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Discurso de posse

Pioneirismo e Estrangeirismo

Senhor Presidente da República, Senhores Embaixadores e Representantes de Nações Estrangeiras, Senhores Membros do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, Senhores Ministros de Estado, Senhores Magistrados de Altos Tribunais do Poder Judiciário, Senhores Autoridades Civis e Militares na União e nos Estados; Minhas Senhoras e Meus Senhores; e, por fim, mas não em último lugar, apenas por serem os donos da Casa: Senhor Presidente da Academia e Senhores Acadêmicos.

Giramos sobre dois eixos: um vertical, o dos Estados Unidos da América; outro, horizontal, o da Europa; o primeiro, mais de caráter político e econômico; o segundo mais de caráter sentimental e cultural.

Aliás, este é, também, um drama de espírito dos próprios norte-americanos, e a figura de Henry James, com o seu problema literário, elevou-se, sob vários aspectos, à categoria de símbolo e representação, bastando lembrar que se repetiu em nossos dias, de certo modo, na personalidade de T. S. Elliot. Para os Estados Unidos, Henry James, que lá nasceu e lá passou a sua juventude, é talvez o autor mais importante da literatura norte-americana, o fundador da sua crítica e o seu maior romancista; para o mundo britânico, Henry James, que se naturalizou inglês, é um dos grandes romancistas do país do romance por excelência que é a Inglaterra.

Sim, tão funda e tão aguda foi em Henry James a nostalgia da Europa que ele abandonou um dia os Estados Unidos e se fez cidadão da Inglaterra; mas permaneceu na sua obra, igualmente, uma substância norte-americana, um inapagável espírito americano. Nos seus principais romances surgem, sempre, como figuras de primeiro plano, personagens norte-americanas que vêm fazer a experiência da Europa, e em geral ­- misteriosa transposição psicológica pela arte da ficção! - essas personagens se desiludem e se perdem, caídas em frustração e desencanto.

Possuímos em comum com os Estados Unidos da América o mesmo grande problema em dicotomia, que eles já resolveram e que para o Brasil se encontra agora na fase decisiva: o pioneirismo e o estrangeirismo, a necessidade de penetração no interior do País e a curiosidade pela Europa. De um lado, a técnica, o progresso, a evolução econômica, as exigências políticas de Estado, que nos convidam a avançar cada vez mais adentro do continente sul-americano; de outro lado, os olhos ainda voltados para a Europa, para as suas idéias, as suas criações artísticas, os seus itinerários espirituais.

Deste modo, não compreenderá bem a literatura brasileira quem a não tomar como realidade americana, como uma literatura, é certo, ligada às correntes européias, sobretudo às portuguesas, mas que apresenta hoje um autônomo e inconfundível espírito brasileiro. A todo esse patrimônio, recebido a princípio de Portugal, em seguida da Europa e dos Estados Unidos, impregnamos de um estilo próprio, que não significa ruptura com o passado, mas afirmação de individualidade num povo jovem que já entra a sentir a capacidade de viver por si mesmo, embora sem dispensar as influências ou até as lições de povos mais velhos e experimentados.

Para isto, de certo modo, tivemos de voltar às nossas fontes. Na estrutura de Nação, o Brasil foi feito por cima, herdando instituições, idéias, estilos que a Europa só conquistara após séculos de pesquisa e evolução própria nas suas condições e necessidades. Éramos, pois, nos primeiros tempos, bastante mais velhos do que a nossa idade, e um pouco postiços nesse arcabouço social e intelectual assim transportado de outro clima e de outras paisagens. Quando nem sequer tínhamos tido o gosto da genuína poesia popular ou trovadoresca, quando nunca tínhamos feito as cantigas d’amor e as cantigas d’amigo, colocávamo-nos na postura de imitadores de Camões, Gôngora e Quevedo, que representavam momentos culminantes na literatura clássica de Portugal e de Espanha. Hoje, somos mais jovens, na tentativa de uma literatura, de uma cultura brasileira e sul-americana. Imperfeitos - sim; porém mais autêntica, mais voltada para as suas fontes e realidades, mais jovem e mais brasileira é hoje a nossa literatura do que aquela que aqui se praticava, com muita boa vontade e sensível artifício, na infância da nossa história.

Esta afirmação de espírito nacionalista e esta invocação da infância da nossa história - isto nos faz com naturalidade introduzir no salão nobre desta Casa a lembrança, e neste discurso o nome, do meu antecessor na Cadeira no 17, por sinal uma das mais nobres, das mais afamadas, das mais enriquecidas de valor e tradição entre as cadeiras da Academia Brasileira, desde o patrono, Hipólito José da Costa, passando pelo fundador, Sílvio Romero, até o último ocupante, Edgar Roquette-Pinto, a quem me coube o destino de suceder e substituir, sem fazê-lo, no entanto, desaparece; nem a ele, nem aos seus predecessores, como é da natureza da nossa instituição, que tem por si, não ouso dizer a imortalidade, mas a sensação e a compostura da duração no Tempo.

Com efeito: que outro homem de estudos, de pesquisas, de laboratório, de ciência e de técnica se poderia apontar, entre nós, tão dividido quando Roquette-Pinto - dividido harmoniosamente, e não dilacerado - entre a mais requintada cultura européia, precipuamente a da França, e a mais primitiva e ainda fechada cultura sul-americana, em particular a do Brasil? Para ele, o gênio maior da humanidade foi um europeu marcado especificamente de universalismo, Kepler, a respeito de quem confessou em entrevista dada na maturidade do cinqüentenário, que assim o considerara sempre, desde estudante de Cosmografia, aos onze anos. O modelo amado de Roquette-Pinto, festejado às claras, imitado com discreta publicidade, acho que igualmente desejado para comparação e réplica - era a figura de Goethe, no qual admirava, mais do que a conjugação de cientista e artista, a  harmonia das atitudes olímpicas e a paz interior do sábio. E deixou Roquette-Pinto que se conhecesse, sem reservas, essa “afinidade eletiva”, ao colocar na parede do seu apartamento da Avenida Beira-Mar um retrato de Goethe ao lado dos retratos do pai e da mãe. Amador ainda foi Roquette-Pinto - veja-se este terceiro e último exemplo - de um poeta formalista e sofisticado como François Coppè, a quem valorizou, não obstante, ao dedicar-lhe, quando de seu centenário em 1942, uma conferência nesta Academia, aproveitando o ensejo, aliás, para produzir esta confissão: “A minha geração deve tudo, em matéria de cultura espiritual, ao gênio da gente francesa. Filosofia, Ciência, Letras, Arte, Técnica... tudo foi Ela que nos ensinou. A gramática em que aprendi as minhas vagas noções da língua alemã, o próprio dicionário alemão de que me sirvo... são franceses”.

Entretanto, a outra face de Roquette-Pinto está mergulhada na extensão e profundidade do território brasileiro. Se é simbólico que um carioca, Machado de Assis, nunca se tenha afastado do Rio de Janeiro, é ainda mais simbólico que outro carioca, Roquette-Pinto, tenha cortado, atravessado, estudado e amado o Brasil nas mais diversas regiões, em todos os seus quadrantes e recantos, à maneira de um pioneiro supercivilizado ou de um bandeirante animado de preocupações científicas.

Partiu muito moço, recém-formado, em direção à parte meridional do nosso País, para estudar, no extremo Sul, os sambaquis das lagoas do Rio Grande. Entretanto, compraz-se igualmente, no extremo Norte, quer na observação curiosa, quer na meticulosa análise de uma formiga amazônica e da semente também amazônica do camaru, a respeito das quais mais tarde escreverá duas de suas monografias especilizadas: a Dinoponera grandis - Tocandira (1927), em forma de memória apresentada à Faculdade de Medicina para obtenção da livre-docência de História Natural, e a Nota sobre a Ação Fisiológica da Fava-Tonka (1925), incluída no texto dos Atos do Congresso Internacional de Biologia de Montevidéu. Não lhe escapou, nestes giros, a região nordestina, sendo Pernambuco, aliás, a terra do seu pai: percorreu-a, e escreveu um trabalho sobre os índios primitivos do Nordeste. E, por fim, aquela viagem suprema: a penetração numa zona inexplorada do território nacional, o contato de meses com um grupo de ameríndios até então virgens de comunicação com os homens brancos, a entrada na Serra do Norte, o avanço em rumo ao coração do Brasil, no Mato Grosso, para a visão e estudo do indígena no mundo da Rondônia.

II

A Linha do Destino em Roquette

Neste espírito volvido simultaneamente para as situações mais civilizadas e para as zonas mais bárbaras, em qualquer delas possuído sempre de preocupações científicas e artísticas, tem-se já uma imagem da personalidade de Roquette-Pinto - sentindo-se tão à vontade numa reunião de sábios em Paris ou em um congresso de cientistas em Londres como na cátedra de fisiologia em Assunção; falando tão naturalmente a mais aperfeiçoada das línguas européias, o francês, como a mais típica das nossas línguas primitivas, o tupi, do qual chegou, aliás, a preparar um dicionário, entregue por ele próprio ao Instinto Histórico, em sessão solene. Nesta mesma Academia - cito-vos os dois casos, dado o único interesse que eles apresentam: o do contraste - Roquette-Pinto pronunciou em francês uma saudação à Embaixatriz Louise Hermitte e pronunciou em tupi-guarani uma saudação ao General Morinigo, então Presidente da República do Paraguai.

Uma das ligações a estabelecer entre o fundador da Cadeira no 17 e o meu antecessor encontra-se na proposição ou afirmativa de Sílvio Romero sobre o ideal da nossa cultura, que deveria consistir ainda por algum tempo, a seu ver, na aplicação de processos e métodos estrangeiros para o levantamento e estudo dos problemas nacionais. Enquadrou-se Roquette-Pinto, sem dúvida, neste conceito: a sua obra acha-se repleta de citações de autores estrangeiros e menções de teorias científicas universais, mas o assunto, a temática, o objetivo, a ideologia, a matéria substancial dos seus escritos - esta é toda brasileira. E isto representou para ele uma das forças do seu nacionalismo como um fogo sem cessar renascente e incandescente.

Posto conhecesse bem a cultura européia e a norte-americana - e não digo que Roquette-Pinto as conhecia a fundo, porque dispersado antes em extensão e variedade, segundo seus gostos e preferências - só de raro, porém, escrevia a propósito de assunto alheio ou figura estrangeira, exclusivamente debruçado que se encontrava sobre homens e problemas do Brasil, fazendo exceção apenas para alguns autores que se haviam interessado pelo nosso País, enriquecido a ciência com o aproveitamento de material brasileiro e estudos feitos entre nós: Hartt, Von den Stein, Martius, Fritz Müller, aos quais dedicou ensaios ora curtos, ora longos, depois capítulos de livros como Seixos Rolados (1927) e Ensaios Brasilianos (1941), além de outros nunca recolhidos em volume - ensaios, em geral, reveladores de um à-vontade de idéias e expressões, uma disponibilidade de espírito e uma numerosidade de proposições que logo nos fazem recordar, embora com o prudente resguardo das proporções, alguns modelos do gênero em Montaigne ou Matthew Arnold.

De que modo encontrou Roquette-Pinto a linha do seu destino, determinando-se na fixação de itinerários e ideais a que permaneceu fiel durante a vida toda?

Não me impressiona o entrelaçamento entre os anseios da infância e as obras do sábio, que ele mesmo pretendeu compor para a posteridade, ao declarar em 1936, numa entrevista, que na idade adulta apenas se reafirmaram e desenvolveram as suas tendências naturais: “grande prazer no movimento e no trabalho manual, uma grande curiosidade pela natureza... e um pouco de amor aos livros”.

De outra parte, em alguns depoimentos para jornais ou revistas, Roquette-Pinto contou mais de uma vez como viera a ingressar na Faculdade de Medicina. Concluindo o curso de humanidades, o seu lado sonhador ainda o inclinava para a carreira de oficial da Marinha - porque fora desde os 15 anos “um amoroso de viagens” e queria “desvendar terras, ferir novos continentes, depois de dias e dias de mar e céu”. A seguir, volvidos tantos anos, o homem de ciência ainda parecia nostálgico do adolescente em enquête da Revista da Semana: “Ainda hoje, o meu espírito costuma fazer desses malabarismos ingênuos, vadeando nos livros, matando o desejo e a curiosidade das viagens nas angras e nas ilhas selvagens das páginas onde se aprende alguma coisa”.

Um encontro com Francisco de Castro, por ocasião de pequena viagem em trem da Central do Brasil, alterou-lhe o rumo da bússola interior. O amigo de Machado de Assis e Rui Barbosa convenceu-o facilmente de que estava iludido naquele entusiasmo de menino. Mostrou-lhe pela primeira vez como são fascinantes os quadros da Biologia. Passou-lhe ao espírito essa opinião decisiva: um rapaz tão insolitamente curiosos devia buscar na ciência a ocupação da sua atividade intelectual e profissional. E aconselhou ao jovem já convencido o ingresso na Faculdade de Medicina.

Foi como estudante na Faculdade de Medicina que Roquette-Pinto conheceu de perto, por ele se entusiasmando, o Professor Augusto Brant Pais Leme, catedrático de Anatomia Médico-cirúrgica; proclamaria mais tarde que à influência desse mestre, revelador de quanto era fascinante a ciência das raças humanas, devia a direção dos seus primeiros impulsos e curiosidades para o estudo da Antropologia. E este apaixonado interesse pela Anatomia, no jovem Roquette-Pinto, faz-nos lembrar - por força mesmo inconsciente dessa associação de idéias e lembranças que nos conduz a todas as aproximações possíveis entre o nosso solitário do apartamento da Avenida Beira-Mar e a endeusada figura de Weimar - que também Goethe, em 1784, por ocasião dos seus estudos de Anatomia Comparada, com a alegria eufórica de uma descoberta em osteologia, classificada como “importante e bela” (e para ele próprio somente comparável a outra que realizaria mais tarde, no Jardim Botânico de Palermo), revelava também o seu encantamento com a Anatomia nesta observação dirigida a Knebel: “Toda criatura não é mais do que um tom, nuança de uma grande harmonia que cumpre estudar em seu conjunto, sob pena de desaparecer o indivíduo como uma letra sem vida no alfabeto”.

Quanto a mim, nenhuma daquelas explicações acerca de fatores ocasionais ou interferências pessoais a conduzirem o jovem Roquette-Pinto para o seu destino de homem e a orientação da sua obra - nenhuma delas se apresenta de todo satisfatória e convincente. Pois dando como certo que as sugestões de Francisco de Castro determinaram em sua carreira a substituição da Marinha pela Faculdade de Medicina, e que a fascinação do professor de Anatomia suscitara decisivamente o seu interesse pela ciência das raças com o cultivo especial da Antropologia - ainda assim, e admitindo como assentada a sua deliberação de estudar, em conseqüência, exclusivamente o homem brasileiro - como explicar que de preferência não se inclinasse para o estudo da superioridade por excelência vitoriosa do branco em nossa etnia, ou se não dedicasse ao estudo do negro na composição antropológica, etnográfica, psicológica, sociológica e histórica do nosso povo, voltando-se desde o princípio, sem variações e como que numa linha reta, para o indígena, a ponto de haver o seu primeiro trabalho conhecido e publicado, a tese de doutoramento na Faculdade de Medicina, ventilado o tema Etnolografia Americana ­- O Exercício da Medicina entre os Indígenas da América (1906), razão pela qual é hoje considerado como o seu passo inicial para atingir a etapa superior da concepção, elaboração e construção da Rondônia?

Na resposta, na desvendação de motivos, no querer-saber-por-quê, eis que tudo resvala para aquela zona oscilante e fugidia do inexplicável; e somente valem, aí, as conjecturas em torno do mistério da vocação, das tendências não reveladas e palpitações secretas do mundo interior, de tudo enfim que em Roquette-Pinto, ao lado do homem de ciência, já fazia pressentir o artista e adivinhar o poeta na curiosidade do adolescente - a curiosidade lançada em busca do imprevisto maravilhoso.

III

Estilo Literário e Estilo Científico

Antes de tocarmos em cheio na obra do cientista, vejamos em que sentido ou em que proporção o autor de Rondônia pertence aos quadros da Literatura, como sabemos que pertence aos da Ciência - questão fundamental, esta, não só para a avaliação do conjunto estrutural da personalidade e da obra de Roquette-Pinto, mas também como operação de esclarecimento prévio, sem o que poderíamos mergulhar todos aqui num equívoco de humour involuntário.

De Roquette-Pinto sabe-se que foi, antes de tudo, um espírito científico posto face a face com a natureza. Sabe-se também, por outro lado, que é mais difícil escrever uma bela página literária do que realizar uma boa experiência de laboratório ou de campo. Desde muito tempo, talvez, mas desde Renan com certeza, sobretudo em L’Avenir de la Science, pôs-se em causa o problema da diferença entre estilo literário e estilo científico como linguagem de dois mundos às vezes comunicantes, mas distintos quando conceituados em argumentos de absoluto.

E agora, numa das obras norte-americanas mais valiosas da moderna Estilistica - a Teoria Literária, de Rene Wellek e Austin Warren, os quais declaram, aliás, no próprio texto, que o plano desse volume encontra maior aproximação e correspondência com obras alemãs e russas - voltou a ser situada, dialeticamente, a distinção entre linguagem literária e linguagem científica. Para Wellek e Warren, a linguagem científica adquire a tendência, por sua própria natureza, de confundir-se com um sistema de sinais como os das Matemáticas ou os da Lógica Simbólica; enquanto a linguagem literária se garante pela sua integração mesma no simbolismo fônico da palavra, tendo sido inventadas para este objetivo as mais variadas técnicas, como o metro, a aliteração e as escalas fônicas.

Afigura-se-me que a forma literária de Roquette-Pinto ultrapassou com vantagem, esteticamente, o esquematismo de tão rígidas teorizações; e que ele atravessou tais fronteiras entre a linguagem literária e a linguagem científica por efeito da mesma ciência íntima de escritor e de artista do seu colega acadêmico João Ribeiro, que via as fronteiras como prisões, esquivando-as com ligeireza, graça e bom gosto.

Recuso-me a crer, no entanto, que Roquette-Pinto venha a figurar na Literatura pelos seus contos de Samambaia (1934), volume em que, na primeira parte, se pode valorizar apenas uma ou outra página naturalista ou impressionista, como o admirável retrato de seu avô, em que tanto revelou do seu próprio caráter forte e bondade sensível, fazendo como se ele mesmo estivesse a confessar-se nessa evocação, feita em largos traços, do velho João Roquette; e na segunda parte, algumas páginas de observação ou reflexão do velho Duarte, páginas verídicas, conquanto mal disfarçada a personagem em figura inventada. Dos contos de Samambaia, em conjunto, tudo nos parece mal-nascido e mal-acabado. Mero divertimento de cientista. Em verdade, sobre o mestre Roquette-Pinto não baixara o dom da platéia imaginação romanesca; nele não habitava a arte da ficção, arte figurativa por excelência. Figurativa não no mesmo grau talvez da pintura e da escultura, que nos facultam uma visualidade direta; figurativa sob outro prisma, de maneira bem mais completa e perfeita, porque a estátua e o quadro exibem a figura numa só posição, enquanto a personagem da arte do conto ou do romance pode mostrar-se em numerosos desdobramentos de fisionomias físicas e de estados psicológicos. E esta arte da ficção não seria o forte do grande Roquette-Pinto. Tampouco seria qualquer espécie de literatura pura. Acredito fácil a verificação de que nas diversas vezes - e fiz anotações neste sentido, folgando apenas por não haverem sido muito numerosas - em que o mestre deletreia abstratamente, sem ponto de apoio na realidade, como plumitivo de belas-letras, ou incursiona num terreno de devaneios largados e abandonos emocionais para uma formulação puramente literária - então, o resultado, no geral, é de qualidade secundária, senão constrangedora, seja em certas passagens de eloqüência discutível e, portanto desajustada à grandeza do sábio, seja em alguns daqueles seus estados raros, felizmente, de sentimentalidade indiscreta, a encobrir-se, a espaços, o que é ainda pior, num verbalismo com tendência para o sublime ou o bonito de lentejoula, tudo de duvidoso gosto ou indiscutível mau gosto.

Se o homem de ciência Roquette-Pinto pertence aos quadros da Literatura - e é evidente que sim – isto se deve exclusivamente ao estilo de arte literária com que ele exprimiu e revelou a tão variada temática das suas obras. Não é pelos contos, nem pelos versos, que se encontra Roquette-Pinto na bem-aventurança do Reino das Letras - onde também ocorre que muitos são os chamados e poucos os escolhidos - mas graças à forma de expressão, ao estilo literário, ao ritmo do seu mundo interior, quando exteriorizado para ordenar esteticamente a temática do cientista e as idéias positivas do pensador. Está nos quadros da Literatura, e não apenas nos da Ciência, pela frase vibrátil e composição esteticamente bem proporcionada de tantos capítulos de Seixos RoladosEnsaios Brasilianos, e, entre as obras menores, a aula Conceito Atual da Vida (1920), o guia das coleções do Museu Nacional sob o título Antropologia (1915), as conferências sobre Goethe (1932), Leopardi (1942) e Saint-Hilaire (1953). Está nos quadros da Literatura pela nobre forma expositiva e dignidade de expressão verbal do pensamento em livro de maturidade suprema como Ensaios de Antropologia Brasiliana (1933). Está nos quadros da Literatura principalmente pela forte construção estrutural de Rondônia (1916), em que se alternam as páginas de seca objetividade do cientista e as páginas de emotividade do artista traçadas com beleza formal. Fixemos um exemplo pelo avesso: esta mesma obra Rondônia, e com este mesmo aparelhamento científico, se fora mal escrita ou construída aleijadamente, não seria literatura: seria ciência e apenas ciência. Pois é pelo estilo que um autor e uma obra se instalam na Literatura. É o selo e sinal de sua nobreza. Não o esqueçamos: é pelo estilo, em primeiro lugar, que um ser se realiza, se fixa e permanece. E não só o homem; as vidas coletivas também: é pelo estilo que as civilizações subsistem e se prolongam em outras idades. Representa, assim, o estilo um elemento de perpetuidade e imortalidade dos seres: aquele que mais seguramente oferece garantia de sobrevivência.

Aliás, as características do estilo de Roquette-Pinto não são o refinado esteticismo, nem mesmo a beleza depurada em arte verbal. Caracterizam-no outros valores: a medida, a clareza, o equilíbrio, a ordem, o emprego preciso dos vocábulos, habituado que se achava desde muito à construção de períodos curtos, claros e diretos, ainda isto representando, no seu caso, um recurso didático de professor em permanente comunicação escrita com o público.

Não obstante, como na conferência sobre Saint-Hilaire, como numa das primeiras páginas de Rondônia - que oportunamente transcreverei, para situá-la entre as mais fortes e nítidas já escritas por um homem de ciência no Brasil - utiliza-se às vezes Roquette-Pinto das frases longas, em que através de incidências coleantes, pontuação abundante e sinuosidades sintáticas, o pensamento se desenrola igualmente, por entre essas mesmas sutilezas e habilidades, para operar uma penetração mais aguda ou duradoura no espírito do leitor, repercutindo mais fundo em sugestões emocionais, infiltrando-se em nuanças psicológicas ou sociológicas. E aqui está como se me afigura a beleza difícil, rara, contudo sempre necessária, de uma frase longa e desdobrada: que ela nos transmita, afinal, a imagem de um corpo a avançar e deslizar com a lentidão, a elegância e a dignidade de um cisne sobre as águas. Acrescente-se, em conseqüência, a esta altura, que uma lição musical do estilo consiste em criar ou desenvolver, num processo quase imperceptível na interioridade, um ritmo harmônico por efeito do jogo entre frases longas e curtas, lentas e apressadas, desde que haja no escritor a ciência - como a tinha em música César Frank - capaz de justapor e imbricar um motivo-andante e um motivo-alegro.

De qualquer modo, por educação científica e feitio de natureza humana, Roquette-Pinto evita sempre em sua linguagem o ornato pomposo ou a declamação retórica. O seu estilo feito de clareza, ordenação e lógica é uma expressão natural da sua personalidade de homem de ciência, assim como deve ser sóbrio, despojado, como que ascético, sem uma palavra ou frase não correspondente ao essencial, o estilo do estadista, obrigado a uma linguagem que apenas lhe traduza graficamente o pensamento de homem de ação e de governo, em contraste com o estilo do artista, sempre liberto para as imagens e metáforas, que por sua vez lhe imprimam a natureza sonhadora em estado de contemplação. E agrada-me ainda na expressão verbal e estilística de Roquette-Pinto um tom de quem se coloca acima de tudo para conservar certa atitude de pudor e distância, em termos de altura e distinção, sem que isto importe orgulho ou ainda menos pedanteria: é um tom superior com naturalidade e elegante com displicência; em suma, um tom aristocrático do espírito.

