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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Mário de Alencar

RESPOSTA DO SR. MÁRIO DE ALENCAR

SENHOR Alberto Faria:

Suponho dar-vos maior prazer começando esta saudação de boas-vindas com o mencionar e destacar a vossa qualidade de jornalista, que vos é particularmente cara entre os vossos títulos de escritor. Por isso, dos sufrágios aqui recebidos foram os dos nossos confrades jornalistas, de gosto, ou de profissão, os que mais vos sensibilizaram, como um reconhecimento e um aplauso de companheiros. Pressentindo essa vossa preferência, quisera eu lisonjeá-lo, mas já receio desagradar-vos com o desacordo do meu conceito. Outro, que não eu, devera ser o que vos apreciasse aquela qualidade.

Por erro talvez de ponto de vista, ou por outra causa com que, melhor do que eu mesmo, atinareis, sou de quantos aqui o menos competente para falar-vos do jornalismo. Mas a sinceridade nunca fica mal no domínio das idéias e pode ser também um louvor reflexo. E assim a vós que o amais, digo sem rebuço, mas sem afetação de paradoxo e até a pesar meu, que desamo o jornal. Não desconheço o que ele vale como expressão sintética da cultura, e um dos elementos principais da vida política; eu mesmo experimento os benefícios de toda ordem que ele presta como órgão de opinião do povo, e sei que já não prescindo dele na trama social em que vivo. Mas, espírito de solidão, exilado na cidade, tonto do rumor que me envolve, não me foi dado sentir sem resistência e desgosto íntimos todas as formas e necessidades do progresso. Ora, o jornal é um dos fatores mais vivazes e constantes desse progresso, vertiginoso e importuno.

Combinando de si todas as forças materiais e sociais, o jornal intensifica a vida e torna-a ubíqua, multiplicando o espetáculo da dor, da alegria e da vulgaridade, ao passo que inutiliza o esforço individual da pesquisa, desvanece a graça do segredo, desmoraliza a intimidade da palestra, desvenda a terra em todos os seus recantos, fotografa o homem por todas as faces, dissolve a novidade e equipara o conhecimento. Dizem que é um bem, e eu penso que é um mal. Há pressa de viver, sendo a vida tão curta. O homem que devera criar o engano do seu alongamento, entretendo-a com as dificuldades naturais que constituem o motivo do gozo sucessivo, perverteu-a em corrida de aposta a quem todos são forçados em porfia, arrastados em roldão, estonteadamente.

A curiosidade desmarcada, movida por uma engrenagem de locomotiva, percorre e devassa tudo, sem atentar na monotonia e na tristeza dos que não terão mais que ver. Entretanto, ainda todos parecem contentes, como se o homem seguisse o seu destino para a aproximação e o esplendor dos deuses. Eu, retardatário bisonho, conservo o meu espírito à beira da corrente encachoeirada, e lastimo que seja da condição humana ir o homem urdindo e tecendo pelas suas próprias mãos um estorvo ao imprevisto, à diferenciação, à ingenuidade, à ignorância e à fantasia criadora de imagens e ilusões. O jornal é um maquinismo de impressão e quase já o é do pensamento, e há de extinguir o pensamento puro, como a fotografia acabou com o repouso da pintura, e o cinematógrafo vai destruindo a lenta harmonia do drama.

Desta persuasão não pode mover-me o engenho sutil com que o nosso ilustre confrade Medeiros e Albuquerque ideou a poética do jornalismo como uma das belas-artes. E ele o fez com a proficiência de quem no jornal já se revelara consumado artista. Mas eu lhe diria que nem todo o seu talento soube esconder a fragilidade da sua arte nova, que se inspira, como ele o quer, no artifício da simulação. As belas-artes, não importa a convenção a que recorram, como travejamento da sua estrutura, não vivem sem a beleza, e a beleza não existe senão subjetivamente pelo toque secreto da sinceridade comovida. Justamente o jornal exclui o silêncio e a sinceridade, o gosto e a ocasião de contemplar e de viver pelo espírito, o módulo, a seleção e a medida, que são as condições primordiais da bela-arte. O jornal é abundante, confuso e difuso, e exprime e confirma a idade da máquina, da insensualidade moral e do desencanto estético.

