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Discurso de posse

1 – PALAVRAS DE AGRADECIMENTO

Nesta síntese do meu discurso, feita para adequá-lo a uma cerimônia de caráter também social, e porque ides ouvir depois quem possui muito mais títulos para ser ouvido, eu estimaria, senhores acadêmicos, conjugar apenas o verbo agradecer e alguns dos outros que enriquecem a sinonímia.

Mas o mandamento da Casa e a homenagem, que eu devo e desejo prestar ao meu ilustre antecessor, levam-me a recordar as excelsas virtudes humanas de Múcio Leão e os multiformes aspectos da sua grande obra literária. Começo, aliás, por invocar as próprias e belas palavras do seu discurso de posse, usando-as, textualmente, para agradecer os votos com que me fizestes o seu sucessor na Cadeira 20.

Não acrediteis que me tenha movido algum impulso de ambição descabida, ao volverem-se os meus olhos para o portal da vossa Casa. Todo aquele que ambiciona uma Cadeira de Academia comete um ato de humildade espiritual. O gênio é, por sua natureza, áspero e solitário. Ele caminha isolado, e em si mesmo encontra a sua força e o seu calor. Nós outros, aqueles que sabemos medir o nosso limitado horizonte, nós é que sonhamos com o grupo e a companhia. As águias voam solitárias; as andorinhas é que voam em bando.

2 – VOCAÇÕES SOLIDÁRIAS

Depois de ter sido soldado do Brasil, até o fim da árdua e bela carreira que escolhi e abracei pelo mais puro idealismo, volto agora, sob outro uniforme, do qual também muito me orgulho, a servir ao Brasil em missões diferentes, porém não menos relevantes, que, desde muito cedo, também sempre estiveram em minha vocação.

Na verdade, são duas carreiras que se ligam no plano do espírito: a do militar e a do escritor. Aqueles tão repetidos versos de Castro Alves, irmanação do livro ao sabre, vinham em negrito na capa da Aspiração, a revista do Colégio Militar de que fui, quando menino, um dos diretores. E figuravam, também, com o mesmo destaque, no órgão literário da Escola Militar, que dirigi no meu tempo de cadete.

Escrevi muito, durante toda a vida, sobre assuntos que foram variando com a idade, as solicitações do espírito e os sucessivos tipos de estudos e cursos a que me dediquei. Escrevi, inclusive, poesias, mas apenas como diletante, sem a pretensão de ser poeta, tanto que quase sempre me escondi atrás de pseudônimos. É que a Poesia figurava entre os deveres escolares, em nosso curso de Português, no qual se estudava a Literatura como elemento indispensável das humanidades.

O programa nos subordinava às normas e aos conceitos que então prevaleciam na didática ginasial.

Mas compreendi, desde então, que a Poesia não estava propriamente na forma de escrevê-la, na disciplina da métrica ou no enlevo da sonoridade com que devíamos reunir as palavras, como que para convertê-las em música. Era preciso amestrar os ouvidos, dizia o professor. E nos mandava ler alto, e com atenção, certos clássicos esmerados na harmonia dos ritmos e dos sons, que terminávamos por sentir e identificar na recitação.

Também sabíamos de cor, por força de tanto declamá-los nas aulas de Francês do Professor Glénadel, quase todos os versos do Cid, a tragédia corneliana estudada no curso.

Naquele tempo, o panorama da nossa Poesia nos dava a ideia de um lusco-fusco no raiar da libertação das amarras que condicionavam os impulsos do espírito às normas do Parnasianismo e dos outros “ismos” da estilística, mas o movimento em curso ainda não adquirira dimensões para predominar no campo didático da Literatura.

Já avultava o Modernismo, na obra de grandes poetas inovadores, o que não constituía, porém, no sentido global, uma inflexão de rumos, com o abandono do passado, mas indícios de idade nova, de uma corrente influenciadora do processo da nossa evolução literária, de colorido autenticamente verde-amarelo.

Ganhava expressão própria a Poesia brasileira, como as outras artes, no mesmo compasso em que adquiria substância e autonomia o espírito nacional, através de movimentos que o enriqueciam, sem abalar-lhe as raízes, mas nelas injetando seivas novas e revitalizadoras que não conflitavam entre si nem marcavam, de forma precisa, os instantes de transição, tal como ocorre nas transformações do crescimento dos seres e na mudança de tonalidades no fenômeno das florações, ao influxo dos fatores intervenientes que as influenciam.

A Poesia brasileira despontara no anticolonialismo combativo de Gregório de Matos e da Escola Mineira, como atitude de rebeldia da consciência nacional, que se afirmava, mas ainda era regida, em “gênero, número e grau”, pelos modelos portugueses.

A nacionalização decorria da influência do meio ecológico, do abrasileiramento progressivo das culturas que herdamos ou importamos, da invocação das figuras do índio e do escravo, da captação cada vez mais abrangente das oralidades regionais e dos temas da sociedade que se nucleava nos oásis muito dispersos pela vastidão do território, sem contar a mudança do polo de influência de Lisboa pelo de Paris, fato que beneficiou a autonomia da nossa Literatura por livrá-la da preponderância intelectual da antiga metrópole.

A esse movimento de independência, que não fugia ao espírito universalista da Cultura, seguiu-se o da libertação intrínseca, eminentemente nacionalista, que foi o Modernismo, deflagrado em São Paulo, um século depois do grito do Ipiranga.

Todos esses compassos dissonantes coexistiam em nossa aprendizagem, misturando as reações que nos causavam os ensinamentos dos velhos mestres com as nossas próprias idéias e inclinações de espírito.

O que mais importava, porém, no meu entendimento eram o estado de alma, a inspiração, o sentimento oculto no tema, a expressão da mensagem. Isso tudo significa uma comunicação entre os dois polos geradores da Poesia, ou entre as duas vidas que, simultaneamente, vivemos, embora nem sempre se harmonizem, como foi o caso de Múcio Leão: a vida interior, misto de alma e espírito, plenos de anseios e solicitações, e a vida exterior, aberta à paisagem, ao meio físico e social, às relações humanas, ao quadro das realidades circunstanciais, em todos os seus aspectos e planos, essencialmente mutáveis.

Cada um de nós encontra em si mesmo a motivação dos momentos de Poesia, que orientam as tendências, os estímulos e a personalidade. As escolas literárias, como as doutrinas políticas e sociais, sucedem-se à feição da época. Em certos casos, elas surgem com o simples propósito de inovar, por influência do mimetismo importado ou por força dos movimentos de renovação, que às vezes não passam de uma vanguarda sem seguidores, como ocorre com o Romance e as outras Artes.

A grande tendência foi sempre, porém, a de superar todas as limitações da expressão poética, de modo a assegurar-se à Poesia a sua essência e autenticidade.

Libertamo-nos, ainda moços, das servidões que a condicionavam, pois é óbvio que tanto pode haver poesia num trecho de prosa, como ocorrer a sua ausência absoluta em certo alexandrino bem burlado, na métrica, na rima e nos hemistíquios.

Mário de Andrade foi bem explícito ao dizer, em carta a um amigo íntimo: “[...] vamos entrar pra dentro de nós. A poesia é dentro de nós que está.”

A Múcio Leão não faltou acuidade para observar: “Os orgulhosos nomes que usamos, em nossos vãos estudos de críticos e de historiadores da Literatura, nomes que indicam escolas ou tendências literárias, não passam de um mero luxo de eruditos. A poesia é e permanece uma só” (discurso de posse). Estas e muitas outras noções essenciais à formação humanística nós aprendíamos durante os seis anos de internato, no Colégio Militar. Os professores eram exigentes e, com excepcional dedicação, cuidavam da nossa aprendizagem relativa à língua materna.

Orgulho-me de haver tido o privilégio de aprender com verdadeiros sacerdotes do ensino, dentre os quais Mário Barreto, Hemetério dos Santos, Maximino Maciel, Daltro Santos, Laudelino Freire, Felisberto de Meneses e o sábio Alfredo Severo. Junto a estes o Mestre Oiticica, do Colégio Pedro II, com quem gostava de prolongar os meus estudos, em tempo de férias, ouvindo-o de Lusíadas à mão, a pôr em ordem direta cada estância camoniana, para passar, depois, à análise sintática.

Imaginai a saudade e a gratidão com que evoco as venerandas figuras dos meus professores, entre as reminiscências da meninice, passada sob a benéfica disciplina que nos regia no Colégio Militar e na camaradagem estreita de uma grande coletividade infantil, em que muito mais nos conhecíamos pelo apelido e pelo número de matrícula do que pelo nome de batismo.