Dos versos de Roquette-Pinto não desejo ocupar-me aqui, a despeito de conhecer-lhe de perto algumas coleções de poemas, uns publicados na Revista da Academia, outros que ainda mais se valorizaram porque me foram lidos ao longo de toda uma tarde por sua própria filha. Num juízo superficial - e que Deus me inspire em sensibilidade e gosto para alterá-lo - parece-me que Roquette-Pinto, mais do que em sonetos e poemas, revelou-se poeta nas suas magníficas páginas de prosa com sentimento poético, como, por exemplo, em algumas de Rondônia, a sua obra científica por excelência, ou nos onze parágrafos do Credo, verdadeiro poema em prosa, sendo um código de idéias e convicções, escrito em 1935 para o Clube de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Não desejando nem me sendo possível imitar em coisa alguma a Roquette-Pinto - e ainda menos no seu admirável discurso de posse - vejo-me forçado a aplicar-lhe, em parte, o processo por ele adotado, naquela peça oratória, em relação ao seu antecessor, Osório Duque-Estrada. Louvou-o cordialmente, exuberantemente, como poeta: comprouve-se em transcrever, comentar, interpretar os versos da Flora de Maio ou das Trovas Populares, a ponto de invocar a arte poética de Gonçalves Dias para compará-la com a letra do Hino Nacional. Recusou-se, porém, a falar de Osório Duque-Estrada como crítico, desde que desvirtuado estava ele, na verdade, em miliciano de polícia gramatical no Registro Literário, ou em apaixonado agitador de questões personalíssimas em Crítica e Polêmica. Alegou Roquette-Pinto, com muito espírito, que tudo aquilo estava por demais perto de nós.

Pois bem: a sua poesia também está muito perto; e neste momento não quero tocá-la, nem comentá-la ou interpretá-la para um juízo de valor.

No entanto, confesso que me senti tentado, de quando em quando, a utilizar-me, aqui, dos poemas de Roquette-Pinto, considerando que são a única parte subjetiva, intimista e coloquial de sua obra, quando até os contos de Samambaia foram elaborados com matéria objetiva de nacionalismo e regionalismo. E sabem para quê? Para procurar, para pesquisar, para descobrir em tais produções poéticas de caráter subjetivo - as criaturas femininas que as inspiraram, ficando-se, assim, a conhecer os numerosos amores e as muitas mulheres deste nosso Goethe, tão inconstante e vário em suas paixões quanto o de Weimar. Acabei, porém, assaltado pelo receio - ainda mais literário que pessoal - das falsas atribuições, lançando os dados ao acaso, atirando as hipóteses ora muito além, ora muito aquém dos alvos femininos, ainda que isto não constituísse temerária indiscrição ou até um pecado contra o Espírito Santo.

Lembrei-me apenas - isto sim, humanamente - de um episódio adequadamente goethiano. Aconteceu que a Kaestener, noivo de Lotte Buff, enviara Goethe, certo dia, a sua poesia “O Viandante”. E desde então o poema passou a ser lido, interpretado, sentido como a expressão ou o reflexo das emoções de Goethe em relação a Lotte Buff. Depois, no entanto, veio a provar-se - e com quanta surpresa para todos! - que o “O Viandante” fora escrito e recitado por Goethe muito antes de ele conhecer Lotte Buff! E, proclamado o erro de atribuição biográfica, forçoso foi modificar a interpretação daquela obra goethiana.

Não sejamos, pois, imprudentes demais por força de impulsos da curiosidade. Não e não: deixemos por enquanto no intercurso do Purgatório ou na paz do limbo as poesias subjetivas, líricas, amorosas, de Roquette-Pinto.

IV

O Enciclopedismo de Roquette-Pinto

Dando por terminadas estas considerações sobre o estilo, abertas com o problema da distinção entre linguagem literária e linguagem científica, não quero fazê-lo sem citar uma página magnífica de comparação e aproximação entre o sábio e o artista, em termos e conceitos que considero insubstituíveis, não só para a compreensão da figura e da obra de Roquette-Pinto, senão também da sua presença mesma, por tantos anos, sempre estimado e festejado, nesta Academia. Trata-se, e ei-la aqui, de uma passagem do discurso de posse de M. Pasteur-Vallery Radot na Academia Francesa:

“Je ne vois pas de differénce entre l’artiste et le savant. Certes, les moyens de travail et les modes d’expression de l’un et de l’autre n’ont rien de commun mais leur but est le même: pénétrer le mystère de la matière et de la vie; ainsi nous fonti-ils percevoir l’âme du monde. Combien sont proches la joie du savant qui découvre un fait nouveau et l’enthousiasme de l’artiste qui extériorise sa vision intérieure du monde! Il n’est pas jusqu’à la satisfaction procurée par la connaissance des grandes lois physique ou biologiques qui ne soit de même nature que l’émotion ressentie à la vision ou à l’audition d’une oeuvre d’une beauté exceptionelle, car l’exaltation intellectuelle et la sensation artistique ne peuvent être differénciées quand elles ont à leur origine les principes d’harmonie qui régissent l’univers.”

Agora, retornemos à evolução, ao conteúdo, ao significado da personalidade e da obra de Roquette-Pinto, tomados nos seus padrões essenciais e nos seus valores intrínsecos. Da contemplação, como ante um monumento, e em seguida de uma séria exegese, a primeira reação que nos ocorre é a da surpresa. De um lado, a quantidade em equilíbrio com a qualidade, a extensão, a surpreendente variedade da sua cultura; de outro lado, aquela suprema liberdade do seu espírito, que lhe permitiu o máximo de imaginação no agir, inspirando-lhe ousadamente tão numerosas realizações e empresas como formador de gerações e educador da sua gente. Ora, em face de tanta sabedoria num homem só, de tantas ciências e técnicas na mentalidade de um ser com uma só existência, ante uma figura de obra tão variada e complexa como a de Roquette-Pinto - ficamos tentados, ao mesmo tempo, por espanto e comodismo, a aceitar aquela teoria do conhecimento, aprendizado e memória da filosofia platônica extraída ao vivo de uma experiência socrática. Isto porque o platonismo se tornou a mais antiga e sedutora forma de evasão da realidade, transformando tanto os conhecimentos em memórias de outra existência como quaisquer referências em recordações de episódios idênticos num outro mundo. Com efeito, diante do enciclopedismo de Roquette-Pinto, tentados pelas seduções do cepticismo, indolência e incapacidade, e para não termos de examinar ou explicar como toda esta obra saiu, dir-se-ia magicamente, da personalidade, da ciência, da arte, da técnica e da ação de um só homem - inclinamo-nos, num primeiro instante, a adotar a fórmula de evasiva e transposição da filosofia platônica:

“Nós não aprendemos nada; nós nos lembramos”.

Mas, não: isto significa apenas um devaneio sem propósito e sem conseqüências. Fixemos corajosamente, lucidamente, amorosamente - a realidade da obra roquettiana. E como a vemos e caracterizamos hoje? Ela forma, com os seus diversos volumes e as suas muitas publicações de circunstância, uma espécie de federação de territórios, comunicáveis a cada momento, mas independentes ou autônomos. E, como se verifica no estatuto das federações, existe e se impõe uma força de unidade, uma força central e aglutinadora - neste caso, a Rondônia - enquanto os estados, com os seus territórios privativos e circunscritos, se conservam dentro de suas peculiaridades e das suas respectivas leis próprias.

Para Roquette-Pinto, Rondônia é o centro ígneo dos seus territórios culturais; é a capital do seu país de trabalhos não mais acabados e de iniciativas que se sucederam em ritmo de multiplicação; é o seu único livro, afinal, construído como obra inteira e fechada em si mesma, na qual empregou toda a imaginação para o planejamento, toda a ciência para a elaboração, todos os cuidados pra a construção.

Claro, porém, que não chegou de repente à plenitude da Rondônia. Antes, obras menores serviram de aprendizado e assinalaram o itinerário até a montanha. Primeiramente, em 1906, mal saído da Faculdade de Medicina, a tese O Exercício da Medicina entre os Indígenas da América. Nas proposições postas, como de praxe, no fim do volume, o jovem Roquette-Pinto já apresenta algumas teorias que não mais abandonará, convicções doutrinárias que, fielmente, serão por ele desdobradas ou ampliadas para apresentação em várias outras oportunidades. Dir-se-ia, por exemplo, que fixou para sempre o seu materialismo nestas três proposições da tese de 1906, na parate referente à cadeira de Fisiologia: 1a) a alma é o conjunto das funções do encéfalo; 2a) as chamadas faculdades da alma nada mais são que funções cerebrais independentes; 3a) a verdadeira psicologia científica repousa nessas noções.

Depois, vem o pequeno volume Excursão ao Litoral e à Região das Lagoas do Rio Grande do Sul (1912), resultado de uma viagem, a primeira que fez, para estudar os sambaquis em pesquisas de campo, assunto de que voltaria a ocupar-se vinte anos mais tarde no opúsculo Nota sobre o Material Antropológico do Sambaqui de Guaratiba (1925). Menos citada, porém não menos significativa é a monografia Etnografia Indígena do Brasil (1909), na forma de relatório para o 4o Congresso Médico Latino-Americano. E este novo estudo não constituía somente mais um elo daquela seqüência obstinada na linha de uma temática e de um objetivo; agora, o próprio subtítulo, “Estado Atual dos Nossos Conhecimentos”, indicava tratar-se de um balanço dado antes da viagem ao Brasil Central, uma operação de pesar, medir e contar documentadamente os seus conhecimentos sobre o indígena brasileiro antes da partida para a Rondônia.

Obra à parte, pela natureza do assunto e pelas condições de publicação, é o estudo da Antropologia - Guia das Coleções, importante porque assinala já a presença revolucionária do então professor assistente do Museu Nacional no campo experimental da ciência antropológica, nas vésperas do aparecimento de Rondônia. As páginas originais daquela pequena obra-prima, planejada e escrita como um catálogo de museu, estão recheadas de documentos, números, formulações, informações, toda uma ciência ao mesmo tempo teórica e prática.

V

O Litoral e o Interior

Em vários destes primeiros trabalhos, isto é evidente, mostra-se Roquette-Pinto preocupado até à angústia com o problema da separação entre o litoral e o interior, problema que já fora graciosamente traçado na História de Frei Vicente do Salvador, e que nos Sertões atingira, com Euclides da Cunha, coloração dramática e visão apocaliptica. E a nossa literatura exprimia esta mesma realidade, exprimia-a antes mesmo ou ainda mais agudamente que a ciência. Do próprio Roquette-Pinto, mais tarde - em capítulos dos Ensaios Brasilianos, na segunda parte, intitulada “Inspirações da Terra” - é a afirmativa pensada e categórica: “A literatura, muito mais do que as artes plásticas e do que a música, segue sempre a formação da nacionalidade”. Frase que se completa com este outro passo, na mesma página: “No Brasil, a nacionalidade e a literatura formaram um sistema interessantíssimo que há cerca de trezentos anos se desenvolve”.

Então, como se sabe, as situações de pioneirismo e estrangeirismo só podem traduzir-se geográfica e socialmente, em termos de campo e cidade, significando barbárie e civilização num país como o Brasil por força de contrastes muito vivos desde o século XVI. Pois o drama de geografia humana e de sociologia aplicada no Brasil de hoje, como foi o dos Estados Unidos e o da Rússia no século XIX, consiste na separação entre a elite culta, polida, afrancesada ou anglicizada de algumas cidades do litoral e a  massa geral do interior, as populações largadas no primitivismo e desconforto de terras ainda não conquistadas sequer para a civilização. Vejamos a propósito, numa das notas de diário de Samambaia, as próprias palavras de Roquette-Pinto, a debater-se nessa preocupação angustiante:

“Costumes, hábitos, tipos morfológicos, mentalidade, arte e indústria, tudo quanto exprime atividade humana, é certo que se não pratica no fundo hinterland como se executa na orla do mar. Lá, no grande sertão, conservam-se ainda os traços ancestrais das virtudes da raça; nas cidades costeiras, a lepra do cosmopolitismo apressado, sem moral, transformou os melhores característicos do brasileiro, formados nos séculos XVII e XVIII; o espetáculo de uma grande capital litorânea, com todos os seus progressos materiais a se estatelarem ante olhos ingênuos, não ilude o sentimento dos que se habituaram a remover o verniz das coisas, para conhecer-lhes a massa fundamental. Há um Brasil que anda de automóvel, joga futebol e acompanha notícias da Europa, e há um Brasil que anda a pé, joga o búzio ou não joga coisa nenhuma”.

Refletira-se este drama, naturalmente, na vida literária e artística; de fato, acima de todas as escolas literárias e movimentos intelectuais de importação, as duas tendências uniformes, permanentes, sempre vivas, são estas, em nossas letras: a dos autores que exprimem o mundo dos campos, em paisagens e seres rústicos, e a dos autores que exprimem o mundo das cidades, em complexidades sociais e análises psicológicas: um Gonçalves Dias e um Álvares de Azevedo; um Bernardo Guimarães e um Manuel Antônio de Almeida; um Inglês de Sousa e um Aluísio Azevedo; um Franklin Távora e um Raul Pompéia; um Domingos Olímpio e um Lima Barreto; um Jorge Amado e um Marques Rebelo; um José Lins do Rego e um Otávio de Faria.

Dos grandes autores do passado, se bem me lembro, somente José de Alencar, a partir dos meados do século XIX, se empenhou em fundir literariamente, dando-lhes igual relevo, as duas realidades sociais, a do campo e das cidades. Possuído do plano ambicioso de apresentar em romance toda a sociedade brasileira - de um lado, com O Guarani, O Sertanejo, O Gaúcho, e de outro lado, com Lucíola, Diva, Pata da Gazela - José de Alencar interpretou, embora de maneira incompleta, com uma realização literária que não atingiu a altura de sua ambição, aquela dualidade, fundindo em sua obra as duas esferas distintas, oferecendo, com a sua dupla visão, uma síntese, a um tempo moral e sociológica, como que de duas nações a coexistirem dentro de uma só nação. E por afortunada coincidência ou por determinação do destino que rege as artes de um país - eis que, precisamente, nas duas figuras maiores das nossas letras, nos dois escritores mais característicos e originais da nossa história literária, em Machado de Assis e Euclides da Cunha, ficaram representadas soberanamente, como em símbolos, as duas tendências e as duas correntes.

A Roquette-Pinto, para lhe assinalar a linha do futuro, definir-lhe o significado da obra e fixar-lhe as idéias nacionalistas, só faltava, por certo, a presença de Euclides da Cunha, a invasão impetuosa do bárbaro nos domínios do estudante da Faculdade de Medicina. Este encontro, aliás, ocorreu logo em 1902, no ano mesmo da publicação de Os Sertões, quando Roquette ainda ia pelos dezessete anos. Foi assim, com a receptividade e a vibração dos adolescentes que Roquette-Pinto conheceu Euclides da Cunha, a começar daí seu mestre e seu ídolo, e leu Os Sertões, desde então por ele considerado uma espécie de bíblia do seu nacionalismo e força impulsiva para sua inspiração de avançar interior adentro do País até a etapa culminante daqueles meses passados na Serra do Norte para a realização da Rondônia, quando proclamaria, afinal, esta síntese de tantas de suas descobertas, síntese – frase final do volume:

“Foi no grande planalto do Brasil que se iniciou o trabalho de diferenciação étnica sul-americana.”

A nosso modo e gosto, eis como exprimiríamos esta síntese sobre a região da escolha de Roquette para inspiração e tema da sua obra maior:

Rondônia: coração do Brasil; e coração também, a Rondônia, do continente sul-americano.

VI

1902 e 1920, Anos Decisivos

Aliás, os anos de 1902 e 1920 - e vamos fixá-los assim mesmo numericamente, por mais arbitrário ou convencional que nos pareça o calendário - foram períodos de acontecimentos decisivos tanto na biografia pessoal como na destinação científica e ideológica de Roquette-Pinto. Um, 1902, representa o ponto mais alto de uma juventude inquieta e perquiridora de rumos; o outro, 1920, significará o começo da maturidade de um cientista e artista no inteiro domínio de si próprio. Ambos, como se vê, importantes e caracterizadores: no primeiro, encontramos o estudante Roquette-Pinto no instante agudo e definidor de sua formação ao impregnar-se de Os Sertões; no outro, temos diante de nós o cientista Roquette-Pinto em estado de plenitude, na época da viagem ao Paraguai para o Curso de Fisiologia Experimental na Universidade de Assunção e no momento de publicar no Rio de Janeiro o seu ensaio Euclides da Cunha, Naturalista (1920), em cujas páginas ordenara durante tanto tempo as suas idéias acerca da realidade bárbara de Canudos, enquanto se mobilizava para empreender, ele próprio, a sua aventura de brasileiro, de cientista e de escritor como figurante da expedição Rondon no interior de Mato Grosso.

E como para bem caracterizar o autonomismo, o brasileirismo, o nacionalismo deste ano de 1902 - que movimentação de autores em lançamento ou em reedição de livros com idêntico significado, que floração de obras com essa mesma substância nativa! Dir-se-ia que estávamos todos a comemorar o aparecimento de Os Sertões com aquele 1902 bem marcado, historicamente marcado de nacionalismo e brasileirismo, não lhe faltando sequer como fecho, no último mês, o espetáculo extraordinário da chegada do Barão do Rio Branco ao Rio de Janeiro para dar solução ao caso do Acre e estabilizar de vez o mapa do Brasil.

Nas letras, em 1902, ao lado de seu amigo Euclides da Cunha, a quem saudou em discurso de recepção nesta Academia, Silvio Romero, com a segunda edição da História da Literatura Brasileira, lançava praticamente um novo livro. Reedições também com algo de lançamento e novidade - fizeram-se, neste mesmo ano, dos três romances famosos de Franklin Távora, o primeiro deles trazendo no prefácio a sua tese, ainda mais regionalista do que nacionalista, de que “as letras têm, como política, um certo caráter geográfico”, prestigiados todos pelo crítico José Veríssimo ao proclamar, num dos seus artigos de 1902, agora recolhido na 5ª série dos Estudos de Literatura Brasileira, que estes romances nortistas - O Cabeleira, O Matuto e Lourenço - “são das mais exatas e das mais belas representações em nossa literatura do velho Brasil, de um Brasil tradicional”.

E como se não bastasse toda essa efervescência nacionalista em 1902 - eis que surge, também, a edição nova e aumentada das Poesias de Olavo Bilac, e nela se publica pela primeira vez O Caçador de Esmeraldas, com tanta e tão imediata irradiação e ressonância. Anteriormente, com algumas incursões em assuntos nativos, como nos versos de “A morte de Tapir”, não adquirira sequer Olavo Bilac a categoria de herdeiro dos restos do indianismo de Gonçalves Dias. Agora, aos seus próprios leitores surpreendia com aquela substância brasileira e aquela intenção nacionalista de O Caçador de Esmeraldas, tentativa de epopéia sertanista, na verdade o único poema - e isto sem esquecer Fugindo ao Cativeiro, de Vicente de Carvalho - com sopro épico e composição alongada que, no Brasil e com êxito, por um parnasiano foi empreendido.

Enfim, por singular coincidência, também de 1902 é o outro livro nacionalista e muito brasileiro, considerado na época a grande obra ou a obra-prima que se destinava a fazer para com Os Sertões. Sabe-se que tão ruidoso foi em 1902 o sucesso do livro de Euclides da Cunha quanto o livro de Graça Aranha. Duas estréias que pareciam misteriosamente convergentes. Sem dúvida, hoje, um pouco envelhecido e ultrapassado se acha o romance de Graça Aranha, mas a verdade, historicamente, é que tão-só ao lado de Os Sertões se ousava colocar Canaã naquele 1902 efervescente de brasileirismo.

Aos olhos atônitos de Roquette-Pinto, jovem estudante de 17 anos, Os Sertões e Canaã apareciam com duas descobertas do Brasil, revelações de mundos ignorados e até insuspeitados pelos homens do litoral. E significaram, realmente, as duas primeiras grandes descobertas culturais do Brasil do interior, antes que o próprio Roquette-Pinto realizasse a terceira, como a publicação de Rondônia em 1916.

Nesta altura, surgida assim espontaneamente a oportunidade, não posso nem quero esquecer uma nota sentimental. Pois nesse ano tão invocado de 1902 - e como nos sentiremos todos felizes com essa associação de lembranças! - foi que também ocorreu a estréia na críitica literária do então jovem poeta Carlos Magalhães de Azeredo, com o volume Homens e Livros, em que apareciam capítulos dedicados ao estudo de figuras para nós já distantes no passado, para ele contemporâneas, algumas até de sua amizade e intimidade, como Eça de Queirós ou Machado de Assis - e por tudo isso, na verdade, como é consolador lembrar agora o único sobrevivente da Fundação, o Fundador, a prolongar-se em aniversários, que desejamos ainda numerosos, pois o Embaixador Carlos Magalhães de Azeredo, com os seus 84 anos bem saudáveis, é o acadêmico por excelência, que hoje nos pode transmitir uma impressão de desligamento do tempo para infundir-nos - ai de nós! - um pouco de crença e esperança em nossa precária imortalidade!

Retornemos aos nossos mortos. E quanto nos parece vivo um morto de ontem como Roquette-Pinto! Contudo, não só por isso me decidi a falar dele com espírito crítico, em termos de autonomia indisfarçável e sincera veracidade, livremente, desembaraçadamente, sem avareza nos louvores, que, aliás, por todos lhe são devidos, mas também sem fugir de assinalar a inaceitação de algumas partes de sua obra, como é de meu direito de escritor independente e de minha obrigação de crítico. E o próprio Roquette-Pinto assim se conduziu até em relação ao seu ídolo Euclides da Cunha. Volto-me hoje para o autor de Rondônia impregnado daquele mesmo sentimento com que ele desejava que nos volvêssemos para os mortos:

“É preciso pensar nos mortos, não para mergulhar a alma no desânimo, mas para robustecê-la nos bons anseios”.

São também de Roquette-Pinto estas belas palavras, a sugerirem o ideal tratamento dos mortos nos cemitérios - uma daquelas páginas de prosa, por exemplo, a que já me referi como tendo sido a forma de expressão de sua alma poética, em vez dos contos e peças em verso:

“Cada morto querido, subindo pelas raízes para a vida das corolas perfumadas, santificando as lufadas do vento e, aos poucos, voltando ao azul do espaço”.

Está claro que não falo de Roquette-Pinto com espírito de negação, mas sempre me recusando a ocupar-me dele, como de qualquer outro grande homem, com ânimo de endeusamento. Nunca me ocorreu, por isso, a idéia de escrever este chamado “elogio acadêmico” de maneira convencional, na banalidade dos adjetivos inconseqüentes e das frases tão redondas como vazias.

Quanto a Roquette-Pinto, à sua presumível concordância póstuma, sinto-me tranqüilo e apaziguado. Era neste tom de espírito crítico e dignidade que ele desejaria, com certeza, que se levantasse hoje aqui a sua figura, que se caracterizasse o conteúdo de sua personalidade, e se ajuizasse o valor de sua obra, aliás desigual quanto à qualidade. Não fui discípulo nem freqüentador de Roquette-Pinto, mas hoje, pelo muito que sei dele, acredito que o grande homem devia achar um pouco de graça nos discípulos que o louvavam não com palavras, mas com incenso; acredito que o Mestre, sem desdenhá-los, não devia levar muito a sério os discípulos que dele só sabem falar com a exaltação cega dos fanáticos e dos intolerantes. Pois Roquette-Pinto, ao contrário, amava e cultivava a luz intelectual, com o gosto inato do relativismo e a virtude, sempre praticada, da tolerância. Nos seus sonhos goethianos – é possível que ele houvesse desejado o convívio e o diário póstumo de um Erckman, mas um Erckman que lhe fosse igual, em vez de subordinado.

VII

Roquette-Pinto e Euclides

Vejamos de mais perto a posição de Roquette-Pinto em face de Euclides da Cunha, sem o que não perceberemos o conteúdo nem o objetivo da própria obra de Roquette. Recordando que a Euclides classificou como alguém “a um só tempo cientista e poeta”, e a Os Sertões como um livro “de ciência e de fé”, a trazerem, um e outro, “as duas molas que faltam para o desencadear da nossa cultura popular: crer e aprender” - parece estarmos a ouvir o eco das frescas e fortes ressonâncias da leitura de Euclides em Roquette. Estas impressões, por certo de 1902, fielmente conservadas, é que saltam do ensaio de 1920 Euclides da Cunha Naturalista, onde o vê ainda com um toque de emoção: “É um escritor pungente; aflige, emociona, por isso mesmo, desperta, como nenhum outro, o ideal nacionalista”.

