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Discurso de posse

Senhor presidente

Senhores Acadêmicos,

Senhoras e Senhores

Meus amigos

Aqui chega um baiano que está longe de representar a Bahia da grande oratória, que, no dizer de Jorge Amado, foi devidamente representada nesta Casa  por seu antecessor, o nobre Otávio Mangabeira, como o definiu o não menos nobre Luiz Paulo de Alencar Parreiras Horta, sucessor de Zélia Gattai, que sucedeu a Jorge, que sucedeu a Mangabeira, que sucedeu a Alfredo Pujol, que sucedeu ao Conselheiro Lafayette, que sucedeu a Machado de Assis - o fundador da cadeira que tenho a subida honra de vir a ocupar, sucedendo a um primo em quarto ou quinto grau do seu patrono, José de Alencar. E que não é outro senão o homem de Deus Luiz Paulo Horta, um dos nossos maiores especialistas em religião e em música erudita, à qual se devotou como linguagem divina, na sublime observação do acadêmico Tarcísio Padilha - que aqui o recebeu em 28 de novembro de 2008. Figura humana insubstituível, Luiz Paulo fez a este mundo o bem que pôde. Pelas suas qualidades intelectuais e virtudes pessoais, é merecedor, agora e sempre, dos mais superlativos encômios.  

Aqui chega um nordestino, não necessariamente herdeiro da tradição da sua “velha e ilustre região”, como a definiu o mestre Antônio Cândido no seu livro “Formação da Literatura Brasileira”, quando, no capítulo dedicado ao Regionalismo, refere-se à oratória como uma das formas preferenciais do Nordeste exprimir a sua consciência e dar estilo à sua cultura.

Portanto, chego à Casa de Machado de Assis - descrita à perfeição por um de seus presidentes, o insigne Marcos Vinícius Villaça, como o cenáculo no qual “a arte da retórica é a sua marca indelével” –, sim, chego aqui tão consciente das minhas limitações a esse respeito quanto submerso em enleios semelhantes aos daquele que no dia 23 de julho de 1919 chegava à Academia Brasileira de Letras como o terceiro ocupante da Cadeira que me destes – por ele chamada de “santuário” -, pontuando que sobre ela repousavam três sombras peregrinas: a figura mais alta e mais nobre do nosso Romantismo, o clássico maravilhoso do nosso idioma, e o civilista profundo [Lafayette Rodrigues Pereira] que versou a ciência do Direito, revestindo-a de pureza helênica. E que “do seu espaldar se debruça a imagem da pátria, velando e abençoando a grandeza refulgente do gênio nacional”. Assim Alfredo Pujol exprimia o seu assombro diante do peso histórico de seus antecessores (agora meus também), cujas estaturas ele foi capaz de erigir com um extraordinário poder de síntese.   

O que por si só desautoriza a modéstia de Pujol, ao considerar a sua chegada a este “templo augusto”, segundo as suas próprias palavras, um prêmio desmedido ao “obscuro artífice que reuniu e ajustou, nas suas mãos grosseiras e rudes, os primeiros materiais para a glorificação do autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas”. A bem da verdade, ele foi um brilhante jornalista e advogado. E o primeiro a dar uma visão abrangente da obra de Machado, como lembrou Luiz Paulo Horta na já referida noite de 28 de novembro de 2008. É de Pujol a definição do nosso maior escritor que a posteridade viria a assinar embaixo:

Machado de Assis tem o segredo da auscultação das almas. O seu olhar devassa as consciências, penetra no mais fundo do pensamento, e interpreta todas as emoções e todos os instintos, com o mais estranho poder de decomposição e de análise.

Lafayette Rodrigues Pereira também escreveu sobre Machado, defendendo-o enfaticamente de uma crítica que Sílvio Romero lhe fizera. Eleito para a Academia em 1909 para ocupar a vaga deixada por seu fundador, Lafayette tomou posse por carta,  lida e registrada em ata na sessão de 3 de novembro de 1910. Advogado, jornalista e político, além de ministro e presidente das províncias do Ceará e do Maranhão, ele foi um dos principais conselheiros de D. Pedro II. Destacou-se na esfera pública pela sua alta cultura jurídica, filosófica e literária, de que se valia para elevar os debates em meio aos radicalismos entre conservadores e liberais, ao tempo do imperio, quando pedia aos seus antagonistas que substituissem o ódio pela justiça, a cólera pela paciência, a intolerância pela equidade, porque o ódio, a cólera e a intolerância nada ainda fizeram de grande, de sólido e de perdurável.  