E eu já vos falo como um desencantado e um vencido.
Também a um folclorista e a um conversador qual sois, para quem o segredo é um alimento, e é um estimulo o esforço e a primazia da revelação, era de presumir que o jornal se afigurasse um concorrente perturbador e aborrecido. Mas na verdade fostes jornalista durante 25 anos e ainda sentis
saudade do ofício predileto.

Tínheis 14 anos quando fundastes na cidade de São Carlos o jornal A Alvorada. Assumistes nesse dia uma responsabilidade, que não podia conjeturar o alvoroço do redator adolescente. Outros, e não poucos, e já não mais adolescentes, nunca tiveram a exata consciência da função do jornalista. Não sei, entretanto, de nenhum ofício mais grave na sua atualidade.

O jornal que nasceu como gazeta, folha volante para só noticiar, desenvolveu-se na evolução dos costumes, ampliando-se em livro e em foro, nas quais age o moralista, o crítico e o juiz. Mas não um moralista, não um crítico, não um juiz individuados: já fora difícil achá-los a cada qual na idonei-
dade do seu papel; o jornalista funde em si os três papéis, e faz o milagre.

O moralista só é moralista com a condição de ter um dogma, formulado na experiência, ou no sentimento de um longo passado, e que constitui a base do seu critério e a linha de atuação da sua vida. Não lhe peçam filosofia, pois que esta duvida, e o gosto moral não consente dúvida; é como um alicerce, enterrado para não sofrer abalo e para suportar a construção do espírito.

O crítico, sim, tem de ser filósofo para a investigação, a análise e o confronto; consulta o presente e o passado,  e sobretudo as origens a que vai buscar as causas: está em permanente elaboração, mas para que esta seja eficaz, há de operar à distância, proporcionando a perspectiva para a visão, que não a confundam enganos de miopia, ou de astigmatismo. A serenidade e o silêncio acondicionam-lhe a observação.

Assim o juiz, mas com maior rigor do que é mister para o crítico e o moralista, os quais se exercem sobre generalidades, e também com a filosofia que lhe forme a cultura, o juiz tem de ser pontual no exame dos dados de informação, que não lhe permitam erro ao aplicar a sentença; pois que uma sentença errada é crime, e maior crime que o do caso julgado.

Difícil é a preparação e o desempenho de cada um; mas o jornalista é a um só tempo moralista, crítico e juiz: congrega em si essas qualidades, essas três vocações, e exercita-as com um efeito mais dilatado do que cada um deles no seu papel particular. A palavra do moralista firma-se no seu dogma pessoal e tem assim na sua influência o limite da sua pessoa. Manifesta-se o crítico na sua especialidade; se é da História, na apreciação dos fatos mortos, ou alongados; se é da Arte, ou de idéias, no ensaio, que só interessa aos estudiosos. O juiz atua em cada caso e nas folhas dos autos, que têm o seu andamento nos caminhos, se não secretos, discretos, e curtos do foro. Acompanha-o uma curiosidade restrita.
Considerai, porém, a extensão a que se propaga o jornal.

Tenha ou não a assinatura e a imputabilidade de um nome, o jornal dá à obra do jornalista a impessoalidade do dogma, em moral, alarga-lhe a crítica ao presente, aos fatos vivos e próximos, e interessa na sua apreciação já não só os estudiosos, senão todos, que vivam no passado e no presente; e amplia a sentença do juiz, das pessoas que a lei e a autoridade limitam, às pessoas que atingem o capricho, ou a curiosidade dos homens; excede o âmbito dos casos em que se articulam fatos para o julgado, a casos em que se articulam qualidade: o concreto dá lugar ao abstrato, o depoimento à conjetura; o afeto da lei ao da pessoa, a alçada do cargo à alçada da vontade, boa, ou má.