Sim, o ideal nacionalista - eis a chave principal da corrente, a princípio de influências, depois de comunicação, que fluiu incessantemente, durante pouco mais de cinqüenta anos, das páginas dos livros de Euclides para o espírito de Roquette-Pinto.  No texto mais recente dos Ensaios Brasilianos, temos outra opinião documentada do juízo especial de Roquette sobre Os Sertões, a seus olhos o único dos nossos livros em condições de universalizar-se como obra nacional à maneira do Dom Quixote ou de Os Lusíadas.

“Percorro” - escreve Roquette-Pinto como fecho desse novo ensaio sobre Euclides da Cunha, creio que, cronologicamente, o último - “toda a nossa história literária e penso que Os Sertões serão, no futuro, para o Brasil, o grande livro nacional; o que Dom Quixote é para a Espanha, ou Os Lusíadas para Portugal: o livro em que a raça encontra a floração das suas qualidades, o espinheiral dos seus defeitos, tudo o que, em suma, é sombra ou luz na vida dos povos”.

Traçando nesse capítulo dos Ensaios Brasilianos um quadro sumário de sua visão da literatura brasileira - sumário, mas por certo dentro dele enraizado - faz-nos, hoje, sentir o seu desejo de ver Euclides não apenas sentar-se sozinho no trono do Reino das Letras, mas também de estabelecer toda uma linha divisória entre literatura brasileira antes de Os Sertões e literatura brasileira depois de Os Sertões.

Para Roquette-Pinto, a literatura interessava sobremaneira pelos seus significados científicos, psicológicos, sociológicos, ideológicos, históricos, sociais e conseqüentemente como expressão de povo e nação, fiel ao “espírito de brasilidade”. Punha em segundo plano o significado por excelência estética daquelas obras às vezes menos vistosas, de autores com intenções resguardadas nos requintes da simbologia, sem ênfase verbal e exibição eloqüente de nacionalismo, não obstante muitas vezes trazerem, também, a seu modo, uma substância brasileira e traduzirem uma realidade social.

A este respeito, infelizmente, haviam germinado em Roquette-Pinto alguns daqueles antiquados preconceitos, que depois seriam banidos por uma concepção moderna de realismo literário, e também algumas frases feitas, que desmontadas seriam depois como refúgios de falsidades.  Assim, aquela distinção a fazer-se das nossas obras em correntes e dos nossos autores em tendências - apresentava-se ao meu ilustre antecessor com deformação nas perspectivas, impedindo-o de reconhecer uma situação de equilíbrio ou equivalência entre as duas linhas: antes, proclamava a desproporcionalidade das partes e a predominância arrogante de uma delas sobre a outra. E como pôde um homem com a ciência e a experiência de Roquette-Pinto plantar-se em erro dessa espécie?

Visão parcial e mutilada, impressão preconceituosa e incompleta: eis o que nos revelam algumas opiniões e sugestões de Roquette-Pinto acerca da nossa história literária. Divide-se em duas linhas ou correntes. Uma delas, a primeira, ele a classificou amorosamente, e também cabalisticamente, entre aspas, com um “sistema” - e este é o seu - em que só se consideram autores e obras da zona de temática nativa e espírito nacionalista; a outra, a segunda, denominou-a, um pouco desdenhoso, movimento, e tão-só em relação a esse chamado movimento refere origens e filiações peninsulares, pondo-nos ainda de sobreaviso quanto à continuação dessa influência européia. Influência, acrescenta, de “natureza puramente literária, quase diria - retórica”. E, devemos reconhecer, é com uma nota de senso comum, bom gosto e graça que os caracteriza em seguida, a esses representantes do intruso movimento de desenraizados e desnacionalizado: “Em geral, algumas gotas de mel negro, tragos de vinho do Latium e, principalmente, muitas flores recebidas da França”.

Para a vitória acabada do “sistema” sobre o movimento - Roquette-Pinto recebe Euclides da Cunha como a um São João Batista, pregador e anunciador de nova idade histórica. E qual a missão trazida, o papel desempenhado, a revolução jogada em praça pública pelo gênio de  Euclides? Vejamos - aproveitando tanto quanto possível os dois ensaios já citados de Roquette-Pinto - em que consistiram as esperanças mais verossímeis e as inovações realmente concretizadas - vindas, umas e outras, no bojo de Os Sertões.

Perguntamos ainda: o que veio testemunhar a revolução da presença de Euclides, em nossas letras naquele advento do século, caindo em cheio num ambiente literário matizado pela boêmia vivida, mas leviana, e pelo parnasianismo de austera ordenação, mas gelado de formalismo? Demonstrava-se, com o surgimento de Euclides da Cunha, a exprimir-se como cientista e como poeta, entrelaçadamente, que a primeira novidade de Os Sertões residia na apresentação do fenômeno cultural - possível e já verificado em outros países, mas ainda inédito no Brasil - de um positivo “espírito científico” a planejar e impulsionar “a edificação de um grande movimento literário”. Para Roquette-Pinto, a principal originalidade de Euclides da Cunha  em Os Sertões foi mostrar a possibilidade de uma suprema construção literária sobre a base de uma lógica científica. E acrescenta Roquette-Pinto, nessa mesma direção, que nos Sertões, parece-lhe que a parte mais notável não é a parte aparentemente mais difícil e complexa, aquela muito admirada “minúcia técnica”, mas, isto sim, o “espírito científico”, que traveja e sustenta todo o edifício.

Segundo também o gosto do criador de Rondônia - e vejamos como esta opinião define ainda mais o comentador e intérprete do que o criador original - não é pelo “encanto do estilo” ou pelo “estilo pessoal” que Euclides mais se recomenda à admiração dos leitores. Com a situação de cientista e a categoria de pensador colocadas hierarquicamente acima do senso e do gosto do escritor - ei-lo nesta conclusão com o peso de uma sentença sobre Os Sertões: “a forma vale muito menos do que o conceito.”

Este asserto taxativo põe um desfecho prematuro e insatisfatório no debate, por entre tantas ramificações e ampliações que o autor de Rondônia conhecia a fundo na obra toda de Euclides, em cada palavra eloqüente ou sugestiva, em cada intenção emocional, em cada objetivo político ou ideológico. Como avançar, porém, um pouco mais, para aceitar ou para divergir, quando nada resta, neste problema de crítica, senão o monólogo de um homem ilustre diante do seu ídolo?

VIII

Euclides e Machado de Assis

Ocorreu-me agora: estava deste modo promovida a entronização de Euclides da Cunha. Porém - ainda mais curioso - notei que o nome de Machado de Assis nem sequer apareceu citado ao lado do nome de Euclides da Cunha. Nesse capítulo dos Ensaios Brasilianos, esboça Roquette-Pinto um quadro com a disposição em relevo das duas tendências ou correntes da literatura brasileira, para as quais procurara, como já vimos, uma terminologia sua, caprichos de seus gostos e prevenções, esgotando-a nos vocábulos “sistema” e movimento. Pois bem: situadas modestamente em terra firme, compondo, como precursores, a auréola de Os Sertões, acompanhando os vôos de Euclides da Cunha, são afinal invocadas, nessa tão significativa página roquettiana, algumas figuras mais antigas, todas embora do século XIX, ao menos para fundamentar historicamente a argumentação. Ei-las: Gonçalves Dias, Castro Alves, Alencar, Taunay...

Exatamente nesta ordem. Machado de Assis, porém, este não aparece em qualquer espécie de citação no capítulo de Ensaios Brasilianos. O seu grande preço em rivalidades ou disputa de tal natureza - era o silêncio. Aqui, no caso desse quadro roquettiano, a pôr em destaque o fenômeno de duas correntes literárias bem nítidas e distintas em nossa literatura, fez-se como se a outra não existisse representada ou encarnada em seres vivos. Que num caso destes, em estudo-tentativa de análise e discriminação das nossas duas tendências literárias, se entre a invocar e exaltar Euclides da Cunha, como expoente de uma delas, sugerindo que a sua obra impetuosa poderá sufocar e aniquilar todo o lado oposto do rio, sem que o nome de Machado de Assis seja mencionado sequer de passagem ou ao acaso como o representante por excelência da outra corrente - então, que escândalo, ou que ingenuidade!

A mim mesmo, e sobretudo como operação de curiosidade e memória, muitas vezes tenho feito esta pergunta: onde, quando, como se haveria Roquette-Pinto ocupado de Machado de Assis ou se haveria detido por alguns momentos ante a ficção machadiana para conhecer-lhe um traço qualquer de sua fina tessitura de vida interior, avaliar aqueles seus prodigiosos malabarismos de psicologia sem escola ou perturbar-se com algumas de suas soluções de moralista acima do bem e do mal? De nada pude informar-me neste sentido, a não ser do seu interesse diligente na transposição para filme do Instituto de Cinema Educativo de uma das menos pessoalmente machadianas, por sinal, das obras de Machado de Assis: o apólogo da Agulha e a Linha. Uma citação do nome de Machado de Assis em seu discurso de posse na Academia, ao lado dos nomes de Gonçalves Dias e Tobias Barreto, não esclarece nada a este respeito. É uma citação a propósito simplesmente do fenômeno da mestiçagem, com objetivo sociológico e intenção documental. Nada mais.

Gostaria de ter visto Roquette-Pinto colocar Euclides da Cunha diante de Machado de Assis, não, naturalmente, para o exercício ginasiano de comparações ou paralelos, e sim, para de ambos extrair, mais fundamente, o significado anagógico das suas respectivas artes, nos efeitos de uma exegese operada naquelas linhas largas e substanciosas que se cruzam humanamente, se interpenetram em zonas de sondagens psicológicas, se afastam ante as tentativas arbitrárias de justaposição de obras tão diversas, e se distanciam, afinal, quando sobem à tona as suas personalidades irredutíveis, desde que historicamente marcadas, literariamente diferenciadas como de propósito para a representação das duas tendências literárias que em nosso território exprimem e simbolizam as duas faces de um povo que ainda não encontrou a fórmula fundidora de realidades regionais, ou não buscou ainda o ethos de sua unidade territorial, social, política e moral.

Esquivando-me ao ridículo de dar um conselho, e conselho póstumo, ao mestre Roquette-Pinto, tenho ímpeto, porém, neste caso, de exclamar: Sejamos mais humildes! Ninguém, em qualquer parte, menos ainda no Brasil, poderá ter a ilusão de alcançar com a vista o panorama completo de uma nacional realidade física ou sociológica, nem dominar pela visão intelectual, intuição e análise, a variedade larga e a complexidade difusa do espírito do seu povo. Sabemos apenas um lado, um aspecto, dos fenômenos e das coisas, talvez uma metade; faz parte do nosso castigo que mais não se possa conhecer de uma verdade redonda ou de uma realidade inteira.

E isto acontece como num grande mosaico. Dispomos apenas de pedaços do mosaico, de trechos mutilados, de desenhos soltos, de cenas isoladas, de quadraturas parciais, em suma, satisfatórias em separado, mas sempre incompletas pela falta das que as ladeiam e das que lhes ficam sobrepostas ou sotopostas. Ninguém conta por inteiro, em todos os lados e horizontes, com a visão do grande mosaico de nossa vida e da própria realidade nacional; cada um de nós há de contentar-se com o mosaico imperfeito ou inacabado cujos claros diligenciou preencher, reunindo afanosamente pedaços, trechos, quadraturas, para da melhor maneira compor em zonas de luz e sombra um conjunto ainda assim limitado, reduzido e proporcional – e eis que, em resumo, esta é a nossa única visão possível dos objetos e dos seres, complexo ainda não integrado, nem articulado, nem explicado, da realidade física e humana de um país e de um povo, só nos cabendo a humilde sabedoria de aceitar essa contextura ao mesmo tempo das nossas insuficiências e impossibilidades.

Não obstante, no caso presente, nem o problema Roquette-Pinto se apresentava tão complexo, nem lhe seria dilacerante dividir preferências entre as duas figuras. Certo é que Machado de Assis jamais poderia, ao modo de Euclides da Cunha, fazer-se bárbaro entre bárbaros, sentir, pensar e viver como sertanejo entre sertanejos; por outro lado, a Euclides da Cunha seria impossível, segundo o figurino de Machado de Assis, apresentar-se como um homem subterrâneo, isolado em monólogo dentro da literatura, voltado para dentro das criaturas humanas e indiferente às paisagens, escritor dos mistérios da alma, da introspecção, a exprimir-se ainda melhor na pequena peça que é o conto do que no painel de faces múltiplas ou no quadro de muitas proporções que é o romance.

É certo, ainda mais, que o estilo de períodos curtos e sem retórica, exigindo interpretação para ser de todo entendido nas suas intenções secretas, monótono, sóbrio e seco, de Machado de Assis, contrastaria gritantemente com aquele material rústico e primitivo, maciçamente bruto, tempestuoso e grandiloqüente de Os Sertões; enquanto o estilo inteiriço, contundente e eriçado de Euclides da Cunha seria monstruoso para o tratamento dos enredos ziguezagueantes, sentimentos amorais, amores frustrados, episódios esboçados sem possibilidade de desfecho, os complexos sociais e as sutilizas de moralistas dos contos e romances de Machado de Assis.

Diferentes, sim, mas ambos brasileiros. Já muito longe vai o lugar-comum de que Machado de Assis é um escritor pouco ou nada brasileiro, fruto feliz, mas artificial, de influências e correntes estrangeiras num americano, sobretudo porque de seus livros estão ausentes reportagens sensacionais, partidarismos ideológicos, apresentação demagógica de causas políticas, sequer o relato objetivo de movimentos sociais como a Abolição e a República. Entretanto, já ninguém ignora que se impôs modernamente, uma diversa e correta interpretação sociológica da obra de Machado de Assis. Ao próprio Roquette-Pinto não faltou tempo à larga para dela inteirar-se: pertence ao número de junho de 1939 da Revista do Brasil, dedicado ao romance brasileiro, o admirável e revolucionário ensaio de Astrogildo Pereira, com o qual este escritor modificou a direção da crítica machadiana. Pelo peso, documentação e jogo de argumentos no estudo de Astrogildo Pereira, ficamos a saber que Machado de Assis, isto ainda mais nos romances e contos do que em crônicas e ensaios, reflete uma imagem da sociedade que o formou e cujo espírito ele exprimiu como talvez nenhum outro escritor do seu tempo. Colocou-se desde então sob o seu nome a legenda que não mais se lhe discute ou disputa: a de romancista brasileiro do Segundo Reinado.

IX

A Necessidade da Europa e os Precursores Brasileiros

Vem muito a propósito assinalar que nenhum dos dois, assim nacionais e representativos, nem Machado de Assis nem Euclides da Cunha conheceram pessoalmente a Europa; que nenhum deles sentiu a necessidade ou o gosto de viajar, embora isso estivesse ao alcance de ambos.

Por outro lado, entretanto, alguns dos nossos autores do século XIX e princípios do século XX, de espírito mais acentuadamente americano, mais caracteristicamente brasileiro e nacionalista, foram homens que durante muitos anos viveram na Europa, que lá se demoraram em constantes viagens ou mesmo no serviço diplomático: um José Bonifácio, um Joaquim Nabuco, um Oliveira Lima, um Graça Aranha, um Eduardo Prado. E isto sem esquecer, saindo por um momento da literatura, que o nosso estadista nacional por excelência, o Barão do Rio Branco - ao mesmo tempo autor e ator na História do Brasil - residiu vinte e seis anos ininterruptos na Europa, antes de aceitar o convite para ser ministro do Itamarati e levar a efeito a sua obra internacional.

Entre Paris ou Londres e a então provinciana sociedade brasileira dividiam estes homens as inteligências e as almas. Não se desfiguraram no cosmopolitismo: estar na Europa, impregnar-se de civilização, tornava-os mais nacionais, integrava-os com mais firmeza e convicção nos temas e problemas do Brasil. E este foi, acima de tudo, o caso do patrono da Cadeira no 17, Hipólito José da Costa, a organizar e escrever o Correio Braziliense, órgão de estudos da nossa realidade, porta-voz de anseios pela independência do Brasil, editado no seu exílio de Londres, e através de cujas coleções se pode hoje aferir a mentalidade de um jornalista e de um professor empenhado não apenas na campanha pela autonomia política de sua terra, mas na causa mais importante da sua libertação social e econômica na esfera internacional. E este foi o caso também de Edgar Roquette-Pinto, que tanto se encantava com as idas ao estrangeiro, que tantas viagens, algumas com longa estada, realizou à Europa, sentindo-se tão feliz ante a grandeza do Forum Romano ou ante a frivolidade agradável do Folies Bergères quanto entre os nhambiquaras ou a avançar de navio-gaiola ao longo do rio Amazonas.

Em Paris, em Londres, em Copenhague, nos Estados Unidos, no México, em Buenos Aires, em Assunção - viajou um pouco ou muito por toda parte, e várias vezes; em todas, porém, era como se o acompanhasse uma sombra, digamos a visão um pouco sombria do seu País, em melancólico, mas para ele nunca desesperador estado de cultura, inclusive porque, experiente e realista, menos o preocupava a situação de natural primitivismo do indígena do que a irregular constituição de uma sociedade que se pavoneava de civilizada, mas vista, acertadamente, pelo antropólogo e pelo sociólogo Roquette-Pinto, apenas como uma contrafação pretensiosa por efeito de uma educação importada, inadequada e mistificadora, que ele tentaria alterar, mais tarde, com um sistema racional, realista e brasileiro de educação.

Em 1911, realiza Roquette-Pinto a sua primeira viagem à Europa, comparecendo a Londres como delegado do Brasil ao Congresso das Raças; em seguida, a Paris, para iniciar ou continuar estudos com professores na época afamados, como Richet, Tuffier, Verneau, Perrier. De todos, provocar-lhe-ia maior impressão e interesse o sábio Richet, porque tão importante para os seus estudos de Fisiologia; e isto se repetiria, treze anos depois, na Universidade de Colúmbia, ao conhecer de perto, e com ele entreter-se, o Professor Franz Boas, mestre teórico e criador de métodos em Antropologia.

Não refiro esta primeira viagem de Roquette-Pinto à Europa como nota biográfica. Encadeia-se num compromisso anterior, talvez o maior de sua vida: a excursão à Serra do Norte, no Mato Grosso. Na verdade, antes de embarcar, assentara com o General Rondon para o ano seguinte a viagem de que havia de resultar - já o suspeitaria ele? - o seu livro maior e o rumo definitivo de sua existência. Um encontro com o General Rondon impressionara-o um pouco mais do que nele seria normal, com o seu feitio e educação. E o efeito de tal contacto se traduz nesta confissão consagradora para o velho sertanista:

                            “Ouvir o mestre era escutar a voz chamadora

                             do Sertão; sentir o rumorejo das florestas distantes.”

Ao plenário do Congresso Internacional das Raças, quando reunido na Universidade de Londres em julho de 1911, apresentou Roquette-Pinto um minguado opúsculo Note sur la situation sociale des indiens du Brésil (1911). Tese? Comunicado? Relatório? Não se explica no texto. Li-o, porém, e me pareceu um dos menos valiosos, dos menos documentados trabalhos do mestre. Nada de ciência ou de contribuição original. Crônica histórica de algumas páginas para estrangeiros supostamente jejunos em matéria etnográfica. Tão-só umas poucas páginas, todas de história superficial e já por demais divulgada acerca do tratamento dado ao indígena pelo invasor branco, salientado-se aí atitudes muito sabidas, como as de José Anchieta e José Bonifácio. Considerável, no opúsculo, só um aspecto: as últimas palavras são dedicadas, ainda que sumariamente, às atividades e ao resultado da Comissão Rondon.

E na missão exploradora e civilizadora da Comissão Rondon com destino ao Brasil Central, em 1912, integra-se Roquette-Pinto. É o momento máximo de sua decisão quanto ao futuro e ao seu destino, essa viagem; é o seu Rubicão, essa partida. Não se tratava de uma vilegiatura de diletante, mas de uma excursão de resultados imprevisíveis, numa zona aonde nada chegara da civilização, onde o menor dos riscos que se corriam era o perigo ante o desconhecido da terra, da natureza, dos bichos e dos homens. Será suficiente lembrar que fez Roquette-Pinto o percurso atravessando o Paraguai; e que não se atingia, na época, o objetivo dessa viagem de penetração em Mato Grosso sem a travessia do território daquele país.

Por isso mesmo talvez é que à sua obra Rondônia, resultante de tal aventura e experiência, Roquette-Pinto chamou amorosamente, em nota de prefácio da segunda edição - “a filha caprichosa do seu entusiasmo”.

Não só entusiasmo simplesmente: era preciso ser moço, e dotado de uma resistência de moço, para empreender essa demorada expedição científica à região situada, de acordo com os mapas, no coração da América do Sul. Antes, dez anos antes, impressionara-o a maneira como Euclides da Cunha conseguira ser um autêntico etnólogo; como alcançara realizar, em Os Sertões, com rigor científico, “um tratado de etnografia sertaneja”.

Ora, desde Varnhagen, um admirável caçador-naturalista como etnógrafo e historiador, que ajuntava, ao labor singular da construção histórica, o faro para as pesquisas, ninguém mais no Brasil, nem mesmo Euclides - e isto o sabia Roquette-Pinto - ninguém mais aparecera entre nós em condições de ligar “as ciências naturais com as que se chamam ciências sociais”.

Ninguém. Tenho lido nestes últimos meses alguns comentadores, até doutores consagrados e muitos do meu respeito, sobre os precursores de Roquette-Pinto em matéria de etnografia. Aliás, será também de recordar, agora, o feito, sem precedentes, que operação de autoria de Roquette-Pinto foi a primeira dissecção anatômica de raça indígena realizada no Brasil.

Declarou o nosso eminente companheiro Aloysio de Castro, no discurso com que em nome da Ilustre Companhia deu as boas-vindas ao recém-empossado Roquette-Pinto, que ao novo acadêmico se devia a glória de ser “aquele que no vivo criou aqui a ciência da Antropologia”.

Não se esqueceu o Professor Aloysio de Castro de mencionar os precursores de Roquette em matéria de Antropologia e Etnologia: Batista Lacerda, Rodrigues Peixoto, Batista Caetano, Barbosa Rodrigues, Couto de Magalhães, Capistrano de Abreu. Mas tê-lo-iam sido realmente, em sentido estrito e rigoroso, em matéria na qual se exige mais ciência autêntica do que naturalismo descritivo ou talento historicista? De todos esses antepassados se queixou - julgando-os desnutridos ou despreparados cientificamente, o autor de Rondônia - a despeito de contar-se com uma opinião como a de Gilberto Freyre, em página de valorização dos predecessores, sem deixar de citar antepassados como José Bonifácio ou Lacerda: “Deu Roquette-Pinto às antecipações desses precursores brasileiros o máximo de solidez científica do ponto de vista antropológico”.

Há um precursor de Roquette-Pinto em matéria pelo menos de Etnografia que desejo lembrar com certa ênfase. Dele não se poderá dizer que foi um impressionista brilhante, nem um talento de improvisador. Contudo, não o encontrei citado entre os que mencionam os precursores de Roquette-Pinto, e somente o próprio Roquette-Pinto, na verdade, é quem o menciona em Seixos Rolados. Este brasileiro, que desejo aqui registrar como dos mais antigos e dos não menos ilustres precursores da ciência do mestre de Rondônia, chamava-se Alexandre Rodrigues Ferreira, figura singular do século XVIII, a quem coube encerrar o ciclo dos estudos sociais no período colonial. Pouco conhecido, mesmo no Brasil. Dos fundadores da Academia Brasileira, ninguém o escolheu para patrono de uma das nossas cadeiras. Contudo, Alexandre Rodrigues Ferreira era da raça de um Roquette-Pinto, de um Oliveira Viana, de um Alberto Tôrres. Encerra ele o período sociográfico e abre o período científico dos nossos estudos. Em andanças e pesquisas de dez anos por todo o Brasil, colheu dados valiosíssimos sobre a etnografia indígena, a zoologia, a botânica, a mineralogia, a agricultura. E que a bibliografia! Deixou-a imensa: cerca de 112 manuscritos inéditos em bibliotecas do Brasil. Dele se aproveitou vastamente, e sem cerimônia, Saint-Hilaire. O mesmo Saint-Hilaire tão da admiração de Roquette, a ponto de ter sido, parece, em sua homenagem que fez o último aparecimento em público, a última conferência na Academia, em fins de 1953. Mas agora me recordo melhor: tenho diante de mim um recorte de jornal, do dia 6 de outubro de 1928, já com um artigo entusiástico acerca de Saint-Hilaire, assinado pelo meu antecessor ilustre com os seus dois títulos de diretor do Museu Nacional e membro da Academia Brasileira. Foi uma coincidência: a sua última conferência na Academia versou sobre a figura do mesmo viajante estrangeiro que servira de assunto de um dos seus artigos publicados no ano da entrada na Academia.