Está visto que nem todos estávamos ali, como era o meu caso, pela vocação e pela vontade de ser soldado. Havia, por isso, os que não chegavam ao fim, embora se projetassem, mais tarde, como grandes valores, em outros campos de atividade. Muitos esbarravam nos rigores da disciplina ou nas provas de Matemática, por falta de inclinação. Entre eles há expressões notáveis da vida nacional, como é o caso das admiráveis figuras de Félix Pacheco e Osvaldo Aranha, para só citar dois grandes mortos, por sinal um nordestino e um gaúcho, ambos consagrados homens públicos e chanceleres do Brasil.

Félix Pacheco declarou a esta Academia, ao ser aqui recebido, que vinha unicamente como jornalista. O seu discurso de posse foi, antes de tudo, uma bela exaltação do Jornalismo Brasileiro, por ele tanto dignificado. Mas não omitiu o Colégio Militar nas suas recordações, ao concentrar-se na figura do Major Urbano Duarte, sempre tão cheio de solicitude nos conselhos com que estimulava os jovens cronistas da Aspiração. Foram ambos merecedores da consagração dos seus nomes pela Academia. Félix Pacheco reverenciou a revista em que fazíamos o noviciado das Letras, como a “minha saudade perpétua e meu primeiro ninho plumitivo”. Ela já foi também aqui enaltecida por Gustavo Barroso, ao receber Pedro Calmon.

Valho-me, também, desta oportunidade para renovar o meu reconhecimento àquela benemérita colmeia de Tomás Coelho. Vivi, desde então, na minha vida militar, recentemente encerrada, cerca de meio século de grandezas e servidões; grandezas próprias do ideal de servir à Pátria, e servidões que soube cultivar por importarem igualmente em grandezas, na renúncia dos interesses e vaidades do indivíduo em benefício dos ideais comuns e mais nobres que dão altitude e sentido ao espírito da Instituição.

As servidões da minha vida militar não foram da natureza daquelas a que Alfred de Vigny se reportou aos 38 anos de idade, em 1835, no seu último livro. Suas razões eram outras. Descendente de família nobre e segundo-tenente aos dezessete anos, logo aos trinta preferiu reformar-se por motivo de saúde e por acúmulo de desencantos. Ele servira a uma causa que não lhe atraía a fé, como observa o seu biógrafo, deixando-se fascinar pela vida literária, em que encontraria a consagração. Foi soldado apenas por treze anos.

Eis o que também ocorreu com Félix Pacheco, por outros motivos e em quadro de vida muito diferente, levando Pedro Calmon a dizer:

Fácil é, de certo, fazer de um militar enfadado um jornalista exímio; mas apostamos que é impossível transformar um jornalista impaciente num militar, ainda que medíocre, a ver, da quietude da caserna, espreguiçar-se cada antemanhã, no incêndio do nascente, o sol frio dos madrugadores...

Recorri ao juízo do brilhante e consagrado mestre baiano por estar familiarizado com o seu espírito civilista e por haver-se acreditado como admirável conhecedor da História dos Exércitos. Ele foi além, ao referir-se à passagem de Félix Pacheco pelo Colégio Militar: “Aprendeu ali coisas utilíssimas. As humanidades bem sabidas, o estoicismo dos quartéis, com os horários inexoráveis, e, principalmente, começando a conhecer-se, a sua inaptidão para a disciplina e o impessoalismo da vida das armas”.

Entre os que fizeram a carreira militar, vindo a ter os nomes marcados nas Cadeiras da Academia, cumpre lembrar, primeiro, os seus dois fundadores: o Visconde de Taunay e o Major Urbano Duarte. Na relação dos membros titulares figuram, por ordem cronológica de eleição: o Tenente de Engenharia Euclides da Cunha, o Almirante Jaceguai, o General Dantas Barreto, o General Lauro Müller e o Coronel Gregório da Fonseca. Este, eleito em 1931, foi o último militar recebido, antes de mim, nesta Casa de Machado de Assis.

Convenci-me da minha vocação no Colégio Militar: dali, exatamente por conhecê-la, ingressei na Escola do Realengo, o degrau imediato da carreira. Nela, depois de penar e vencer a provação dos famosos trotes, muito mais temidos pelos cadetes do que as sabatinas do curso, iria completar a minha formação básica de soldado. Não perdi, com ela, a vocação literária. Ao contrário, tive campo mais amplo para exercitá-la, tanto nas tertúlias da Sociedade Acadêmica, da qual fui Presidente, quanto na direção da tradicional Revista da Escola Militar, muitas vezes citada nas páginas da Cultura Nacional, inclusive em comentários encorajadores do grande João Ribeiro.

Estas evocações, que me são muito gratas, eu me permito assinalar por não ser apenas a minha vida de soldado que as sugere, mas a de muitíssimos outros, no Brasil, como em qualquer parte do mundo e em qualquer época, de modo a confirmar o conceito de Castro Alves através dos exemplos que nos transmite a História. Nela se projetaram numerosos valores exponenciais das Letras e da Cultura cujos nomes figuram, também, nos fastos militares dos seus povos. Entre eles me ocorre citar Júlio Cesar, Marco Aurélio, Blaise de Monluc, d’Aubigné, Chaderlos de Laclos, Vigny, Tolstoi e Gabriel D’Annunzio, como, entre nós, o Visconde de Taunay, para limitar-me aos escritores que figuram entre os meus livros.

3 – A ACADEMIA, O QUE É PARA MIM

Eu bem sei como é difícil conciliar, durante a carreira absorvente e, por natureza, muito árdua, do soldado, o dever profissional, sempre cumprido intransigentemente, com as solicitações mais profundas do espírito e, sobretudo, as da alma, para a plenitude da criação literária. Ela exige não apenas meditação, como, também, o convívio estreito e o diálogo tranquilo com homens de cultura, nas entidades constituídas pelos que se dedicam a servir às Letras Nacionais.

Devo referir-me, como exemplo maior, a esta já tradicional Casa de Machado de Assis, cuja porta me abriu a vossa extrema generosidade, logo na primeira vez em que nela ousei bater, já no outono da vida, quando restituí ao Exército a espada de general, que é um símbolo de Comando, para disputar a da Academia, que é um símbolo de imortalidade.

É honra, para mim, ainda maior pela incontestável expressão da obra literária do meu ilustre competidor, a quem eu não deixaria, por isso mesmo, de felicitar, se lhe tivesse cabido a vossa preferência.

Confesso-vos que, embora tendo escrito muito, até mesmo por dever de ofício, nunca me acudiu à ideia essa, para mim, tão grande ambição, que agora realizo. Sempre a repeli, quando me foi sugerida. Finda, porém, a minha vida de soldado, eu me inclinei a aceitá-la. Era como poderia reencontrar-me comigo mesmo, passando a viver a vida das Letras que deveres maiores me privaram por tanto tempo de cultivar livremente.
 
Terminei por decidir-me a disputar o privilégio da vossa convivência e o reconforto das atividades do espírito, que ela nos propicia, depois dos desencantos, das canseiras e das incompreensões que desgastam, quando não sacrificam, a vida dos que, por obra do destino, participam das graves responsabilidades de governar, no quadro de uma Nação, como o Brasil, já muito sofrida por tantos erros acumulados a perturbarem-lhe a harmonia, a racionalidade e a marcha do desenvolvimento.

Em face dos sérios e urgentes problemas que herdamos do passado e os do nosso próprio crescimento, a começar pelos clamorosos contrastes sociais que se agravam na heterogeneidade do amplo meio físico, é decerto muito mais cômoda e assume a feição de mais popular, à custa de aplausos organizados, a atitude estéril de sugerir soluções miraculosas e de empregar os esforços e a inteligência em descobrir e combater erros nos outros, sem partilhar-lhes as dificuldades nem reconhecer-lhes as vitórias, embora umas e outras não sejam de nenhum de nós, mas de toda a Nação.

É também mais fácil pensar em si mesmo, nos interesses próprios, e clamar sempre por novos direitos, inclusive o direito de não cumprir deveres, que são compromissos para com a Pátria, quando é certo que os misteres do seu progresso e da sua segurança hão de caber, indistintamente, a todos os cidadãos.

Os que ocupam postos no governo, por imposição do destino, como é precisamente – e eu bem o sei – o caso do atual chefe da Nação, têm a consciência de que governar, para servir à Pátria, responsavelmente, constitui tarefa que não se aceita por vontade própria, mas apenas quando se é compelido a recebê-la, o que importa em renunciar a todos os bens da vida, como eu pude ver, por mim mesmo, em dias muito recentes.