O livro, o sermão, o discurso, a sentença têm público circunscrito: o livro depende da notícia que o comunica, do dinheiro que o compra, da paciência que o percorre, do vagar que o estuda, da aptidão que o entende. O sermão e o discurso têm o seu auditório medido pelo recinto em que vozeiam. A sentença é lançada nos autos, ou proferida no tribunal, e empoeira-se nos arquivos, ou percorre só alguns ouvidos. O jornal, porém, tem a virtude da sua origem de folha volante, anônima, gazeta de vintém ou tostão, insinuante como o ar, dispersa como o pó que o vento levanta, célere, num momento em cada ponto da cidade, em cada cidade, em cada país, em cada mão, visível sob cada vista, como um relâmpago, atraente pela possibilidade de uma advertência para cada qual, pela promessa de um interesse, e pela certeza de um pasto para a bondade, para a pena, para a inveja, para a suspeita, para o ódio, e para a maledicência.

A palavra ouvida, por muito sonora que seja, dura enquanto ecoa; a palavra do livro, por muitos olhos que o leiam, vive fechada no livro; a sentença jaz nos autos, no castigo, ou na reparação das partes; mas a palavra do jornal fica no espaço, no ar e na terra; é a fama, e o infinitamente pequeno, que não se apreende mais na espécie, e perdura, invencível, inesquecível, como uma endemia.

Notai ainda: o moralista medita a sua moral em anos seguidos; o crítico encadeia os olhos nas páginas dos livros; o juiz conversa os autos paciente e solícito. O jornalista, porém, moraliza, critica e julga de improviso. Julga sem autos, sem audiência, e julga menos os fatos em que o depoimento esclarece, que as pessoas que nenhum depoimento habilita a julgar. O debate no tribunal não prescinde da acusação e da defesa: o acusador formula o libelo, coordena as provas, raciocina e deduz; o defensor responde, argumenta e rebate; assiste o juiz, balança a defesa e a acusação, e com a lei sob os olhos, decide a sentença. Ao jornalista basta uma denúncia e a acusação; e em vez da lei tem sob os olhos a sua inspiração e o seu sentimento; e para a sentença que lança, não vale a defesa, porque é sempre desconfiada e é da essência imaterial que não admite prova. A condenação precedeu, e é sempre mais ampla, como é sempre maior a irradiação do primeiro dos círculos concêntricos que na superfície da água ondulam de um ponto ferido.

O juiz escreve refletido e nos autos; o jornalista sentencia sobre a perna, e quase sempre rindo.
E realiza-se assim aquele sortilégio da fantasia d’O Mandarim: com o toque de um dedo num botão, ou antes com o dedilhar de um monotipo, move-se à distancia de léguas o mundo humano: se já não é tão fácil, por temor da polícia, fulminar-se uma criatura para o advento de uma herança diabólica, é coisa somenos matar-se uma reputação, por caprichos de mandarim.
Vede como se avantaja em poder ao moralista singular, ao crítico singular, ao juiz singular, o jornalista que é moralista, crítico e juiz, impessoal, plural e anônimo.

Mas o moralista requer a moral, o crítico requer a crítica, o juiz requer a justiça; o moralista pressupõe um passado, o crítico pressupõe a análise, o juiz pressupõe um tirocínio: e para os três o estudo e a idade são as condições elementares que os fazem idôneos.
O jornalista aí é quem pratica o sobrenatural: ninguém lhe exige nem a certidão de batismo, nem a do estudo. Surge e domina. E como era inevitável no calor fecundo da nossa natureza tropical, também como em tudo se revela no jornalismo a precocidade. Os guias de opinião, os conselheiros políticos e morais, os julgadores do passado e do presente, os profetizadores, os sentenciadores de fatos e de pessoas, os sábios em suma, são moços, são adolescentes, e às vezes meninos de 14 anos.

O vosso mérito, Sr. Alberto Faria, é que tendo começado aos 14 anos e prolongado por 25 a função de jornalista; nem a precocidade, nem a inércia do mister vos cegaram a moralizar e a julgar como apóstolo, como profeta, ou como Deus. Contentastes-vos, ao contrário de quase todos, com serdes somente o crítico, e não o crítico de gente, senão de fatos, e não de fatos gerais, senão de fatos literários.
Tendes, pois, razão de prezar a vossa qualidade de jornalista e no apreço especial que destes aos sufrágios dos que o eram, ou são entre nós, manifestastes o amor e o respeito de uma profissão que vós mesmo dignificastes com a discrição, a prudência, o liberalismo, o fato e a elegância espiritual. Não imitastes o abuso; e por gosto e consciência ficastes onde podíeis exercer o vosso talento, com utilidade vossa e do público, sem dano de ninguém. O jornal era para vós, como devera ser para todos, o livro do povo e do pobre, informativo e educativo.

