Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Álvaro Lins > Álvaro Lins

Álvaro Lins

PERSONAGENS DE PROUST

Deste modo as personagens de Proust se acham destituídas de lógica, de uma lógica digamos exterior ou formal. Isto representa uma excelência na ficção; não é um defeito. Personagem lógica é personagem medíocre, prisioneira de estreitos limites, com as suas intenções já calculadas e os seus atos já previstos pelo próprio leitor. Porque, no mundo das figuras de ficção, a lógica de sentimentos e episódios significa: não fazer nada de extraordinário, não praticar nenhum ato desconcertante e surpreendente. Exige-se às vezes essa uniformidade, está claro, em nome das nossas visões ordinárias, convencionais e cotidianas, das visões que os homens comuns transmitem com os seus movimentos e ações dentro da vida. A arte, porém, não é a mesma coisa que a vida; o seu plano é o da superverdade e o da super-realidade. Além disso, as personagens de romance não são seres comuns, desde que têm uma história para ser contada ou apresentada. As de Dostoiévski, por exemplo, são desmedidamente ilógicas segundo os padrões da nossa realidade. Um dos seus heróis protesta contra a tirania matemática do dois e dois são quatro. Protesta e prefere que sejam cinco. Por que será menos “lógico” do que aqueles que afirmam que são quatro? Será suficiente que ele conserve uma “lógica interna”, a lógica da sua própria natureza. E essa “lógica interna’ é também o sistema de peso e medida das personagens proustianas.

Não era do gosto de Marcel Proust a criação de figuras uniformes e invariáveis, de caracteres inteiriços: maciçamente bons ou maus, simpáticos ou antipáticos, superiores ou reles. Numa personagem encantadora como Saint-Loup, por exemplo, ressalta de repente um aspecto vulgar e mesquinho, como naquele momento em que confessa ter transmitido a Bloch uma opinião confidencial do Narrador. Depois de haver sempre tratado o pobre diabo Saniette da maneira mais odiosa e indigna, e no momento mesmo em que vinha de colaborar numa canalhice, M. Verdurin pratica um ato surpreendente de bondade e generosidade para com aquele seu papa-jantares, dando-lhe uma pensão fixa de dez mil francos ao sabê-lo de todo arruinado. E a duplicidade de sentimentos – “les choses, en effet, sont pour le moins doublés”, conclui o Narrador - gera consequências não menos imprevistas. Mlle. Vinteuil, que praticava o amor anormal com a sua amiga Léa, e que para excitar-se sadicamente nesse amor gomorriano profanava o retrato do seu pai morto, será depois quem mais contribuirá para a glória dele, promovendo a edição da principal obra músical de Vinteuil, reconstituída com a generosa colaboração daquela mesma amiga. E por intermédio dos amores igualmente anormais de Charlus e de Morel é que o septeto será executado e consagrado num salão de Paris, perante a aristocracia. Assim, os vícios de criaturas danadas de Sodoma e Gomorra geravam a pura e irreprochável glória do gênio artístico de Vinteuil.

Não sendo lógicas, as suas personagens também não são “tipos” representativos de situações gerais. São indivíduos, não são representações de um vício ou de uma virtude. O problema do tipo nas personagens de romance esteve presente em toda a ficção do século XIX, com exceção de um Stendhal, que ultrapassa como psicólogo os limites de sua época. Não havia maior ambição para um romancista do que criar uma personagem-símbolo. Uma personagem que simbolizasse a ambição ou a avareza, o político ou o burocrata, um sentimento ou uma profissão. Parece-nos que o problema se achava ligado à tradição dos “retratos de caracteres” dos moralistas do século XVII, entre os quais La Bruyère é expoente e modelo. Ilustrativa também, neste sentido, é a obra Virtues and vices, de Joseph Haal, aparecida em 1608. Mas os “tipos”, segundo vícios e virtudes, são numericamente poucos e limitados, como as clássicas situações dramáticas. Tendem, além disso, para a imobilização, como blocos: a virtude X determina a personagem de tipo X; a virtude Y gera a personagem de tipo Y. Um processo de tal espécie esgota-se logo nas mãos de alguns grandes romancistas, e os seus sucessores, para se salvarem da contingência de repeti-las indefinidamente, têm de procurar outra solução. Procurou-a Marcel Proust, e encontrou-a na passagem da unidade linear da personagem-tipo para a complexa variedade da personagem-indivíduo.