O Poder, para quem o entende e exerce na plenitude do compromisso moral que ele representa, é uma espécie de escravidão que se sofre sob a aparência e com as pompas de grande senhor. E não basta, a quem o carrega, livrar-se do seu grande fardo, para recuperar, dentro de si mesmo, a liberdade pessoal de que, provisoriamente, abdicou: é preciso ter feito tudo por cumprir a missão, de modo a desfrutar a paz de consciência e o respeito dos que têm condições para julgá-lo.

Aqui, neste benemérito Cenáculo da Cultura nacional,

[...] eu confio que sentiremos todos o prazer de concordarmos em discordar; essa desinteligência essencial é a condição da nossa utilidade, o que nos preservará da “uniformidade acadêmica”... Mas o desacordo tem o seu limite, sem o que começaríamos logo por uma dissidência. A melhor garantia da liberdade e da independência intelectual é estarem unidos no mesmo espírito de tolerância os que veem as coisas de Arte e de Poesia de pontos de vista opostos.

Na Academia estamos certos de não encontrar a Política. Eu bem sei que a Política ou, tomando-a em sua forma a mais pura, o espírito público, é inseparável de todas as grandes obras.

A Política, isto é, o sentimento do perigo e da glória, da grandeza ou da queda do País, é uma fonte de inspiração de que se ressente em cada povo a Literatura toda de uma época, mas para a política pertencer à Literatura e entrar na Academia, é preciso que ela não seja o seu próprio objeto; que desapareça na criação que produziu, como o mercúrio nos amálgamas de ouro e prata. Só assim não seríamos um parlamento.

Esta é a minha maneira de ver a nossa Casa de Machado de Assis, muito embora não me pertençam as palavras com que a ela me refiro agora. Limitei-me a transcrever, textualmente, alguns trechos do belo discurso que Joaquim Nabuco proferiu, como secretário-geral e orador, na sessão inaugural de 20 de julho de 1897, ao fundar-se a Academia, integrando as grandes expressões das nossas Letras, entre as quais figuravam monarquistas e republicanos, cujas desavenças políticas não tinham penetração nos diálogos das letras e do espírito, que sempre engrandeceram esta Casa.

Vem a propósito o conceito de Stendhal, citado por um dos que lhe têm mais admiravelmente estudado a obra literária, o nosso Josué Montello: “A Política na Literatura é um tiro de pistola num concerto.”

Foi assim pensando que me decidi a pleitear uma Cadeira entre vós.

Minha própria formação espiritual não se coaduna com a intolerância nem com as arestas irremovíveis da intransigência de idéias radicalistas, no convívio de estudos entre homens de cultura, pois convivência significa harmonia e compreensão, visando aos mesmos fins superiores e impessoais, o que subentende o respeito de cada um pelas idéias dos outros.

É o que ocorre na própria Nação, como comunidade social, cuja segurança e cujo progresso não se realizam sem a predominância dos postulados do direito e da liberdade. Tais postulados, entretanto, somente podem predominar dentro da ordem e quando os cidadãos, as classes e os grupos sociais vierem-se a guiar pela compreensão altruística dos interesses da Pátria, que nos cumpre colocar acima dos nossos próprios interesses e pontos de vista.

Assim, também, numa associação de homens de responsabilidade e de cultura, cada qual com a sua cor ideológica, política, religiosa ou literária, empenhados todos em realizar, com nobreza e elevação, uma obra comum, de interesse coletivo, não cabe lugar para a intolerância, nem está sujeita a pessoa a qualquer pressão que conflite com a sua consciência ou atinja a sua natureza espiritual.

A própria luz do sol, ao refratarem-se os seus raios através da chuva, desenhando nos céus a mensagem de alvíssaras do arco-íris, nos sugere a integração de todas as cores, a despeito das suas diferenças eternas e essenciais. Elas nunca deixam de ser as mesmas cores, não se modificam nem se degradam, na harmonia do todo, e cabem dentro do mesmo espelho côncavo e cristalino de cada uma das gotas de água que, de vez em quando, se derramam juntas, em torrentes copiosas, sobre a superfície da terra, para fecundá-la, em benefício dos seres vivos que a povoam.

As cores, como as idéias, convivem, umas com as outras, na formação dos matizes, por obra da inteligência criadora que é própria do homem, sem que, contudo, deixem de existir, na sua essencialidade, por mais que se extremem e se confrontem as predileções, no debate dos pensamentos e das concepções diferentes, que nunca se extinguirão pela violência e pela força, recursos incompatíveis com a realização da felicidade coletiva.

Parece bem sugestivo o fato de que, da superposição de todas as cores, obtida pela rapidez da sucessão das suas imagens, como o demonstrou Newton, resulta o branco, por nós considerado a cor simbólica da paz.

Como que falando para o mundo conturbado em que vivemos, filiava-se Rui Barbosa à concepção de Augusto Comte, neste conceito, que se tem mostrado válido através dos tempos:

Terrível alternativa a da sociedade humana, que não puder alcançar a tranquilidade, senão perdendo as instituições livres. Mas o certo é que estas serão sempre absolutamente incompatíveis com a violência e a anarquia. Pela desorganização e pelo tumulto triunfa invariavelmente o predomínio da força. E, quando a força reinar, dentre as duas expressões possíveis da sua tirania, a mais intolerável é a da desordem. (“Primores” – Revista da Língua Portuguesa – Laudelino Freire).

Alcança a sua mais exata significação, nesse pensamento magistral do grande Rui, o lema “Ordem e Progresso” da Bandeira Nacional, ao justapor os dois termos interdependentes com que os republicanos viam, em 1891, a realização dos destinos do Brasil, tal como o vemos, hoje, nas palavras mais próprias para a época: Segurança e Desenvolvimento.

Nestes últimos meses pude viver na minha biblioteca, o recanto da casa em que estamos sempre bem acompanhados, mesmo sem ter ninguém perto de nós. Em cada estante, enfileirados em prateleiras sucessivas, ao passo que nós mesmos vamos passando, os livros permanecem vivos e de pé, varando os anos e os séculos, quando a mensagem e os ensinamentos que eles contêm são dotados do poder de superar a transitoriedade dos tempos, continuando presentes às gerações que se sucedem.

Tenho relido, também, velhos papéis, já há muito adormecidos no arquivo das lembranças da minha vida.

Nesta volta ao passado, que nos retempera o espírito, renova-se a nossa alma com as evocações que a tornam tanto mais sensível quanto mais envelhecemos. Há dentro dela, nos constantes voos da nossa imaginação, um permanente encontro entre os extremos da vida. Eis o que ocorre, agora, dentro de mim, já quando me vão ficando tão raras as alegrias.

Ao viver este momento de felicidade, que vós entendestes de proporcionar-me, o orgulho e a honra de ver-me recebido no mais alto cenáculo das Letras nacionais revestem-se, para mim, de uma expressão muito grande, no plano do sentimento, por envergar o uniforme que me foi doado pela generosidade e nobreza do Governo do meu Estado.

4 – EVOCAÇÕES

Ainda mais me desvanece o prêmio que me deu a vossa benevolência por saber que dele partilha a minha Paraíba. Tenho-a agora bem viva na lembrança, tal como tivestes a vossa terra natal, nas emoções deste mesmo momento pelo qual todos vós já passastes.

Em horas assim tão grandes e tão gratas, recuamos longe, no tempo, com o espírito e o coração, até à quadra da meninice, cada qual julgando mais bela e mais ditosa a paisagem da infância na sua terra. Porque ao recanto da Pátria, onde nascemos, se aplica também o enlevo dos famosos versos de Gonçalves Dias sobre a terra natal. Eis-me agora como um paraibano que recorda a Paraíba, onde Deus se esmerou na paisagem da Natureza, ao bordar de coqueirais silvestres os contornos da enseada de Tambaú, a praia mais bela do mundo, enchendo-lhe de búzios as areias alvas, como o próprio nome diz, além de enfeitá-la com o Cabo Branco. Este, se adentra pelo mar, ousado e majestoso, como um grande monumento, ali postado pelo arquiteto do universo para balizar o ponto extremo do continente.

Lá, senhores acadêmicos, nunca houve uma Escola de Sagres, empenhada em descobrir o mundo pela navegação, mas estava, também, para a nossa geografia e para o nosso orgulho de meninos, o lugar “onde a terra se acaba e o mar começa”.

Aqueles que conhecem outras maravilhosas praias brasileiras hão de censurar-me o exagero, mas eu lhes responderei, como Fernando Pessoa, que Tambaú é a mais bela de todas por ser a praia da minha terra.