X

“Rondônia”

Que é a Rondônia? Ao contrário do que, geralmente, se imagina, tal designação não surgiu com a excursão de Roquette, nem foi por ele buscada para título do seu livro. É de sua invenção, mas sucedeu à viagem. Explicou-lhe o sentido numa nota de pé de página em Rondônia:

“Inaugurando as conferências do Museu, em 1915, o autor propôs esse nome (Rondônia) para designar a zona compreendida entre os rios Juruena e Madeira, cortada pela “Estrada Rondon”. Os elementos geológicos, geográficos, botânicos, zoológicos, antropológicos e etnográficos que tal região tem fornecido, originais e numerosos, justificam a criação dessa província antropogeográfica.”

Apressa-se Roquette-Pinto em estudar essa região isolada e esse povo ainda no paleolítico - porque temia um desvirtuamento, uma descaracterização, ante a chegada e a influência dos instrumentos ou objeto de civilização. Temia que se perdessem os fenômenos etnográficos dos povos da região, usos, costumes, hábitos, práticas, indústrias, situações artísticas, religião, política. Pouco depois tinha realmente um exemplo: ao sair publicada, quatro anos após a viagem, a primeira edição de Rondônia, aqueles índios já não usavam, ou lá nem mais existiam, os machados de pedras, para eles objetos de riso. Já se sentiam superiores com o machado de aço.

Recorda Gastão Cruls, em artigo na Revista Brasileira de Medicina (número de outubro de 1954), o retorno de Roquette-Pinto da Serra do Norte, após alguns meses de contato, experiência e até integração íntima na vida paleolítica dos nhambiquaras. Trazia já no espírito a Rondônia, à maneira de Euclides com Os Sertões ao tornar de Canudos. E memora o amigo íntimo que Roquette vinha abundante e transbordante de notas, observações, vocabulários, croquis, fichas antropométricas, filmes documentais, fonogramas, material etnográfico. Era o mundo largo, o mundo ao ar livre, que transportava para dentro do seu quarto. Ao Museu Nacional fez entrega de mais de uma tonelada dos seus documentos, todo um material de cientista moderno: filmes, clichês etnográficos, fichas antropométricas, e até fonogramas, pois, avisado naturalmente pelo seu senso musical, não se esquecera de fazer gravações documentais de canções sertanejas e músicas ameríndias.

Não era a Rondônia uma improvisação de viagem ou o efeito do impacto de uma excursão apaixonante. Representava o coroamento de uma série de estudos especializados sobre o indígena. E já chegado da Serra do Norte, mas antes do lançamento de sua obra-prima, no intervalo entre a viagem e a publicação do livro, pronunciou, na Biblioteca Nacional, duas conferências muito eruditas, documentadas com o material mesmo trazido de Mato Grosso. E ao escrever e publicar a Rondônia, não teve Roquette preocupação nem com a publicidade, nem com o sucesso imediato. Tanto a primeira tiragem, de 1916, como a segunda, de 1917, apareceram em edições dos Anais do Museu Nacional. Diga-se, de passagem, que foram edições maravilhosas, pelo luxo do papel e pela abundância das ilustrações, e que hoje fazem morrer de inveja os que se têm de contentar com os vulgares volumes das tiragens a partir da terceira edição, aliás somente surgida - e isto chega a ser surpreendente ou espantoso - dezenove anos depois do lançamento: em 1935.

Tecnicamente, como método de estudo e realização, Rondônia é obra de investigação direta, uma obra de campo, sistematicamente elaborada, com processos rigorosamente científicos, como não se fizera ainda entre nós em relação ao indígena brasileiro, tão explorado, não obstante, como motivação para variações literárias e material de observação para cronistas assim nacionais como estrangeiros, desde os primórdios do Primeiro Século, na verdade desde o descobrimento do Brasil como a Carta de Pero Vaz de Caminha. Enfim, a Rondônia desempenhou, para a revelação, estudo e compreensão do índio, o mesmo papel que mais tarde, com recursos e métodos mais modernos de pesquisa sociológica, veio a representar Casa-Grande & Senzala em relação ao negro.

Os Sertões classificara Roquette-Pinto como “um tratado de etnografia indígena”. Por subtítulo traz Rondônia estas palavras caracterizadoras do conteúdo e dos objetivos da obra: “Antropologia–Etnografia”.

Perguntamos: e o geógrafo, o historiador, o sociólogo e o naturalista? Estão presentes, sem dúvida, nas páginas de Rondônia. E também o escritor, o artista, o homem de letras – o que se exprime principalmente pelo estilo de revelação de um livro original, científico, objetivo, documentado, ao mesmo tempo que vazado em boa forma literária. Percorre a Rondônia um caminho que vai da objetividade daquelas páginas, um tanto insípidas para os profanos, em  que o cientista técnico faz a biometria de tribos inteiras, ou daquelas em que a meticulosidade  com que o médico nunca deslembrado de seu ofício descreve o fenômeno da dermatose esfoliativa observada nos índios locais - até o escritor de humana sensibilidade e de excelente forma de expressão. Citemos a propósito um trecho da sua página mais afamada entre os leigos, de efeito mais literário, a página “A Morte do Cavalo”, certamente julgada antológica, que merecia - ouço dizer - a preferência do próprio Roquette-Pinto:

“Em pé, pernas abertas para não cair, arquejante, e pêlo riscado por alguns fios de sangue a jorrar do pescoço, da anca e da barriga, um triste pedrês, magro e pisado, tremia num arrepio imenso, como se fosse um grande cavalo de gelatina.

“Das feridas surgiam, oscilantes, ensangüentadas também, longas flechas retidas no corpo do animal pelas farpas agudas.

“Extraímo-las do mísero cavalo. E seguimos lentamente, dando-lhe tempo para que nos acompanhasse no seu passo de maribondo. Sempre a tremer, ia arrastando o corpo. Parava um pouco. Depois continuava com esforço, como desejando livrar-se, em último arranco, daquele meio fúnebre.

“Um quilômetro adiante, deteve-se, dobrou os joelhos, deitou-se sobre o flanco; pôs-se a tremer ainda mais, e lá ficou morrendo...”.

Por mim, se tivesse de me decidir por uma pequena página antológica de Rondônia - esta seria outra e bem diversa: aquela que versa sobre a ciência e as nossas possibilidades. E por quê? Porque aí é que se encontram, como eles são, nem mais nem menos, nem melhores nem piores, o cientista e o escritor.

“A ciência vai transformando o mundo. O paraíso, sonhado pela gente de outras idades, começa a definir-se aos olhos dos modernos, com as possibilidades que o passado apenas imaginava. O homem culto chegou a voar melhor do que as aves; nadar melhor do que os peixes; libertou-se do jogo da distância e do tempo; realiza em um continente o que concebeu em outro, alguns momentos antes; ouve a voz dos que morreram, conservada em lâminas, com o seu timbre, e as inflexões da dor e da alegria; imortaliza-se, arquivando a palavra articulada, com todas as suas características, e as suas formas e seus movimentos com todas as minúcias; e enquanto, mágico inesgotável, vai modificando a terra e lutando contra a fatalidade da morte, fazendo reviver as vozes que ela extinguiu, as formas que ela decompôs, o homem não consegue transformar-se a si mesmo, com igual vertiginosa rapidez.”

Serviu Rondônia como o mais forte contacto de Roquette-Pinto com a natureza, com os primitivos donos da terra. Daí por diante, fortificou-se o que nele já era uma tendência inata: a consideração dos fatos acima das abstrações, a valorização dos homens acima das próprias idéias, a tomada de partido em favor do indígena contra a cobiça, a violência e a injustiça dos homens brancos. Dir-se-ia que pela prática também chegara ao mesmo exercício que o senador Nabuco de Araújo chamara a “política silogística”. Lembrai-vos em que consistia? Explicava-a assim o velho Nabuco, segundo o trecho transcrito por Joaquim Nabuco, em Balmacedas: “Uma pura arte de construção no vácuo. A base, são teses e não fatos; o material, idéias, e não homens; a situação, o mundo, e não o país”.

Dir-se-ia que o jovem Roquette-Pinto meditara a sério, convincentemente, sobre a decisão necessária de cada homem público no Brasil em face da chamada “política silogística” do velho Senador Nabuco. E Roquette-Pinto, aos 32 anos, no momento de publicação de Rondônia, já fizera a sua escolha e marcara uma decisão: pelos fatos, e não pelas teses; pelos homens, ainda mais do que pelas idéias; pelo país, colocado em deveres e preocupações muito acima do mundo.

Em prefácio da segunda edição de Rondônia, fala Roquette-Pinto de sua alegria sentida com as observações científicas que pôde realizar - e consideradas, por ele próprio, “quase todas de grande alcance para o conhecimento da antropologia sul-americana”; mas, como brasileiro, só se julgou bem pago daqueles dias de privações e perigos -  “porque voltou da Rondônia com a alma confiante na sua gente, que alguns acreditam fraca e incapaz, porque é povo magro e feio...”.

E acrescenta como a definir, a exprimir, a caracterizar o seu nacionalismo ainda mais do homem brasileiro do que da nossa e de nossa natureza física:

“São feios, efetivamente, aqueles sertanejos; muitos, além disso, vivem trabalhando, trabalhados pela doença. Pequenos e magros, enfermos e inestéticos, fortes, todavia, foram eles conquistando as terras ásperas por onde hoje se desdobra o caminho enorme que une o Norte ao Sul do Brasil, como um laço apocalíptico, amarrando os extremos da Pátria. É preciso ir lá par retemperar a confiança nos destinos da raça, e voltar desmentindo os pregoeiros da sua decadência”.

Esclareça-se desde logo que é pela Rondônia, e na época da Rondônia, que Roquette-Pinto inicia a sua grande campanha - campanha científica, política, moral, tribunícia, jornalística - pelo que ele próprio chamava a reabilitação do homem brasileiro.

E não só do índio, mas do mestiço. Com o indígena, neste sentido, tudo seria mais fácil e aceitável. Fora o indígena poetizado desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, que o descreve como - “de bons rostos e bons narizes, bem-feitos”, abrindo com suas descrições o mito de uma terra idílica, na América Meridional. Daí por diante, em seqüência, o resto se compreende: aos olhos dos civilizados, o indígena era o ser estranho, desconhecido, pitoresco e espetacular nas excentricidades. Prestava-se para a novela, a lenda, a fábula, para as narrativas românticas que impressionavam as platéias da Europa. É sempre o indígena brasileiro o tema principal nas obras de viajantes como Hans Staden, André Thevet, Jean de Léry, La Condamine; nos tratados dos informantes portugueses, como Gandavo e Gabriel Soares; nas cartas e crônicas dos jesuítas, como Anchieta e Fernão Cardim. E lembremo-nos de que mais tarde, grande parte da ação romanesca do Robinson Crusoé se desenvolve em território brasileiro, nas costas da Bahia.

Era o mestiço, este sim, que necessitava defesa e reabilitação. E para tanto Roquette-Pinto se dispõe a uma doutrinação constante e pertinaz, ao mesmo passo que objetiva, documentada e científica. Utiliza-se, contra preconceitos e tolices dos racistas, de todos os recursos de convicção e combate: percorre o caminho inteiro que parte da doutrina culta, passa pela polêmica, e deságua na sátira e no ridículo. Esta é uma temática - mais ainda: uma causa - pela qual batalhará até o fim da vida: como doutrinário, nos livros; como cientista, em experiências e demonstrações no Museu Nacional; como professor, educador e debatedor de idéias, nas cátedras universitárias ou nas tribunas leigas; como jornalista, em sucessivos e quase monótonos artigos na imprensa.

A ninguém cedeu, com ninguém transigiu, a ninguém esqueceu, e diante de ninguém silenciou cauteloso ou se apequenou em seu ideal. E nessa divergência não poupou sequer ao seu ídolo Euclides da Cunha. Num trecho dos Seixos Rolados enfrenta resoluto as idéias do autor de Os Sertões contra o fenômeno da mestiçagem, negando à atitude euclidiana qualquer base científica, acervo experimental objetivo da realidade. Mostra que ele em teoria ataca o mestiço, mas das páginas de Os Sertões sai valorizado o mestiço por efeito do que observamos dos seus atos e possibilidades. Roquette atribui os equívocos e contradições de Euclides da Cunha à influência desastrosa de Agassiz, que nos deixou tanto a lembrança sugestiva como o peso da tradição destes três erros pelo autor de Rondônia adjetivados como coloniais: “os blocos erráticos da Tijuca, as espécies ictiológicas do Amazonas, a mestiçagem da população do País”.

E assim Roquette-Pinto sintetiza também, em Seixos Rolados, a sua posição de defesa do mestiço em face dos erros e equívocos de Euclides: “Eis aí a grande ilusão de Euclides: considerou inferior, gente que só era atrasada; incapaz, homens que só eram ignorantes”.

Parece fora de dúvida caber a Roquette-Pinto - e esta é uma das suas glórias de pioneiro, de antropologista e de educador - a legenda de reabilitador do homem brasileiro, notadamente do mestiço. E digo que o foi, fundamentalmente, quanto ao sentido ou ao caráter científico, pois antes dele muitos existiram e se destacaram animados de sentimentos patrióticos, políticos, até pessoais.

Entre tantos precursores de Roquette-Pinto nessa valorização do mestiço brasileiro - mas sem a sistemática científica e documental, repitamos, do autor de Rondônia - avulta Silvio Romero, apaixonado e exuberante, que nos deixou, neste sentido, uma frase bem típica: “Neste país somos todos mestiços; quem não o é no sangue ou na pele, é no espírito”.

Creio também que é a contar desse tempo que ele se fortifica e se fixa em determinado conceito de Antropologia como numa fortaleza. Antes, no conceito de Augusto Comte, a Antropologia confundia-se com a moral, sendo uma ciência do homem individual, distinta, portanto, da Sociologia. No sentido comtiano, sabe-se, o antropólogo seria simultaneamente médico, filósofo e sacerdote. Para Roquette-Pinto - e pelo seu prestígio e autoridade, tornou-se dominador e vigorosamente no Brasil - o seu novo conceito de Antropologia tomava-se como uma ciência que “prepara” e “completa” a Sociologia. Eis tudo.

XI

Roquette-Pinto e o Paraguai

A partir da amizade com o General Rondon e da publicação de Rondônia outro aspecto me chamou a atenção: o pacifismo de Roquette-Pinto e o seu horror à guerra. Porque será curioso ou importante assinalar que este patriota e este nacionalista sempre foi um pacifista. Escreveu, por exemplo, numa das páginas de Samambaia, embora disfarçada em peça de ficção, estas observações que não são propriamente de uma antimilitarista, mas sim de um homem que sabia ver no futuro: “Sou partidário do serviço militar. Todo homem deve prestar aquele tributo à sua terra. Mas o serviço militar deve ser: construir pontes e estradas, aprender um ofício, trabalhar numa coisa útil. A Grande Guerra, aliás, veio mostrar que a vitória caberá a quem melhor abastecer-se. O soldado, hoje, é, principalmente, um operário. As guerras são ganhas pelos eletricistas, pelos mecânicos, pelos motoristas...”.

Nascera, por certo, o seu pacifismo daquela nobre e famosa sentença do General Rondon que significava toda a política da marcha dos brancos ao encontro do índio: “Podemos morrer; matar, nunca”.

E não esqueço o episódio que nos conta o seu discípulo Pedro Gouveia Filho. Quando, por ocasião da última Guerra, os italianos agrediram os gregos, sendo desde logo repelidos, e quando todos ridicularizavam a gente do fascismo peninsular, Roquette-Pinto fazia ao seu amigo e confidente Pedro Gouveia este comentário contra a corrente geral da opinião: “Que povo admirável é o italiano, que já não sabe mais brigar!”.

Naturalmente, não há de ter sido por pacifismo ou qualquer sentimento, mas por convicção histórica, que ele tomou contra Osório Duque-Estrada a defesa do Paraguai na Guerra da Tríplice Aliança. Debateu longamente o problema em seu discurso de posse, sustentando com destemor a responsabilidade do Brasil na abertura do conflito, contrariando e combatendo os patrióticos argumentos e a inflamada orientação do autor do Hino Nacional, que lhe foi, aqui, antecessor. E isto deu a Roquette-Pinto oportunidade de proferir nesse mesmo discurso de posse, a propósito da questão da responsabilidade do Brasil na Guerra do Paraguai, uma frase que se prolongou até nós em toda a sua nobreza e altivez: “Pelo progresso da minha terra tenho arriscado contente, mais de uma vez a vida que ela me deu. Mas só compreendo o patriotismo que não precisa de mentiras para manter a existência”.

Mas onde adquirira Roquette-Pinto tais sentimentos e convicções com respeito à responsabilidade no deflagrar da Guerra do Paraguai? Teria sido em Assunção, por ocasião de sua estada de vários meses como professor na Universidade?

Indicou-o, em 1929, o seu amigo Aloysio de Castro, então diretor da nossa Faculdade de Medicina, para inaugurar, como professor visitante, o Curso de Fisiologia Experimental da Universidade de Assunção. Sabe-se quanto foi, mais do que amigo, um apaixonado do Paraguai; e quanto foi retribuído em gentileza e compreensão. Aos paraguaios transmitia, inclusive com a sua beleza, elegância e maturidade desse ano de 1920 - a impressão de um humanista, de homem do Renascimento ou do século XVIII. Chamavam-no, lá, “embaixador das idéias e dos sentimentos do povo brasileiro” - é o que nos relembra o Sr. Modesto Guaggiari, um diplomata paraguaio.

Se 1920, porém, é um ano culminante na existência de Roquette-Pinto, e se aconteceu, nessa estada no Paraguai, algo tão indicativo de sua passagem por ali - isto se deve principalmente ao valor de sua aula inaugural. Intitulou-a Conceito Atual da Vida. É uma conferência, na verdade, e corre hoje mundo, impressa à parte, como peça independente da bibliografia roquettiana. Roquette se revela em estado tipicamente goethiano nessa aula em forma de conferência: é que realiza, ao longo de suas páginas, uma espécie de passeio de diletante por todas as ciências, tocando de passagem em problemas de todas elas: a Biologia, a Química, a Filosofia cartesiana. Mas assinalável, nestas páginas do Conceito Atual da Vida, é um sentimento, direi melhor, uma sensação de otimismo, de euforia, de confiança no progresso e de fé na ciência – tudo o que parece mais renaniano do que goethiano.

Duas afirmações, afinal, que encerram esse pequeno volume, lembram a sua fidelidade ao doutorando de 1906. Na verdade, estas duas proposições finais de Conceito Atual da Vida coincidem surpreendentemente com algumas das proposições da tese O Exercício da Medicina entre os Indígenas.

Uma das afirmações: “O diagnóstico e a terapêutica conseguirão um dia a certeza definitiva; e será isso milagre da fisiologia”.       

A outra: “Bendita a Ciência que consegue conferir ao homem a posse de si mesmo, mostrando-lhe como seus ódios são condicionados pelas reações de seu cérebro, que um dia ela transformará de selva agreste de egoísmos em roseiral e fraternidade”.

Isto representava ao menos uma coerência no materialismo, na convicção de que o ódio e o amor, como os demais sentimentos, são produtos do cérebro. Melhorará a humanidade, mudar-se-á o egoísmo em altruísmo, à proporção que se aperfeiçoar o cérebro humano...         

E conclui Roquette a sua aula inaugural em Assunção com esta profissão de fé na Ciência e na Medicina:

“Por minha parte, encontro uma beleza majestosa na ciência que concebe os supostos caracteres do homem integrados nas forças naturais, dominadoras e eternas”.

Última é um modo de dizer: aqui está o que realmente constitui o fecho da conferência, as suas palavras finais, tanto mais sóbrias quanto mais eloqüentes, substanciais e expressivas:     

“Eu me felicito que o torvelinho da minha vida me tenha trazido até vós outros, senhores do Paraguai, terra sagrada para as gerações republicanas de minha querida Pátria”.

Só com a lembrança das circunstâncias será possível avaliar da elegância como da superioridade dessa frase. No ensejo da missão cultural de Roquette-Pinto ao Paraguai, faziam-se sentir ainda muito vivamente os ressentimentos e prevenções decorrentes da guerra. Pois bem: o professor brasileiro, em tal atmosfera, profere toda essa aula inaugural sem qualquer referência ao sentimento entre os dois países, nem qualquer apelo ao esquecimento e abertura de novas relações entre os dois povos. Desde o primeiro período da aula escrita e preparada, entra na matéria científica do curso, sem a mais leve ou indireta alusão política, diplomática, sentimental; e assim prossegue até o fim. Sem poder corretamente declarar no Paraguai a sua convicção sobre a responsabilidade do Brasil no deflagrar da guerra, o que só fará em território brasileiro, compreendeu também quanto seria constrangedor ou vulgar proferir uma defesa, uma explicação, uma justificação. Ali, naquela cátedra de Assunção e naquele ano de 1920, tudo a este respeito seria descabido: demais ou de menos. Então, somente no fecho, naquela última frase expressiva, mas sem ênfase - tudo deixou dito e entendido, ao afirmar que, no seu país, “para as gerações republicanas” o Paraguai constitui uma “terra sagrada”.

Cientificamente, o seu êxito no Paraguai fora perfeito. Ao lado das qualidades intelectuais e de sedução pessoal, Roquette-Pinto conhecia excelentemente a matéria.

Refere-nos Gastão Cruls que Álvaro Osório de Almeida, ao retornar de sua primeira viagem à Europa, havia instalado um laboratório na própria residência, à Rua Almirante Tamandaré, para experiências e trabalhos de Fisiologia. Aí Roquette-Pinto, com seu colega de turma e amigo íntimo, iniciaria os estudos que o levariam vinte anos depois à missão de inaugurar com um curso a cátedra de Fisiologia Experimental na Universidade de Assunção.

Sentimentalmente, das suas lembranças e encantos do Paraguai - que fale o próprio Roquette-Pinto neste trecho de uma conferência proferida na Academia Brasileira: “Mais tarde, os encantos do Paraguai são tão grandes, tão numerosos e tão sub-repticiamente tomam conta da alma da gente, que não tive outro remédio senão prender-me algum tempo nas malhas do nhanduti, essas rendas frágeis que as mulheres fazem despreocupadas de todo o interesse e que deveriam estar hoje figurando em todas as revistas, em todos os tratados de etnografia, porque estão aí estilizadas as coisas de sua terra”.

E o opúsculo, tese, memória - quem o dirá? - que dedicou a essas rendeiras, ao escrever a Nota sobre o “nhanduti” do Paraguai, sempre recordará aquela etapa culminante de sua carreira de cientista moço, de professor entusiasta e de brasileiro em apogeu de sociabilidade no estrangeiro.

Publicou, alguns anos mais tarde, em 1927, no Boletim do Museu Nacional, esta monografia de tão evidente interesse para os estudos de folclore no continente sul-americano.

Chegara Roquette-Pinto à plenitude de sua personalidade - com o sucesso pessoal do curso de Fisiologia no Paraguai - e de sua realização de autor - com alguns dos melhores ensaios, estudos, monografias, obra escrita culminando em Rondônia - ainda na juventude. Não é de admirar, não vinha constituir exceção. A frase de La Rochefoucauld: “La jeunesse est une ivresse continuelle: c’est la fiévre de la raison...”  - aplica-se ainda mais aos cientistas do que aos escritores e artistas. Lembremo-nos que foi com trinta anos que Lavoisier revolucionou a Química; só contava Newton vinte e quatro anos, quando lhe ocorreu a idéia da gravitação universal; Galileu não passava dos dezenove anos ao descobrir as leis do pêndulo. E para os jovens cientistas se têm aberto as portas do Instituto de França: Berthollet, com trinta e dois anos; Fourcroy, com trinta; Biot, com vinte e nove.

Quanto a Roquette-Pinto, entre os vinte e os trinta anos, escreveu alguns dos seus melhores ensaios e realizou algumas das suas mais originais conferências; com trinta e dois anos, publicou Rondônia; com trinta e seis, deu o curso no Paraguai e divulgou o ensaio Euclides da Cunha naturalista; aos quarenta, elaborou o plano irrealizado de suas obras completas; aos quarenta e três, empossava-se numa das cadeiras da Academia Brasileira; aos cinqüenta, por fim, proclamou a síntese do seu pensamento nos parágrafos do Credo.

Daí por diante, a obra escrita será feita de variações e notas convergentes, mas sem grandes descobertas ou novidades; e se não entra em decadência é que fora sempre homem de ação e dos quarenta e cinco aos setenta anos o gosto da ação empolga-o como educador, como fundador, como pioneiro no Brasil em matéria de rádio e de cinema educativo.