Vejamos a este respeito a diferença entre Balzac e Proust, sabendo-se que Proust representa no romance do século XX o mesmo papel de Balzac no romance do século XIX. As personagens de Balzac são mais representativas e inteiriças exteriormente; as de Proust, mais misteriosas e complexas interiormente. Na principal galeria balzaquiana, Grandet é o avaro ao mesmo tempo que simboliza a avareza; Rastignac é o ambicioso, simbolizando também a ambição. Na galeria proustiana, porém, Charlus não é o homossexual, nem a homossexualidade, mas um homossexual; Swan não é o ciumento, nem o ciúme, mas um ciumento. Balzac e Proust fizeram psicologia aplicada, mas o que diferia era o tratamento psicológico das personagens.

Dir-se-á, e é verdade, que, sendo assim, jamais as personagens de Proust terão a vida independente de um Grandet, ou de um M. Homais, ou mesmo do nosso Conselheiro Acácio - isto é, no sentido da popularidade irracional, da existência autônoma na linguagem corrente de leitores e não leitores, como seres despregados de seus criadores e mais conhecidos do que eles próprios. Pois o “tipo” é mais simples para ser fixado, entra na memória como representação construída do que já se acha lá de modo fragmentário e informe, torna-se mais fácil de ser “decorado’, como a poesia com metro e rima regulares. Mas as personagens-indivíduos alcançam compensação numa glória de outra natureza.

Ante Grandet ou Acácio, por exemplo, o leitor dirá:

Como é natural este tipo! Conheço muita gente que é exatamente assim.

E terá o prazer de identificar as personagens através do que já sentia confusamente nas relações com os seus semelhantes na vida real.

Ante Albertine ou Charlus, porém, a exclamação do leitor será diferente:

Como é estranha esta figura! Nunca vi um ser humano de tal natureza, com tantos mistérios e contradições.

E terá o prazer da descoberta ao acompanhar o romancista nessa exploração em profundidade dentro do território humano.

                                (Da técnica do romance em Marcel Proust, 1951.)

 

ESTILO LITERÁRIO E ESTILO CIENTÍFICO

Estudo da obra de Roquette-Pinto

Antes de tocarmos em cheio na obra do cientista, vejamos em que sentido, ou em que proporção, o autor de Rondônia pertence aos quadros da Literatura, como sabemos que pertence aos da Ciência. Questão fundamental, esta, não só para a avaliação do conjunto estrutural da personalidade e da obra de Roquette-Pinto, como também a jeito de uma operação de esclarecimento prévio, sem o que poderíamos mergulhar todos, a este respeito, num equívoco de humor involuntário.

De Roquette-Pinto sabe-se que foi, antes de tudo, um espírito científico posto face a face com a natureza. Sabe-se também, por outro lado, que é mais difícil escrever uma bela página literária do que realizar uma boa experiência de laboratório ou de campo. Desde muito tempo, talvez, porém desde Renan com certeza, sobretudo em L’avenir de la science, pôs-se em causa o problema das diferenciações entre estilo literário e estilo científico, como as linguagens de dois mundos, às vezes comunicantes, distintos quando conceituados em argumentos de absoluto.

[...]

Afigura-se-me que a forma literária de Roquette-Pinto ultrapassou com vantagem, esteticamente, o esquematismo de tão rígidas teorizações [de René Wellek e Austin Warren]; e que ele atravessou tais fronteiras, entre a linguagem literária e a linguagem científica, por efeito da mesma ciência íntima de escritor e de artista do seu colega, o polígrafo João Ribeiro, que via as fronteiras como prisões, esquivando-as com ligeireza, graça e bom gosto.

Recuso-me a aceitar, porém, que Roquette-Pinto venha a figurar na Literatura pelos seus contos de Samambaia (1934), volume em que, na primeira parte, se pode valorizar apenas alguma página naturalista ou impressionista, como o admirável retrato de seu avô, em que tanto revelou do seu próprio caráter forte e bondade sensível, produzindo-o como se ele mesmo estivesse a confessar-se nessa evocação, feita em largos traços, do velho João Roquette. Ou, na segunda parte, algumas páginas de observação ou reflexão do velho Duarte, teceduras e verídicas, conquanto mal disfarçado o personagem em figura inventada.