É, no entanto, o seu legado às letras jurídicas, com os clássicos Direito de família e Direito das coisas o que lhe doura ainda mais o alentado currículo. Ele está imortalizado também como nome da cidade em que nasceu, Queluz de Minas, que em 1934 passou a se chamar Conselheiro Lafayette, e por dar nome a duas ruas, uma em Belo Horizonte, no bairro da Sagrada Família - o de maior população da capital mineira -, e em Copacabana, onde discretamente viveu uma das maiores glórias da nossa literatura moderna, o também mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Senhor presidente,

Senhoras e senhores Acadêmicos,

Meus amigos:

Sabeis vós que nas discussões que antecederam a fundação da Academia, os patronos foram criados para suprir espiritualmente a falta de antecedentes. Que Machado de Assis, chamado pelo acadêmico Afrânio Peixoto de “primeiro da companhia, por vários títulos”, quis dar a José de Alencar a primazia que tem, e sempre terá, pelo seu patriótico esforço de construção de caminhos próprios para a literatura nacional, ao trazer nossos usos e costumes – mitos, lendas, tradições, festas religiosas – para as páginas de seus romances, cujos cenários vão do litoral ao sertão, do Nordeste ao pampa gaúcho, da zona rural fluminense à vida urbana do Rio de Janeiro durante o Segundo Reinado, da formação da nacionalidade à evolução histórica do país. Pela abrangência e dimensão da obra de Alencar, Machado achava que a cadeira número 1 lhe seria a mais condizente. Mas esbarrou numa disposição de seus pares de que não poderia haver hierarquia na escolha dos patronos, e com isso Alencar veio a patronear a cadeira 23, para a glória deste que será seu oitavo ocupante, e a recordar-se da manhã em que um começo de romance da “figura mais alta do nosso romantismo” fez um aluno de uma escola rural de um lugar onde nem rio havia sonhar com o mar.

Este era o lugar: um povoado esquecido nos confins do tempo, encravado numa baixada de solidão e poeira, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas. Sem livros. Naquele ermo sertão, o que importava mesmo era a chuva, símbolo de bonança, numa terra chegada às estiagens, quando o sol parecia o prenúncio do fim do mundo, conforme estava escrito na profecia, segundo a qual Deus teria dito a Noé: “Não mais a água. Da próxima vez, o fogo”.  

O povoado se chamava Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), no interior da Bahia. Ali, a grande aventura humana se fazia nos caminhos de roça, no afã de se plantar e colher, se chovesse no inverno e o verão fosse de trovoadas, tão benfazejas que levavam os homens a vestir ternos brancos, como nos domingos de missa e santas missões, para, apoteoticamente, rolarem na lama, loucos de alegria. Por isso, quanto mais vermelhos estivessem os crepúsculos, maior era o temor da seca e da vinda do anticristo. E, com ele, o apocalipse.

Assim passávamos os dias: a contemplar as nuvens na esperança de enxergar nelas sinais de chuva. E a aguardar os fantasmagóricos visitantes noturnos. Os zumbis assobiadores, boitatás incandescentes, gralhas mal-assombradas: reencarnações das almas penadas, egressas das trevas para perturbar o sono dos vivos, que se amotinavam ao pé de um fogão de lenha a contar histórias como a do Pavão misterioso, e a da chegada de Lampião ao inferno, reduzindo-o a cacos. E tudo para espantar o medo das assombrações.

Um dia, uma boa notícia correu de roça em roça. O lugar acabava de ganhar uma escola. Alguns pais reagiram, alegando que escola não enchia barriga de ninguém. Aí quem se assombrou foi a professora, na iminência de se ver sem alunos. Diante do impasse, só lhe restava a busca de aliança com as mães dos meninos daquele lugar, o que fez, com o ardor de uma missionária. Às mães caberia vencer as resistências paternas.

Recordo uma delas, chamada Dona Durvalice, a chegar em casa tendo nas mãos o mais extraordinário dos inventos humanos. Um abecê, na designação popular do livreto do alfabeto. A mãe chamou o seu filho mais velho, e mostrou-lhe a novidade, explicando-lhe o que aquilo significava. O menino se encantou com o desenho das letras, e mais ainda ao descobrir que elas tinham nomes, como as pessoas e as coisas, enquanto a mãe lhe explicava que eram elas que designavam tudo o que existia na Terra e no céu. Depois, a mãe lhe trouxe uma cartilha, passando a juntar as letras em sílabas – bê-a-bá, bê-bê – e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva...