A CADEIRA 20

No meu repouso espiritual dos últimos meses, pude ler, ou reler, com muito mais atenção, os livros dos grandes escritores que abrilhantam a tradição da Cadeira 20, a começar pelos do seu patrono, Joaquim Manuel de Macedo. Diplomado em Medicina, ele defendeu tese sobre a doença da nostalgia; ainda moço, trocou a carreira pelo Magistério e pela Política. Seu nome consagrou-se, não tanto como o poeta da “Nebulosa”, mas na autoria de grandes romances, que fizeram época, sobretudo porque iam ao encontro do sentimento que predominava na sociedade brasileira dos meados do século XIX. A MoreninhaO Moço LouroOs Dois Amores, todos os seus romances e as suas obras teatrais, além da espontaneidade própria do estilo macediano, marcaram um encontro espontâneo entre as criações literárias do grande escritor e as preferências do povo, pois que seus livros refletem o caráter romântico da época.

Aludo a este aspecto da obra de Macedo, para mim característico e relevante, por entender que ele cumpriu, assim, sem copiar o estrangeiro nem requintar o estilo, mas abrindo o caminho do Romance brasileiro, uma grande missão no quadro da sociedade: a de comunicar-se com o espírito e com a alma do povo. Eis o que implica falar aos seus sentimentos e aos seus ideais, na ingenuidade da época, visando a engrandecê-los e aprimorá-los, a elevar-lhes o nível da Cultura e a formação moral, a ampliar, para a Nação, os cuidados com que educamos nossos próprios filhos.

Aliás, estamos devendo a Macedo a justiça de relembrá-lo no sesquicentenário do seu nascimento. A data já está bem perto. Ele nasceu na cidade fluminense de Itaboraí, em 24 de junho de 1820, precisamente no dia das festas de São João. Terra natal de Macedo, como de outros notáveis homens de letras, inclusive Salvador de Mendonça, aquele patrono, e, este, fundador da Cadeira 20, a cidade tomou-se famosa pelos homens de que foi berço. Ela se cobre, hoje, de uma nova auréola, característica dos nossos dias, com o satélite de comunicações que lá se ergue, como veículo moderno de intercâmbio da Cultura do Brasil com a do resto do mundo.

Em 1920, por ocasião do centenário do nascimento de Macedo, a importante efeméride da nossa história literária deu motivo a um grande movimento para a celebração da memória do admirável romancista. Sua obra foi, então, reavivada, através de publicações e conferências, com a participação do mundo cultural brasileiro. Destacaram-se na iniciativa a nossa Academia, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Jornal do Commercio e muitas outras entidades. O meio século depois disso transcorrido sugere a elaboração de um programa que possa marcar, condignamente, o próximo 24 de junho.

Quanto a Salvador de Mendonça, o Fundador da Cadeira 20, ninguém traçou o seu perfil com tanto esmero de estilo e precisão como o próprio Múcio. Ele prometeu, no seu discurso de posse, estudar a vida e a obra do irmão de Lúcio de Mendonça. Por coincidência, Salvador foi o substituto do próprio Joaquim Manuel de Macedo, em 1865, por nomeação do Marquês de Olinda, na cátedra de Corografia e História do Brasil, do Imperial Colégio Pedro II.

A promessa foi cumprida, e magistralmente, em 1952. No grande ensaio com que, então, focalizou a figura do patrono da Cadeira 20, Múcio Leão cobriu a grande lacuna da nossa bibliografia, pondo em destaque o sentimento da terra, da gente e da paisagem do País, em tudo o que escreveu e fez Salvador de Mendonça, na sua intensa e multiforme atividade, até mesmo quando já cego, nos cinco últimos anos de sua vida fecunda e brilhante, como escritor, jornalista, poeta, romancista, tradutor, político, diplomata e memorialista.

Sucedeu-o na Cadeira o poeta da boêmia, do humorismo, da mordacidade e da irreverência, que tais são os traços marcantes da figura literária de Emílio de Meneses. O notável escritor paranaense foi singular, até mesmo, no seu discurso de posse. Ali, certamente pelas “circunstâncias de ordem íntima, e imperativas”, por ele mesmo invocadas, teria que ser, além de curto, personalíssimo, fugindo aos padrões acadêmicos, em certas passagens do texto original. E foi por isso que, não aceitando as sugestões da Academia, no sentido de reformulá-lo, o discurso não chegou a ser pronunciado, vindo o saudoso e brilhante acadêmico a falecer sem ter tomado posse da Cadeira.

A figura humana e de escritor, que marcou época nos meios literários e sociais do Rio, levando-o a conquistar a imortalidade em 15 de agosto de 1914, foi aqui analisada, exuberantemente, por Humberto de Campos, seu sucessor. Nascido de origem pobre, único filho varão entre oito irmãs, sua vida contraditória encheu-se de altos e baixos, tanto no padrão econômico, quanto nas marcas do temperamento. Não se equilibrava nos meios-termos. Era amigo ou adversário, com a mesma intransigência e sem guardar limites, o que explica por que se lhe tornou difícil conviver no ambiente estreito da “cidade-sorriso”.

Os desajustes ao meio, na terra paranaense, justificavam sua vinda para o Rio, a Meca literária, onde os grandes valores jovens, sem perspectivas de realizar-se e triunfar na província, suportavam, de início, as provações de uma espécie de purgatório, antes de alçarem o voo para as culminâncias da glória, quando tinham mérito para tanto. Este foi o caso de Emílio de Meneses, criador e mestre do gênero de Crítica Literária, a que, na verve ferina, era difícil contra-atacar, assim como pela beleza dos seus versos, nem sempre ricos de ideias, porém maravilhosos na musicalidade, no estilo e na riqueza espontânea da alma que os inspirava.

Em sua personalidade ressoava o toque característico de uma espécie de melodia entremeada de acordes dissonantes e, às vezes, estridentes, ao justapor, numa composição feita de contrastes, o espírito agressivo e o coração magnânimo, as farpas da intolerância e as ternuras de poeta enlevado, as chispas de inconformismo e os paroxismos românticos, como reações que lhe vinham de cada momento da vida emocionalmente instável e de cada criatura com que cruzava.

Pelo poder malicioso da verve, atingia os adversários com o riso do grotesco e do ridículo, que arrancava dos que o ouviam ou liam, graças ao improviso chistoso e contudente. Eram, como sabemos, os recursos de que se utilizava para envolvê-los e caricaturá-los, no gracejo ou no trocadilho feliz e oportuno, mas agressivo e mordaz. O trocadilho era a sua arma e, de certa forma, ofuscou a grandeza da sua admirável obra poética.

Sucedeu-o na Cadeira 20, para honrar e engrandecer as suas tradições, o grande maranhense Humberto de Campos. Conheci-o melhor em encontros, que se tornaram habituais, na antiga Livraria Freitas Bastos; ali íamos passar em revista as novidades das prateleiras. A livraria era, como ainda hoje, um ponto de convergência tradicional entre os que vivem a vida dos livros. Essa vida já me havia ligado a Humberto de Campos, no “sebo” Quaresma, da Rua São José, quando ele era o famoso Conselheiro XX, na sua coluna de O Imparcial.

Além de admirá-lo pela cultura e pelo estilo, inconfundivelmente seu, cultivamos um traço de união: eu, militar, e ele, muito voltado para os problemas do Brasil, tínhamos os mesmos pontos de vista sobre o grande papel que se deveria atribuir ao Serviço Militar, ampliado no espaço e nos objetivos, para atender às condições precárias em que viviam as populações do interior.

Esse interesse por um dos mais sérios problemas da integração e do desenvolvimento do Brasil, para cuja solução dei tudo quanto pude, por muitos anos, como soldado, como engenheiro e como ministro, explica a ênfase dada por Humberto de Campos aos temas amazônicos, o que aumentava a minha admiração pelo seu espírito cívico. Era um nome consagrado na Literatura nacional, sobretudo na Crônica, na Poesia e, particularmente, na Crítica.

De tudo quanto criou a alma poética de Humberto de Campos, nos seus versos admiráveis e na evocação, em prosa, de certas passagens de sua vida, a página que mais se comunicou à minha sensibilidade nordestina foi a história do cajueiro, incluída em suas memórias. Ela bastaria para consagrá-lo, pela singeleza expressiva da linguagem descritiva e pelo encantamento que nos transmitem as suas reminiscências de um cajueiro por ele próprio plantado, ainda em castanha, no seu quintal em parnaíba, velando-lhe, com carinho, os primeiros passos da vida, para vê-lo crescer todos os dias e começar a florir, como verdadeiro irmão de infância, em permanente e alegre convivência, até que teve de abandoná-lo, com grandes saudades, ao transferir-se para o Maranhão.