Dos contos de Samambaia, em conjunto, tudo me parece mal nascido e mal-acabado. Mero divertimento de cientista. Em verdade, sobre o mestre Roquette-Pinto não baixara o dom da plástica imaginação romanesca; e nele não habitava a arte de ficção: arte figurativa por excelência. Figurativa, talvez, não no mesmo grau da pintura e da escultura, que nos facultam uma visualidade direta; figurativa sob outro prisma, de maneira bem mais completa e perfeita, porque a estátua e o quadro exibem a figura numa só posição, enquanto o personagem da arte do conto ou do romance pode mostrar-se em numerosos desdobramentos de fisionomias físicas e estados psicológicos. Esta arte da ficção não seria o forte do grande Roquette-Pinto. Tampouco seria qualquer espécie de literatura pura. Acredito fácil a verificação de que nas diversas vezes, e fiz anotações neste sentido, folgando apenas por não haverem sido muito numerosas, em que o mestre deletreia abstratamente, sem ponto de apoio na realidade, como plumitivo de belas-letras, ou incursiona num terreno de devaneios largados e abandonos emocionais para alguma formulação puramente literária: então, o resultado, no geral, é de qualidade secundária, senão constrangedora. Seja, isto, em certas passagens de eloquência discutível, portanto desajustada à grandeza do sábio, seja em alguns daqueles seus estados, raros ainda bem, de sentimentalidade indiscreta, a encobrir-se a espaços o que é ainda pior num verbalismo com tendência para o sublime ou o bonito de lantejoula. Tudo de gosto duvidoso ou indiscutível mau gosto.

***

Ora, se o homem de ciência Roquette-Pinto pertence aos quadros da Literatura, e é evidente que sim, isto se deve exclusivamente ao estilo de arte literária com que ele exprimiu ou revelou a tão variada temática das suas obras. Não é pelos contos, nem pelos versos, que se encontra Roquette-Pinto na bem-aventurança do Reino das Letras onde também ocorre que muitos são os chamados e poucos os escolhidos, mas graças à forma de expressão, ao estilo literário, ao ritmo do seu mundo interior quando exteriorizado para ordenar esteticamente a temática do cientista e as ideias positivas do pensador.

Está nos quadros da Literatura, não apenas nos da Ciência, pela frase vibrátil, pela composição esteticamente proporcionada de tantos capítulos de Seixos rolados e Ensaios brasilianos; ou, entre as obras menores, da aula “Conceito atual da vida” (1920), do guia das coleções do Museu Nacional sob o título Antropologia (1915) das conferências sobre Goethe (1932), Leopardi (1942) e Saint-Hilaire (1953). Está nos quadros da Literatura, pela dúctil forma expositiva e dignidade de expressão verbal do pensamento, em livro de maturidade suprema como Ensaios de antropologia brasiliana (1933). Está nos quadros da Literatura, principalmente, pela forte construção estrutural de Rondônia (1916), em que se alternam as páginas de ascética objetividade do cientista e as páginas de emotividade do artista tragadas com beleza formal.

Fixemos um exemplo pelo avesso: esta mesma obra Rondônia, e com este mesmo aparelhamento científico, se fora mal escrita, ou construída aleijadamente, não seria literatura: seria ciência, apenas ciência. Pois é pelo estilo que um autor e uma obra se instalam na Literatura. O estilo: selo e sinal de sua nobreza. Não o esqueçamos: é pelo estilo, em primeiro lugar, que um ser se realiza, se fixa e permanece. E não só o homem; as vidas coletivas também. Sim, pelo estilo é que as civilizações subsistem; e prolongam-se em outras idades. Representa, assim, a arte estilística um elemento de perpetuidade e imortalidade dos seres; aquele que mais seguramente oferece uma garantia de sobrevivência.

Aliás, as características do estilo de Roquette-Pinto não são o refinado esteticismo, nem mesmo a beleza depurada em requinte verbal. Caracterizam-no outros valores: a medida, a clareza, o equilíbrio, a ordem; e o emprego preciso dos vocábulos, habituado que se achava desde muito à construção dos períodos curtos, claros, diretos, ainda isto representando, no seu caso, um recurso didático de professor em permanente comunicação escrita com o publico.