Quem ficou encantada com isso foi a professora (chamava-se Serafina), ao receber um aluno que já havia ultrapassado o beabá. Assim a sua escola risonha e franca ganhava um reforço para a cantoria diária de hinos e a declamação de poemas patróticos, quando passamos a nos familiarizar com os nomes dos poetas que seríamos levados a declamar no primeiro Dia da Pátria comemorado na praça principal do povoado: Olavo Braz dos Guimarães Bilac (“Criança, não verás país nenhum como este”), Gonçalves Dias (“Não chores, meu filho,/ Não chores,/ Que a vida é luta renhida:/ Viver é lutar...”), Antônio de Castro Alves (“Auriverde pendão da minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ Estandarte que a luz do sol encerra/ E as divinas promessas da esperança”).

Naqueles auriverdes anos, se alguém perguntasse a este que vos fala o que queria ser quando crescesse, a resposta não seria outra: Castro Alves! Um arroubo infanto-juvenil a ser creditado ao poder de sedução da lírica do poeta do amor e da melancolia que colocou a sua pena a serviço de um mundo mais justo, comprometendo-se com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista. Dir-se-ia hoje, numa licença midiática, que ele foi o pop star do Romantismo, pela imagem pública que construiu com sua lendária cabeleira, sob a qual se exibia um “jovem Dante da pátria de Moema”, como Castro Alves veio a ser chamado por Machado de Assis, em carta enviada no dia 29 de fevereiro de 1868 a José de Alencar. Que com ele se encantara, a ponto de recomendá-lo a Machado, que, depois de ouvir alguns de seus poemas e o drama Gonzaga, escreveu a Alencar exaltando-o como “um talento robusto”, “uma vocação literária cheia de vida”, “um poeta original” cuja musa tinha “feição própria”. Transcrevo o começo da carta de Machado:

Excelentíssimo senhor – É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior é recebê-lo das mãos de Vossa Excelência, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do senhor Castro Alves não podia ter mais feliz intróito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre.

De dois mestres, vós o sabeis. Sigo um deles, numa viagem de regresso à manhã em que dois vultos surgiram na contra-luz à entrada da escola onde Castro Alves bem que poderia ter sido o seu patrono. Era a chegada de uma outra professora, chamada Teresa, acompanhada de sua mãe, dona Virgínia. Ela  parecia haver surgido do nada, como se tivesse caído do céu ou chegado a pé de algum lugar desconhecido, para inaugurar o prédio recém-construído da escola rural. E não era de muito falar. Depois de um “Bom dia, Dona Serafina”, acrescentou apenas isso:

- Vim buscar os alunos.

Dona Serafina olhou de um lado ao outro da sala, antes de dar a sua resposta, igualmente breve:

- Leve os meninos.

E, com um gesto de mão, nos despachou para sempre.

Seguimos a nova professora como se acompanhássemos um cortejo fúnebre. Afinal, que graça poderia ter uma escola sem as meninas? Como prêmio de consolação, porém, iríamos para um prédio tinindo de novo, obra do governo estadual, cujo mandatário era ninguém menos do que o ocupante da cadeira 23 desta Casa: o erudito Otávio Mangabeira, que reuniu em seu secretariado algumas das maiores inteligências da Bahia, como Anísio Teixeira, na Educação. Aquela nova escola não surgia ali por acaso. Devia fazer parte de um projeto de Anísio encampado por Mangabeira para todo o estado.

O prédio ainda cheirava a tinta. A professora escancarou as suas quatro janelas ao sol, indo em seguida sentar-se à mesa, sobre a qual pôs os seus livros já um tanto ensebados pelo uso. Imediatamente, organizou os alunos em uma fila, para que cada um fosse lendo em voz alta um trecho de um livro intitulado Seleta Escolar - uma antologia de contos, crônicas, poemas e um ou outro capítulo de romance. Um desses trechos inundou a sala, fez o sertão virar os verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. O efeito dessa leitura foi simplesmente fabuloso. À noite, viajei em águas, faunas e floras de sonho. Além de não fazer a menor ideia de como era o mar, também não conhecia a jandaia e a caunaúba, nem de pluma, nem de folhagem, pois pertenciam a outras paisagens, e distantes, como a do Ceará. E ali estávamos na região do semi-árido da Bahia. Foi esse o primeiro impacto que as linhas iniciais de um romance me provocaram, instalando-se como o lugar da imaginação, e aqui reinstalando-se como o da memória.