Sempre conservei muito viva a impressão que aí me causou o espírito de Humberto de Campos, com o seu sugestivo poder de comunicação, mas pude ainda melhor entendê-lo, em dias recentes, ao plantar, no jardim da minha moradia, em Brasília, uma castanha de caju que me veio do Nordeste, vendo-a, eu mesmo, transformar-se, de semana em semana, no belo cajueiro adulto que deixei no Planalto, onde os seus primeiros frutos tropicais já foram colhidos. Lá ficou a minha lembrança nordestina, para regalo dos novos moradores.

Haveria muito o que recordar sobre Humberto de Campos, e eu o faria com sincero prazer. Mas é na análise da obra e da admirável figura humana de Múcio Leão que devo e desejo deter-me, pela honra, que me cabe agora, de sucedê-lo na Cadeira 20.

5 – MÚCIO LEÃO

Foi de manhã, no dia 17 de fevereiro de 1898, que nasceu Múcio Carneiro Leão, nome com que o registrou seu pai. A casa da família, na Travessa das Graças n.º 2, no bairro da Capunga (Recife), ficou em festa. Chegara o primeiro filho varão da grande prole. O primeiro e o último: depois das quatro irmãs que o antecederam, vieram mais quatro. Caso semelhante ao de Emílio de Meneses, que reinou na sua família paranaense como único filho homem, também com oito irmãs.
 
Para D. Maria Felicíssima Carneiro Leão, mãe de Múcio, o nascimento do primeiro filho era uma dádiva dos céus e uma alegria tão grande que só por si justificava aquela felicidade que o seu próprio nome trazia no superlativo.

Foi também Múcio uma grande graça de Deus para o Professor Laurindo Leão, que sonhava com possuir um filho, e vislumbrava nele o seu sucessor nos estudos de Filosofia, inclusive na cátedra que honrava com o seu grande saber. Mas esta graça de prender o espírito de Múcio dentro do mundo abstrato da Filosofia, o seu ilustre e venerando pai não a conseguiria, muito embora não fossem perdidas, e viessem mais tarde a frutificar, as sementes que transplantou do seu pensamento para o do herdeiro.

A convivência no lar e a bondade austera de professor e de pai, do velho Laurindo, Múcio sempre relembrará com ternura e gratidão, nos lindos versos em que parece lhe estar sempre presente a visão da sua vida, na Travessa das Graças. Este nome, aliás, é bem sugestivo e característico das ruas de Recife, pelas quais muito transitei: Rua da Saudade, do Sossego, do Encantamento, da Aurora, do Sol, do Alecrim e muitas outras. Nomes assim falam à alma da cidade e aos sentimentos do seu povo, mais do que os dos vultos históricos. Estes, que representam uma homenagem oficial, logo deixam de formar sentido, com o suceder dos tempos e dos acontecimentos, no espírito dos moradores, como eu mesmo pude verificar, interrogando-os, nos meus passeios a pé, inclusive quanto ao nome do meu pai, que era o de uma rua próxima à minha residência. Não encontrei nenhum morador que soubesse dizer de quem se tratava. “Deve ser algum desses politiqueiros homenageados, no seu tempo, com a bajulação dos eleitores”, foi o que me disseram.

Pior, ainda, é o que ocorre com Brasília, onde o endereço é de quadras, superquadras, blocos e pontos cardeais, frias expressões, embora de coordenadas precisas, que sugerem ao turista e ao carteiro os itinerários de um cemitério. Mas, no Recife, as ruas, em geral, são batizadas por sentimentos ou evocações que estão presentes à alma do povo, como a Travessa das Graças, onde nasceu Múcio. A cidade guarda as suas tradições. É o que se vê, até hoje, na indumentária e nos frevos dos blocos carnavalescos, nas trovas dos cantadores, na arte culinária, nas danças e folguedos, repetidos no tempo, porque tudo isso define uma alma nordestina que, no fundo, não se altera nem se desnacionaliza com a modernização da vida e a constante variação das modas.

Eis o quadro da meninice de Múcio. Sua roda de amigos propiciara-lhe, na adolescência, o ambiente de relações em que o estudante delineia os rumos da vida, desenvolvendo as tendências do espírito no quadro cultural da sua época. Mas eu me arriscaria a ir muito longe, para recordar esses tempos. E isso me parece inadequado e fastidioso, quando se fala de uma tribuna como esta, com o formalismo de um discurso acadêmico, perante auditório tão ilustre, cuja paciência tem limites a serem respeitados, até mesmo para corresponder à atenção com que me ouvis e à honra de estardes aqui.

Pereira da Silva já contou muita coisa da vida de Múcio Leão no Recife, ao recebê-lo, em nome da Academia, referindo-se, inclusive, à trindade inseparável que ele compunha com Barbosa Lima Sobrinho e Edmundo Jordão, este morando em Goiana, o que levava os outros dois a fazer maratonas de dezesseis léguas para encontrá-lo na cidade tradicional, tão decantada por Adelmar Tavares, onde Pernambuco se encontra com a Paraíba. Ali, em terras de sua propriedade, foi sepultado o grande Vidal de Negreiros, que nasceu na Paraíba e comandou as forças pernambucanas, na luta contra os holandeses, aceitando e assinando, na colina do Taborda, como chefe dos pernambucanos, a ata da rendição definitiva do invasor batavo.

Goiana muito me fala ao coração como terra de nascimento de meu pai. É uma cidade com fisionomia própria, de engenhos, açudes e povo tradicionalista e alegre. Não faz quatro anos, eu a visitava com frequência, nas idas e vindas entre o Recife e João Pessoa. Pude ver, então, entre as originalidades da sua vida, como se distribui o leite aos moradores: uma vaca leiteira bem malhada a parar, de casa em casa, para atender à clientela da quadra. Assomava à janela a freguesa habitual, passando ao vaqueiro o vasilhame vazio, para recebê-lo, de volta, cheio do leite quente por ele tirado, em ordenha pública, diretamente da leiteria ambulante, que era o próprio animal, à vista dos transeuntes indiferentes àquele quadro de todos os dias.

6 – A VOCAÇÃO LITERÁRIA DE MÚCIO

O jovem que deseja realizar-se na vida, tendo vocação e cultivando o anseio de estudar, não se detém nestes quadros muito felizes, mas puramente contemplativos e inconsequentes. Ele termina por obedecer aos impulsos e solicitações potenciais, que estão dentro de si, para projetar-se na carreira escolhida, levado, também, pelos acontecimentos e pela força das circunstâncias.

Eis o que registrou, quanto a Múcio Leão, para louvar-lhe a sabedoria em conduzir o seu destino, preservando-o das inquietações e das asperezas do mundo exterior, o seu companheiro de lutas e admirável poeta Nio Bruzzi, também diplomado em Direito, no ano de 1919.

A Academia o recebeu pela voz paraibana de Pereira da Silva. Agora, a um outro paraibano, muito mais modesto no seu nome literário, embora não o seja no orgulho de haver nascido na Paraíba, cumpre a grata missão e o dever acadêmico de recordar-lhe a vida. Como estudante de Direito, ela correu paralela à Primeira Grande Guerra, que traria ao mundo inesperadas transformações, acelerando o ritmo das mudanças na vida dos povos, através de revisões nos conceitos e nos sistemas, cada vez mais rápidas e bruscas. A geração acadêmica de Múcio, habituada ao quadro estável de uma adolescência tranquila e feliz, via-se encerrada em ambiente de incerteza e perplexidade.

O pai, como era o caso do Professor Laurindo Leão, continuava a encarar o mundo segundo os padrões da sua formação, habituado ao ritmo vagaroso do progresso e da mentalidade do homem, naquela época. Múcio Leão vê aumentar a distância entre a sua vida e a do progenitor, não em termos de afetividade e de respeito, mas na maneira de atuar, nos pendores intelectuais, na vontade firme de realizar-se por outro caminho, que não lhe era dado vislumbrar, com segurança, no quadro ainda sombrio e confuso da sua geração.

Múcio teria que resistir, assim, ao desejo e à catequese do velho Laurindo, que nele via o desdobramento de sua vida de professor, a estudar filosofia num gabinete modesto e pequeno, dentro de um mundo de ideias que ao herdeiro pareciam fora de sua época e das suas inclinações. Mas o trabalho do Professor Laurindo não se perderia de todo, pois os seus ensinamentos a respeito das indagações filosóficas que o faziam tão jubiloso iriam desabrochar mais tarde, no espírito de Múcio, cheios de conteúdo, inclusive no cepticismo e na altitude de espírito que vemos esplenderem na obra literária do meu antecessor.

