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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Nélida Piñon

Acadêmico Antônio Torres

Vossa jornada é itinerante, como a de todos. Perambula pelas trevas em busca dos pontos de luz que esbocem o caminho por onde seguir. No seu caso, viestes do sertão iluminado por um sol inclemente que priva a terra da água. Uma paisagem de vegetação rasteira que contraria as pinceladas poéticas de sua obra. Um cenário com o qual aprendestes a atrelar a realidade á sobrevivência.

Nesta data, que congrega a comunidade brasileira, acabais de ser empossado membro desta alta instituição brasileira. Um instante destacável para ambas as histórias, a sua e a minha, ao me teres designado para recebê-lo em nome dos demais confrades. Uma eleição que me propicia oferecer ao grande escritor, desta tribuna, palavras benfazejas que ensejam um acerto de contas das respectivas trajetórias, que coincidem no que diz respeito à versatilidade do mundo, à aprendizagem da arte e da vida.

Cabe-me, nesta cerimônia, arrolar os feitos da escritura, a composição do vosso cotidiano, dos quais se originaram ramificações com que se ergue uma obra literária de tal envergadura.

Alguns laços nos irmanam desde que nos conhecemos, em torno de 1973. Sonia, os filhos, a paixão pelo ofício, as viagens pelo Brasil e além fronteiras. Similitudes que, respaldadas pela vivência secreta de cada qual, fortaleceram o verbo, o ideário utópico, e os laços amorosos que nos unem ao Brasil. Sem nos abstrairmos, no entanto, dos valores pessoais que se sobrepõem à sociedade a qual servimos.

Vê-lo na cadeira acadêmica, impulsiona-me a confessar que testemunhei vossa ascensão e tenho agora a meu dispor a palavra que o vai honrar. Mas sei, de antemão, que os nossos pares,ao elegê-lo, tornaram-se igualmente partícipes de uma biografia que especula sobre o arcabouço de uma obra literária iniciada há décadas no Junco, e cuja lembrança o acompanha neste momento. Quando o Junco e o acadêmico, visceralmente enlaçados, vivem hoje a festa magna da Academia Brasileira de Letras.

O ingresso à esta instituição traduz uma opção de vida.Consolida um vínculo com a identidade e o pensamento brasileiros. Aqui se realça a figura de Machado de Assis, que ocupou a cadeira número 23, a qual recém assumistes.

Este criador, que imortalizou o Brasil, deu eloquência narrativa à Nação. A seu povo que, imerso na tragédia educacional de quase nada saber, desconhece a existência deste criador, ignora que a dignidade cívica de cada um de nós repousa nele, símbolo e intérprete da pátria.

Esta cadeira teve José de Alencar como patrono. O nacionalista que, à época, nos alentou com a certeza de estarmos na iminência de construir sólida narrativa. E teve ainda outros ilustres ocupantes. Entre eles a amiga Zélia Gattai, que acentuou com lirismo e perspicácia o significado da presença italiana na construção da grandeza de São Paulo. A Jorge Amado, cuja poderosa imaginação reforçou a decisão de vinde a ser escritor, e que, ao engendrar a nação baiana, povoou-a com protótipos da humanidade brasileira. E o fez com tal persuasão narrativa que os personagens, caso se fragmentassem de repente e tombassem ao chão como um cristal, guardariam nos estilhaços a efígie da nossa carnalidade. E Luís Paulo Horta, a quem sucedeis, exegeta das idiossincrasias civilizatórias, mestre do pensamento teológico e dos estilos musicais, ambas disciplinas cingidas ao sagrado que resgata o humano da escuridão a que se vê quantas vezes condenado.

A nossa amizade impulsiona-me a adentrar por aspectos existenciais, como se fora uma arqueóloga confiante em escavar o portal soterrado da infância, para surpreender o menino Tonho, de calças curtas, a correr pelo descampado, sem saber que já dera início a coleta das matérias com as quais suprir a memória do escritor.