A memória de uma escola criada por Anísio Teixeira na gestão do governador Otávio Mangabeira, a bem dizer patroneada por José de Alencar, que, não podendo comparecer, em pessoa, à sua inauguração, fora representado pela toda prosa e poética Iracema, que desde o ano de 1865 estava predestinada a ser chamada de obra-prima, conforme a antevisão de um certo bruxo que a esta altura não será mais necessário nomear.

E vieram os dias seguintes: com muita leitura em voz alta e exercícios de escrita, pois assim era a escola da era Anísio Teixeira, o educador que tinha como princípio a ênfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade de julgamento do aluno. Personagem central da história da educação no Brasil, defendeu o ensino gratuito, laico e obrigatório. E foi o reformador do sistema educacional também do Rio de Janeiro, onde exerceu vários cargos públicos, e veio a desaparecer misteriosamente, no dia 11 de março de 1971, quando se encontrava em campanha por uma vaga nesta Academia. Depois de uma visita de praxe ao acadêmico Aurélio Buarque de Holanda, para lhe pedir o voto, Anísio Teixeira não regressou à sua casa, nem mais foi visto em qualquer lugar, o que provocou a suspeita de que teria sido preso pelos militares. Depois de uma série de informações e pistas falsas, seu corpo foi encontrado no fosso do elevador do prédio de mestre Aurélio, sem sinais de queda nem hematomas que a comprovassem. O laudo, porém, foi de morte acidental.

Não tivesse Anísio Teixeira levado a escola às nossas remotas paragens, e a distância entre a civilização do litoral e o arcaico sertão baiano continuaria abissal, e, portanto, dificilmente este sertanejo agora estaria aqui diante de vós. Na presente circunstância, evocar Anísio é homenagear Mangabeira, o engenheiro, professor, político (íntegro, é bom que se diga), e homem de letras que em 1930, quando ocupava o cargo de ministro do Exterior no governo de Washington Luís, dotou o Itamaraty de uma biblioteca, criada para reunir e catalogar toda a memória da correspondência diplomática. Ele foi eleito para a Academia naquele mesmo ano. Mas, como havia combatido o movimento revolucionário de 1930, que se saíra vencedor, teve de asilar-se, só retornando ao país com a anistia de 1945, vindo a governar a Bahia de 10 de abril de 1947 a 31 de janeiro de 1951. As atualidades esportivas ensejam o registro de que foi ele quem construiu o estádio da Fonte Nova, que recebeu o seu nome, assim como o torneio que o inaugurou.

Ao sucedê-lo nesta Casa, no dia 17 de julho de 1961, Jorge Amado disse que Mangabeira era a Bahia nas suas melhores e mais generosas qualidades.

Amado Jorge!

Recordo-o como o mestre dos mestres na arte de fazer amigos, apresentar pessoas umas às outras, de recebê-las em sua bela casa da Rua Alagoinhas, 33, no bairro do Rio Vermelho, e nos seus endereços do Rio de Janeiro e de Paris. Chegava a parecer que foi inspirado nele que Fernando Sabino escreveu que é o convívio que faz a vida mais digna de ser vivida.

Jorge se desdobrava também como missivista, nunca deixando de responder aos que lhe escreviam e lhe enviavam livros de tudo quanto era canto. As mais de cem mil páginas guardadas num acervo isolado da fundação que tem o seu nome, no Pelourinho, comprovam o quanto ele se correspondeu com meio mundo ou mundo e meio. Não foram poucos os ilustres desconhecidos, promissores ou não, que no inicio de suas carreiras literárias mereceram de Jorge amáveis palavras de incentivo. Ainda há pouco, num emocionado depoimento a uma revista da Espanha, João Ubaldo Ribeiro recordava essa generosidade desmedida como um traço essencial do seu caráter, destacando – para além da sua condição de um dos mais importantes escritores do nosso tempo e de patrimônio do povo brasileiro -, o papel decisivo de Jorge na sua própria história, e de  muitos outros. Segue João Ubaldo: “Eu estava mais próximo dele do que a maioria dos meus contemporâneos, mas o apoio que ele oferecia se estendia a um número imenso de pessoas, como a pintores humildes e sem dinheiro, de quem comprava por um bom preço quadros acabados precipitadamente, com a pintura ainda fresca. Pouco depois, se comportava como um vendedor dos artistas pobres ou principiantes e dava explicações entusiasmadas sobre eles a quem lhe parecesse um comprador potencial. E não fazia isso apenas com os artistas plásticos, mas com qualquer um a quem pudesse beneficiar com sua ajuda, de poetas a cineastas”.