Não obstante, como na conferência sobre Saint-Hilaire, ou como numa das primeiras páginas de Rondônia, que mais adiante transcreverei, situando-a entre as mais fortes e nítidas já escritas por um homem de ciência no Brasil, utiliza-se às vezes Roquette-Pinto das frases longas, em que, através de incidências coleantes, pontuações abundantes e sinuosidades sintáticas, o pensamento se desenrola igualmente, por entre essas mesmas sutilezas e habilidades, para operar uma penetração aguda ou duradoura no espírito do leitor, repercutindo mais fundo em sugestões emocionais, infiltrando-se em nuanças psicológicas ou sociológicas.

***

E aqui está como se me afigura a beleza difícil, rara, contudo sempre necessária, de uma frase longa e desdobrada: que ela nos transmita, afinal, a imagem de um corpo a avançar, ou a deslizar, com a lentidão, a elegância e a dignidade de um cisne sobre as águas. Acrescente-se, em consequência, que uma lição musical do estilo consiste em criar ou desenvolver, num processo quase imperceptível de interioridade, um ritmo harmônico por efeito do jogo entre frases longas e curtas, lentas e apressadas, desde que haja, no escritor, a ciência literária como a tinha, em música, César Frank capaz de justapor e imbricar um motivo-andante e um motivo-alegro.

 

PONTO CULMINANTE: RONDÔNIA

 Que é Rondônia? Ao contrário do que se imagina, geralmente, tal designação. não surgiu com a excursão de Roquette-Pinto, nem foi por ele buscada para título do seu livro. É de sua invenção, mas sucedeu à viagem. Explicou-lhe o sentido, numa nota de pé de página, em Rondônia:

“Inaugurando as conferências do Museu, em 1915, o autor propõe esse nome {Rondônia) para designar a zona compreendida entre os rios Juruena e Madeira, cortada pela Estrada Rondon. Os elementos geológicos, geográficos, botânicos, zoológicos, antropológicos e etnográficos que tal região tem fornecido, originais e numerosos, justificam a criação dessa província antropogeográfica.”

Apressara-se Roquette-Pinto em estudar essa região isolada e esse povo ainda no paleolítico porque temia um desvirtuamento, uma descaracterização, ante a chegada e a influência dos instrumentos ou objetos da civilização. Temia que se perdessem os fenômenos etnográficos dos povos da região, usos, costumes, hábitos, práticas, indústrias, técnicas, arte, religião, política. Pouco depois vinha-lhe, realmente, este exemplo: ao sair publicada, quatro anos após a viagem, a primeira edição de Rondônia, aqueles índios já não usavam ou lá nem mais existiam os machados de pedras, para eles, então objetos de riso. Já se sentiam superiores com o machado de aço.

Evocou Gastão Cruls, em artigo na Revista Brasileira de Medicina, número de outubro de 1954, o retorno de Roquette-Pinto da Serra do Norte, após alguns meses de contacto, experiência, até mesmo intimidade com a vida paleolítica dos nhambiquaras. Trazia já, no espírito, a Rondônia, a maneira de Euclides, com Os sertões, ao tornar de Canudos. E recorda o amigo íntimo que Roquette vinha abundante e transbordante de notas, observações, vocabulários, croquis, fichas antropométricas, filmes documentais, fonogramas; material etnográfico. Dir-se-ia um mundo largo, o mundo ao ar livre, que transportava para dentro do seu quarto. Ao Museu Nacional fez entrega de cerca de uma tonelada dos seus documentos, todo um material de cientista moderno: filmes, clichês etnográficos, fichas antropométricas, até fonogramas, pois, avisado naturalmente pelo seu senso musical, não se esquecera de fazer gravações nativas de canções sertanejas e músicas ameríndias.

Não surgia Rondônia como uma improvisação de viagem ou efeito mágico de uma excursão fascinante. Representava o coroamento de uma série de estudos especializados sobre o indígena. Já chegado da Serra do Norte, mas antes do lançamento de sua obra-prima, no intervalo entre a viagem e a publicação do livro, pronunciou ele, na Biblioteca Nacional, duas conferências muito eruditas, documentadas com o material mesmo trazido de Mato Grosso. E, ao escrever e publicar Rondônia, não se preocupou, nem com a publicidade, nem com o sucesso imediato. Tanto a primeira tiragem, de 1916, como a segunda, de 1917, apareceram em edições dos Anais do Museu Nacional. Diga-se, de passagem, que foram edições maravilhosas, pelo luxo do papel como pela abundância das ilustrações, e que hoje fazem morrer de inveja aqueles que se têm de contentar com os vulgares volumes das tiragens a partir da terceira edição, aliás somente surgida, isto chega a ser surpreendente ou espantoso, dezenove anos depois do seu lançamento: em 1935.