Ora, não se informa com divagações retóricas, nem se educa com desmandos e insultos. A censura, onde cabe, deve ser mansa para ser acreditada e eficaz. Já não é deste mundo a indignação, e se ainda tiver lugar em alma virgem, surja com a sua pureza e ingenuidade no ritmo do verso, que só a poesia por antiga lhe convém para que a expressão não destoe. Em prosa, alinhada em colunas, composta de repente entre risos, a indignação não é sátira, mas rinchavelhada de sátiro: e há quem sob a fímbria da túnica romana roçagante com que ela representa, busque e descubra o calcanhar pontudo; e se divirta em provocar o estouro da malignidade ao simples aceno de uma cruz dos dedos na boca.

Vós sentíeis e praticáveis de outro modo. Os vossos artigos eram as páginas dos vossos livros futuros, compostos dia a dia, com vagar, numa simultânea tendência de ensino e de aprendizagem. A feição peculiar do vosso espírito, logo revelada e na perseverança do esforço confirmada, era a crítica. Tínheis a curiosidade das origens, e começastes, por onde mais convinha, pelas origens da nossa literatura. Naturalmente interessado pelas estranhas, preferistes porém a nossa e paralelamente a portuguesa. Favorecia-vos o estudo paciente e proveitoso à vossa permanência na província; podíeis ali viver pelo espírito a vida desta nossa grande cidade e preservar a solidão necessária para a continuidade de longas leituras, quase incompatíveis com a sociabilidade absorvente de um centro movimentado qual é o Rio de Janeiro. Num concurso para lente de Literatura Brasileira no ginásio de Campinas provastes com brilho o vosso saber, que em tal matéria pode ser igualado, mas não excedido. Tínheis pois com a erudição das nossas letras, e a leitura escolhida dos maiores modelos da literatura do mundo, e um gosto distinto, o que era principal em qualidade e quantidade para o ofício de crítica literária.

Ofício tão árduo, tão raramente bem exercido, e, no entanto, freqüentemente e abusivamente praticado. Quase todos somos críticos ocasionais, nos surtos e nos cansaços, ou nas irritações da admiração, ou só por maledicência, ou por escassez de outra coisa. Poucos são os que entre nós se aplicaram com propósito deliberado e sistema de idéias à crítica literária. Ainda hoje, para a resenha de um século de história da literatura, apontam os sós três nomes de Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo. Eram, na verdade, três desiludidos dos seus ensaios de poesia, o primeiro no verso, os dois últimos na novela.

Não é fácil explicar o motivo por que José Veríssimo tão depressa se desiludiu da sua ficção. As Cenas da Vida Amazônica revelaram um peculiar talento de narrador, com os melhores dotes de observação e de análise, e de descritiva pitoresca. A sua expressão era pura, sóbria e musical. Sabia dispor o drama e, o que é mais raro, possuía a arte do diálogo. O elogio que lhe fez Machado de Assis, a propósito da 2.a edição, em 1899, não foi favor de amigo, senão justiça do mais competente dos leitores. Algumas páginas daquele volume, como as que narram a fuga de Vicentina, através do deserto e da noite, levando ao colo uma filhinha que afinal abandona desvairada de pavor, para presa de uma onça, hão de figurar entre as admiráveis e perfeitas da nossa literatura. Por que não teria prosseguido José Veríssimo num gênero para o qual parecia ter a vocação? Esclarecido pelo seu próprio senso crítico, reconheceu talvez que lhe não tocara a fantasia, que é a imaginação associativa e transpositiva; a que ele possuía, imaginação fotográfica, limitava-lhe o engenho a reproduzir a realidade de casos ouvidos, ou vistos; e o meio provinciano lhe parecia pobre em matéria para o seu naturalismo.