Pois este Jorge, tão admirável como escritor quanto como pessoa,  não estava na Seleta Escolar da professora Teresa. Minha iniciação à sua obra aconteceria mais adiante, já numa cidade situada na metade do caminho para a capital, na indistinta divisa entre o recôncavo e o sertão. E deveu-se a um professor sergipano vindo do Rio de Janeiro para dar aulas de geografia no ginásio de Alagoinhas, surpreendendo os alunos com seus vastos conhecimentos de serras, mares, rios, lagos, pontos culminantes, continentes, países, capitais. Aos poucos, ele revelaria outros domínios, que abrangiam da matemática à literatura. Esse mestre de nome estranho – chamava-se Carloman, por extenso, Carloman Carlos Borges -, fora das salas de aulas empenhava-se em falar de livros e autores jamais falados naquele estabelecimento de ensino um tanto parado no tempo. Para o professor Carloman, compreenderíamos melhor o país em que vivíamos se lêssemos romancistas do Nordeste, que, com a cearense Raquel de Queiroz, o alagoano Graciliano Ramos, o paraibano José Lins do Rego e o baiano Jorge Amado haviam inaugurado o mais poderoso ciclo literário nacional, no século XX: o do “romance de 30”. – Para começar a gostar de Jorge, leia este – ele disse, ao me emprestar o Mar morto, concedendo-me o prazo de uma semana para devolvê-lo. Qual o quê. Devolvi-o no dia seguinte. Levado pelas ondas de um texto que começa em tom de conversa ao pé do fogão - “Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia” -,  Jorge me fez varar uma noite completamente envolvido com seu romance de aventura e de liberdade, tendo ao fundo os mitos oriundos de tradições culturais tão próximas e tão desconhecidas por um leitorzinho interiorano, embora agora estivesse a pouquíssimo mais de cem quilômetros do cais da Bahia. E para o qual aquela primeira viagem com os seus marinheiros significava a descoberta da vida e das lendas do mar pintadas com tintas sincréticas e retratadas com uma deslumbrante visão utópica do mundo. Sim, a Bahia de Jorge era um outro mundo, nunca dantes imaginado por aquele seu enfeitiçado leitor.

Naquele tempo – estávamos no ano de 1957 -, a cidade de Alagoinhas tinha 50 mil habitantes. E uma única livraria, chamada São Jorge, o que parecia vir bem a propósito, pois foi como se o santo tivesse ajudado a um ginasiano sem qualquer comprovação de renda a convencer  o seu proprietário, o amável senhor Teófilo Maciel, a lhe vender em suaves prestações – e de bom grado -, uma coleção completa dos livros de Jorge Amado.

 Dele, assim como da tropa de choque nordestina a que pertencia, guardo na memória as seguintes fichas de leitura:

Jorge: a extraordinária capacidade de criar personagens – melhor dizendo, de inventar gente, com cor, cheiro, corpo, rosto e voz; de contar histórias; o lirismo; a simpatia pelos pobres e pelo mundo afro-baiano; a linguagem desabusada, que seus críticos mais rigorosos confundiam com desleixo.

Rachel: o depoimento vigoroso e solidário contra um quadro social deplorável.

Zé Lins: muito disso, vide Fogo morto. E a fabulação.

Graciliano: tudo isso – Vidas secas o comprova –, e o estilo.

- Não esqueça que o pai de todos nós é José Américo de Almeida –  diria Jorge Amado, lembrando a um recém-chegado ao mundo das letras que o ciclo de 30 havia começado em 1928, com o romance A bagaceira.