Não conheci estes tempos, mas guardo as ocasiões em que o vi absorto, com os olhos fixos em um sinal invisível aos demais, como se estivesse a arregimentar as novidades do mundo. Seduzido, talvez, pelo magnetismo de uma frase, ou de alguma lembrança que alastrou pelo rosto a sombra melancólica que ainda agora perdura nos romances.

Suas confidências destacaram sempre o peso da infância no percurso vital. As ocorrências que formaram no conjunto um labirinto onde era fácil se perder e ao qual convinha abordar com cautela, dada a riqueza existente em cada curva.

 

Sras e Sres,

Aquela infância foi um tempo de fundações. Quando, arrastado pelo caudal de emoções canalizadas mais tarde na criação, Antônio Torres criou claves secretas, sucumbiu ao peso da atração poética.

É difícil, porém, submergir na intrincada malha do coração do menino Tonho. Escrutinar os semblantes dos habitantes do Junco, os cenários das casas. Forçar o ingresso nos seus personagens que, conquanto de representação simbólica, podem ser identificados com familiares e vizinhos, afim de formarem um mosaico que se aprecia visto de longe.

Contudo, há que regredir no tempo para interpretar sua gênese. Afinal, nascer onde seja não é um equívoco, é uma bênção. Assim, ao ver a luz no Junco, o autor ganhou uma linguagem que esteve, desde o início, à disposição de uma volúpia narrativa graças a qual publicou seus livros. E ainda a certeza de haver pertencido a uma família que conspirava contra o realismo das urbes esquizofrênicas, destituídas de rostos e nomes, para lhe ofertar poderosos indícios narrativos.

Cedo, elegeu um ofício destinado a combater o silêncio que coage os humanos em troca das histórias que os tambores da floresta, os xamãs, os funâmbulos, os avós das casas narraram há milênios. Quis ainda, como escritor, sustentar, através da tênue chama do verbo, os enredos cuja premissa era desestabilizar a ordem e a hierarquia das paixões humanas.

Naquela terra inculta, bravia, mas amorosa do Junco, a imaginação esplendia, as tramas sobravam. O povo, que mal assinava o nome, compensava as agruras da escrita, tecendo seus contos. Entre eles vicejavam lendas e narrativas, algumas provindas de um medievo atrapalhado, vergadas pelas mil versões que, acrescidas ao longo do transcurso narrativo, deturparam o sopro da primeira inspiração. Naquela terra de Antônio Torres jazia a história humana.

A caminho da lavoura, com a enxada no ombro, os lavradores, na expectativa de que os deslocamentos das nuvens significasse chuva, decifravam o céu, semelhante a uma esfinge, com ardor apaixonado. E enquanto aguardavam o aguaceiro, atavam as intrigas umas às outras, até formarem um feixe de palavras que entretinha os vizinhos.

Estes rapsodos, da roça brasileira, também foram seus mestres. Preencheram a sensibilidade incipiente do escritor, insinuavam-lhe ser mister impedir que simples falha verbal esvanecesse qualquer drama em pauta.Havia que prorrogar a história prevista inicialmente para ter sujeito, verbo e predicado. Uma lição que terá propiciado ao jovem escritor o entendimento de haver no discurso humano, falado ou escrito, uma teia subjacente ao que se dizia e ao que se insinuava. Um saber que se aprimorou após a mãe, dona Durvalice, introduzi-lo ao abecê, o “libreto do analfabeto”, como era então popularmente chamado.

Aliás, nunca lhe faltou a vigilância amorosa da mãe. Conquanto não fora ela designada ficcionalmente, traçou o destino de Tonho. Ao costurar para uma família de 13 filhos, e ao usar elementos simbólicos como agulha, linha e dedal, selou com o menino um acordo mediante o qual os sonhos estariam ao seu alcance.

Não exagero ao supor que a mãe foi a primeira heroína da história que ora relato. E isto porque não faz falta dizer que a arte literária, ao lidar com o precário e o ambíguo, atreve-se a crer que a figura de dona Durvalice abasteceu desde o nascedouro as concepções narrativas do acadêmico.