O romance de costumes já tinha explorado quase todos os temas e figuras do interior brasileiro. Podia proporcioná-los o meio maior do Rio de Janeiro, quando ele para aqui se transferiu; mas, já então, ele se havia iniciado nos ensaios críticos, aos quais, por muito estranho que pareça, o jornal oferece melhor acolhida que às obras de ficção. E as causas circunstanciais quase sempre são as que prevalecem.
Um anterior estudo de etnografia brasileira – As Populações Indígenas e Mestiças da Amazônia – publicado em 1877, fora porventura o resultado da sua tentativa por cultivar o indianismo, ainda naquele tempo seguido com fervor; e só o malogro do novelista explicaria a obcecada intransigência do futuro crítico e historiador literário contra aquela inspiração tão natural e tão legítima da nossa poesia.

Foi também a circunstância de um emprego público a causa da sua aplicação aos estudos pedagógicos, que se manifestarão em A Educação Nacional, ótimo livro e, de todos os seus, o único incontestado e até louvado pelos muitos antagonistas que o nosso confrade encontrou na sua laboriosa carreira. Mas a colaboração periódica nos jornais determinou e especializou a sua produção de crítico literário; a princípio, na Revista Amazônica, depois aqui no Jornal do Brasil, na Revista Brasileira, no Jornal do Commercio, no Correio da Manhã, e já pela importância desses órgãos, já pela assiduidade do escritor, já pelo mesmo feitio moral da sua crítica, dentro de alguns anos a sua palavra adquiria uma grande autoridade, que se podia aquilatar sobretudo pela controvérsia, o despeito e a iracúndia dos autores, melindrados da apreciação que ele fazia, severo e isento.

A sua obra crítica, reunida nos Estudos Brasileiros, 1.a e 2.a séries, Estudos de Literatura Brasileira, 1.a, 2.a, 3.a, 4.a, 5.a e 6.a séries; Homens e Coisas Estrangeiras, 1.a, 2.a e 3.a séries, e no volume Que é Literatura?, etc., caracteriza-se por sinceridade, seriedade, amor do ofício, e empenho de ser justo. Estes traços que são os da fisionomia moral do autor suprem no conjunto dessa obra volumosa a unidade que lhe falta, e tinha de faltar a trabalhos sucessivos, compostos no correr dos anos, sob influências diversas, e durante a formação de um espírito que a iniciara com pequeno cabedal e nunca atingiu a condição e o vagar para a erudição e a cultura sobre as quais se pode erigir um sistema de princípios de crítica.

Os vários processos de fazer crítica, o histórico ou reconstrutivo, o dogmático ou judicial, e o impressionista, por mais que se disfarcem com sistemas e denominações, todos são apenas modalidades da crítica subjetiva, em que o elemento primordial é o bom gosto, congênito e educado pelo estudo e pelo estudo capaz de entender e simpatizar com o gosto diferente. Aí falhou muita vez o nosso confrade e reconhecia-o ele próprio, sem o confessar, ou sem que ele desse por isso reconhecia-o e confessava-o o seu pensamento, no seu frasear que passou a ser freqüentemente dubitativo e anguloso, ao contrário do boleio, correntio e redondo, que usava o narrador das Cenas da Vida Amazônica. Agora a incerteza e o autoritarismo a um tempo estorvavam-lhe a expressão em escrúpulos, paradas, tropeços, avanços e recuos, do que resultou afeiçoar-se-lhe o estilo parentético, o qual não poucas vezes deixa o leitor também indeciso em concluir do crítico.

Seria o mesmo apropriado dos estilos para um historiador; e quantos admirávamos na obra e no esforço de José Veríssimo as qualidades principais do seu espírito, esperávamos que na sua anunciada História da Literatura Brasileira se corrigisse o sestro dubitativo, e por se tratar de autores mortos e distantes, os traços do homem moral influíssem mais para a isenção, a clareza e a fluidez do pensamento. Não contávamos com a índole afetiva do escritor, que se era comedido para afirmar, não se coibia em reação para negar. Nos últimos tempos algumas contrariedades de afeto azedaram-lhe o ânimo, e aguçaram-lhe a latente suspicácia; e ele, irritadiço, entendeu vingar-se de desgostos, antagonismos e decepções, no culto póstumo de Machado de Assis, a cuja memória se devotou com uma exaltação tão freqüentemente comunicada que traía antes propósito que espontaneidade.