E isso correrá, à medida que ele se vai dando conta do quanto são necessários ao escritor, como homem de pensamento, a grandeza, a força e o amparo de certos princípios filosóficos, como condição da felicidade que não estava, para ele, nos aspectos exteriores da vida, mas, principalmente dentro de si mesmo. Daí o anseio da fuga e do recolhimento que transparece em muitos dos seus versos, ora escritos sem qualquer preocupação de forma e de metro, ora de modelo nitidamente parnasiano, mas sempre impregnados do lirismo, da ternura e da bondade, como traços marcantes de uma alma superior. Ela se projeta, com espontaneidade, em toda a sua obra poética, refletindo-se, também, na sua compreensão do papel de crítico literário, em cujo exercício foi sempre tolerante e construtivo no julgamento dos outros.

Com o armistício de 11 de novembro de 1918, as armas que fizeram a Primeira Grande Guerra foram ensarilhadas. Mas, sob o tumulto e a inquietação que continuaram a dominar os espíritos, durante as transformações subsequentes, foi que Múcio Leão terminou o curso de Direito, no Recife. Já nos seus estudos teriam que repercutir as grandes mudanças nas ideias e na estrutura social, abrindo às novas gerações, despreparadas para recebê-las, um ambiente confuso e cheio de incertezas. Os conceitos tradicionais foram abalados sob a pressão dos acontecimentos inesperados. Criara-se um quadro instável e cheio de apreensões que povoavam o espírito dos jovens, sobretudo os que se destinavam à vida profissional no campo do Direito e da Justiça.

Conta Nilo Bruzzi, o melhor biógrafo de Múcio Leão, que ao lhe pedir o Professor Raul Pederneiras, durante o exame, a definição de Direito Internacional, ocorreu-lhe, instintivamente, responder com o conceito de Tobias Barreto, bem própria para a época: “É a boca do canhão.”

Vê-se, assim, como eram difíceis a sintonia e a compreensão entre o espírito do grande professor de Filosofia e o do seu filho, que fizera o curso de humanidades, na vida tranquila e estável do tempo de paz, e o da Faculdade, num mundo incerto em que tudo se encontrava em reformulação.

Mas juventude é sempre juventude, no desabrochar das tendências próprias, sob o influxo das solicitações espontâneas do espírito, que, então, se forma sob a influência das primeiras e maiores amizades, dos hábitos da época e da maneira de viver em cada terra. Múcio Leão, inclinado para a Literatura, madrugou na Poesia. Era Raimundo Correia o autor da sua predileção, nesses primeiros tempos.

Com o diploma de bacharel, despediu-se do Recife e veio viver no Rio, iniciando-se como jornalista, no Correio da Manhã, a convite de Assis Chateaubriand. Mas não esqueceria as lições da Filosofia do Professor Laurindo Leão. Ele mesmo revelou, no seu discurso de posse, que costumava inquirir o velho pai: “Para que filosofias?” “O esforço dos pensadores não deve circunscrever-se às meditações puramente abstratas e desinteressadas; deve, antes, atender às aplicações de natureza prática”. Mas confessa em seguida: “Hoje, eu lhe não posso já dizer o que dizia outrora. Hoje, quero entoar a minha palinódia.”

Entretanto, essa palinódia já ele a entoara com o travo de uma grande saudade e a angústia de já não ter ao seu alcance a filosofia paterna, na bela poesia, sob o título “Visita de Finados”, do seu livro Povoação Adormecida.

Dela, extraímos os seguintes versos:

O que venho trazer-te é a palavra serena da minha saudade,
É a confissão da dor de não te encontrar mais ao meu lado,
Agora que tanto necessitava de ouvir teus julgamentos exatos.
Eras o coração manso, o cérebro firme, o refúgio seguríssimo.
Mas, para os que podiam compreender-te a alma,
Como era confortador repousar no teu juízo,
Esperar da tua palavra a revelação das difíceis verdades,
Saber que não iludiam se confiassem inteiramente em ti.

7 – O RUMO DA ACADEMIA

Conta Múcio que tinha cerca de 13 anos quando lhe surgiram as “primeiras ambições de vir a ser um dia acadêmico”. Despertaram-nas, desde então, as notícias que o Almanaque Garnier, dirigido por João Ribeiro, publicava sobre a Casa de Machado de Assis. Ele as recortava, com as notas, informações e fotografias dos acadêmicos, chegando a organizar uma espécie de Anuário, como o que hoje aqui se publica. Veio depois o seu interesse pelas Páginas Escolhidas da Academia de Letras, que era trabalho de João Ribeiro. Sua leitura fê-lo embevecido pelo que escreviam Raimundo Correia, Afonso Arinos e Bilac. Também o deslumbrava a sensibilidade, que se diluía em amarguras, na obra de Machado de Assis.

Depois, seria o Canaã de Graça Aranha, e, finalmente, Joaquim Nabuco, a quem chama de “o grande homem da minha terra”. Mas o caminho de Múcio para a Academia haveria de ser aberto por ele próprio, através da sua obra grande e multiforme. Ela envolveu diversos gêneros literários, a começar pela Poesia, pois a primeira série das que publicou, sob o título Alegria de Amar, foi iniciada aos 17 anos de idade. Dezoito anos mais tarde, em 1935, Múcio Leão seria o titular da Cadeira 20.

Ele mesmo declara que sempre foi escritor, solicitado pela força da irresistível vocação. Na adolescência, o seu divertimento favorito era escrever versos, a sua preocupação predileta era compor páginas de prosa. Com o hábito de escrever, trazido de Pernambuco, estreou com sucesso no Jornalismo, ao qual voltaria, logo depois de abandonar, desiludido, o cargo de delegado regional em Santa Catarina. Renunciou, definitivamente, carreira de bacharel, para fazer-se o crítico literário do Correio da Manhã.

Aos 27 anos o destino levou-o a trabalhar com Aníbal Freire, seu amigo e seu mestre, em cuja convivência se beneficiaria do grande saber e da orientação paternal do eminente jornalista e renomado ministro, que, embora nascido em Sergipe, é pernambucano por muitos outros grandes títulos.

Dele ouvi, recentemente, como depoimento pessoal prestado em palavras cheias de emoção, que jamais descobrira um defeito sequer na formação moral impecável do meu saudoso antecessor.

O contato com a vida real fê-lo, descrente e céptico, ligar-se cada vez mais à figura impoluta e aos princípios morais do seu amigo e guia, que era Aníbal Freire, e reavivou no seu espírito os sábios ensinamentos do progenitor. Refugia-se, então, no próprio trabalho, abstraindo-se das lutas que lhe pareciam sem grandeza e sem finalidade. Era difícil excedê-lo na inesgotável capacidade de pesquisar, escrever e produzir. Sua vocação literária e a segurança do êxito que a consagraria podem ser vistas nos Ensaios Contemporâneos, livro da sua estréia como escritor, inclusive pela visão segura com que trata “Das Condições da Cultura no Brasil”.

Múcio só viveu para escrever. Era, ao mesmo tempo, como admirável escritor, contista, poeta, romancista, professor de Literatura, tradutor de grandes livros, organizador de antologias e ensaísta, tendo produzido uma bibliografia tão densa, quanto valiosa. Ele soube emprestar nobreza e relevo à função da Crítica, iniciando-se no Correio da Manhã, do qual se transferiu, em 1923, para o Jornal do Brasil, em cujas páginas muito se distinguiria como sucessor de João Ribeiro.

A iniciativa que teve da fundação de A Manhã, com Cassiano Ricardo e Ribeiro Couto, permitiu-lhe criar o suplemento literário “Autores e Livros”, o que representou, para a divulgação e para o registro histórico da Literatura Brasileira, um dos mais fecundos e beneméritos serviços, como se verifica pelos onze volumes de Documentário e de Crítica, em que foi reunida a matéria publicada entre 1941 e 1950. Neles transparece o sentido positivo que Múcio imprimia às suas críticas, como aliás, fazia João Ribeiro, o seu grande inspirador e amigo.

Na apreciação justa, serena e abalizada, ele nunca omitia uma palavra de estímulo aos autores novos. Era isento e construtivo em suas apreciações, coerente com as próprias e grandes virtudes humanas que ornavam o seu espírito. Nisso, ele mesmo contradisse o ponto de vista que sustentou contra a Crítica, no discurso de posse, ao verberar o papel de censor e de juiz definitivo, que se arrogam certos críticos, como argumento que parece atingir, pela generalização, o gênero autônomo de Literatura, indispensável ao seu aprimoramento progressivo, como ocorre em todos os outros campos da Cultura.