XII

O Plano das “Obras Completas”

Tenho em mãos um documento talvez inédito, de qualquer forma raríssimo, hoje desconhecido e que não encontrei citado em parte nenhuma: um quadro das Obras Completas de E. Roquette-Pinto, segundo o seu próprio planejamento nunca executado.  Em 14 volumes imaginara a publicação em conjunto das obras que já escrevera e das que planejava escrever. É sintomático que devesse intitular-se o último volume Contribuição ao estudo antropológico do homem brasileiro; e bem podemos hoje calcular, igualmente, o conteúdo como o significado de duas obras projetadas com estes títulos: A guerra do Paraguai e A vida dos animais.

Por se tratar de uma contribuição de tão evidente interesse, pelo seu ineditismo ou pela sua raridade, e para que venha a ser respeitado, no caso da publicação em qualquer época de todas as suas obras, ordenada e uniformemente - vamos transcrever na íntegra este quadro das Obras Completas de Roquette-Pinto, segundo o documento que encontramos nos arquivos reservados da Academia:

1º volume - O Exercício da Medicina entre os indígenas na América - Tese de doutoramento - Rio, 1906.

2º volume - Biologia, com as seguintes partes: Nota sobre a fauna cadavérica do Rio de Janeiro - Rio, 1908; Sobre um caso de prenhez quádrupla - Rio, 1909; Ectopia congênita do rim esquerdo - (Boletim da Soc. Med. dos Hospitais, Ano 2, nº 7) - Rio, 1909; Um caso raro de sínfise renal no homem - Rio, 1909; Dinoponera Grandis. Memória de docência à Faculdade de Medicina - Rio, 1915; Nota sobre o Microsporum felineum (Folha Médica) - 1920; O Guaraná, Nota sobre a ação fisiológica da Fava Tonka - (Boletim do Museu Nacional, nº 2) - Rio, 1924; Relatório da Viagem ao Paraguai (Folha Médica).

3º volume - Antropologia e Etnografia, com as seguintes partes: Etnografia indígena do Brasil (Relatório para o Congresso Médico Latino-Americano) - Rio, 1909; Die indianer nambiquara (Nota enviada ao 18º Congresso de Americanistas) - Londres, 1912; The indians of Serra do Norte (Mato Grosso - Brasil), a Condição da criança entre os indígenas do Brasil, Psicologia da arte indígena (Arquivos de Medicina Legal) - Rio, Anthropology and Etnography of Brazil - Londres, 1912; Um problema de Antropologia aplicada (Jornal do Commercio) - Rio, 1914; A questão das raças em Versailles, Imparcial - Rio, 1918; A paz e a antropogeografia, Época, - 1919, Note sur la situation sociale des indiens du Brésil - Paris, 1911; Nota sobre um caso de simulação (Arquivo de Medicina Legal) - Lisboa; A caminho de um paraíso - Saúde - 1918; Um manto real de Hawai - (Boletim do Museu Nacional, nº 1, 1923)  Rio; Nota sobre o nhanduti do Paraguai.

4º volume - Rondônia - 1ª edição - Rio, 1916; 2ª edição, Rio, 1917.

5º volume - Contribuição para a Anatomia das raças humanas - Dissecção de uma índia do Brasil (em colaboração com o Prof. Benjamin Batista).

6ª volume - Excursão às lagoas do Rio Grande do Sul. Relatório - Rio, 1912.

7º volume - Guia de antropologia do Museu Nacional - Rio, 1915.

8º volume - Mineralogia - Rio, 1918.

9º volume - Discursos e Conferências: Aborígenes e Etnógrafos - Anais da Biblioteca Nacional, volume V, - Rio, 1916; Discurso do Instituto Histórico - Jornal do Commercio - 1918; o Brasil e a Antropogeografia - Rev. do Brasil - Dezembro, 1916; Conceito atual da vida - Assunção, 1920 - Rio, 1922; Nossa gente - Rio, 1921; Tiradentes - Rio, 1924; 3 de Maio - Rio, 1917; Centenário do Museu Nacional - Rio, 1919; Euclides da Cunha Naturalista - Rio, 1917; Palavras na Rádio Sociedade - Rio, 1923; Vicente de Carvalho - Rio, 1924.

10º volume - Seixos rolados (contos): O pioneiro - Imparcial - Junho, 1918; O segredo de Mauer - Imp. Fco., 1920; Manchas de Sol - Imp., 1918; As borboletas de Werther - Junho, 1918; A poesia das estradas - Saúde - Julho, 1918; Águas e Fagulhas - Imp., 1918; Conto de Natal; A canoa. A relíquia de Abel, O velho ninho - Imp., Junho, 1918; Maria Carmen.

11º volume - Notas de Estudos: Um informante do Imperador Pedro II - Rev. do Brasil -  Junho, 1918; Limites interestaduais, Alberto Loefgren - Rev. do Brasil - Setembro, 1918; A correspondência do Cônsul Sturz - Rev. do Instituto Histórico; Um jubileu científico - Rev. do Brasil - Junho, 1918; e outros artigos de vulgarização científica.

Em preparo:

12º  volume - A Guerra do Paraguai.

13º volume - A vida dos animais.

14º volume - Contribuição ao estudo antropológico do povo brasileiro.

É fácil verificar-se que Roquette-Pinto assim planejou as suas Obras Completas nas vésperas da eleição para a Academia: a última data assinalada entre os trabalhos distribuídos é 1924 e não existe nenhum datado de 1927 para a frente. Fará cada ouvinte ou leitor suas próprias reflexões em face dessa ordenação e enquadramento da obra roquettiana. Queremos apenas assinalar uma curiosidade em matéria de transposição de títulos. Não aparece ainda o título Samambaia, aliás, de um livro que só se publicará em 1934. Vê-se, porém, que os contos de Samambaia já existiam de há muito e estavam ajuntados num volume que deveria intitular-se Seixos Rolados. Por sua vez ensaios que viriam a constituir capítulos do volume publicado em 1927 com o título de Seixos Rolados, como outros tantos de Ensaios Brasilianos, achavam-se destinados à publicação, segundo esse primitivo planejamento, em volumes sob os títulos Discursos e Conferências e Notas de Estado, que, aliás, nunca apareceram.

XIII

O Principal é “Fazer”

Por que ficou  Roquette-Pinto como criador apenas de uma só grande obra especialmente construída e acabada em si mesma, a Rondônia, embora autor também, durante toda a vida, de tantas obras valiosas, mas fragmentárias, como de tantas monografias originais, mas limitadas em suas dimensões e preparadas no ritmo das circunstâncias?

Por que, a partir dos quarenta e cinco anos, não digo que preferiu, mas de qualquer modo consentiu que a ação passasse a ocupar o principal espaço de sua vida e de suas preocupações? Empolgava-o a outra margem da existência, a das coisas práticas e com utilidade direta para a comunidade; fascinava-o, como educador e pioneiro, a missão de ensinar, mesmo imperfeita ou incompletamente, ensinar de modo precípuo com o exemplo, seja em seus escritos, seja em seus atos.

Representaria isto, talvez outro atendimento a mais uma sugestão de Goethe, no Fausto, ao proclamar que no princípio era a Ação, e não o Verbo. Sim, uma autêntica doutrina goethiana, em vez de mera sugestão. No Segundo Fausto, reafirma Goethe que a melhor maneira de responder o homem ao apelo do divino - é agir, utilmente. E só por isso, a despeito de todos os crimes e blasfêmias, é que o Fausto se salva e ainda merece o reino dos eleitos. Por outro lado, encontramos a mesma conclusão no Wilhelm Meister, quando o herói do romance goethiano acaba por compreender que a verdadeira missão do homem é renunciar, não ao seu individualismo, mas ao seu egoísmo - e agir, e fazer obras úteis à comunidade.

Assim, tendo lidado com tantas ciências, tantas formas de expressão, tantas atividades - Roquette-Pinto, como era natural, não foi perfeito, nem completo em nenhuma delas. O essencial, porém, é que, vencendo o individualismo e o egoísmo, realizou a sua personalidade em obras escritas e atos, fez sempre o que lhe parecia necessário, cumpriu o seu papel.

Fazer: eis o essencial, na verdade. Roquette preferiu arriscar-se, e fazer; realizar-se na imperfeição, mas fazer. Não ficou como certos espíritos acorrentados em estreiteza, inveja, ressentimento, mesquinharia e secura de alma - que se gastam todos na empresa de escrever durante toda a vida o que se deve fazer e como se deve fazer, em vez de fazerem eles próprios alguma coisa, o que seria o melhor exemplo e estímulo para os jovens.

Como devem sofrer na impotência de criar, de produzir, de realizar alguma coisa - estes pequenos teorizadores de conselhos monocórdicos e divulgação das “últimas” receitas do estrangeiro! Como devem sofrer os estéreis que só sabem dizer e repetir, monotonamente, como se deve criar uma obra ­- e não são capazes nunca de criar uma obra qualquer, ainda que defeituosa, incompleta e imperfeita! Eis o que, na vida literária e científica, constitui realmente o inferno: esta atmosfera não de fogo, mas de gelo, em que se debatem os seres privados da alegria de produzir, do talento e da capacidade de realizar-se em obras.

É um sinal de impotência, de incapacidade, como efeito, esta prisão angustiante numa mesma nota de repetição para dizer como se faz ciência, ou poesia, ou romance, ou crítica, na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos. E não fazem nada, afinal, estes meros divulgadores do que se está fazendo no estrangeiro, não raro - sou forçado a acreditar - mediante resumos de revistas, índices de livros, neste afã de citação das “ultimas novidades”, em número de obras que não poderiam nelas aprofundar-se ou ler sequer, ainda que fossem a lei da vida dilatando ou tivessem por si a imortalidade, mesmo essa tão discutível imortalidade acadêmica.

Deixava Roquette-Pinto para as suas aulas de professor, para um ou outro espaçado artigo de jornal, para um ou outro raro capítulo de livro - esta tarefa de dizer como se faz e como se deve fazer, de acordo com os modelos mais adiantados da cultura estrangeira. Imaginem se Roquette houvesse consumido a vida toda a repetir, na regularidade e monotonia dos relógios, como Bergson fazia Filosofia ou como Eistein fazia Física, como Bédier realizava experiências em Fisiologia ou como Boas renovava a Antropologia - então, ele não teria escrito e não nos teria deixado a Rondônia, os Ensaios de Antropologia Brasiliana, os capítulos de Seixos Rolados, os Ensaios Brasilianos, a conferência sobre o Conceito Atual da Vida, o estudo Antropologia para a introdução do catálogo de coleções do Museu Nacional e tantas conferências, tantos ensaios, tantos artigos de jornal, tudo largo e construtivo ainda que em pequenas dimensões.

Sabia Roquette-Pinto que, num país como o Brasil, ainda em preparação e formação, mas já ansioso de empreendimentos e realizações, o principal não é dizer o que se deve fazer ou como se fazer, mas fazer. E por isso é que - homem generoso e espírito realista - não quis transformar em pílulas de ministração periódica as suas idéias e doutrinas, os seus princípios científicos ou estéticos, mas deu-lhes, isto sim, corpo, alma, vida em obras realizadas. E obras realizadas como eram possíveis de acordo com as condições de sua personalidade de brasileiro e as condições da vida cultural em nosso meio.

A este respeito, aliás, Roquette-Pinto sempre se mostrou um perdulário, um mão-aberta, tanto em relação ao que colhia em pesquisas científicas como à sua capacidade de elaboração em texto e linguagem. Muitos trabalhos seus - e dos mais valiosos, alguns deles com extraordinário valor científico, inclusive entre os que estamos citando - nem foram sequer incluídos nos volumes de ensaios e estudos, nem foram reeditados, nem eram mesmo mencionados pelo autor ou incluídos na bibliografia que entregava para o Anuário da Academia. Deixou-os adormecidos não só em opúsculos, revistas, jornais; deixou-os escondidos em anais de Congressos, atas científicas, nos Arquivos e Boletins do Museu Nacional. Para conhecê-los todos - tive que muito procurar e muito pesquisar em bibliotecas e arquivos. Em outro plano, por exemplo, poucos se recordaram que de sua passagem muito rápida pelo Gabinete Médico-Legal deixou escrita em 1911 uma memória sobre a fauna cadavérica no Rio de Janeiro, experiência e realização de juventude que seria mais tarde, não obstante, ponto de partida para estudos do grande naturalista Luderwaldt, e que também no período para ele tão agradável de professor de História Natural no Instituto de Educação, naquele tempo Escola Normal, escreveu para as suas alunas um breve tratado Elementos de Mineralogia (1916), mas elementos de mineralogia no Brasil e pelo Brasil.

Estava Roquette-Pinto, porém, muito consciente da sobrevivência da sua obra, bem certo de que durante um século não se escreverá sobre antropologia ou sobre o indígena no Brasil, assim como sobre educação ou rádio, sem que se consulte o que ele deixou escrito a este respeito. Isto mesmo declarava, ele próprio, a Humberto de Campos, numa das sessões acadêmicas das quintas-feiras. É certo contar-se hoje, por outro lado, que nos últimos tempos, nas proximidades da morte, com uma melancolia de quem sente frustração ou incerteza quanto ao que fora realmente o seu destino em relação com o que poderia e deveria ter sido, costumava dizer:

- “Nasci para general e não cheguei senão a capitão”.

De outra natureza, no entanto, são as palavras de confiança e segurança que Humberto de Campos registrou no seu Diário Secreto como ouvidas de Roquette-Pinto:

- Humberto, eu sou, talvez, mais vaidoso do que você supõe. Eu não me desinteressei da minha ciência predileta, a antropologia, porque estou inteiramente tranqüilo em relação à conservação do meu nome, nos seus anais. Dentro de um século, não se escreverá sobre raças, especialmente sobre os índios, assim como sobre educação e sobre rádios no Brasil, sem subir as escadas do Museu Nacional ou das Bibliotecas para consultar o que eu deixei... Tudo que um homem de pensamento aspira, e que é a sobrevivência na memória dos homens de amanhã, eu tenho como certo. Agora, o meu desejo é divulgar o conhecimento das maravilhas da ciência moderna nas camadas populares. Essa a razão dos estudos que estou agora realizando. Eu quero tirar a ciência do domínio exclusivista dos sábios para entregá-lo ao povo”.

XIV

Professor de Alta Ciência e Educador Popular

De outra maneira, na expressão feliz de Aloysio de Castro, temos Roquette-Pinto a aparecer - “a um tempo como professor de alta ciência e como educador popular”. Na verdade, é só correr livros e artigos de jornal, é só percorrer-se toda a atividade de Roquette-Pinto - e ver-se-á ao mesmo tempo, às vezes no mesmo dia, ora “o professor de alta ciência”, ora “o educador popular”.

Encontro facilmente dois exemplos ilustrativos. Aqui está um artigo ligeiro de Roquette-Pinto sobre um concurso de misses no Brasil, pois ele não desdenhava, nem achava fútil qualquer assunto. Sem dúvida, é preciso ter seriedade de espírito para escrever superiormente sobre um tema frívolo, ainda que em fórmulas graciosas ou em produções de circunstâncias. Um concurso de misses representava, neste sentido, excelente pretexto para lições amenas de eugenia, de antropologia e de sociologia por parte de um “educador popular”.

De outro lado, porém, vamos encontrar o “professor de alta ciência” a participar, com uma tese importante, do Congresso de Língua Nacional Cantada, reunido em São Paulo no mês de julho de 1937. Intitulava-se Contribuição à Fonética Experimental do Português falado no Brasil - a tese de Roquette. É um trabalho de pequena extensão, mas original, produto de pesquisas e experiências diretamente suas, como se vê por este período inicial:

“Em 1926 principiei algumas pesquisas de fonética experimental sobre o português falado no Brasil. Os trabalhos foram realizados no mesmo laboratório do Museu Nacional. Tomei numerosos gráficos de palavras e frases pronunciadas por indivíduos de várias regiões do País e alguns portugueses. A técnica empregada constituiu no registro, um papel enfumaçado, num quimiógrafo”.

Contendo apenas umas poucas páginas de introdução, a tese compõe-se, na verdade, da apresentação das variantes de três palavras, segundo a técnica e o processo empregados pelo mestre Roquette em suas observações e verificações.

Companhia = Companhia (Rio de Janeiro)

Compania (E. do Rio, Minas)

Compania (Nordeste).

Foi como homem de ação, como vanguardeiro em matéria de iniciativa e realizações - mas, sobretudo, como educador popular - que criou em 1923 a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, e fundou-a, na Academia Brasileira de Ciências, precisamente como um instrumento para a propaganda educacional. Passou-a, em 1936, para o Ministério da Educação, na impossibilidade de mantê-la, em propriedade particular, a salvo da comercialização pelos anúncios. Em 1934, reaparece o Fundador do Rádio no Brasil - e cria a Rádio Escola Municipal do Rio de Janeiro, hoje a Rádio Roquette-Pinto. Em 1936, outra vez o Fundador em cena - e fundador e primeiro diretor do Instituto Nacional do Cinema Educativo. Por fim tocou pessoalmente na suprema invenção que reúne o rádio e o cinema. Antes de morrer, foi-lhe dado ver a televisão difundida vastamente. Mas foi seu - fabricado por suas mãos - o primeiro e naturalmente rudimentar aparelho de televisão aparecido no Brasil. Pouca gente o sabe, mas este aparelho se encontra no Museu Histórico.

“Para nós” - escreveu Roquette-Pinto - “o ideal é que o Cinema e o Rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”. E aqui está outra expressiva frase sua: “O Rádio e o Avião respondem pelo futuro”. Contudo era com certa melancolia e mesmo apreensão que imaginava esse futuro de um interior do país devassado: “Por sua vez o matuto vai recebendo com o trem de ferro, o rádio, o cinema, a infiltração das tentações do moderno que secam, na sua alma ingênua, as melhores verdades da sua antiga educação”.

Via tudo em termos de educação e de progresso do Brasil; e achava que em nosso País cheio de problemas havia duas coisas essenciais: uma, vencer a distância; a outra, aumentar a eficiência do homem que trabalha. Explicava-se: “Vencer a distância - no plano espiritual, intelectual e moral - é o fim que se chama educar; e educar é sempre aumentar a eficiência do homem que trabalha. Dizem muitos, o Brasil precisa de braços, mas a verdade é que o Brasil precisa, antes de mais nada, aproveitar os braços que tem”.

Dividia-se Roquette-Pinto não só entre atividades, mas entre artes várias. Sabia compor musicalmente, e deixou algumas partituras, como a das Folhas soltas, de Vicente de Carvalho, e uma Ave-Maria dedicada à filha. E é um crítico da categoria e do rigor de Eurico Nogueira França quem afirma que Roquette-Pinto “encarou a música não só como cientista, mas, igualmente, como artista, para seu prazer individual”.

De fotografias por ele pessoalmente feitas do Corcovado e do Outeiro da Glória - com uma teleobjetiva pela adaptação de uma lente de binóculo a uma máquina de retrato - tirava gravuras numa prensa, também de sua invenção, fosse heliogravura, água-forte ou fototipia. Com elas gostava de presentear os amigos.

Tinha o dom, o gosto, a técnica do trabalho manual; sempre o cultivou, até como compensação, de acordo com a frase de Augusto Comte captada no tempo de estudante de Medicina: “O trabalho manual é a salvação do pensador”.

Se em grego técnico é sinônimo de arte, como processo de fazer, na concepção spengleriana técnica é tudo o que se faz com as mãos. E esta era uma técnica de Roquette-Pinto: a das mãos.

Numa admirável reportagem publicada no Jornal de Letras, em torno da figura, de idéias e de hábitos de Roquette-Pinto, conta-nos Francisco de Assis Barbosa que “ele construiu com as suas próprias mãos, que a doença ia deformando, o aparelho de diatermia, colocado ao pé do leito”; e que “montava e desmontava o rádio de cabeceira, fazendo experiências de ondas curtas e longas”. Acrescenta Francisco de Assis Barbosa que no apartamento outros aparelhos encontrou de invenção e fabricação do dono da casa: “a máquina de fazer gelo, o barômetro, o telescópio, o ampère-metro”.

Entretanto, o sábio continua entregue a estudos e pesquisas de vária natureza. Quando já não mais estava possuído de força criadora, ainda assim a curiosidade continuava nele tão aguda e tão incontentável quanto na juventude. Levantava documentações, buscava dados e números, promovia estatísticas. A uma delas - por ser pouco conhecida e por se tratar de um verdadeiro cálculo de discriminação racial em nosso País - retiro agora das páginas da Revista de Imigração e Colonização, onde Roquette-Pinto apresentava, em 1940, este quadro de distribuição da população brasileira: Brancos - 51%; Mulatos - 22%; Caboclos - 11%; Negros - 14%; Índios - 2%, sem contar aí, porém, a existência ainda em nosso território de 300 mil Índios selvagens.

XV

O “Credo” de Roquette-Pinto

Está datada de 4 de julho de 1935 - quando já atingido pela espondilose, mas ainda distante da decadência física dos últimos tempos - uma das páginas mais extraordinárias de Roquette-Pinto, tanto pelo valor de sua expressão formal e estilística quando pelo que significa como síntese do pensamento roquettiano na maturidade. Pela coragem das afirmações anti-religiosas ou pela negação seguramente intencional dos fenômenos de sobrenaturalidade, faz-nos lembrar o testamento filosófico de Renan; e sugere, no plano talvez ainda mais impressionante da ficção, o documento para depois da morte do personagem Jean Barrois no romance de Roger Martin du Gard.

Trata-se de um Credo, escrito a pedido dos jovens do Clube da Cultura Moderna. Não há como resumi-lo ou comentá-lo. É preciso conhecê-lo em todos os seus termos para conhecer-se realmente a figura humana, as idéias, o pensamento, a coragem intelectual, a filosofia de Roquette-Pinto:

“Recebo o convite para depor neste inquérito como verdadeira intimação, formulada em nome dos mais sagrados interesses coletivos. É hora das definições. Todos quantos assumiram, em consciência, compromissos com os seus pares ou com os seus discípulos não podem mais engrossar o bando das ‘almas flutuantes’ de que fala Augusto Comte. Vivendo à margem das agitações políticas de toda espécie, engolfado com vivo entusiasmo na obra de educar o meu povo, por todos os meios ao meu alcance, até hoje não falei, para não aumentar o coro dos inquietos...

Se me interrogam, porém, calar seria extinguir, por mim mesmo, os poucos e tênues raios de luz que o destino consentiu surgissem na minha existência.

Creio que o homem e a natureza são exclusivamente governados por leis imutáveis, superiores a quaisquer vontades;

Creio que a ciência, integrando o homem no universo, criou em sua mentalidade ao mesmo tempo uma infinita modéstia e uma sublime simpatia para com todos os seres;

Creio que a ciência mostrando ao homem como o ódio e o amor são condicionados pelas reações do seu cérebro, deu-lhe a posse de si mesmo, permitindo que ele se transforme e se aperfeiçoe à custa das suas próprias forças;

Creio que a ciência, a arte e a indústria hão de transformar a terra no Paraíso que os nossos avós colocavam... no outro Mundo;

Creio que, ao lado das grandes forças egoístas que vivem no coração dos homens, jazem ali tesouros imensos de altruísmo e fraternidade que a vida em comum há de fazer desabrochar cada vez mais;

Creio nas leis da Sociologia positiva e por isso creio no advento do Proletariado, conforme foi definido por Augusto Comte, que nele via uma sementeira dos melhores tipos “realmente dignos da elevação política”;

Creio, por isso, que a nobre missão dos intelectuais ­- mormente professores - é o ensino e a cultura dos Proletários, preparando-os para quando chegar a sua hora;

Creio que, sendo muito difícil conciliar os interesses da Ordem com os do Progresso, muitas vezes antagônicos, só existe um meio de evitar perturbação e desgraças: resolver tudo à luz do altruísmo e, principalmente, da fraternidade;

Creio que a ordem material dever ser mantida, mormente no interesse das mulheres, que são a melhor parte de todas as pátrias, e das crianças que são a pátria do futuro;

Creio que no estado de inquietação do Mundo Moderno só há um meio de manter a ordem material: é garantir a mais ampla, absoluta e definitiva liberdade espiritual;

Creio cegamente no postulado de Fritz Muller: “O pensamento deve ser livre como a respiração”.

Uma afirmação aí ressurge vcomo numa cadeia ininterrupta: 1906, 1920, 1935 - da tese de doutoramento, já repetida na aula inaugural em Assunção: que o ódio e o amor são condicionados pelas reações do cérebro. Falei antes, a propósito deste Credo, na filosofia de Roquette-Pinto. Na verdade, ele não tinha nenhuma. E se lhe fôssemos emprestar alguma, pela necessidade de rotular ou caracterizar-lhe o pensamento, esta seria a Fenomenologia, no que possa ser conceituada de menos sistemática, concebida como um alargamento do racionalismo. Fenomenologia como expressão filosófica de um pensamento racionalista e idealista, pela situação oferecida ao Eu transcendental; e empirista pelo papel soberano que confere à experiência, pelo lugar concedido aos elementos anteriores ao julgamento, pela importância atribuída a uma passividade primitiva.