Essa literatura dita regionalista viria a surpreender o país ainda uma vez mais, com a força estrondosa do grande sertão de João Guimarães Rosa, que começa em Minas Gerais e vai dar no Mississipi, onde William Faulkner fundou um território mítico e nele inscreveu a sua legenda. E Rosa e Faulkner – assim parece a este leitor algo delirante -, são aparentados de um certo irlandês chamado James Joyce, mas em relação a este tiveram a vantagem das vastidões continentais (“o sertão está em toda parte”), e dos espantos de um continente que, se não era mais tão Novo Mundo, mundo ainda novo era. 

E que mistérios tem Clarice, no seu contraponto urbano?

Os dos rios que correm para dentro de si mesmos.  

Contemporâneos de Clarice, mas de outras e variadas linhagens, Lygia Fagundes Telles, Fernando Sabino, José Cândido de Carvalho, Autran Dourado, José J. Veiga, Antonio Callado, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Murilo Rubião e Carlos Heitor Cony marcam uma forte presença na cena literária do século XX. Eles foram os cirurgiões que fizeram as costuras finais nas extirpações, iniciadas pelo Modernismo de 22, às adiposidades da última flor do Lácio.

Na sequência deles veio a geração a que pertenço, que vai de Márcio Souza, em Manaus, passa por Ignácio de Loyola Brandão, Raduan Nassar, Edla Van Steen etc em São Paulo, e chega a Moacyr Scliar, em Porto Alegre. Saudades eternas deste grande e inesquecível amigo, dono de uma imaginação prodigiosa, e que conheci durante um périplo de palestras por várias cidades da Alemanha na lorde companhia de Antonio Callado e Silviano Santiago. Algum tempo depois, durante uma caminhada de Copacabana ao final do Leblon, tive o prazer de apresentá-lo ao Oceano Atlântico. Agora, imagino-o a fazer uma dedicatória em um exemplar de A mulher que escreveu a Bíblia para o criador do mais belo romance do mundo, chamado Gênesis. Autor de um diário de leitura da Bíblia, Luiz Paulo Horta é levado a fazer o mesmo. Zélia Gattai fotografa a cena.

Outras saudades: Oswaldo França Júnior, João Antônio, Wander Piroli, Roberto Drummond, Marcos Santarrita, Guido Guerra, Sônia Coutinho.

Mas cá ainda estou. E agora tendo o privilégio de poder estreitar os laços com uma parte altamente significativa dos ficcionistas da minha geração, companheiros de muitas jornadas por esse país e por alguns cantos do mundo, e isto desde as altas voltagens políticas, existenciais e literárias dos anos de 1970, tempos de muitos encontros na casa de Laura e Cícero Sandroni, que, com Eglê Malheiros e Salim Miguel editavam a revista Ficção. Afetuosamente vos saúdo, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Nejar. Sim, não custa lembrar que o poeta Nejar é também um romancista. E dos bons. Sem esquecer o já citado Cony e Ariano Suassuna.

Não menos calorosos são os meus agradecimentos a todos vós, poetas, ensaístas, historiadores, o imortal cineasta, os jornalistas, professores, cientistas, diplomatas, sociológos e juristas que compõem os círculos de inteligência desta Casa, na definição de outro baiano, Pedro Calmon. Criadores e pensadores que se situam para além das fronteiras ficcionais, vós estais ligados pela liturgia da palavra e uma irrevogável fé nas ideias, para recorrer ao primoroso texto de Marcos Villaça, já mencionado no início deste discurso.

***

Parafraseando Maiacóvski, diria que ao evocar Jorge, a memória juntou na sala do cérebro os inumeráveis bem amados, para que esta noite se paramente de histórias passadas, presentes e futuras. Porque ele não apenas inventava gente. Gostava de gente. Tanto que não fugia das tardes e noites de autógrafos que atraíam multidões. Caberia a uma dessas noites nos aproximar. Foi no dia 12 de dezembro de 1972, em São Paulo, quando, antes de ir para a livraria em que estava sendo esperado para autografar o seu romance Teresa Batista cansada de guerra, Jorge Amado passou em outra, na qual um estreante baiano iria se apresentar. Ele comprou o livro do novato, e lhe deixou um bilhete, com o seu endereço e telefones na Bahia, para que o procurasse, quando lá fosse. E mais: foi o próprio Jorge quem tomou a iniciativa de me procurar, aqui no Rio, quando me convidou a visitá-lo em Salvador. Fui.

E aí ele e Zélia reuniram em sua casa meia Bahia, para apresentá-la a um baiano um tanto desgarrado, a quem já no primeiro encontro deu o seguinte conselho:

- Siga o exemplo de Glauber Rocha.