Cedo, ela percebeu que a vida naquele mundo rural e ágrafo exigia adesão às letras. Convinha abandonar os rabiscos no chão à guisa do poeta José de Anchieta, as marcas feitas a canivete nas cascas das árvores, os gravetos amontoados no chão que anunciavam, “ eu te amo “, como prévio aviso á amada, caso o filho quisesse enveredar um dia pelas frestas do Brasil.

Aquele amor materno urdia manhas, contaminava Tonho com a tentação terrena, lhe esboçava o futuro. E, sob o risco de perdê-lo, mostrava-lhe a eficácia da leitura, uma ferramenta mais relevante que a enxada. As letras coloridas que pulavam da página como uma rã saída do pântano em busca da claridade, mas que o levariam para longe. A ela pouco importando as consequências do seu ato libertário, se o seu dever era ensinar Tonho a desprender-se do lar, para não mais regressar, após lançar a âncora em qualquer terra que o fizesse feliz. Desconhecendo ela, no entanto, o penoso que era para um escritor encontrar um lugar no mundo.

Na escola rural, a professora Teresa ajudou-o a ler, a libertar o coração. De tal experiência advindo o reconhecimento de que ao descobrir os livros, descobriu a vida.

Aliás, as mulheres trouxeram-lhe sorte, então, e hoje, com Sonia, generosa companheira. Elas lhe franquearam a terra. Um elo que não se rompeu. Sob a instância da terceira, dona Serafina, que lhe deu a mão, subiu no coreto da praça para declamar em público poema de Castro Alves, a quem ambicionou ser ao crescer. A aventura despertou-lhe intensa emoção e nunca mais foi o mesmo.

Menino ainda, como coroinha, ajudava o sacerdote a oficiar a missa. Ouvia a simetria e a racionalidade do latim. E, na sequência, foi também escriba. Redigia cartas para os conterrâneos incapazes de escrever, mas necessitados de amor ou de informação dos seres distantes. Uma tarefa próxima a que pratica há anos e que consolidou o amor que nutre pela escritura que se ocupa das carências humanas.

Após o Junco, Torres tornou-se navegante: Alagoinhas, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro. Longe da geografia originária, já havendo começado a escrever de forma sistemática, coube-lhe atravessar o Atlântico em sentido contrário ao dos imigrantes. Portugal deu-lhe berço para renascer. Sobretudo para pôr à prova os limites da língua portuguesa e dela extrair seus efeitos.

Após três anos de convívio com a riqueza lusa, fez amigos, assimilou a maneira daquele povo de traduzir os sentimentos formadores de uma cultura universal. Preservou os traços fundacionais do cancioneiro luso, a devoção lírica por uma antiguidade ultramarina advinda da vizinhança do mar e dos rios Tejo e Douro. Embrenhou-se pela natureza épica da nação que Camões glorificou no largo poema. E, subjugado pelo idioma, auscultou o seu âmago na tentativa de averiguar como ressoava ela no Brasil, após séculos de afastamento da matriz.

De regresso ao Rio de Janeiro, os mistérios o rondavam. Foi um período de enfrentamento estético e cívico. E ao publicar o primeiro romance, “Um cão uivando para a lua”, em 1972, tomou consciência que chegara o momento de sondar o acervo existencial. De averiguar o que levava no farnel. Afinal, ele viera de longe, tangido pela carência e pela brisa dos devaneios. Sob o impulso da invenção, que é júbilo e mortalha, começara a devotar-se à desmedida humana.

A escolha pela literatura significou para Antônio Torres compromisso com a ilusão, cujos fios invisíveis deviam sustentar a crença no universo narrativo. E com a qual estabeleceria paradigmas prontos a explorarem a astúcia narrativa, a ambiguidade dos sentimentos, a intuição aplicada à retaguarda do real. Substâncias todas geradoras de conflitos, mas propícias aos avanços romanescos.

Como escritor enredado pela história brasileira, viveu em meio a um tumulto civilizatório que lhe afetava a escritura. O torvelinho de tantas comoções suscitava uma estética compatível com o atordoamento dos personagens que criava. Para superar os obstáculos antepostos entre criador e arte, não devia perder de vista o centro da invenção, que era o Junco.