XVI

A Figura Humana

Via-se e em tudo sentia-se que Roquette-Pinto era um ser destinado ao sucesso, à glória, à felicidade. Fadado ao poder pela influência, pela ação e pelo encanto pessoal. Embora houvesse escrito certa vez: - “Feliz? Só é feliz quem esquece” - em outro passo deixou esta confissão mais explícita: “Como sou feliz! Com o suor do meu trabalho tenho ganho mais do que o pão: a alegria!”

Gostava das mulheres, dos prazeres do corpo, de todas as coisas agradáveis da vida. E amava a natureza, indianista nostálgico do estado de natureza, que considerava talvez tão idílico e bem-aventurado quanto Montaigne ou Jean-Jacques Rousseau. Uma das informações mais curiosas e pitorescas que nos oferecem os familiares de Roquette-Pinto - e, entre eles, o fiel Mateus - é aquela de haver organizado o autor de Rondônia uma tribo com os filhos e amigos mais diletos, localizada a princípio num sítio da Barra da Tijuca, depois nas proximidades de Petrópolis. Andavam todos de indígena; e Roquette, com um cocar à cabeça, era o cacique, com o nome de Iuiraçu, o que significava: gavião de penacho. Quando chegava um visitante ilustre, como o amigo fraternal Afonso de Taunay, a tribo o recebia com um toque de tuba, seguido de uma saudação em tupi.

A este espírito assim jovial, no sentido humano, e tão livre, no sentido do pensamento, estava reservado, no entanto, o destino da purificação pelos sofrimentos e sacrifícios físicos. Traz-nos à memória a frase misteriosa de Nietzsche: “Aquele que libertou o seu espírito deve ainda purificar-se”.

Na verdade: aquele que sonhara para si próprio um “corpo olímpico” e um “caráter de herói” (conforme se retratava em Samambaia por intermédio da figura do avô João Roquette), belo, elegante, alegre, sensual e feliz - seria atingido, antes da velhice, pela humilhação de uma doença deformante, tornando-o dobrado e curvado pelo avançar do processo degenerativo da espinha vertebral.

Foi assim que já o conheci, em princípios de 1946, na única vez em que nos encontramos e estivemos juntos. Sucedeu que ao meu livro Rio-Branco fora concedido o mais valioso prêmio literário daquela época - o prêmio Pandiá Calógeras, distribuído pela Associação Brasileira de Escritores -  e fui informado de que para essa escolha de um júri de cinco membros, o voto de Roquette-Pinto, que dele fazia parte, pesara como decisivo, no julgamento. Visitei-o, então, em seu gabinete no Instituto do Cinema Educativo, onde conversamos durante umas duas horas. Dois juízos generosos e estimuladores que proferiu a meu respeito - nem sequer posso reproduzir algumas partes. Não posso repetir o que me declarou sobre o valor e o significado da minha crítica literária - desde que a nossa conversa foi a dois, e um de nós já morreu. Mas dos seus íntimos, de alguns dos seus discípulos, da sua filha, de muitos ouvi, depois de sua morte, que o meu nome figurava numa pequena lista de pessoas que o mestre de Rondônia desejava viessem a pertencer aos quadros da Academia.

Contudo, não é esta imagem - a de um homem na velhice, e já dobrado e desfigurado - que desejo recolher e guardar de Roquette-Pinto. Prefiro fixar e imobilizar, como representação do meu antecessor na minha memória ou na minha lembrança, a figura ainda jovem e saudável que contemplo, por exemplo, neste retrato tirado na Biblioteca da Academia, de rosto cheio e corpo um pouco voltado para trás, no movimento de um riso largo e saudável, vestido de branco à moda tropical, belo porte, seguro de si mesmo, acho que ele estimaria que eu dissesse: goethiano. E este mesmo Roquette-Pinto é que vou procurar e identificar em alguns dos seus ambientes prediletos ou característicos.

Primeiro, no seu pequeno apartamento na Avenida Beira-Mar, conservado com todos os seus objetos e arrumações, que visitei com o meu amigo e companheiro Francisco de Assis Barbosa, logo após a minha eleição, seis meses depois da morte de Roquette-Pinto. Encontrei aquela mesma mesa de trabalho cercada de estantes e que assim, atulhada de livros, revistas e aparelhos - “seria mais a banca de algum alquimista, a lidar com instrumentos estranhos e ferramentas bisonhas, tudo de mistura a tubos de ensaios, frascos de reagentes, retortas e matrizes”.

Quem naquele apartamento me oferecia, porém, uma visão real de Roquette-Pinto era a sua filha - e sua colaboradora na Rádio Sociedade Brasileira, no Museu Nacional e no Instituto Nacional de Cinema Educativo - senhora Beatriz Roquette-Pinto Bojunga. A este cientista, também um escritor e um artista, que amava a Beleza, na ordem estética, tanto quanto a Verdade, na ordem científica, ou o Bem, na ordem moral - a ele, deu-lhe o destino uma filha bela, vibrante, inteligente e vivaz, talvez o seu único grande e autêntico amor, ao mesmo tempo concreto e espiritualizado, por isso mesmo duradouro, e também uma criatura feminina para ele fascinadora, que o amou, por sua vez, de maneira tão apaixonada e absorvente como teria desejado o amor este Goethe a tal respeito descontente e frustrado. Foi para ela que apelou na hora da morte e foi com ela que trocou as suas últimas palavras.

Agora nessa tarde inteira passada no apartamento de Roquette, não é dos livros, dos objetos, dos papéis – que me vem uma sensação de presença de sua personalidade. Quem me transmite esta sensação, ao mesmo tempo natural e artificial, é a admirável e tão humana Beatriz, que ora chorava o pai por detrás dos óculos escuros, ora voltava a tornar-se radiante para de olhos límpidos evocá-lo ao vivo. Recitou-me muitos versos de Roquette. Mostrou-me móveis, objetos, livros, fotografias, documentos, relíquias do pai. Desculpava-se a toda hora da desordenação e trepidação com que saltava de um assunto para outro, entrecruzando no espaço e no tempo as linhas de suas lembranças, evocações, reconstituições.

Mas será (perguntava-me) que ela não compreende achar-se naquilo mesmo, naquela sua trepidação de gestos e desordenação das coisas relembradas - o interesse, o encanto, a autenticidade da ressurreição que estava realizando da figura do pai? Lembro-me bem, aliás, que Dona Beatriz parecia muito preocupada em fixar um determinado traço do caráter de Roquette-Pinto, simbolizando-o em alguns episódios que ela não se cansava de repetir, como se temesse a minha desatenção no momento ou o meu esquecimento ao sair da porta. Jamais se me apagará da memória, porém, aquela tarde no apartamento de Roquette, com sua filha a movimentar-se dentro dele como um pássaro de asas frágeis ou incertas para um vôo além da janela. E tenho vontade hoje de dizer à Senhora Beatriz Roquette-Pinto Bojunga que fixei bem e não esquecerei nunca o traço da natureza humana de Roquette-Pinto que ela caracterizou tantas vezes, sempre com aquelas mesmas expressões tantas vezes repetidas: ele sabia compreender, ele estava sempre pronto a compreender, ele de tudo e a respeito de tudo tinha compreensão.

-  “Sim” - acrescentava Dona Beatriz - “ele não desculpava apenas ou perdoava somente. Meu pai tinha compreensão para tudo e para todos, e isto constituía o primeiro sinal dos seus dons e disposições naturais para o amor. A sua compreensão era a sua forma de amar os seus semelhantes e o seu país, era a forma da sua tolerância, era a sua forma de respeito sagrado à dignidade e à liberdade da pessoa humana. Compreendia, compreendia, compreendia. E a compreensão era, somando tudo, a sua forma de bondade”.

Sim, ao sair do antigo apartamento de Roquette na Avenida Beira-Mar, venho a pensar, sob a sugestão dessa última palavra, no retrato do avô João Roquette, amorosamente descrito em Samambaia, com o seu caráter sintetizado nesta frase: “A natureza tinha feito dele um ser de bondade”.

Não saberia, porém, Dona Beatriz que Roquette-Pinto, estimando muito, embora, este magnífico avô, considerava, nos antigos troncos roquettianos, como “o grande-homem da família” a sua antepassada Dona Josefa? Dentro de um envelope, que classificou, em subscrito por fora, com a sua própria letra, como Genealogia e pedigree. Roquette escreveu, também, com a sua letra, vários papéis e documentos, acompanhados de desenhos, para traçar uma árvore bem frondosa de toda a família, copiando logo no alto, contudo, este trecho de História do Movimento de 1842, em Minas Gerais, de autoria do Cônego Marinho, sobre o seu chamado grande-homem Dona Josefa: “Ela, porém, conduziu-se com tal heroísmo e dignidade, que a história deve imortalizar-lhe a memória”.

No Museu Nacional e no Cinema Educativo

Em seguida, no Museu Nacional, o que se encontra de preferência é o autor, além do homem público, professor assistente e diretor. No princípio da carreira, para o Museu escreveu alguns dos seus mais importantes trabalhos da juventude e organizou em 1910 a famosa “Sala Dom Pedro II”. Ao Museu Nacional retornou, em 1926, como diretor. Ao Museu, sobretudo, e em suma, ofereceu a primeira edição da Rondônia, que vale simbolicamente como um monumento erguido na entrada do edifício da Quinta da Boa Vista. Da sua passagem pelo Museu, ainda, resta a assinalar pelo menos a lembrança de dois episódios que lhe definem, um, a sensibilidade da natureza humana, o outro, o caráter do homem.

Quanto ao primeiro, sabe-se que não se trata de anedotário, mas de um episódio real, a que Roquette, por sinal, não emprestou maior significação. Certo dia, diretor do Museu, deparou-se com a desolação de um rapazinho, a quem o porteiro, na fiel execução do regulamento, impedira de penetrar nas salas sem gravata. Parecia o rapaz interessadíssimo na visita às coleções. Humanamente, e com certo senso de humour, não querendo decepcionar aquela curiosidade de jovem, mas também não lhe sendo lícito desrespeitar o regulamento, o diretor encontrou a solução pronta, prática, excelente para todos: retirou a sua própria gravata, entregou-a ao visitante pobre, retirando-se a seguir do edifício com a gola do paletó levantada sobre o pescoço.

O segundo episódio apresenta um outro lado de sua figura humana. Vitoriosa a revolução de 1930, quanto mais arrogantes ou impertinentes se mostravam os novos dominadores, mais timoratos ou degradados se revelavam muitos diretores ou ocupantes de cargos de confiança da situação decaída. Fez Roquette-Pinto o que não se fazia então: compareceu perante o ministro da Educação para declarar-se amigo do presidente há pouco deposto. E mais: embora fosse de natureza técnica o cargo de diretor do Museu Nacional, dado que era também de confiança, apresentava ali o seu pedido de exoneração. Não lhe concederam a demissão, fizeram-lhe apelo para que permanecesse à frente do Museu; e o seu gesto - é o que se depreende no noticiário de jornais da época - provocou espanto e admiração.

Por fim - em busca de um Roquette-Pinto vivo, atuante, saudável, natural e empertigado, ainda não marcado pela doença - estive em outra de suas casas: o Instituto Nacional do Cinema Educativo, que ele mesmo caracterizou certa vez, visando a fixar mais uma das muitas distinções já enunciadas entre educação e instrução: “Educação é principalmente ginástica do sentimento, aquisição de hábitos e costumes de moralidade, de higiene, de sociabilidade, de trabalho e até mesmo de vadiação... Tem de resultar do atrito diário da personalidade com a família e com o povo. A instrução dirige-se principalmente à inteligência. O indivíduo pode instruir-se sozinho; mas não se pode educar senão em sociedade”.

Em companhia de sua filha Beatriz, dos seus discípulos Pedro Gouveia, Pascoal Leme, Bandeira Duarte e Humberto Mauro - passei algumas horas na sala de projeção do Instituto Nacional do Cinema Educativo, vendo reaparecer na tela os traços procurados de Roquette-Pinto: a figura em movimento, o cientista no laboratório, o artista a declamar versos. Tive de começo, com efeito, uma impressão de ressurgimento ao vê-lo ali, de novo, a pronunciar a oração oficial no lançamento da pedra fundamental do edifício do Ministério da Educação, sentindo bem na voz, nos gestos, nas palavras do orador, o tom irônico com que Roquette-Pinto, olhando precisamente para o Ministro da Agricultura, presento ao ato, e também para o titular da Educação, dono da festa, dirigiu-lhes esta pergunta: “Por que o Ministério da Agricultura proporciona facilidades aos lavradores, fornecendo-lhes arados e sementes, para pagamento a longo prazo, enquanto nunca fez o mesmo com os colégios, proporcionando-lhes, também, iguais facilidades para aquisição de um microscópio ou um projetor de cinema?”

De repente, muda-se a projeção, e uma voz ao mesmo tempo forte e comovida - a voz de Roquette - enche a sala a recitar, como força animadora das paisagens e figuras em dois filmes, as Palavras ao Mar, de Vicente de Carvalho, e a parte final de O Caçador de Esmeraldas. Vicente de Carvalho é o seu poeta predileto - em Seixos Rolados, o penúltimo capítulo, por sinal de qualidade sob todos os aspectos secundária, tem este título: “Vicente de Carvalho, meu Poeta” - numa preferência que estabelece mais um ponto de ligação entre Roquette e Euclides - desde que Vicente de Carvalho já contava de há muito com a simpatia e predileção de Euclides da Cunha, que lhe escreveu, como se sabe, o prefácio dos Poemas e Canções.

Chama-me a atenção de súbito, como se aquele verso de Olavo Bilac despertasse uma ressonância especial no espírito de Roquette-Pinto, pioneiro de iniciativas e abridor de tantos caminhos, fundador ou realizador - chama-me a atenção como se viesse de dentro dele, com uma vibração, uma entonação, uma ênfase particular, um personalismo de voz, a maneira como ele recita estas palavras de O Caçador de Esmeraldas, que tornam o poema menos um hino a Fernão Dias Pais do que ao bandeirante em geral: Violador de sertões, plantador de cidades”.

Pois, em outro sentido, não fora, também, Roquette um “violador de sertões” e um “plantador de cidades?” De outra parte, é com uma ênfase de nota igualmente particular e característica, com um idêntico sentimento interior de identificação ou confissão, que ele declama este verso de Vicente de Carvalho: “A tua solidão sentindo e vendo” - com a tônica na palavra solidão.

Algo - ao lado dessa palavra mágica - já me inclinara a debruçar-me, embora sem tempo de aí me aprofundar, na realidade de Roquette-Pinto como um ser sociável, mas que mantinha uma zona de sua inteligência, de sua sensibilidade, do seu coração naquela parte mais secreta ou escondida que só existe na natureza humana do solitário completo ou em pedaços da alma. Não falo dos tempos de doença, isolamento e melancolia, mas, sim, daqueles mais felizes em afagos da sorte e mais cheios de sociabilidade. Pouco importa que Roquette-Pinto estivesse cercado, nos seus melhores momentos, de amigos, parentes, companheiros, discípulos, mulheres, admiradoras, amantes, afetos, amizades e amores. Pouco importa: já se insinuava nele, talvez como prenúncio do final, a tentação de evasões e fugas para a solidão, em estado naturalmente psicológico, não propriamente sociológico.

É possível que lhe ocorresse ou que conhecesse a frase - diz-se-ia nietizschiana - de uma das peças de Ibsen: “O homem mais só é o mais forte”. Mas isto não consola, nem apazigua os solitários não por falta de ambiente social ou vocação interior, mas por força de certas circunstâncias envolventes e determinativas.

De Roquette-Pinto não posso afastar o significado de um desabafo ou confissão dessa natureza:

“Prisioneiro feliz dos meus livros, dos meus aparelhos, da minha oficina. Prisioneiro feliz pelo que o trabalho me proporciona de calma e esquecimento; pelo que a natureza me oferece de renovada emoção das crises mais simples da vida”.

Não digo que ele fosse dos seres que marcham isolados, no silêncio de extensões infinitas, ao encontro de outras solidões, nem que aos seus olhos o universo se fechasse no feitio de um deserto em que cada um segue o seu caminho sem encontrar outro verdadeiro companheiro além da sombra projetada e oscilante. Solitário mitigado, no entanto, me parece que o foi Roquette-Pinto no sentido de alguém que, vivendo no meio de tantas pessoas, escutava e seguia principalmente o impulso, o ritmo, a sugestão de sua própria alma. Não havia só velhice fechada e acabada, ou sensação de quem já está com o pé na sepultura, naquela frase confidencial apenas por causa da voz baixa com que Roquette a transmitiu  à filha, na hora do bolo de velas do último aniversário, aos setenta anos, a um mês, precisamente, da morte:

- “Deus disse: tu viverás bastante, e cada vez mais só.”

XVIII

Personagem de Vicente de Carvalho

Um pouco também como solitário é que a figura de Roquette-Pinto aparece e transparece como personagem de Luisinha, uma peça teatral de Vicente de Carvalho. Sim, a admiração era recíproca e correspondente. Para testemunhar a sua admiração a Roquette-Pinto, fê-lo Vicente de Carvalho herói dessa sua peça teatral em dois atos, uma obra de perdida mediocridade, a salvar-se até nós, a ser lembrada neste momento, apenas porque Roquette-Pinto é uma de suas personagens com o nome de Estácio. Não há, aliás, qualquer disfarce: em determinado momento do 1o ato uma marcação assinala em grifo: “Luisinha - senta-se ao piano, e canta uma canção nambiquara, depois de tirar de uma estante um volume da Rondônia”.

A despeito do primarismo como que infantil do enredo e da banalidade do tratamento literário, nessa pequena peça que nem se recomenda pela estrutura cênica, nem se impõe pela grandeza ou ao menos pela dramaticidade dos diálogos, a observação não se acha falseada e algumas das situações apresentam não só uma superficial verossimilhança, mas até alguns traços de veracidade. É assim, por exemplo, que a respeito de si próprio fala Estácio em diálogo com a sua noiva Sara:

“Eu sou um condenado à pobreza. Dediquei até hoje o meu esforço ao estudo de ciências que pensava poder cultivar sempre na independência das preocupações materiais. Sou um médico que nunca exerceu a medicina, e se reconhece inapto a exercer essa, ou qualquer outra profissão útil. Não sei ganhar dinheiro, nunca aprendi. E não quero, Sara, que você seja a mulher de um cientista incapaz de ser outra coisa, votado à pobreza, que para você seria a miséria...”

Em outra passagem da peça, faz D. Emília, com a comparsaria de Luisinha e Gervásio, o elogio de Estácio, o que significa uma tentativa de caracterização de Roquette-Pinto...

“D. Emília - O que eu mais admiro no Estácio é essa coragem de se meter no sertão, a estudar os selvagens, como se não houvesse tanta outra coisa a estudar sem tamanho sacrifício do bem-estar. Um moço criado com tanto mimo. Estudou medicina sendo um dos ornamentos da sociedade elegante do Rio. Formou-se. Estava conquistando nome de sábio... E deixou tudo isso...

Luisinha - Para ir tentar a clínica entre os nambiquaras.

Gervásio - Para ser um herói. O Sr. Dr. Estácio é paulista em quem revive a alma dos bandeirantes”.

Reage Estácio com algumas palavras modestas e de bom-tom, sobretudo ante o inadequado de uma conversa daquelas trazida para uma sala:

“Não exageremos. Fui, como simples auxiliar do ilustre Rondon, exercer a minha curiosidade científica no estudo de alguns dos últimos exemplares sobreviventes do homem paleolítico. Prestei o meu pequeno esforço, bem menor do que o de outros que lá estão com mais assiduidade, à grande obra de conquistar para a nossa Pátria o seu vasto sertão. Não exageremos o meu papel, muito secundário...”.

E agora é Luisinha, centro da cena, que se manifesta entusiasta, como devia sê-lo o próprio Vicente de Carvalho em relação ao sábio que o distinguia com a sua predileção ao poeta lírico:

“Luisinha - Exageremos, ao contrário. Estácio é um entusiasta do Brasil brasileiro. Tudo que é nosso, bem nosso, o interessa com fervor, mesmo os selvagens, abandonados egoisticamente até há pouco por nós, parentes civilizados deles. (A Estácio) Eu gosto da energia com que você manifesta por atos como ama a nossa terra em tudo que é dela, os seus triunfos ou as suas tristezas. Admiro-o.”

Para encerrar esta série de citações - feitas, sobretudo, para que se tenha uma idéia dessa curiosidade, que é Roquette-Pinto transformado em personagem de uma peça de teatro, sem data de feitura, mas, publicada em edição de 1924 - temos, por fim, estas palavras sensatas e esclarecedoras de Estácio:

- “Não confundamos, Luisinha. Eu pretendo que civilizemos os nossos patrícios selvagens, e não que aprendamos com eles a sua cultura...”.

Aliás, em Rondônia, chegara Roquette-Pinto com o seu senso realista, a uma orientação educativa e normativa ainda mais simples, se isto é possível, em relação ao indígena no estado da natureza, excluindo desta chave, naturalmente, os índios que já considera sertanejos, porque trabalham, produzem, desejam aprender, assimilados que se encontram pela cultura brasileira, embora modesta, do nosso interior. Estes - “não são mais índios”. 

Quanto aos índios, rigorosamente ainda índios, eis como Roquette-Pinto doutrina e aconselha a respeito deles:

“Nosso papel social deve ser simplesmente proteger sem procurar dirigir, nem aproveitar essa gente. Não há dois caminhos a seguir. Não devemos ter preocupações de fazê-los cidadãos do Brasil. Todos sabem que índio é índio, brasileiro é brasileiro. A nação deve ampará-los e mesmo sustentá-los, assim como aceita, sem relutância, o ônus de manutenção dos menores abandonados ou indigentes e de enfermos”.

Estudioso científico, por isso mesmo, também advogado do indígena, verificara que era preciso defendê-lo como população à parte. E assim reconhecia Roquette que o antigo dominador da terra fora vencido pelo antigo invasor branco com a colaboração do escravo negro.

XIX

Um Cronista e Um Historiador

Agora, lendo as páginas de Rondônia, refletindo sobre o pensamento que daí se espraia acerca da política de defesa do indígena, diferente a de ontem daquela de hoje, então me ocorrem, com exata inteligência e perfeito entendimento, alguns pontos da conversa que mantive com Roquette-Pinto no nosso único encontro já mencionado de 1946. Dela fiz um registro, num dos meus cadernos de notas. Naquela ocasião, o mestre de Rondônia, entre outras sugestões, chamou-me a atenção para duas situações históricas, que somente, agora, ao conhecer-lhe a fundo o pensamento, posso avaliar devidamente: 1º) com muito tato, como lhe era habitual por educação e delicadeza, pediu-me que lesse ou relesse com a maior atenção, entre outras obras fundamentais, tanto a Carta de Pero Vaz de Caminha (recordo-me que me recomendou o texto excelente aparecido na História da Colonização Portuguesa do Brasil, com abundantes e eruditas anotações de D. Carolina Michaelis de Vanconcelos, pois creio que não conhecia ainda o outro texto, aparecido pouco antes, em 1943, alcançando entre nós desde logo os foros de edição definitiva e perfeita naquele volume prefaciado por Jaime Cortesão) quanto a História do Brasil, de Fr. Vicente do Salvador, fazendo-me ainda a advertência afetuosa de que não me deixasse empolgar apenas pelos prolegômenos ou pela capacidade de editor de Capistrano de Abreu, mas que procurasse apreender, identificar e compreender o texto de Frei Vicente, diretamente, em suas linhas e entrelinhas.

Não me deu Roquette-Pinto nenhuma explicação, nenhuma justificação sequer a respeito das suas recomendações sobre esses dois autores. Não me explicou também outra de suas opiniões naquela conversa, que é possível assim sintetizar: a sua predileção na História do Brasil, se tomada em termos estritamente históricos, seria pelo século XVI. E apenas acrescentou: - Houve aí um drama nos conflitos em busca de uma decisão e de uma afirmação.

A princípio, não percebi logo o que se achava no pensamento de Roquette-Pinto por ocasião dessa nossa conversa, nem isso me preocupava. Recomendar-me a leitura de Pero Vaz de Caminha - isto me parecia uma banalidade insignificante de tão óbvia. Encantava Roquette nesse documento do nosso primeiro cronista, por certo, a valorização da terra não devassada e do indígena ainda soberano. E também, acredito, os elogios equivalentes do cronista aos encantos da terra e à fortaleza do homem nativo, embora sendo certo que, após 500 anos, a fórmula roquettiana de antropólogo e de sociólogo - “A terra é áspera, mas o homem é teimoso e forte” - diferia tanto do otimismo idílico do quinhentista Caminha quanto do pessimismo um pouco desequilibrado do seu contemporâneo Paulo Prado, no Retrato do Brasil: “Numa terra radiosa, vive um povo triste”.