Mas estimo salientar, agora, que, feito acadêmico, ele não descansou, antes redobrou os seus esforços, em grande parte dedicados exclusivamente à Academia. E é este um exemplo que eu me disponho a imitar, em tudo quanto depender de mim. Aliás, já comecei a reformular e completar a relação de todos os escritos de Múcio Leão, com base no texto do Anuário e nos muitos outros dados e informações que pude colher.

8 – ASPECTOS CARACTERÍSTICOS DA OBRA DE MÚCIO LEÃO

Nos seus 54 anos de atividades literárias, o que me parece mais admirável na obra de Múcio são a versatilidade e o dinamismo da sua produção, pois ela cobre, a bem dizer, todos os campos da Literatura, sem contar o extraordinário esforço despendido na pesquisa literária, na cátedra da Faculdade de Filosofia, na elaboração de coletâneas valiosas e numa grande variedade de excelentes traduções e numerosos estudos biográficos.

Ele foi, sem dúvida, um grande polígrafo. Dedicou-se exclusivamente a escrever. Sempre o fez com pureza de estilo, valendo-se da sua admirável erudição e extraordinária capacidade de estudo e de pesquisador. Reflete-se na sua obra a nobreza de sentimentos que lhe era característica. Nela também se observam os reflexos de uma vida interior muito intensa, que se alternou, nas suas diferentes fases, entre os sentimentos mais diversos: a fé e a descrença, a alegria de viver e o cepticismo, o culto intransigente das amizades e afeições terrenas e os voos abstratos para o sobrenatural. Teve, em 1948, a decepção dos entraves burocráticos que terminaram por sepultar o projeto de lei de Agamennon Magalhães, desejoso de ver editadas, pelo Instituto Nacional do Livro, as obras completas, organizadas por Múcio Leão com tanto entusiasmo e sacrifício: o Dicionário Bibliográfico Brasileiro, a Lírica Brasileira, as obras inéditas de João Ribeiro e os volumes de Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Adelino Fontoura.

Quanto à Bibliografia de Adelino Fontoura, a Academia ouviu a revelação feita, em seu discurso de posse, pelo nosso insigne Confrade Ivan Lins: “Não fosse ele patrono da Cadeira 1, e ninguém saberia nem mesmo da sua existência. Em vão se procurará o seu nome em várias das mais autorizadas histórias da nossa Literatura.” E, adiante:
Mais feliz do que ele (o seu antecessor), posso cumprir, em relação ao nosso patrono, a praxe desta Casa. E faço-o graças ao crítico que, nas palavras de Nilo Bruzzi, “desde a mocidade se recolheu ao mundo do espírito e passou a criar o seu próprio universo, através dos bons livros e do trabalho paciente das pesquisas intelectuais”. Aludo – vós o sabeis – a Múcio Leão, em cujos Autores e Livros e em Dispersos (publicação da Academia por ele organizada e anotada) encontrei, não só os informes acerca de Adelino Fontoura, mas, o que é tão ou mais importante – quase toda a sua produção literária.

Pude verificar, também, pelo que consta e pelo que ainda não consta do Anuário, o quanto Múcio serviu à Academia com seu infatigável trabalho intelectual, salientando-se os numerosos volumes das Obras Completas de João Ribeiro. Eis a prova de que não o desanimou a falta de amparo oficial para editá-los; a Academia tomou a si o encargo de apoiá-lo em tão benemérito trabalho.

A partir de quando me inscrevi como candidato, entreguei-me à pesquisa do que produziu Múcio Leão e à leitura da sua obra. Comecei a fazê-lo ainda longe de pensar que me concederíeis a honra de sucedê-lo. É que, não querendo ser surpreendido, nessa hipótese, ainda muita incerta, porque se tratava de uma livre deliberação da Academia, muito me dediquei ao estudo da sua vida. De qualquer forma, isto seria um grande prazer para o meu espírito.

O que, de começo, me parecia um dever, transformar-se-ia, com o correr da leitura, em admiração e entusiasmo pela obra de Múcio Leão. Terminei por conhecê-lo bem, pelo caminho mais indicado, pois, segundo o conceito do Padre Antonio Vieira, “o melhor retrato de cada um é aquilo que ele escreve. O corpo retrata-se com o pincel; a alma, com a pena”. É também de Vieira este outro conceito muito aplicável à imortalidade com que a Academia consagrou a obra de Múcio Leão: “As formosuras mortais no primeiro dia agradam no segundo enfastiam. São livros que, uma vez lidos, não têm mais que ler.”

Os livros de valor permanente, que se releem pela utilidade e pelo prazer de relê-los, como fontes de saber acumulado, em que vamos, em todos os tempos, aprender e levantar dúvidas, atravessam os anos, valendo cada vez mais. Na obra de Múcio Leão, pude admirar-lhe o entusiasmo cívico pelos assuntos referentes ao Brasil, como Nação.

Entre os seus trabalhos, figura, aliás, uma coletânea de crônicas escritas, no Jornal do Brasil, em 1955, sob o título Um pioneiro no Amazonas, a respeito de investigações de um engenheiro italiano, que, deslumbrado ante os mistérios da região, se decidiu a investigá-la, internando-se nas florestas e nos igarapés.

O mesmo grande interesse por aqueles amplos espaços, então indevassados, revela o sentimento da Pátria na obra de outros notáveis expoentes da nossa Cultura, como Tavares Bastos, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Alberto Rangel, Humberto de Campos, Paulo Carneiro e o próprio Múcio Leão. A glória cabe agora a Mário Palmério, que empreendeu recente e longa incursão pelo mundo amazônico, onde o Brasil dos nossos tempos resolveu aceitar o desafio da Natureza. Por sabermos do arrojo das suas peregrinações árduas e entusiásticas, do farto e inédito material por ele mesmo colhido e do seu alto padrão de escritor, já estamos ansiosos pelo grande livro, muito rico de novas e bem fundadas revelações, com que brindará, dentro em breve, a Cultura brasileira e a Academia, sob cujos auspícios ele realizou a sua histórica missão.

9 – O CREPÚSCULO DE MÚCIO LEÃO

Ao sentir-se nos últimos degraus do declínio inexorável em que vê faltar-lhe as condições para continuar a produzir, em plena identificação com a sua própria obra, o escritor começa a amargurar-se pela consciência das suas limitações, sobretudo quando é, integralmente, escritor, vivendo, em certos casos, unicamente, à custa do que escreve.

Surge-lhe, muitas vezes, a sombria perspectiva de um dos dois quadros igualmente angustiantes, no cenário que o envolve e deprime: o da plena lucidez e o da ânsia de produzir, sem que lhe permitam fazê-lo as condições físicas, em decadência, ou o de conservar, até o fim, a faculdade de escrever, vendo faltarem-lhe as ideias e o poder criador. Então, já não lhe brotam da pena, por se terem apagado nas fontes, as vibrações da alma e as centelhas do pensamento.

O fim trágico ou inesperado, como o de Stephan Zweig, a quem a Academia acolheu e saudou, em primoroso discurso de Múcio Leão, poupa ao escritor a angústia de prolongar a vida sem poder vivê-la.

Múcio Leão visionava escrever, e não fazer outra coisa, “através de toda a existência”. Parece ter pressentido, ao afirmá-lo, que o destino lhe daria o privilégio de coroar a sua carreira, conservando-lhe a plenitude do espírito e da faculdade de produzir, até os seus derradeiros dias. Foi o que salientou, em primorosa síntese sobre a sua figura literária, o nobre acadêmico Ivan Lins, ao evocar-lhe o perfil humano, como orador na Sessão de Saudade realizada em 14 de agosto do ano passado.

Duas semanas antes, na quinta-feira de 31 de julho, havia comparecido Múcio Leão à Academia, longe de supor que não vinha apenas para participar da reunião costumeira, pois seria também aquele o seu último encontro com os acadêmicos, aos quais como que vinha trazer a sua despedida. Aqui estava Múcio, na plena forma do escritor, embora já descrente da saúde. Ele entregou ao seu grande amigo e nosso Confrade Ivan Lins o discurso com que iria recebê-lo e saudá-lo, em nome do nosso Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Como os fatos vieram mostrar, era a sua última produção de escritor: um discurso que não chegou a proferir no dia previsto, porque não iria até lá a sua vida já então marcada pelo desencanto, pela desesperança e pela fatalidade.

Quis o destino que, em vez de ouvir a saudação de Múcio, coubesse ao próprio Ivan Lins exprimir a saudade e o pesar da Academia pelo seu falecimento, inserindo, na primorosa oração com que o fez, alguns trechos muito expressivos daquela com que o meu saudoso e ilustre antecessor, ao ensejo de homenageá-lo em nome do Instituto Histórico, deixaria transparecer a sua alma sofrida pelas decepções que lhe marcaram a vida, para ele, no “final amargo e melancólico” de quem sente que vai durar muito pouco.