Para lhe rastrear a criação, consultei o mapa e não vi o Junco, o vilarejo que soa na memória do escritor. E que, embora batizado mais tarde com outro nome, não afetou o seu repertório literário. Graças ao qual pôde, ao tornar o Junco uma invenção literária, resgatá-lo do esquecimento. Uma pólis imaginária que lhe servia de pano de fundo para abrigar temas e personagens de seus diversos livros. Aqueles territórios que se associam ao milagre da escrita como Yoknapatawa, de William Faulkner, Santa Maria, de Juan Carlos Onetti, Macondo, de Gabriel Garcia Marquez, Passárgada, de Manuel Bandeira.

E assim atestar que a literatura abrigava sentimentos indevidos, mas literariamente defensáveis. E que atraía incautos e apaixonados. Aos ficcionistas que, ávidos do engenho humano e dos descalabros da invenção, filiavam-se às façanhas inaugurais propostas desde sempre pela imaginação humana.

O acadêmico fez ecoar pelo Brasil a voz do Junco. Aquele sermão moral e emocional que, aninhado no subsolo coletivo, trouxe-nos a explosão narrativa dos despossuídos, privados da esperança, e que era mister exumar.

Reli sua extensa obra e ela sangra. Oriunda do caos da terra, sua escrita recolhe sobras e preciosidades sem expurgar ou discriminar a produção da nossa espécie. Uma obra que dá evidência ao verso e ao reverso dos personagens, ao sinistro e ao sublime, ao arcaico e ao contemporâneo, à cultura erudita e ao cancioneiro popular, ao sertão e ao universal. Aos signos emblemáticos que permeiam os pedaços da alma e do lar.

Sua literatura tem dimensão moral. Uma força poética que trata o sórdido e o triste como partes de uma engrenagem criativa indisposta a falsificar a realidade ou a transigir com subterfúgios o que a história quer silenciar. Tal argamassa narrativa apura com poesia repentina e realismo impiedoso os dilemas, as contradições, o que é assimétrico e nos assola. As frases, deliberadamente curtas, velozes, atuam como jorro de água. Uma estratégia que o autor adotou afim de compatibilizar o enigmático da arte com a fúria que irrompe de tantas páginas. Em especial ao apontar as injustiças sociais, presentes em seu legado narrativo.

No romance “Um taxi para Viena D’ Austria”, Torres também questiona a vertiginosa agonia urbana. O círculo de fogo que carboniza valores, família, amizades, memória, vestígios culturais e propicia o sequestro da identidade individual e social. Para tanto, insta os personagens a reproduzirem condutas dissociadas da sua índole familiar. E a se insurgirem, já sob os efeitos de um estado psíquico desregulado, contra um cotidiano ardiloso e cruel.

O paroxismo presente no romance assenta as bases para o surgimento das aventuras existenciais fadadas ao fracasso. Vemos Watson, um publicitário desempregado que, sob os efeitos do álcool, mata, sem motivo aparente, o amigo que não via há 20 anos. Um ato que nos remete ao “O Estrangeiro”, de Albert Camus, em que Meursault, em gesto tresloucado, comete igual desatino contra um árabe praticamente desconhecido. Em seguida ao crime, Watson homizia-se no taxi, um cubículo no qual delira. Quando sua estranha lógica, amparada por célere fluxo narrativo e brilhantes diálogos, supre-nos com uma vida miserável que se confunde com a realidade do Brasil.

Também o romance “ A Balada da infância perdida “ diagnostica o País. Segue a linha urbana cuja verdade narrativa incomoda. E, em contraste com seus personagens rurais, os filhos da selva de cimento debatem-se entre o lirismo, o escatológico e o pecado mortal com que fomentam a imaginação. Combalidos, porém, pela estreiteza da existência, estes seres tangenciam a realidade simulando uma crença que lhes falta. Como consequência, agridem a própria sensibilidade cancelando qualquer traço de pudor moral. Em falsa ascese, dizem o que não se admite para si mesmo nem em voz baixa.