E na História, de Fr. Vicente do Salvador, que desejaria Roquette que eu encontrasse, afinal, de tão ponderável e significativo? Não havia de ser apenas - isto não era questão primordial para o autor de Rondônia - aquela forma literária mais chegada ao Padre Bernardes do que a Vieira e Fr. Luís de Sousa, forma, portanto, com as qualidades tão excelentes de limpidez, graça, pitoresco, a que não falta mesmo um certo senso de humour na narrativa; nem haveria de ser, também, embora se me afigurasse mais plausível, a certeza de que, publicada a História de Fr. Vicente trezentos anos antes, teria tornado impossível a publicação ou o êxito da grandiloqüente e falsa História de Rocha Pita, isto porque o estilo natural e a nota ingênua do Frade se teriam imposto ao nosso gosto de brasileiros, assim armados para  reagir contra o estilo cultista, gongórico, amaneirado, retórico do século XVIII.

Não; não era em nenhuma dessas considerações de estilo e forma que se detinha Roquette-Pinto. Penso hoje estar em condições de calcular o que ele mais valorizava na História de Frei Vicente: um sentimento já brasileiro, senão nacional, pelo menos local, ao contrário do que se sente em geral nos cronistas do século XVI; e a grande inovação de aparecer o Brasil não mais apenas como referência geográfica, o que se verificava sempre até então, mas como realidade histórica e social. Além disso, o que devia encantar Roquette eram alguns temas, na verdade alguns temas fundamentais das 5 partes da História de Fr. Vicente: a procedência da população indígena; a habitabilidade da zona tórrida; a possibilidade de vir o Brasil a tornar-se centro e refúgio do Governo português.

XX

Roquette e os Portugueses

Quanto ao século XVI - o que desejaria sugerir, insinuar ou significar Roquette-Pinto com a sua declaração não explicada e não esclarecida? Para que pontos seria de sua intenção atrair o meu interesse? Parece-me, hoje, pelo que é dado interpretar das idéias e pensamentos de Roquette-Pinto - que o atraía no século XVI o cenário daquela luta entre portugueses e indígenas pelo domínio não só da terra, mas da cultura americana. Encontrara já vencido o ameríndio, e assim o tratava, cientificamente, como antropólogo e como sociólogo. Por outro lado, como brasileiro e como homem, afigurava-se-lhe injustiça essa derrota do indígena, além do que, historicamente e moralmente, considerava iníquo - e, neste sentido, se externou por escrito, publicamente, mais de uma vez - que a colonização dos brancos se houvesse caracterizado na América, particularmente no Brasil, pela perseguição, submissão e determinação dos índios. Assim, ao menos no século XVI, encontrava Roquette a visão, o espetáculo de uma época histórica em que se apresentava ainda indecisa a vitória entre as duas raças e as duas culturas. Indecisa, sobretudo, no que dizia respeito ao problema da língua. Na verdade, as próprias Cartas Jesuíticas informam que se desdobrou e prolongou até o século XVIII, num processo de luta tão renhida quanto discutível entre o tupi, como chamada língua geral, e o português como instrumento lingüístico da cultura invasora e dominadora.

Quanto às flutuações típicas do século XVI, que provocavam uma contemplação nostálgica de Roquette-Pinto, tentei um agrupamento e seriação de suas principais incertezas, como se isto pudesse ser agradável ou simpático ao mestre de Rondônia, fazendo-lhe, assim, uma retribuição daquelas gentilezas com que me recebeu, há dez anos, no Instituto Nacional do Cinema Educativo.

Incerteza quanto ao próprio destino da colônia: seria ela portuguesa, ou seria ela francesa? - e isto era o que se perguntava na Europa na primeira metade do século XVI. Incerteza quanto à forma da colonização - se ficaria entregue à iniciativa particular, se seria feita sob a responsabilidade direta do Estado. Incerteza quanto ao tipo do governo: se descentralizado, com o sistema das capitanias que ameaçava prolongar-se, ou centralizado, com o sistema de um governo e de um governador geral na Bahia. Incerteza quanto à estrutura social, desde que, no começo, as raças não se fundiram logo, permanecendo rivais e mesmo hostis. Incerteza quanto à natureza do poder dominante - se poder eclesiástico com os Jesuítas, se poder civil, com a Coroa portuguesa. Incerteza quanto ao solo - cuja riqueza nem se conhecia, não se sabendo se havia minas, em qualquer parte da colônia, quando Peru e México já davam ouro à Espanha. E, por fim, a incerteza já caracterizada quanto à língua, por conseqüência quanto à vitória da própria cultura portuguesa sobre a cultura tupi dos indígenas.

Quem venceria? No século XVI, tudo se apresentava ainda incerto. E tais incertezas talvez constituíssem alegria póstuma de compensação histórica na visão de um antropólogo e etnógrafo que amava os índios e só aceitava historicamente, socialmente, a vitória dos brancos, não a considerando nem a mais justa, nem a mais acertada.

É evidente que Roquette-Pinto não gostava dos portugueses, isto é: do sistema de colonização portuguesa no Brasil. Verifica-se isto no seu discurso de posse na Academia Brasileira; no capítulo dos Ensaios Brasilianos sobre Euclides da Cunha; em tantos outros passos de sua obra, inclusive em Rondônia. Parecia-lhe, ao seu nacionalismo, que os portugueses haviam perturbado e continuavam perturbando o autonomismo tanto cultural quanto político do Brasil.

Se em vez de ser o sucessor de Roquette-Pinto, houvesse alcançado ser seu companheiro nesta Academia - então, em alguma quinta-feira, lá em cima, na cordialidade da mesa de chá, ou no pequeno salão das reuniões ordinárias, por natureza coloquiais até as fronteiras da intimidade, eu lhe teria perguntado, a falar de bancada para bancada:

- Quem nos estimulou, em algumas ocasiões decisivas ou ante alguns problemas angustiantes, na direção do nosso próprio espírito e no caminho da nossa autonomia nacional, no sentido, em suma, de uma realidade americana e brasileira? Precisamente, os portugueses mais lúcidos e conscientes. Parece-lhe isto paradoxal, até o absurdo, ou declaração platônica de luso-brasileirismo insuscetível de argumentação? Vejamos, então, alguns exemplos.

Quando Basílio da Gama publicou o seu poema no Brasil ainda colonial do século XVIII, de ninguém recebeu mais aplauso e estímulo do que de Almeida Garrett.  Afinal o nosso Uraguai, escrito por um brasileiro e com uma temática naturalista, antecipara-se, em cerca de meio século, ao que haveria de mais revolucionário no Camões e no Dona Branca, obras tão características da abertura do romantismo em Portugal quanto o Hernani em França. E a respeito de Basílio da Gama e do Uraguay - eis como se pronunciou Almeida Garrett em Poesias do meio do século XVIII até o fim:

“Justo elogio merece o sensível cantor da infeliz Lindóia, que mais nacional foi que nenhum de seus compatriotas brasileiros. O Uraguai, de José Basílio da Gama, é o moderno poema que mais mérito tem na minha opinião. Cenas naturais mui bem pintadas, de grande e bela execução descritiva; frase pura e sem afetação, versos naturais sem ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados; não são qualidades comuns. Os brasileiros principalmente lhe deram a melhor coroa da sua poesia que nele é verdadeiramente nacional, e legítima americana”.

Em seguida, já na fase literária e até revolucionária do romantismo, quando Gonçalves Dias publicou os seus Cantos, como nosso primeiro poeta nacional, foram eles saudados por Alexandre Herculano “como inspirações de um grande poeta”. Acrescentava o autor da História de Portugal que, sobretudo a primeira parte dos Cantos - intitulada “Poesias americanas” - lhe parecia exemplo da verdadeira poesia nacional do Brasil. Por fim, escrevia textualmente Alexandre Herculano: “Quiséramos que ocupassem ainda maior espaço. Nos poetas transatlânticos há por via de regra demasiadas reminiscências da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que cresceram à sombra das suas selvas primitivas.”

Dir-se-ia, porém que sendo embora Almeida Garrett e Alexandre Herculano as duas figuras mais representativas da cultura portuguesa, não se exprimiam em nenhum deles o pensamento político e a orientação da Coroa. Vejamos, então, um grande documento político, e não apenas um documento referente a questões imediatistas ou subalternas de governo. Trata-se de um diploma internacional que define e caracteriza a orientação do Estado Português em relação ao Brasil na América. Trata-se do chamado Tratado de Madri, obra-prima de Direito Internacional, obra também representativa, como se sabe, de um rei português, D. João V, e de um seu ministro brasileiro, Alexandre de Gusmão. E este tratado de 1750 não significou apenas um ajuste de limites. Lançava os fundamentos de pan-americanismo - e chamou-o, por isso, o primeiro Rodrigo Otávio precursor de uma nova política pan-americana. Aqui está o seu artigo XXI:

“Sendo a guerra ocasião principal de abusos, e motivo de se alterarem as regras mais bem concentradas, querem Suas Majestades Fidelíssima e Católica, que se (o que Deus não permita) se chegasse e romper a guerra entre as duas coroas, se mantenham em paz os vassalos de ambas, estabelecidos em toda a América Meridional, vivendo uns e outros como se não houvera tal guerra entre os Soberanos, sem fazer-se a menor hostilidade, nem por si sós, nem junto com os seus Aliados.”

Como se vê, era um convite a que, sem sermos infiéis a Portugal, conquistássemos um espírito americano e brasileiro.

Aliás, com este Tratado de 1750 e a estabilidade geográfica, o que se sentia nesses meados do século XVIII era um fenômeno oposto: a presença dos brasileiros no cenário português. Na política: Alexandre de Gusmão, secretário do rei D. João V e seu principal conselheiro. No ensino: Durão, reitor da Universidade de Coimbra. Na literatura: o grupo mineiro, que lançava, com o seu americanismo, um jato de natureza pura nos artifícios do arcadismo.

XXI

A Ascensão à Academia

Senhores Acadêmicos

Acredito que chego à Academia Brasileira, nem muito cedo, nem muito tarde, nem demasiado jovem, nem ainda velho. Chego na mesma idade - apenas um ano mais moço - em que aqui chegou o ilustre Roquette-Pinto; e assento-me na Cadeira número 17 na mesma idade com que nela se empossou o autor já famoso de Rondônia.

Não gosto de ver o espetáculo, que me parece, ao mesmo tempo, um pouco penoso e muito ridículo, de jovens de vinte anos ou de jovens desde os vinte anos - que não saem das portas, das salas, dos corredores da Academia, candidatando-se em séries aos seus prêmios como em coleções e suspirando em cálculos por uma de suas cadeiras. Espalham-se pelos salões, esgueiram-se pelos cantos, insinuam-se às quintas-feiras na mesa do chá. E espera cada um a sua vez de candidato e de eleito - para quando? Para daí a quinze anos, a dez, quem sabe, uma vez que começaram a preparar-se desde os vinte em prêmios de consolação e afagos acadêmicos.

Não é de uma juventude de verdade, de uma autêntica e saudável juventude, essa reverência deformadora em face dos valores acadêmicos, nem ante os nomes consagrados. De preferência, gostaria de ver os jovens como irreverentes de espírito, como revolucionários em arte literária, como apedrejadores da própria Academia.

Esperem ao menos os quarenta anos, a maturidade - sinto ímpeto de adverti-los - para pensar a sério na Academia. E isto será uma garantia de vitalidade intelectual, de que realizarão dignamente as suas obras. Do contrário, só ficam de pé como uns desgraçados carreiristas ou como exploradores espertos dos expedientes de sucessos laboriosamente construídos.

Sinto vontade de dirigir-me hoje aos jovens de fato, aos que não se transformaram em rapazes de cabelos brancos, para dizer-lhes: sejam renovadores, sejam iconoclastas, sejam mesmo antiacadêmicos.

E estas portas se abrirão mais tarde para todos eles, não sei se mais facilmente, mas sei que, com certeza, mais dignamente, mais naturalmente, com um consenso mais espontâneo entre os candidatos e aqueles que irão elegê-los e recebê-los. Vejam-se hoje, por exemplo, estas poltronas acadêmicas: alguns dos que negaram e apedrejaram a Academia, como rebeldes do Modernismo, agora nela se sentam por saber o que fazem e o que querem na maturidade.

Permiti-me, Senhores Acadêmicos, que me ocupe de mim por um minuto, que invoque ou lembre o meu próprio caso - e não o faço, decerto, para vangloriar-me, mas para valorizar, para exaltar, para colocar em plano de grande altura e elevação os sufrágios com que definitivamente me penhorastes e me honrastes para sempre.

Antes de apresentar-me candidato à vaga de Roquette-Pinto, em outubro de 1954, jamais comparecera sequer a uma das sessões da Academia, que a isto me impedia corretamente o pudor dos gestos. Nunca fui visto em vossas salas ou salões, nunca estive presente às vossas festas, nunca me fiz encontradiço na mesa do chá, na biblioteca ou na Secretaria desta Casa. Pela primeira vez, entrei no gabinete do presidente da Academia, quando vim entregar em mãos, pessoalmente, ao senhor Barbosa Lima Sobrinho, a minha carta de inscrição como candidato à vaga na Cadeira número 17, mas, desde então, fazendo questão, eu próprio, de cumprir todos os deveres e formalidades, desde os telegramas de comunicação até a visita pessoal a todos e a cada um dos senhores Acadêmicos.

Jamais me candidatei a qualquer dos vossos prêmios anuais, nem a nenhum deles me considerei nunca em condições de ambicionar. Quanto ao prêmio maior que não se confere mediante candidaturas ou solicitações - o Prêmio Machado de Assis - por duas vezes o meu eminente amigo e mestre Levi Carneiro, a quem hoje me honro de tratar como confrade, pretendeu que me fosse concedido, ora pelos estudos do Jornal de Crítica, ora pela biografia Rio Branco. Das duas vezes, o seu voto permaneceu aqui solitário, relator sempre vencido nessa como que obstinação de conferir-me o Prêmio Machado de Assis. Para Levi Carneiro sempre se conservará em estado de alerta e movimento a minha gratidão, mas desejo também acentuar que compreendo, estimo e valorizo devidamente os gestos de todos os senhores Acadêmicos: é que eles reservaram a sua confiança, a sua bondade, a sua generosidade, para com elas me cobrirem e me engrandecerem de uma só vez, no ato da eleição, naquele inesquecível dia 5 de abril em que me consagrastes como vosso confrade e novo ocupante da Cadeira número 17.

Assim, quando relembro e acentuo que andei sempre afastado da Academia, que jamais me pus entre os seus freqüentadores como entre os seus suplicantes tácitos e sabidos - isto não o acentuo ou relembro por vaidade, nem para valorizar-me ou exaltar-me. Faço-o antes, e somente, para ressaltar devidamente, para a todos mostrar e a todos testemunhar a superioridade com que me abriu as portas a Academia Brasileira, assinalando, em harmonia, a liberdade, a isenção e a generosidade dos sufrágios com que me elegestes sem vacilação no primeiro escrutínio, e logo da primeira vez em que me apresentava perante vós como candidato.

Que por cima de tudo, senhores Acadêmicos, tenhais marcado e consagrado a minha entrada na Casa de Machado de Assis - com uma eleição feita mediante a unanimidade dos sufrágios, distinguindo-me assim em resultado singular num ato daquele vosso soberano direito de escolher os vossos pares em processo tão livre quanto secreto com as manifestações dos votos nas urnas - esta glorificação, que recebi com disposição serena e espírito de humildade, ainda mais eleva e dignifica a vós do que a mim. É que, senhores Acadêmicos, assim elegestes, com o peso e a medida da unanimidade, a um homem exclusivamente professor, escritor e jornalista, que não dispunha, naquele momento, de nenhum poder político; nem de nenhum poder econômico, do qual ainda hoje não dispõe em qualquer parcela; um homem sem postos de influência ou de força, sem riquezas, sem honrarias, sem condecorações sequer naquele momento. Elegendo-me em tão extraordinárias circunstâncias, e logo da primeira vez em que me apresentei candidato, não pedistes, nem exigistes de mim que me transformasse num medalhão ou que modificasse as minhas idéias e os meus gostos literários de crítico moderno, embora não, que nunca o fui, de crítico do Modernismo.

Cumpre-me lembrar - embora de maneira mais sumária do que seria dos meus propósitos e desejos - alguns dos nomes ilustres da Casa de Machado de Assis que vinham de há muito sugerindo a minha candidatura, ora a mim pessoalmente, ora em conversas entre os próprios acadêmicos. E antes de todos, dirijo-me a vós, senhor João Neves da Fontoura, cujo nome famoso a Academia Brasileira, num de seus requintes de distinção para comigo, quis ligar diretamente ao meu nome modesto, incumbindo-vos de responder ao novo acadêmico, no clássico, mas nem por isso menos esperado discurso de recepção que ireis proferir como representante da Ilustre Companhia.

Em 1930, menino de colégio, tive a fortuna de ouvir em vós pela primeira vez, no Teatro Santa Isabel, no Recife, o orador e líder da Aliança Liberal; em 1932, estava eu entre os estudantes da Faculdade de Direito do Recife que assinaram um manifesto de solidariedade com a vossa campanha constitucionalista, levada depois às últimas conseqüências na revolução de São Paulo.

Depois, com o passar dos anos vieram os desencontros ou os cruzamentos de destinos. Nunca nos havíamos avistado pessoalmente, não havíamos sido sequer apresentados um ao outro, quando assumistes pela primeira vez, em 1946, o cargo de ministro das Relações Exteriores. Sem solicitação minha ou insinuação de ninguém, convocaste-me certo dia ao vosso gabinete de ministro de Estado para comunicar-me que eu fora provido, por contrato, no cargo de consultor técnico da Divisão cultural do Itamaraty, dizendo-me nessa ocasião com amabilidade e tacto:

“- Desde que li, nas vésperas de investir-me na pasta, o seu livro sobre o Barão do  Rio Branco, tornou-se meu propósito relacioná-lo com o Itamaraty, e este cargo por contrato na Divisão Cultural foi o único meio que encontrei no momento. Pela sua biografia Rio Branco, o senhor merece e deveria estar ligado ao Itamaraty, mas nesta Casa só se entra de duas maneiras: ou por concurso para fazer carreira diplomática ou por escolha do presidente da República para ser Embaixador. Para fazer concurso, o senhor já não está muito moço, e nem isto lhe convém; e para embaixador, o senhor ainda é muito jovem, e pode esperar”.

Isto faz dez anos. E há dez anos somos amigos pessoais, senhor João Neves da Fontoura, sem que tenhamos sido nunca correligionários políticos, o que é um testemunho a mais do vosso espírito público. Em 1952, novamente na direção do Ministério das Relações Exteriores, escolhestes-me para outra missão cultural, a de ministrar um Curso de Literatura e História do Brasil na Universidade de Lisboa. Atendi ao vosso chamado e à vossa designação. E destes-me a oportunidade de um gesto que antes de tudo me satisfez a mim mesmo, às minhas exigências de lealdade e senso do dever. Foi que, ao informar-me nos meados de 1953 da vossa próxima retirada da chefia do Itamaraty, em condições que considerei iníquas, solicitei imediatamente que, no instante mesmo da vossa demissão, me fosse concedida a rescisão do contrato de professor na Universidade de Lisboa e autorizado o meu regresso ao Brasil, o que não se verificou, somente, porque achastes por bem impedir, numa carta de termos altos e honrosos para mim, que se consumasse o meu gesto de solidariedade.

Não é só pela invocação dos nomes que guardarei gratidão e lembrança de todos os acadêmicos que se vinham interessando para que também eu fizesse parte da Ilustre Companhia. Já falei de Levi Carneiro, de quem sempre recebi apoio, estímulo, palavras de animação e de louvor que me levavam ao sonho de colocar-me um pouco mais além do que sou realmente. Referirei, em seguida, o mais jovem de nós todos, Josué Montello, amigo dos mais queridos e companheiro dos mais admirados, que não me permitiu sequer um período de benjamim, porque aqui ingressou merecidamente muito moço, e não apenas porque acorda antes dos outros, conforme a sugestão anedótica e espirituosa do seu magnífico discurso de posse, mas porque se encontra, realmente, na vanguarda da sua geração.

Deixo aqui registrados, menos por eles que disto não precisam, antes por mim que me honro, mais uma vez, em prestar-lhes este testemunho de gratidão, os nomes dos ilustres acadêmicos que me estimularam a candidatar-me, em apelos ou sugestões, no decorrer dos últimos anos: Aníbal Freire da Fonseca, meu mestre na Faculdade de Direito do Recife, Alceu Amoroso Lima, Cassiano Ricardo, Rodrigo Otávio Filho, Peregrino Júnior, Afonso Pena Júnior, Elmano Cardim, Pedro Calmon, Austregésilo de Athayde, José Carlos de Macedo Soares, Barbosa Lima Sobrinho. E a estes acrescento a citação dos nomes dos acadêmicos que me ofereceram desde logo o seu apoio e dos que me distinguiram com os seus sufrágios. Posso fazê-lo, ficou-me possível e lícito fazê-lo - a despeito do sistema do voto secreto - porque obtive a unanimidade dos votos e não permaneceu secreta, portanto, a votação acadêmica no meu caso. É como um privilégio que me vejo assim com a possibilidade de fazer figurar neste meu discurso de posse os nomes de todos os acadêmicos - sim, realmente de todos - que se achavam na ocasião com direito de voto e me honraram com os seus sufrágios na eleição de 5 de abril de 55. Peço-vos que tomeis este gesto de incluir no texto do meu discurso os nomes ilustres dos acadêmicos que me elegeram tão largamente - como um sinal, uma promessa e uma garantia de que a todos eles - cujos nomes nesta página escrevo com o relevo das letras sentimentais - sempre testemunharei afeto, lealdade, gratidão e solidariedade. Em suma: um bom companheirismo. E aqui estão os nomes destes acadêmicos que pronuncio de maneira ao mesmo tempo afetuosa e respeitosa, juntamente com os nomes dos que já citei anteriormente: Ataulfo de Paiva, A. Carneiro Leão, Adelmar Tavares, Afonso de E. Taunay, Aloysio de Castro, Antônio Austregésilo, Dom Aquino Correia, Carlos Magalhães de Azeredo, Clementino Fraga, Guilherme de Almeida, Gustavo Barroso, Luis Edmundo, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia, Múcio Leão, Olegário Mariano, Osvaldo Orico, Otávio Mangabeira, Ribeiro Couto, Viana Moog e Viriato Correia.

XXII

Mais dois motivos de gratidão

Dois outros motivos tornam grata, ainda mais, a minha presença na Academia Brasileira: porque é uma Casa entrelaçada com o Imperial Colégio Dom Pedro II; e porque, no Brasil, nasceu a crítica literária, por mais primária ou insatisfatória que fosse, dentro das academias do século XVIII.

Durante muitos anos, a cultura humanística fez-se exclusivamente no Colégio Pedro II. Em qualquer nota biográfica de autor em antologia, os seus dois títulos mais destacados, sobretudo quando juntos, são os de professor catedrático do Colégio Pedro II e membro da Academia Brasileira de Letras. Releio com atenção, um a um, os nomes dos patronos das quarenta cadeiras da Academia, e estão quase todos ligados ao Colégio Pedro II: se não como professores, a maioria como alunos. Não se desfaz aí, no entanto, o entrelaçamento. Lembrai-vos onde se realizaram algumas das primeiras sessões da Academia Brasileira, quando ainda sem sede e sem rumo? Precisamente, numa das salas do Colégio Pedro II, no edifício do Externato, ali na Rua Larga.

Dos professores do Colégio Pedro II, que eram também membros da Academia Brasileira, quero hoje recordar alguns nomes para a todos assinalar como num ato de presença, que se me afigura, pela memória, indispensável nesta noite: Silvio Romero, Euclides da Cunha, João Ribeiro, Carlos de Laet, José Veríssimo, Silva Ramos. Antigamente, havia sempre pelo menos um catedrático do Colégio Pedro II entre os membros da Academia Brasileira. Recentemente, vários anos decorreram - creio que desde a morte de João Ribeiro - sem que isto ocorresse. Dei que ao Colégio Pedro II já se ia tornando penosa a quebra da tradição naquilo que sintetizavam com a expressão - “um de nós na Academia”. Vós compreendereis bem, então, as manifestações de contentamento e até de ufania com que a Congregação do Colégio Pedro II recebeu a eleição do seu professor catedrático de Literatura para esta Cadeira número 17 da Academia Brasileira. E a mim, particularmente, imaginai quanto foi devanecedor que me coubesse o destino de reatar a ligação sentimental e cultural entre as duas Casas, restaurando a tradição da presença de um catedrático do Colégio Pedro II, ao qual me sinto tão ligado desde a minha chegada do Recife, entre os membros da Academia Brasileira, na qual venho de me integrar para a vida e para a morte.