***

Tecnicamente, como método de estudo e realização, Rondônia é obra de investigação direta. Uma obra de campo, sistematicamente elaborada, mediante emprego de processos rigorosamente científicos, como não se fizera ainda entre nós, com relação ao indígena brasileiro, tão explorado, não obstante, como motivação para variações literárias, material de observação para cronistas, assim tanto nacionais quanto estrangeiros, desde os primórdios do Primeiro Século. Na verdade, desde o descobrimento do Brasil, com a “Carta de Pero Vaz de Caminha”.

A Os sertões classificara Roquette-Pinto como “um tratado de etnografia indígena’. Por subtítulo traz Rondônia estas palavras caracterizadoras do conteúdo e dos objetivos da obra: Antropologia- Etnografia.

Perguntamos: e o geógrafo, o historiador, o sociólogo, o naturalista? Estão presentes, sem dúvida, nas páginas de Rondônia. E também o escritor, o artista, o homem de letras, isto a exprimir-se principalmente pelo estilo, impondo-nos a revelação de um livro original, científico, objetivo, documentado, ao mesmo tempo que vazado em boa forma literária.

Percorre, a Rondônia, um caminho que vai da objetividade daquelas páginas, um tanto insípidas para os profanos, em que o cientista técnico faz a biometria de tribos inteiras, ou daquelas em que a meticulosidade do médico, nunca deslembrado do seu ofício, descreve o fenômeno de dermatose esfoliativa observada nos índios locais, até o surgimento do escritor de humana sensibilidade e excelente forma de expressão. Citemos, a propósito, um trecho da sua pagina mais afamada entre os leigos, de efeito mais literário, a página “A morte do cavalo”, certamente julgada antológica, que merecia, ouço dizer, a preferência do próprio Roquette-Pinto:

“Em pé, pernas abertas para não cair, arquejante, o pelo riscado por alguns fios de sangue a jorrar do pescoço, da anca e da barriga, um triste pedrês, magro e pisado, tremia num arrepio imenso, como se fosse um grande cavalo de gelatina.

Das feridas surgiam, oscilantes, ensanguentadas também, longas flechas retidas no corpo do animal pelas farpas agudas.

Extraímo-las do mísero cavalo. E seguimos lentamente, dando-lhe tempo para que nos acompanhasse no seu passo de moribundo. Sempre a tremer, ia arrastando o corpo. Parava um pouco. Depois continuava com esforço, como desejando livrar-se, em último arranco, daquele meio fúnebre. Um quilômetro adiante, deteve-se, dobrou os joelhos, deitou-se sobre o flanco; pôs-se a tremer ainda mais, e lá ficou morrendo...”

Por mim, se tivesse de me decidir por uma pequena página antológica de Rondônia, esta seria outra e bem diversa: aquela que deletreia sobre a ciência ante as nossas possibilidades. E por quê? Porque aí é que se encontram, como eles são, nem mais nem menos, nem melhores nem piores, o cientista e o escritor:

“A ciência vai transformando o mundo. O paraíso, sonhado pela gente de outras idades, começa a definir-se aos olhos dos modernos, com as possibilidades que o passado apenas imaginava. O homem culto chegou a voar melhor do que as aves; nadar melhor do que os peixes; libertou-se do jugo da distância e do tempo; realiza em um continente o que concebeu em outro, alguns momentos antes; ouve a voz dos que morreram, conservada em lâminas, com o seu timbre, e as inflexões da dor e da alegria; imortaliza-se, arquivando a palavra articulada, com todas as suas características, e as suas formas e seus movimentos, com todas as minúcias; e enquanto, mágico inesgotável, vai modificando a terra e lutando contra a fatalidade da morte, fazendo reviver as vozes que ela extinguiu, as formas que ela decompôs, o homem não consegue transformar-se a si mesmo, com igual vertiginosa rapidez.”