“Meu Querido Canibal” confirma o poder inventivo do escritor. Heroico e aventureiro, o romance retrocede ao século 17,o País ainda sob o domínio luso, e tem como protagonista o líder Cunhambebe. Uma odisseia passada no albor de um Brasil ainda em formação, que retrata o despertar de uma consciência judicativa da parte dos primeiros donos da terra. E que nos subsidia com os alicerces de uma surpreendente cultura que dá margem às tribos indígenas, após os primeiros embates contra os portugueses, a criarem um movimento de salvaguarda nacional, conhecido como Confederação dos Tamoios. Uma épica tão admirável que terá também alimentado o mito do bom selvagem que intelectuais como Rousseau, Montaigne, e Montesquieu, sustentaram.

“Carta ao Bispo” é um romance de impactante beleza. Escrito sob forma de carta, e com exíguas linhas, avizinha-nos à tragédia que se deflagra tão logo Gil, figura central, ingere formicida da marca Tatu. O recurso extremado apressa a morte. Antes, porém, exige do narrador extremado equilíbrio na aplicação dos recursos emocionais que o próprio Gil reparte da sala da casa até a cozinha, enquanto deixa na parede do corredor as arranhaduras que atestam sua dor e o estado de sua psique desbordada. Os sentimentos tumultuados, que são expostos, seguem uma sequência planejada. Não colidem entre si e nem empalidecem as intenções do livro e o desespero de Gil. O drama, trazido a nós, traduz-se através do penoso solilóquio do iminente suicida.

A carta, que Gil deixa ao bispo, não será lida pelo leitor. O prelado torna-se o único mandatário deste legado.

 

Sras e Sres

Raramente a história pública, representada pelo poder constituído, concede direitos plenos aos cidadãos, simples sócios minoritários. Sobretudo quando a ditadura militar, que se estabeleceu no Brasil a partir de 1964, semeou pela terra tempos obscuros e cruéis.

É difícil rastrear os efeitos desta tragédia que se abateu sobre a vida nacional. Uma circunstância que também golpeou os escritores, vítimas dos efeitos produzidos por um sistema que, em defesa de estruturas monolíticas, cerceava a liberdade, cassava direitos, impunha vigilante censura. Era como viver em um exílio que nos privava da rebeldia intelectual inerente ao ato mesmo de refletir, que cancelava o pensamento portador em seu bojo de variações e matizes, enquanto nos punha à margem dos apelos contemporâneos.

Sob o controle de um regime que abortava projetos, imergíamos em mortífera clandestinidade. Contudo, à serviço de um ideal libertário, reagíamos ao formar certa falange com nomes como: Torres, Loyola, Louzeiro, Ednalva, João Antonio, Rubem, Lygia, Cícero, Novaes, e a escriba que lhes fala, e outros nomes mais.

Unidos, demos início a uma empreitada cívica contra os que faziam regredir as pautas essenciais da civilização. Através de protestos públicos, de manifestos e de viagens pelo Brasil, transformamo-nos em goiardos medievais a divulgarem pela Europa a liberdade acintosa e a palavra poética. 

Antônio Torres, levado por convicção democrática, emprestou voz e ideário à causa comum. Entregues á pregação democrática, vencemos as distâncias de ônibus, dormimos em pensões cujas camas de mola recordavam os catres dos monastérios cistercienses, alimentamo-nos de feijão, arroz, bife acebolado, e de uma salada cujas folhas lutavam por se manter intactas durante o tempo da refeição.

Com falsa toga de Cícero, elucubrávamos diante dos jovens. A fala irada que o senador romano nos emprestara, exigia a destruição de Cartago, sob forma da ditadura. Havia que demolir os alicerces do opressor a impor a crença que faltavam à arte literária mérito e eficácia. Um argumento de fundamento insidioso que nos golpeava justo nos tempos em que brasileiros eram lançados nos calabouços para morrer.

A despeito das ameaçadoras sanções, e de reconhecermos do quanto era penoso ser brasileiro, tínhamos fé. Nossas noções utópicas não esmoreciam. Mantínhamos acirradas discussões sobre a atemporalidade de um Brasil que seria um dia justo e soberano.