Por outro lado, sendo um crítico literário, nada me poderia ser, neste momento, mais agradável ressaltar do que esta afirmação histórica: a crítica no Brasil nasceu e surgiu dentro das academias literárias. É o que  todos sabemos; e, como documentação, citemos esta observação de José Veríssimo em sua História da Literatura Brasileira:

“A crítica no Brasil nasceu com as academias literárias do século XVIII. Os seus primeiros ensaios foram os pareceres ou juízos nelas apresentados sobre os trabalhos sujeitos à sua apreciação. Continuavam esses pareceres o costume português, também oriundo das academias, de que as nossas foram um arremedo”.

De certo modo, estas academias do século XVIII - não sei se diga singelas ou pretensiosas - ocupavam o espaço ou desempenhavam um pouco o papel das universidades que não tivemos. Não as tivemos, com efeito, no período colonial, pois o ensino superior não se achava na metodologia, nem fazia parte dos planos da Coroa na América  Portuguesa, enquanto universidades em nosso continente já as possuíam, desde o século XVI, Nova Granada, Peru e México.

Acrescento que uma tribuna acadêmica, como a cátedra universitária, deve sempre ser livre, alta, erudita, digna, corajosa - a salvo de preconceitos, mesquinharias e formalidades. Sobretudo, uma tribuna livre: eis o essencial. Vou dar um exemplo em grande forma. Em 1941, por ocasião da morte de Henri Bergson, a censura dos alemães e a censura do governo de Vichy impediram que se divulgasse ou se publicasse, em qualquer parte da França, a peça oratória de homenagem que sobre ele escrevera Paul Valéry. Pois bem: somente da tribuna livre da Aademia Francesa, a Paul Valéry se tornou possível imediatamente, em janeiro de 1941, pronunciar esse discurso de homenagem a Bergson e de interpretação da filosofia bergsoniana. E entre nós, aqui mesmo, o famoso e afinal vitorioso discurso de Graça Aranha sobre o advento do  Modernismo, em 1924, só obteve aquela notoriedade nacional, aquela ressonância, aquela repercussão, porque foi pronunciado da tribuna da Academia. Pois na verdade, mesmo para uma atitude antiacadêmica ou o lançamento de um movimento antiacadêmico, ainda é a Academia quem pode oferecer a melhor acústica...

XXIII

Roquette e a Academia

Explica-se assim que Roquelte-Pinto, já coberto de tantos louros e louvores, se tenha mostrado tão desejoso de pertencer aos quadros da Academia. Como se diz na gíria acadêmica, correu em três eleições. Apresentou-se pela primeira vez candidato, em 1924, na vaga de Vicente de Car­valho. Não foi eleito. Em 1927, por ocasião da vaga de Osó­rio Duque-Estrada, não se chegou a qualquer resultado na primeira eleição, processados os quatro escrutínios naquele conhecido desarroi de votos dispersos, muito divididos por efeito do número por demais elevado de candidatos, entre os quais Roquette-Pinto. Na segunda eleição para essa mesma vaga, afastados que se declararam os demais candidatos, viu-se Roquette-Pinto acolhido pela Academia na consagração de uma eleição quase unânime: trinta votos e um voto em branco. Foi eleito no dia 20 de outubro de 1927 e empossou-se a 3 de março de 1928, com quarenta e três anos, portanto, nascido que fora a 25 de setembro de 1884.

Vejam-se, como notas curiosas e como revelações de estados de espírito, duas de suas cartas de postulante, até agora inéditas, ambas dirigidas ao Conde de Afonso Celso. Observe-se, na primeira carta, o interesse, a flama, o entusiasmo, com que se lançou candidato à vaga de Vicente de Carvalho, em que foi derrotado; observe-se em seguida, na segunda, o tom protocolar, sóbrio, frio, com que apresentou a sua candidatura à vaga de Osório Duque-Estrada, quando foi, afinal, eleito. Eis a primeira carta:

"Rio, 31 de maio 1924.

Meu ilustre Mestre e Amigo Sr. Conde Affonso Celso.

Escrevo a V. Exa para comunicar a minha próxima inscrição na lista dos candidatos ao lugar de Vicente de Car­valho, na Academia.

Desejo ardentemente esta cadeira, movido, antes de mais, por um profundo sentimento de gratidão à memória excelsa do Poeta que um dia ofereceu à minha humildade a bondosa, altíssima e singular prova de estima intelectual, que V. Exa encontrará documentada na Revista do Brasil, vols. 8 e 9, de 1918, e na sua carta autógrafa que, por minha entrega, faz hoje parte do arquivo da Academia.

As honrosas provas de apreço que já devo à bondade de V. Exa fazem-me acreditar que me perdoará a impertinência destas linhas.

Sejam quais forem os resultados da minha pretensão, pode o meu ilustre Amigo ter a certeza de que hei de ser sempre o mesmo grato venerador dos altos dotes de V. Exa

Queira receber mais uma yez os protestos de minha particular e afetuosa estima. (a) Roquette-Pinto.
E aqui está a segunda carta:

Rio de Janeiro - Março de 1927.

Exmo. Sr. Affonso Celso - Academia Brasileira de Letras.

Senhor da minha distinta consideração.

Comunico a V. Exa a minha candidatura à vaga de Osório Duque-Estrada na Academia. Esperando poder contar com o seu honroso voto, agradeço a atenção que me dispensar e apresento a V. Exa os protestos da minha elevada estima. (a) Roquette-Pinto
Nem sempre o melhor, ou o mais acertado, é aquilo que desejamos ou planeamos. Foi bom para a Academia, para Roquette-Pinto, para mim mesmo afinal, que ele houvesse sido eleito para a vaga de Osório Duque-Estrada e não para a de Vicente de Carvalho. É na linha tradicional, no espírito, no conteúdo, no significado da Cadeira 17 que ele se encontra mais à vontade. Era a Cadeira número 17 que parecia estar a esperá-lo.

A esta poltrona acadêmica podemos classificar como uma cadeira harmoniosa. No caso dos ocupantes sucessivos, em qualquer das nossas cadeiras, está claro que as coincidências não são necessárias; e o que em geral se tem verificado é a diversidade, é a diversificação. Raro é o que acontece com a Cadeira 17; as coincidências a marcarem uma linha de continuidade e um sistema de unidade.

Classificou-a Roquette-Pinto, em seu discurso de posse, como "a cadeira dos Professores", e isto - ao rememorar que todos haviam sido professores: Hipólito, o patrono, Silvio, o fundador Osório, o sucessor, ele próprio - permitiu-lhe escrever um belo, nobre e exato conceito sobre a missão e a profissão do presente:

"O professor é o homem que renuncia ao mando, para se exercitar no conselho. É o que não pode, o que não governa, o que não guarda, nem acumula. Tal qual os mineiros que descem, penosamente, ao fundo da terra, e, à custa da saúde e do conforto, vão arrancar o ouro e a gema, que outros aproveitam, ele mergulha, pela noite alta, no que a Humanidade ajuntou e arranca de lá a opulência que há de repartir com os moços, bisonhos conhecedores dos meandros em que a verdade se disfarça."

XXIV

Cadeira dos Nacionalistas

Cadeira dos Professores - sim, está certo, e nada existe a acrescentar ou a modificar nesta classificação, havendo tão-só a assinalar a circunstância de ser também um professor - de haver sido sempre, desde a adolescência, professor - o novo acadêmico que hoje nela se empossa.

Cadeira dos Professores, sim, mas também eu desejo classificá-la e intitulá-la: é a Cadeira dos Nacionalistas. E esta tradição de nacionalismo na Cadeira número 17 não se há de quebrar ou esmorecer em minhas mãos.

Um nacionalista acima de tudo, em sua mais pura substância, tivemos em Hipólito José da Costa, o patrono. Isto não só porque viveu toda a vida no estrangeiro, dirigindo no exílio em Londres um jornal brasileiro, o Correio Braziliense, e sim porque, nas páginas do Correio Braziliense, como em todos os seus escritos e atos, tinha um programa social que se concentrava no ponto fundamental da libertação econômica e financeira do Brasil, com o aproveita­mento ou a utilização das nossas riquezas de solo e sub­solo. Não subiu Hipólito José da Costa na vaga do revolucionarismo liberal e militarista do continente, a principio com a Revolução Francesa, depois com a estruturação burguesa de Napoleão Bonaparte. Do Continente aproveitou os princípios de liberdade individual e democracia política, mas a escola em que formou a sua mentalidade foi a da Revolução Industrial, na Inglaterra. E pelo gosto da indústria e senso prático das coisas - Roquette-Pinto devia sentir-se também ligado ao patrono da nossa cadeira acadêmica.

Grande e romântico nacionalista foi Sílvio Romero - e sendo o fundador da Cadeira, a escolha feita de Hipólito José da Costa para patrono já tornava, ela só, sintomática e esclarecedora - a empenhar-se a vida inteira pela cultura brasileira e pelos valores brasileiros, desde a monumental História da Literatura Brasileira até as apaixonantes coleções do Folclore Brasileiro, sem esquecer nada da sua vasta bibliografia, quase toda ela marcada de temática brasileira e intenção nacionalista. Brasileiro nos seus escritos como nos seus atos, uns e outros associados, às vezes, como no caso da campanha contra a colonização alemã como um quisto em regiões do sul do Brasil.

Igualmente nacionalista foi Osório Duque-Estrada, sendo bem expressivos a este respeito não os seus livros de versos e de crítica, mas a letra do Hino Nacional, que é medíocre em inspiração e arte poética, mas ardente de patriotismo. Pessoalmente, apresentava Osório o contraste de ser gordo, sem ter a lentidão, a mansidão, a circunspeção dos gordos. Era gordo - e era combativo até à turbulência, movimentado com agilidade, imprudente até às fronteiras da leviandade. Tanto quanto os seus preconceitos e idéias feitas em literatura - a Pátria, o Brasil, o passado e o presente do nosso Pais constituíam uma das bandeiras de luta, a grande Dulcinéia desse Dom Quixote gordo.

Por outro lado, Aloysio de Castro assim se refere ao caráter independente e digno de Osório Duque-Estrada, como ao seu amor à Academia:

"Não se poderia negar certa beleza às suas atitudes, ainda que não raro pessoal ou in­transigente em excesso. Mas o que tinha por dizer, dizia-o a peito aberto, com denodo e bizarria. Ele era uma opinião, e isso não era pouco. O que nunca lhe ouvimos foram gabos de encomenda, louvaminhas ou cortesanices, porque em todas as vicissitudes de uma existência trabalhosa guardou estrênua e inquebrantável independência, que era afinal a sua força. Na vida literária de Osório Duque-Estrada perdura um traço que não pode ser hoje esquecido, o seu provado amor desta Casa. Em todas as circunstâncias, nos prélios mais acesos, aqui e fora daqui, era a Academia o seu constante cuidado, e na defesa do seu programas se ex­tremou com inarrefecido entusiasmo."

Do nacionalismo de Roquette-Pinto nada será mais preciso acrescentar: todas as partes de estudo que sobre ele produzi, neste discurso de posse, convergem para esta mesma caracterização, aliás evidente na sua personalidade e na sua obra. E nacionalista, homem do seu pais, de sua terra e de sua gente, tem sido sempre o novo acadêmico que hoje recebeis. De figuras ou assuntos brasileiros, em sua grande maioria, e com a intenção de influência ou utilidade exclusivamente em nosso meio, são todos os volumes do Jornal de Crítica. Marcado pelo nacionalismo, pelo es­tudo de problemas brasileiros e pelo sentimento do seu pais, em conexão com um homem de Estado que nada mais faz do que amá-lo e servi-lo - é a biografia Rio Branco. Contribuição de estudo a sério e de valorização consciente da cultura luso-brasileira é o trabalho com que contribuiu para a antologia da língua portuguesa Roteiro Literário do Brasil e de Portugal. Não quero, porém, antecipar-me; não devo entrar pelo terreno adentro do meu sucessor...

Já que não se trata de comparações na base de um critério de valor e mérito, mas de aproximações harmônicas no plano somente objetivo de situações biográficas ou pro­fissionais - seja-me permitido fixar algumas curiosas coincidências entre o novo acadêmico e os seus antecessores na Cadeira 17. O acadêmico que hoje se empossa é jornalista político como Hipólito José da Costa; crítico literário e professor catedrático do Colégio Pedro II como Sílvio Ro­mero; crítico semanal do Correio da Manhã como Osório Duque-Estrada; professor no Instituto de Educação como Roquette-Pinto; enviado em missão cultural no estrangeiro para ministrar um curso na Universidade de Lisboa coma o seu sucessor na Universidade de Assunção. E todos, afinal, homens de jornal. Jornalista e patrono dos jornalistas brasileiros, como patrono da Cadeira, foi Hipólito da Costa; colaboradores de jornais os três, Sílvio, Osório, Roquette, pois que nos jornais é que se tem feito e se faz no Brasil a vida literária, como a própria vida cultural, à mingua de revistas especializadas e publicações universitárias.

Agora, não uma coincidência, mas uma ligação curiosa, entre o patrono e o último ocupante desta Cadeira. Trata-se do termo brasiliano. Como se sabe, Roquette-Pinto, a partir de certo momento - em Seixos Rolados, de 1927, o sub­título ainda aparece "Ensaios brasileiros" - só escrevia brasiliano, nunca brasileiro, que repudiava como falsidade e condenava como erro...

Aliás, em matéria de terminologia, somente neste caso parecia empenhado. Embora não fosse propriamente um vulgarizador, empregava às vezes Raça como sinônimo de Povo; tanto Índio como ameríndio, indiferentemente. Não se mostrava nada rigorosa neste terreno; e só em relação a brasiliano se revelava intransigente e obstinado.

Pois bem: antes de ser de Roquette-Pinto o emprego de brasiliano, isto fora um problema de Hipólito José da Costa. E Roquette, que parecia haver feito do brasiliano uma descoberta da pólvora, nada mais fazia do que repetir, sem qualquer originalidade, o patrono da Cadeira 17. Em artigo publicado no Tomo 28 (pág. 165) do Correio Braziliense, explica Hipólito José da Costa por que preferiu usar brasiliense em vez de brasileiro. Mais ainda: acrescenta que a terminação em ano também é correta e se poderia em­pregar brasiliano à maneira de pernambucano, como, aliás, o fazia ele também, apenas restringindo-o aos indígenas do País. Vale ressaltar ainda que o argumenta de Hipólito, para considerar inaceitável o adjetivo corrente e usual, é exatamente o mesmo tão constantemente invocado pelo mestre Roquette, isto é: que brasileiro só deve servir para caracterizar profissão ou ocupação. E aqui está, por inteiro, a nota de Hipólito José da Costa, extraída do Tomo 28 do Correio Braziliense:

“Chamamos Brasiliense o natural do Brasil; Brasileiro, o Português, Europeu ou o estrangeiro, que lá vai negociar ou estabelecer-se, seguindo o gênio da língua portuguesa, na qual a denominação eiro denota a ocupação; exemplo: sapateiro, o que faz sapatos; ferreiro, o que trabalha em ferro; cerieiro, o que trabalha em cera; brasileiro, o que negocia em brasis ou gêneros do Brasil, etc; por toda a parte o natural do Porto chama-se Portuense, e não portueiro; o natural da Bahia Bahiense e não Baieiro. A terminação em ano também serviria para isto, como por exemplo de Pernambuco, Pernambucano, e assim poderíamos dizer Brasiliano; mas por via de distinção, desde que começamos a escrever este periódico, limitamos o derivado Brasiliano, para os indígenas do País, usando outro Brasiliense, para os estrangeiros e seus descendentes ali nascidos ou estabelecidos; e atuais possuidores do País”.

XXV

A Verdadeira Imortalidade

Minhas senhoras, meus senhores e senhores Acadêmicos.

Com propriedade e veracidade, estou intitulando e caracterizando a Cadeira nº 17 como a Cadeira dos Nacionalistas, sem excluir, antes completando a legenda que lhe dera Roquette-Pinto de Cadeira dos Professores. Fiel que pretendo ser a essa tradição e a esse espírito - quero proclamar a necessidade de empreendermos um novo movimento, uma nova campanha, uma nova batalha com este objetivo. É necessário realizar o nacionalismo em literatura e arte. Realizar uma emancipação na ordem da cultura como se fala de emancipação econômica. Precisamos pensar o Brasil em termos nacionais e em termos de América, principalmente de América do Sul.

Não nos podemos dar ao luxo de sermos “cidadãos do mundo” porque ainda não somos suficientemente homens da nossa região e do nosso País, isto é, homens devidamente impregnados do sentimento da terra, da sociedade, da cultura brasileira. Este luxo deve ficar para outros povos, como o francês ou o inglês, por exemplo, já saturados de patriotismo. Não poderemos aspirar a uma posição internacional, enquanto não houvermos consolidado uma forte situação nacional. Isto em arte como em política.

Para atingirmos este objetivo, porém, impõe-se que fixemos uma atitude realista e lúcida, ao mesmo tempo séria e saudável, afastados, a igual distância, tanto dos porqueme-ufanistas em estado de exaltação emocional quanto dos hipercríticos com um oposto delírio de autodestruição.

Coube a Roquette-Pinto, sem dúvida, criar no Brasil uma nova visão do nosso País; um novo sistema, um novo critério para ver, sentir e julgar a nossa realidade. Ao ouvir tantas vezes cantar que “o nosso céu tem mais estrelas” - quis contar as estrelas. É o que ele próprio, numa entrevista, declarou ter sido uma contribuição, nem propriamente sua, mas de sua geração:

“Venho dos últimos tempos da monarquia. Assisti aos cinco anos às primeiras festas da República. Penso que o País deve um grande serviço à minha geração: foi a que principiou a descrer das ‘fabulosas riquezas’ do Brasil, para começar a crer nas ’decisivas possibilidades do trabalho’. Havíamos recebido a noção de que um moço bem-nascido e criado não devia trabalhar... Ouvimos ainda o eco dos ‘eitos’. Ouvíamos também que nosso céu tem mais estrelas que os outros... Minha geração começou a contar as estrelas... E foi ver se era verdade que nos nossos bosques havia mais vida... E começou a falar claro aos concidadãos. Com a minha geração o Brasil começou a deixar apenas de ser tema de lirismo”.

Colocava Roquette-Pinto acima da terra e da própria natureza, o problema do homem. Assim doutrinava, por exemplo, logo na abertura dos Ensaios de Antropologia Brasiliana: “Para as nações modernas não há problema tão importante quanto o da população. Tudo depende da gente; do número e da qualidade”. Em outra ocasião, como em muitas outras ocasiões, voltou a repetir: “O que faz a grandeza das nações é o homem”.

Assim, o seu amor ao Brasil estava constituído ao mesmo tempo de razão e sentimento; fortificara-se, subira, crescera, por efeito de forças interiores enraizadas tanto no coração quanto na consciência. Guardemos de Roquette, por isso mesmo, esta receita para estudar e amar o Brasil.

“É preciso estudar o Brasil, com os seus encantos e as suas tristezas, para amá-lo conscientemente: estudar a terra, as plantas, os animais, a gente do Brasil”.

Que poderia haver, assim, de tão comum entre Roquette-Pinto e o seu modelo Goethe, com quem gostava de comparar-se, a quem homenageou de tantas maneiras por ocasião do centenário de 1932, recebendo em compensação aquela medalha Goethe, de que se mostrava orgulhoso como da maior de todas as condecorações? Que haveria de tão comum entre os dois para marcar tantas aproximações?

Observou certa vez o Professor Silva Melo, em conversa com o próprio Roquette-Pinto, que lhe notava muitos traços de semelhança fisionômica com Goethe. Deve ter encantado o autor de Rondônia notar-se a sua parecença com o gênio de Weimar; tanto que ao amigo respondeu Roquette com a informação de que, na sua família, havia realmente ascendência germânica.

Acrescentou Silva Melo que nas veias de Goethe, segundo uma versão generalizada e não desmentida, corria sangue negro. Sabe-se, aliás, que não era Goethe um ariano. E isto se torna igualmente curioso para o nosso caso ante essa confissão de Roquette-Pinto, feita a Humberto de Campos, registrada por este em seu Diário secreto:

“Do que eu tenho, porém, certeza quase absoluta é de possuir nas veias sangue negro... Havia em casa o retrato de uma das minha bisavós, que era o tipo clássico da mulata brasileira. Linda mulata! A nossa família não gostava que se dissesse isso. Mas quem fala aqui é o etnólogo, não é o membro da família”.

Por outro lado, quantas diferenças, mesmo de natureza humana e de maneiras de ser entre os dois! O alemão, um sábio principalmente universal; o brasileiro, um sábio estritamente nacional. Discípulo de Spinoza, Goethe coloca a natureza acima de tudo, mergulhando em panteísmo; para Roquette, não, o que o interessa, em primeiro lugar, é o homem.

Lembremo-nos da figura de Goethe: na mocidade, um inquieto, um nervoso, um impulsivo, caindo periodicamente em crises de hipocondria, alcança na velhice a paz interior, o domínio de si próprio, calmo, dominador, majestático, homem já feito estátua e monumento, cabeça já preparada para a cunhagem em moedas e medalhas. Revelou-se Roquette-Pinto, ao contrário, mais sereno e tranqüilo na juventude, enquanto, na velhice, se foi tornando cada vez mais moderno, mais contemporâneo, mais apreensivo e trepidante em idéias como em iniciativas.

Em momento nenhum, porém desapareceu em Roquette-Pinto o fascínio de Goethe. Dir-se-ia que representava Goethe o seu outro lado, o outro lado que existe em todos os brasileiros, neste permanente oscilar ou equilibrar-se entre a cultura européia e a cultura brasileira, neste incessante girar sobre dois eixos. Nada é mais sintomático ou expressivo neste sentido do que ver-se que Roquette-Pinto começa e termina o seu ensaio Euclides da Cunha naturalista - talvez o mais pessoal e o mais genuíno dos seus ensaios – com invocações e citações de Goethe. Nas primeiras linhas, abrindo o ensaio, encontramos a citação daquela página de Goethe em que o Fausto, decrépito, ergue um hino à natureza, quando colocado no seio de uma floresta. No final - fechando o estudo com esta nota de suprema admiração ao autor de Os Sertões: “quando o desânimo te infiltrar o coração, procura Euclides, e ele te mostrará, com verdade e fulgor, o mundo de que és dono” - conclui Roquette com outra invocação goethiana do Fausto, precisamente nestas palavras:

“E tu, meu irmão, como o Fausto da lenda medieval, erguerás de novo o grito da esperança:

- Espírito sublime! permitiste que eu lesse no seio profundo da minha terra como no peito de uma amigo: revelaste as forças secretas da minha própria existência...”

Outras, porém, eram aquelas profundas e autênticas forças secretas da natureza humana do autor de Rondônia. Para nós, em nossa visão, havia em Roquette-Pinto ao mesmo tempo um sonhador por dentro do cientista objetivo em seus trabalhos escritos ou experimentais; um afetivo, um homem que deixou em tudo que fez alguns sinais fortes de bondade, de altruísmo, de amor, de necessidade de compreensão e comunicação com os seus semelhantes, menos para um comércio desses sentimentos confortantes, que de nada ele precisava, e a si mesmo se bastava em solidão, mas com o ânimo de contribuir, de dar, de oferecer.

Dissera Roquette-Pinto, um dia, à sua filha Beatriz:

“Minha filha: nada na vida se faz de grande sem amor”.

Quanto a mim, acredito que Roquette-Pinto - ainda mais por se tratar de citação de obra em cinema, em vez de livro ou tratado impresso - acredito que ele seria de todo sensível à singular beleza a sugestão desta frase que Jean-Louis Barrault pronuncia no filme Les enfants du Paradis.

“Se todos os que vivem juntos se amassem, a terra brilharia tanto quanto o sol”.

Contudo, mesmo fora desta aspiração impossível ou deste sonho poético de Les enfants du Paradis - para que Roquette-Pinto seja sempre recordado e amado, não é nos seus livros ou nos seus atos que encontro a certeza dessa perenidade. Pois se algum dia falhar na memória dos homens tudo o que fez como cientista, como fundador e como pioneiro; se vierem até a desaparecer as suas obras escritas de autor, de humanista e de pensador - então, ele ainda será lembrado e estará imortalizado nos animais que trazem o seu nome em conseqüência de experiências de campo ou descobertas de laboratório: seja uma aranha caranguejeira de nossa fauna - a Grammostola Roquettei; seja uma borboleta - a Agria Claudia Roquettei; seja um pássaro das regiões goianas - o Phyloscartes Roquettei.

Viverá e sobreviverá Roquette-Pinto - de qualquer forma - nos nomes da linda aranha caranguejeira, da frágil borboleta e do pássaro do Brasil Central.

7/7/1956