Perguntado qual era o exemplo de Glauber a ser seguido, Jorge respondeu:  

- Ele nunca perdeu o sotaque baiano.

Zélia e Jorge me faziam lembrar uns versinhos de Drummond que um dia anotei num caderno de estudante: “Como viver/ sem conviver/ na praça de convites?”

Salutti, senhora. Saravá!

Se baiana ela não era de fato, o era de direito, pois na Bahia viveu desde os princípios dos anos de 1960. Nascida em São Paulo, de pai anarquista chegado de Florença, e de mãe católica originária do Vêneto, quando conheceu Jorge Amado, em 1945, já era sua admiradora,  tanto como escritor quanto pela militância política, em decorrência do   engajamento dele ao Partido Comunista. Não demorou muito a se casarem, mas logo tiveram de partir para um exílio na França, e depois na Tchecoslováquia. Pela vida afora ela se assumiria como coadjuvante daquele que lhe abria as portas do mundo, mas sem perder a  individualidade. A sua obra veio a provar isso, de forma inequívoca. Zélia Gattai nos legou nove livros de memórias, três infantis, uma fotobiografia e um romance. Com Anarquistas graças a Deus, publicado em 1979, ela não poderia ter feito uma estreia mais feliz. Ao contar a saga dos imigrantes italianos em busca da terra de sonhos, e o percurso interior de uma menina para a qual a vida nunca perderia o encanto, Zélia surpreendeu o mundo das letras. O sucesso espetacular do seu primeiro livro – que viraria minissérie televisiva -, encorajou-a a seguir em frente.  Sua obra despertou interesse também em outros países. E ela ganhou vários prêmios. Foi eleita para esta Academia em 2001. Para um fecho à sua altura, transcrevo umas linhas sob medida da poeta Myriam Fraga:

Se Zélia nasceu mesmo com uma estrela a iluminar-lhe o caminho, soube muito bem como proceder para captar em plenitude aquela luz que a fazia brilhar intensamente e refletia-se em tudo à sua volta.        

***

Agora evoco o bom cristão que Deus levou antes da hora, cuja voz haverá de se propagar indelevelmente nas páginas que nos deixou. Num tempo cada vez mais marcado pelos conflitos de opinião nas instâncias religiosas, ele nos traz uma necessária palavra de equilibrio, como quando analisa o choque entre os defensores da tese “criacionista” – o mundo começando num momento dado, a partir do fiat divino – e a teoria da evolução. Para Horta, este choque não deveria existir. Seu argumento:

Você pode acreditar no fiat, ou pode achar que os primeiros homens foram surgindo aos poucos, de dentro da cadeia evolutiva – contanto que você admita  que, num determinado momento dessa cadeia, a ação divina introduziu um “princípio”, um fato novo, que não pode ser explicado pelo simples encadeamento de fenômenos naturais.

Este é apenas um pequeno exemplo de como o seu diário de leitura da Bíblia, chamada por ele de o livro-texto da civilização ocidental de inesgotável vitalidade, traz para os nossos dias os dilemas humanos contidos no Antigo e no Novo Testamento. Ao definir a Bílbia como um sopro de inspiração, Luiz Paulo toca numa tecla sensível aos criadores literários, sobretudo os romancistas. A estes, ele fala diretamente quando diz que o narrador bíblico, ao cumprir sua vocação – “uns com mais talento do que outros” -, de repente passa a se sentir como se o chão lhe fugisse debaixo dos pés e o dito narrador começasse a voar. E dando asas à imaginação de tantos outros narradores, pensa agora este leitor de Horta, lembrando-se da poderosa influência que a Bíblia tem exercido na literatura através dos tempos, como no notável exemplo de William Faulkner, agora lembrado em outro contexto. Ao ambientar no Sul dos Estados Unidos uma tragédia semelhante à do rei Davi e seu filho Absalão, ele escreveu um dos seus romances mais poderosos.

Comprovadamente um dos nossos mais importantes pensadores religiosos, Luiz Paulo ministrou cursos sobre a Bíblia na PUC-Rio e na Casa do Saber. E presidiu o Centro Dom Vidal, um núcleo do pensamento católico.