Naqueles anos, Antônio Torres comprometeu-se. Conservou intacta a confiança no valor moral da estética e da transcendência dos direitos humanos. Não invalidou a língua portuguesa e nem renunciou à escritura.

Como consequência, fez do Junco burgo mítico. Fincou fundamentos narrativos, as entrelinhas, a matéria subjetiva, preservou a memória do sertão.

E porque sofreu as penúrias impostas pela migração obrigatória, pelo êxodo que despertou nele e nos personagens a noção de estranhamento,descreveu, com afilada dor, os filhos da seca. Aquelas criaturas que antes de serem entregues indefesas à voracidade urbana, foram outrora arrimos do sonho.

Graça à sua arte, o sertão real e simbólico converteu-se em escritura. E porque teve o resguardo de uma tradição fundacional e arcaica, resistiu à modernidade licenciosa, à reflexão condicionada às injunções que inculcam nos romances uma frivolidade aterradora. Não cometeu o ato nefando de apagar os palimpsestos, os códices transmitidos de pai a filho e que contém a história da humanidade.

Na trilogia composta por “Essa Terra”, “O cachorro e o lobo”, “Pelo fundo da agulha”, Antônio Torres alcança rara grandeza na literatura brasileira. Tendo o Junco como epicentro, ele evidencia os mitos incrustados no inconsciente coletivo da sua grei. Carcaças e mitos oriundos de épocas imemoriais, que assentaram praça nos casebres, na catinga, no cemitério do lugarejo.

“Essa Terra”, é romance seminal, prolonga-se em outros livros. Gravita em torno de Nelo, que de regresso ao Junco após anos de ausência, traz o estigma do fracasso. É um filho pródigo abatido pela tristeza e pela miséria, vigiado por todos, sentenciado pelas leis do sertão. Quando, vencido pela fadiga moral, atinge os limites suportáveis da existência e já não lhe convém mais viver. Cumpre, então, o que determinam as marcas impressas no pergaminho do seu corpo.

Nelo enforca-se e Totonhim, o irmão, em meio ao flagelo do sertão, assume a persona de Nelo. Aparenta prescindir da linguagem para em troca ativar uma história previamente vivida pelo suicida. A trama, feita de linguagem, decide sua sorte e ele toma a rota do sul substituindo o morto.

O suicídio de Nelo dilacera o pai. Incumbido de enterrar o filho, que ainda tem a corda no pescoço, e em obediência ao mesmo princípio civilizatório que regeu Antígona e Príamo de enterrar seus mortos, ele conta tão somente com seu ofício de carpinteiro para cravar o filho na cruz do caixão construído por ele.

Aquele suicídio assegura a continuidade narrativa da trilogia e concede-lhe um protagonismo tão perdurável quanto a intenção do autor de fazer duradoura a própria arte de narrar. O ato suicida alimentará a indigência familiar. E destaca a persistência com que Totonhim, igual a Telêmaco, sai de Ítaca para refazer a viagem de Ulisses, seguindo talvez o desígnio de Nelo.

A obra de Antônio Torres não se esgota em moderada abordagem. Com admiráveis irradiações poéticas, seus livros questionam o inconformismo de que padecem todos, empurrados por um destino torpe que sufoca sonhos e vidas. Enquanto deixa claro que o Brasil não nos pertence. Nenhuma cidadania está prevista. E menos ainda para os miseráveis que, nada tendo de seu, não tem sequer o direito de reclamar os filhos e a cadela Baleia que foram tombando na estrada.

 

Acadêmico Antônio Torres

Nesta noite, no plenário do Petit Trianon, graças a sua obra literária, o Brasil se integra uma vez mais. O sertão e a pólis se enlaçam. Uma circunstância que nos leva a louvar o grande autor que, vindo do Junco, enalteceu o Brasil. É propício, pois, proclamar que a Academia Brasileira de Letras o acolhe com orgulho.
Seja bem-vindo a esta Casa, Acadêmico Antônio Torres.

9 de abril de 2014