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Aloysio de Castro

ARS SUPREMA

Este, nos duros mármores polidos,
Dos deuses animou a efígie augusta
E aos monumentos deu a linha justa,
No bronze que memora os tempos idos.
Este no escrínio pôs a arte que ajusta
Paciente as gemas, este aúreos tecidos
Broslou, este da taça os esculpidos
Relevos rebruniu, este venusta
Imagem nos painéis, em obras-primas,
A cores debuxou no molde terso;
Mas este, o sumo artista, este as opimas
Formas lavrou, na inspiração diverso,
E perfeito, elegendo as pulcras rimas,
De pérolas e estrelas fez o verso.

(Rimário, 1926.)

 

HORA ESQUISITA

Ressoavam no ar baladas dolorosas
Quando, ó mistério, de improviso entraste:
Vencemos dos destinos o contraste,
Num só rosal nasceram duas rosas!
Abri-te as mãos como asas amorosas,
Pálido lírio em flor na tênue haste,
Dos orvalhos noturnos estilaste
As pérolas das lágrimas piedosas.
Hora esquisita, prêmio e desventura!
Ias partir de novo, sendo minha,
E em ti levando na alma quanto eu tinha.
Sorri, choraste, e amor que inda nos dura,
Um beijo só, chegada e despedida,
Fez de um minuto toda a nossa vida!

(Rimário, 1926.)

 

OS TEMPOS

Este que vai e os passos indecisos
Trôpego arrasta no caminho incerto,
Nunca escutou do tempo os maus avisos,
Cada dia lembrando o fim tão perto.
Intrêmulo cruzou mar e deserto,
Dilatadas planícies e altos visos,
Floreou a espada a peito descoberto
Colheu nos bailes graças e sorrisos.
Paixões, trabalhos e perigos tantos,
Tudo outrora venceu. Hoje, acurvado,
Fitando a terra chora os desencantos.
E essa carcaça lúgubre e medonha,
Levando o extinto corpo do passado,
Como em suspiros diz: "Triste quem sonha!"

(Os carmes, 1928.)

 

Em torno a mim os homens falam, freme
A inquieta multidão, de um e outro lado,
Ânsia, febre, delírio, ardor, cuidado,
Vida que veio e vai sem lei nem leme...
Este em cantos exulta esperançado.
Este sorri, este entre dores geme.
Eis a virtude, o vício, o impuro, o estreme,
Feliz ou malfeliz, cada um seu fado.
Homem sou. Como os outros, pelo mundo
O caminho comum percorro e sigo.
Mas, estando, não estou, só estou comigo:
Do clarão de outro sol o peito inundo,
De tudo indiferente me desligo,
Para olhar em silêncio o céu profundo...

(Os carmes, 1928.)

 

CAMINHOS

Caminhos da minha vida,
Caminhos do meu andar...
Errando entre ida e venida
Andei a terra, andei o mar.
Esperança deu-me alento
E, as asas livres no azul,
A correr mundo com o vento
Voei ao norte, voei ao sul.
Vales, plainos, bosques, montes,
Caminhos chãos, campo em flor,
De todos os horizontes
Vi abrir-se o resplendor.
Largado pelas estradas,
Romeiro cheio de pó,
De sol a sol, caminhadas,
Peregrinei, crente e só.
Cruzei o mar, velas soltas,
Vi o deserto e os areais
E o rio com as suas voltas,
Sem duas voltas iguais.
Entre alegria e gemidos,
Pelo sonho divaguei.
Ah, meus caminhos perdidos
A que não mais tornarei!
Onde agora, incerto passo,
Me levas na vida, ao léu?
Nos infinitos do espaço,
Deixa-me ir dos céus ao céu.
Onde a entrada, onde a saída?
Quem vai não sabe voltar.
Caminhos da minha vida,
Caminhos do meu andar...

(Caminhos, 1945.)

OS AMORES DE CHOPIN

Não ficaram em segredo os amores de Chopin. Quando a celebridade sagra um homem, especialmente um artista, é força se publiquem as venturas dos seus amores. Mais do que com qualquer outro isso teria de suceder com Chopin. Porque, como tão bem o notou Saint-Saëns, "na música de Chopin há sempre uma mulher". Tudo, de fato, em sua obra respira amor e amor. Ele sempre viveu sob o domínio da paixão amorosa, às vezes votado ao mesmo tempo a mais de um coração, mas ainda assim sempre sincero, segundo os que o conheceram. Pode ser? É difícil, ensinou Platão, adivinhar o coração humano. Dir-se-ia que nas mulheres amava a Mulher, o culto era uno, na multiplicidade das figuras adoradas. Talvez houvesse amado a quantas o jurasse, talvez a nenhuma. Seu maior amor? Quem o soube jamais? O que durou mais tempo? O primeiro? O último? O que nunca a ninguém disse? Quando em 1838 se uniu a George Sand, havia apenas um ano vira ele desfeitos seus projetos de casamento com Maria Wodzinska, cuja família alegava em contrário o mau estado de saúde do músico, pretexto que acaso encobria o motivo real, um preconceito de casta.

Tinha então vinte anos Maria Wodzinska. Era de alto nascimento, possuía nome dos mais preclaros em nobreza, belos olhos negros, negros os cabelos. Quem quiser que a veja: seu retrato, Chopin o confessou, está no segundo Estudo em fá menor.

