só os homens superiores o reconhecem de boa mente, e vós, que sois historiador, sabeis ser uma das vantagens do estudo de vossa predileção mostrar aos grandes homens haverem eles tido êmulos no passado e que esses êmulos, por maiores que hajam sido, não se livraram da falibilidade peculiar à nossa espécie e, tal como os heróis de Camões,
“TODOS FORAM DE FRACA CARNE HUMANA.”
O discurso em que vindes de estudar o patrono, o fundador e os ocupantes da Cadeira 20, e, especialmente, o vosso grande antecessor Múcio Leão, o qual, à sensibilidade de poeta e à agudeza de crítico associava a capacidade beneditina de trabalho com que levou a termo a História da Literatura Brasileira intitulada Autores e Livros, o vosso discurso, vazado no mais clássico estilo acadêmico, e, bem assim, o retrospecto que de vossa vida e de vossa obra intentei traçar provam que há muito vos aguardava, de pleno direito, uma Cadeira nesta Casa. E, ao eleger-vos, a Academia patenteou saber chamar ao seu convívio todos os valores intelectuais e culturais do Brasil, onde quer que se encontrem e qualquer que seja a atividade a que se consagrem.
Desfrutai, pois, tranquilamente a imortalidade a que fazeis jus pela vossa vida e pela vossa obra, construída com amor, seriedade e segurança.
Sede bem-vindo, Sr. Aurélio de Lyra Tavares!
2/6/1970