O discurso escrito por Múcio Leão foi lido pelo Acadêmico Barbosa Lima Sobrinho, na sessão solene de 17 de setembro de 1969 do nosso Instituto Histórico, a austera e secular Casa Grande dos que estudam o passado e a terra do Brasil. Muito presa à nossa Casa de Machado de Assis, esta pode ser tida como da sua descendência espiritual, embora não tenha chegado a nascer sob os auspícios e como desdobramento do Instituto, o que antes foi tentado. Ainda hoje, porém, vários dos que têm assento nas 40 Cadeiras daqui também ocupam as de lá, para servir ao Brasil, nos campos, muito interligados, das Letras, da Geografia e da História, nacionais.

Mas não foi apenas por isso que ao Acadêmico Barbosa Lima Sobrinho coube substituir Múcio Leão como orador do Instituto Histórico na recepção de Ivan Lins. É que, tanto lá, como aqui, a incumbência de receber tem mais sentido quando é deferida, não apenas ao confrade, mas também ao amigo, como eu mesmo sinto agora, sabendo que vou ser saudado por Ivan Lins, em nome da Academia. Além de sentir-me honrado com a sua amizade, conheço os méritos excepcionais da sua grande obra, fruto de uma cultura densa, objetiva, muito ampla e constantemente renovada.

A missão de recebê-lo no Instituto Histórico era também de amizade, pelo que seria Múcio Leão o orador indicado. Em sua falta, por motivo tão triste, ninguém poderia ler melhor o discurso que ele havia escrito mas não chegou a proferir, do que Barbosa Lima Sobrinho, amigo, tanto de Múcio, desde o Ginásio Cândido Duarte e a Faculdade de Direito, no Recife, como de Ivan Lins, ambos unidos, por isso mesmo, na mesma grande saudade e na mesma grande admiração que lhes inspiravam as virtudes humanas e o espírito literário do meu admirável antecessor na Cadeira 20.

Através da obra multiforme e sempre muito autêntica de Múcio Leão, cuja análise não cabe nos limites de um discurso de posse, mas merecerá de mim um estudo mais demorado, como já mereceu de Pereira da Silva, observa-se que nela se refletem as mutações gradativas do espírito que a criou e desenvolveu. Vemo-lo desprender-se, cada vez mais, do quadro das realidades deste mundo, para ingressar, descrente, místico e tocado pelas decepções da vida, no campo transcendente e abstrato da Filosofia.

Esta observação me despertou a curiosidade para o fato de que, na fase final, a produção literária de Múcio Leão, sempre marcada pelo ritmo crescente que lhe imprimia o seu dinamismo, como que se vai esvaziando, para extinguir-se, bruscamente, a julgar pelo levantamento de tudo o que ele publicou.

Explicaram-me, a propósito, os seus íntimos, que ele nunca parou de escrever, mas, em determinado momento, passou a rasgar papéis como por um impulso que lhe comandava irresistivelmente a vontade recôndita e obstinada. Eram coisas escritas que ele dizia não lhe serem mais necessárias.

Dava a impressão de alguém que se dispõe a renunciar ao que vinha escrevendo e a reduzir a cinzas os seus arquivos, com a ideia fixa de preparar-se para uma longa viagem, desprendendo-se do quadro habitual de vida, que sente terá de abandonar, em definitivo.

Ao longo da leitura do livro Poesias, em que ele reuniu os versos escritos entre 1915 e 1949, a alma de Múcio Leão se nos revela em constante mutação, no sentido dessa tendência de isolar-se dentro do seu próprio mundo interior para penetrar e desvendar os segredos e os mistérios em que mergulhavam o pensamento e a alma, à procura das supremas verdades ainda irreveladas. Eis o que transparece, até mesmo, dos temas versados e dos próprios títulos das suas poesias.

Na juventude, eram, entre outros, “Alegria de Amar”, “Amplitude”, “Deslumbramento”, “Povoação Adormecida”, “Viagem à Região de uma Lenda”. Em seguida, é na visão retrospectiva da vida de adolescente que o seu espírito vai buscar inspiração: “Rio da Infância”, “Alegrias de Outrora”. Imagina retratar-se a fuga do presente em direção ao passado já distante. Vem-lhe, então, cada vez mais viva, a imagem do pai, austera, franca e bondosa: “Visita de Finados”. Em “Os Países Inexistentes”, exclama: “Vamos partir para esses mundos misteriosos”.

Na Poesia “Tua Dor”, é o sofrimento que o inspira:

Dominando esse mundo em que vives,
Este mundo que assim se modifica sem cessar,
Está a tua Dor, a tua sagrada, divina Dor:
– a tua Dor que incessantemente caminha ao teu lado.

Mais tarde, compõe o “Sentimento misterioso” e “Advertência aos homens do futuro”, parcela dos versos de quem, pela abstração, já se imagina fora deste mundo:

Meus irmãos de outros dias futuros,
Quando ouvirdes, de noite,
Quebrando a serenidade da treva silenciosa,
Um rumor de passos que se aproximam,
Não vos arreceies:
– Serei eu, que venho trazer-vos as minhas derradeiras mensagens.
Então, terei partido para decifrar todos os enigmas
E assenhorear-me de todas as revelações.
Meu ser, hoje esmagado pela incompreensão e pela ignorância,
Resplandecerá, tocado do divino conhecimento da verdade,
Da verdade sem tempo e isenta de categorias.

Depois, é a fase da pura “Meditação”, quando escreve “Perpetuação” e “Reencarnação”, decassílabo que termina com estes dois místicos tercetos:

Que formas outras, nessas outras vidas,
Florindo sob estranhos firmamentos,
Irá o meu espírito sofrer?

Cansado das angústias doloridas,
Da existência de agora, que tormentos
Irei de novo em outros mundos ter?

Finalmente, a sua angústia de viver e a antevisão de uma outra vida, revelam-se no soneto “Redenção”, que assim termina:

Sei que a minha alma há de ficar no espaço,
Nos encontros do amor em que vibrei,
Nos restos longos de um divino abraço,

Na glória enganadora a que aspirei,
Na amargura dos versos que hoje faço,
Nos sonhos vãos em que me dispersei.

Haveria muito, senhores acadêmicos, o que recolher das diferentes facetas da ampla e fecunda obra literária de Múcio Leão e das suas virtudes de caráter, bondade e ternura. Elas ainda o trazem bem presente nas reminiscências dos seus amigos, de modo a compor e exaltar o perfil que dele conserva a Academia. Achei, porém, de fazê-lo apenas através das suas próprias poesias, pois é nos versos que se refletem, mais nitidamente, a alma de um poeta, a sua vida interior, os seus anseios mais recônditos e as suas próprias atitudes, variáveis sob certos impactos violentos que lhe desferiu o destino.

Parece que Múcio passou deste mundo sem aceitar as superfluidades, as mudanças e as contradições da vida. Elas não condiziam com as revelações do seu interior e o levavam cada vez mais a reencontrar-se com o pai, o seu constante professor de Filosofia.

A nobreza de atitudes, a bondade intrínseca e o desprezo pelas contingências rasteiras e sem grandeza da sociedade que o homem criou, senhores acadêmicos, são virtudes que se identificam apenas nos espíritos superiores, pela compreensão que eles têm da efemeridade própria da nossa existência, marcada pela distância, muito mais curta do que costumamos imaginar, entre o ontem, quando nascemos para a vida, e o amanhã, quando dela teremos de nos despedir.

Múcio Leão parece tê-la entendido assim, tanto soube ser bom, tolerante e desprendido. Embora não lhe parecessem, a princípio, aceitáveis as teorias do pai, ele viveu como quem vai sentindo cada vez mais a verdade do profundo conceito dos versos de Cassiano Ricardo: “Ser é apenas uma face / do Não ser, e não de ser / Desde o instante em que se nasce, / Já se começa a morrer”.

São versos que traduzem, na sua síntese e na sua beleza, o pensamento de Múcio Leão:

Cada instante que passo é um minuto de vida
Que, sem sentir, estás, como um louco, a perder.
É mais um passo que tu dás, de alma atrevida,
Para o final anoitecer...

Senhores acadêmicos,

No contraste entre a humildade que está dentro de mim e este cenário de deslumbramento, de glória e de esplendor, com que me envolveis agora, no ato de receber-me, eu ouço ressoarem aos meus ouvidos, como sábia e oportuna advertência, os dois versos da “Riqueza interior” que Múcio escreveu, ainda muito jovem:

Loucos! Quereis possuir glórias, brasões, metais!

Tendo uma alma feliz, não tereis muito mais?

2/6/1970