Ah! Como resistir à bela George Sand? As mulheres dirão que ele esqueceu depressa a sua Wodzinska. "Chagrin d’amour..." ne dure qu’un instant. Esquecer? Também Aurora Dudevant olvidara a Jules Sandeau, a Prosper Merimée e ao doce Musset, para só citar os três. Maria Wodzinska apagou por sua vez a lembrança do amado, casando em 1841. Mas ao menos conservou a predileção pelo nome e a Frederico Chopin preferiu certo Frederico Shorbeck, que era conde e dinheiroso. Depois anulou o matrimônio para tomar novas núpcias. Do seu amor por Chopin ninguém sabe o que restou, mas da dor da separação ficou a Valsa em fá menor (op. 69, n. 1).

Estavam em Dresde os dois, em 1835, iam partir, cada um seu caminho, ela para a Polônia, ele de tornada a Paris. Hora de recolhimento, em que as esperanças de se reverem mais tarde se toldavam no prenúncio das coisas acabadas e perdidas. De um ramo de rosas de setembro sobre o piano, ei-la que escolhe a mais formosa, oferecendo-a a Chopin. Vozes se levantam do teclado, onde ele improvisava uma valsa. Lá fora, sôfregos nitriam os árdegos cavalos. Bate a hora no relógio. Em pouco roda ligeira a carruagem, já se perderam no ar os últimos ecos da despedida. E foi Maria Wodzinska quem chamou "Valsa do adeus" àquelas frases que um dia vibraram no piano, onde as rosas do outono eram as rosas da saudade.

Esse triste amor de alguns anos, para sempre perdido, não era o primeiro que dessangrava a Chopin. O primeiro foi Constança Gladkowskaia, aluna de canto no Conservatório de Varsóvia, a qual lhe inspirava na adolescência fanático amor, como pode ser nessa idade. Era formosa, de olhos cérulos. Ao deixar Varsóvia em 1830, recomendava Chopin a um amigo lhe dissesse que, "morto, aos pés dela se espalhariam suas cinzas..." E não bastava: "Isso ainda é pouco, diz-lhe muito mais..." Pobre Chopin. A menina desposou-se daí a dois anos. Pobre Constança, cujo destino enoitou depois para sempre na cegueira os seus lindos olhos azuis. Alegrias do primeiro amor, puras e divinas alegrias, deram-nos o Adagio do Segundo concerto e a Valsa, op. 70, n 3.

Que arrastou Chopin às exaltações da George Sand? A atração dos contrários. Ele tinha a beleza grácil, ela a robusta beleza. De si mesma ela dizia: "Il n’y a en moi rien de fort que le besoin d’aimer." Tinha que vencer. Havia amado muito, queria amar muito mais. Andava então George Sand nos seus trinta e quatro anos e no esplendor da beleza física, uma beleza de cromo, com uns toques de melancolia romântica. Não se sabe o que levou Henrique Heine a descobrir-lhe nas feições o traço grego. "Je ne fus ni laide, ni belle dans ma jeunesse", deixou ela escrito na História de sua vida. Faceirice. Não se achara bela porque tinha a certeza de que o fora. Mas George Sand cometeu a imperdoável imprudência, a que as mulheres devem fugir, de fotografar-se depois dos quarenta anos. Haverá quem diga que no morrer moça está a felicidade da mulher, então assim formosa eternamente. Com George Sand, se de um lado a vemos no esplêndido retrato em que se admiram seus olhos de sonho, de outro nos aparece essa outra imagem, tão conhecida, uma George Sand pesadona, bochechuda e empapuçada.

Moça, era despreocupada de enfeitar-se, linda por si mesma. Usava curtos os cabelos castanhos, fumava como homem e tinha idéias socialistas. Evidentemente uma percursora.

Chopin, seis anos mais moço do que ela, não resistiu ao incêndio daqueles olhares. E logo começou essa fascinação de amor, de que tanto se tem escrito, pintando-se a sedutora (porque foi ela a sedutora), como a mulher fatal, "la femme à l’œil sombre", na frase de Remy de Gourmont, a causadora dos sofrimentos que acerbaram a vida de Chopin no desdobrar dos nove anos que durou essa união, de que ele afinal se desatou com amargura.

Todos acusam a George Sand. Haja hoje ao menos uma voz que a defenda. Quem vai seguro consigo nas coisas do coração? Mas o coração dos outros, esse havemos de o governar, dando-lhes as leis e regendo-lhes os destinos, juízes inexoráveis do sentimento alheio, fáceis no condenar com mão de ferro o de que muitas vezes a nós nos desculpamos.

A alma ardente de Chopin encontrou nos transbordamentos daquele afeto o carinho feminino que até então lhe faltara. Artistas, a arte os conjugou, ela que única tem o poder de fundir numa só personalidade o amante e o amado. George Sand possuía no temperamento o segredo da comunhão misteriosa entre a idealidade e a realidade, e numa existência tantas vezes sacudida por questões sentimentais conseguiu dar o sereno exemplo de quarenta anos de ininterrupto trabalho literário, em que criou algumas obras-primas. Ela soube admirar Chopin à altura dele e a admiração foi o carinho do amor. Mas, ai de nós, a vida ensina que os amores eternos são sempre passageiros. Acaso o fervor pelo gênio musical de Chopin resistiu a tudo, mas o amor que florescera se desfez com o tempo em ruínas.

De que se culpa a George Sand? De que poucos anos passados já não amava com amor o seu Chopin, se em verdade algum dia o amou. Mas se já não havia amor, havia agora um afeto que se desentranhava em nobre dedicação, verdadeiramente admirável quando se pensa no estado nevrostênico de Chopin, estado engravescido com o doloroso mal em que ele se arrastou, no seu lento morrer de muitos anos. E ela? Ela, como disse Pierre Mile, para que não sofresse o seu doente, por longo tempo

"permaneceu fiel à sua paixão morta, por indulgência, talvez por caridade, e sobretudo por instinto materno".

(A expressão sentimental na música de Chopin, 1927.)