Como crítico musical, ele não se limitou à efemeridade das suas colunas na imprensa, na qual foi muito atuante, primeiro no Jornal do Brasil, depois no Globo. Sua produção nessa área ganhou permanência em livros como Caderno de música, Villa-Lobos, uma introdução e o Dicionário de música Zahar. Dentre as suas múltiplas atividades, registre-se que ele pertenceu à Academia Brasileira de Música e dirigiu o setor de musica do  Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

A alguém, como este escriba, que se tornou ficcionista por total incapacidade de escrever poesia ou tocar um instrumento, o talento musical de quem escreve provoca uma admiração que pode até ser analisada como uma sublimação da inveja. E Luiz Paulo tocava piano! Mais que isto: tocava Chopin, Bethoven e Johann Sebastian Bach. Louvado seja!

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Senhor presidente

Senhoras e senhores acadêmicos

Meus amigos

Encerro renovando os meus agradecimentos a todos vós, pela generosa acolhida nesta egrégia Casa, que sempre estimei. Também tenho muito a agradecer aos que contribuiram – e não foram poucos -, para que um dia este canibal das letras pudesse chegar aqui. E vindo lá das tertúlias ancestrais ao pé de um fogão nas fabulosas noites de um tempo agrário e ágrafo, no reino da cultura oral, que na Antiguidade, vós sabeis, gerou os grandes poemas épicos, dos quais o romance foi gerado. Portanto, o romancista que aqui chega teve o seu imaginário cultivado num ambiente popular, originário de elementos das culturas clássica e medieval trazidos da península ibérica e mesclados com a influência das tradições africanas e indígenas. A descoberta da palavra escrita me levaria ao encontro de letrados modernistas como o poeta Eurico Alves Boaventura, nascido em Feira de Santana, e que foi juiz de Direito na cidade de Alagoinhas, onde chegou falando de Manuel Bandeira e Jorge de Lima, com quem se correspondia. Graças aos saraus em sua casa, nunca mais iríamos ler poesia da mesma maneira.

Ergo meu crânio (outra vez Maiacovski) repleto de gratidão por um generoso senhor alagoinhense de nome Mário Alves, que me levou a Salvador num trem tão bonito que se chamava Marta Rocha. E lá me deixou no Jornal da Bahia, aos cuidados do seu próprio dono, o doutor João da Costa Falcão, que me repassou ao ficcionista Ariovaldo Matos, o editor-chefe, e este ao poeta João Carlos Teixeira Gomes, o chefe da Reportagem. Em apenas um ano eles me adestraram o suficiente para encarar a Última Hora de São Paulo, em cuja redação parecia que o país inteiro estava, e tinha a minha idade – 20 anos! Agradeço a São Paulo - onde deixei um pedaço do meu umbigo enterrado -, aqui muito bem representada pelo alagoano de Tanque D’ Arca Audálio Dantas, um jornalista e amigo exemplar. Ao Rio de Janeiro, o esplêndido azul de Machado de Assis, o azul demais de Vinícius de Moraes. A cidade amada, que me deu a Sonia, mãe de Gabriel e Tiago, muitos amigos, espaço para a criação, sonhos de arte e beleza, entre os sustos, balas e vícios de sua realidade de violência que às vezes chega a parecer ameaçada pelos caos. Mas ora! Foi o Rio quem me deu o Prêmio Machado de Assis. E a Academia Brasileira de Letras. Eu, baiano e brasileiro, paulista, carioca, petropolitano e estrangeiro, agradeço a Lisboa, ao Porto, Itaipava, Oropa, França e Bahia. Aos editores – cito Lúcio de Abreu, que foi o primeiro a me publicar, na Editora Gernasa, e que aqui se faz representar pela sua esposa, a Clarinha. À crítica literária, a quem tanto devo, assim como à universidade brasileira em particular e aos leitores em geral. Aos colegas de ofício, de todas as gerações, entre eles os do batente publicitário. A todos os presentes, muitos vindo de longe: de Belém do Pará, Brasília, Fortaleza, Maceió, Salvador, Alagoinhas, Sátiro Dias, Região Serrana fluminense, Volta Redonda, Paraíba do Sul, Curitiba, Paraná, Brasil. Aos familiares aqui presentes, também vindos de longe. Ao poeta português Alexandre O’ Neill, outro mestre, que em sua casa liboeta, onde me deu guarida por quatro meses, costumava me pedir para ler o Grande sertão: veredas em voz alta. São dele os dois versos a seguir, que vos dedico:

Folha de terra ou papel,

Tudo é viver, escrever.