Serviu Rondônia como o mais forte contato de Roquette-Pinto com a natureza, com os primitivos donos da terra. Daí por diante, fortificou-se o que nele já era uma tendência inata: a consideração dos fatos acima das abstrações; a valorização dos homens acima das próprias ideias; a tomada de partido em favor do indígena contra a cobiça, a violência e a injustiça dos homens brancos. Dir-se-ia que pela prática também chegara ao mesmo exercício que o Senador Nabuco de Araújo chamara a “política silogística”. Lembremo-nos em que consistia. Explica-a assim o velho Nabuco, segundo o trecho transcrito por Joaquim Nabuco, em Balmaceda:

“Uma pura arte de construção no vácuo. A base, são teses e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o Mundo, e não o País.”

Dir-se-ia que o jovem Roquette-Pinto meditara a sério, convincentemente, sobre a decisão necessária de cada homem público no Brasil em face da chamada “política silogística” do velho Senador Nabuco. Deste modo, aos 32 anos, no momento da publicação de Rondônia, já fizera a sua escolha e marcara uma decisão: pelos fatos, não pelas teses; pelos homens, ainda mais do que pelas ideias; pelo seu País, colocado, em deveres e preocupações, muito acima do Mundo.

Em prefácio, para a segunda edição de Rondônia, fala Roquette-Pinto de sua alegria sentida com as observações científicas que pôde realizar, consideradas por ele próprio “quase todas de grande alcance para o conhecimento da antropologia sul-americana”. Mas, como brasileiro, só se julgou bem pago daqueles dias de privações e perigos “porque voltou da Rondônia com a alma confiante na sua gente, que alguns acreditam fraca e incapaz, porque é povo magro e feio...”

E a isto acrescenta, como a definir, a exprimir, a caracterizar seu nacionalismo, ainda mais do homem brasileiro do que de nossa terra e de nossa natureza física, as seguintes proposições:

“São feios, efetivamente, aqueles sertanejos; muitos, além disso, vivem trabalhando, trabalhados pela doença. Pequenos e magros, enfermos e inestéticos, fortes, todavia, foram eles conquistando as terras ásperas por onde hoje se desdobra o caminho enorme que une o Norte ao Sul do Brasil, como um laço apocalíptico, amarrando os extremos da pátria. É preciso ir lá para retemperar a confiança nos destinos da raça, e voltar desmentindo os pregoeiros da sua decadência.”

***

Esclareça-se, desde logo, que é pela Rondônia, e na época da Rondônia, que Roquette-Pinto inicia a sua destemerosa campanha, campanha científica, política, moral, tribunícia, jornalística, pelo que ele próprio chamava a reabilitação do homem brasileiro.

E não só do índio; do mestiço, no genérico. Com o indígena, neste sentido, tudo seria mais fácil e aceitável. Fora o indígena poetizado desde a “Carta de Pero Vaz de Caminha”, que o assinala como “de bons rostos e bons narizes, bem feitos”, abrindo com tais descrições o mito de uma terra idílica na América Meridional. Daí por diante, em sequência, o resto se compreende: aos olhos dos civilizados, o indígena era o ser estranho, desconhecido, pitoresco. Ou espetacular, nas excentricidades. Prestava-se para a novela, a lenda, a fábula; para as narrativas românticas que impressionavam as plateias da Europa. É sempre o indígena brasileiro o tema principal nas obras de viajantes, como Hans Staden, André Thevet, Jean de Léry, La Condamine; nos tratados dos informantes portugueses, como Gandavo e Gabriel Soares; nas cartas e crônicas dos jesuítas, como Anchieta e Fernão Cardim. E não esqueçamos que mais tarde, grande parte da ação romanesca do Robinson Crusoe virá a desenvolver-se em território brasileiro, nas costas da Bahia.

Enquanto o mestiço, este sim, necessitava defesa e reabilitação. Para tanto, Roquette-Pinto se dispõe a uma doutrinação constante e pertinaz, ao mesmo passo que objetiva, documentada e científica. Utiliza-se, contra os preconceitos ou tolices dos racistas, de todos os recursos de convicção e combate: percorre o caminho inteiro que parte da doutrina culta, passa pela polêmica, deságua na sátira e no ridículo. E esta é uma temática, mais ainda, uma causa pela qual batalhará até o fim da vida. Como doutrinário: nos livros; como cientista: em experiências e demonstrações no Museu Nacional; como professor, educador, debatedor de ideias: nas cátedras universitárias ou nas tribunas leigas; como jornalista: em sucessivos, quase monótonos artigos na imprensa.

 

                                               (Jornal de crítica: sétima série, 1963.)