Esse estado de alma influiu na História da Literatura Brasileira, para a qual, ao contrário do que era preciso, não refez leituras: compilou trabalhos ocasionais, compôs capítulos sobre dados deficientes e contentou-se com ter feito, em consciência de simpatia, o estudo sobre Machado de Assis, que é o último do livro, e ficou sendo a razão final do livro; este é como o simples pedestal para a estátua de Machado de Assis; no pedestal há sombras deliberadas e intencionais para maior relevo da estátua, ao passo que as sombras da estátua são escondidas sob páginas de luz. Malogrou-se, pois, essa obra que todos confiávamos fosse o remate glorioso do escritor honesto, que timbrava em usar na expressão do seu pensamento literário a probidade pessoal que o fazia notável e respeitável.

Ele não previa que o sentimento, se dá força, faz também a franqueza; e é o regulador definitivo da vontade e das idéias. Fora melhor decerto, para o seu gozo e proveito, que ele não se tivesse desiludido da sua ficção; a arte desinteressada ajuda a viver sem injustiça, e sem remorso, na plenitude do sonho. A crítica é sempre arriscada: é arte também, mas da espécie parasitária; vive da obra alheia, e ainda que a adorne e a enflore, da obra alheia é que tira a substância para subsistir. Mas não o faz sem riscos; e para quê?

Afinal, fora do coordenação histórica, que ajuda a pesquisa, ou do louvor da simpatia, que anima a criação, fora dos devaneios pessoais, ou do romance autobiográfico, ou dos contes de lettre, como chamou Anatole France às suas mesmas críticas, defendendo-se de ser julgado um crítico; para que serve objetivamente a crítica? Para muita gente é um fator de engano, faz esquecer a ignorância com a aparência do conhecimento dos livros. A mim produz-me o efeito de uma operação anatômica; e ainda que através de um sistema luminoso, qual o de Taine, a obra e o autor criticado já não me assomam ao espírito na sua inteireza, senão retalhados em seus membros, com as vísceras à mostra, com os seus defeitos mais visíveis e realçados. Toda obra tem o seu defeito humano; mas inteira e viva, em movimento, os defeitos podem ser a graça da perfeição, ou apenas insensíveis para a admiração inocente.

As obras aleijadas e sem vida, não há mister que se ocupem delas; se não vivem! Mas o crítico é raro que não tome o gosto da autoridade e a presunção de antecipar a sentença dos séculos; e de arma nas mãos, o erro e a impiedade não falham.
No Lenhador, do nosso grande Catulo, vejo um símbolo que pode aplicar-se em lição aos críticos daquela espécie vulgar.

O lenhador decepava as árvores por mister e por gosto, mas um dia uma árvore gemeu e sangrou, e todos os seus galhos torados e, em pouco, todas as árvores entraram a surgir como fantasmas perseguidores do impiedoso. Até que ele, penitente, fez voto de não mais ser lenhador e dedicar-se ao culto das plantas e das flores; e amando-as e velando-as com carinho, como a criatura de alma, elas o abençoavam com o seu perfume e com as suas pétalas que lhe choviam em carícia sobre a cabeça.
Ignoro se algum dia fostes lenhador de livros; eu já vos conheci no suave trabalho de jardinagem. Pouco vos ocupais de Botânica, que as classificações são para os museus; interessam-vos as plantas na sua realidade concreta, e as flores, no seu viço, na sua cor, na sua forma e no seu perfume. Flores de todo clima, e tempo, mas particularmente as flores agrestes e escondidas, porque o descobri-las vos dá prazer. E saís à procura delas; se achais algumas desfolhadas, não vos fatiga a pesquisa das pétalas até recompordes a flor; refeito o cálice, reponde-lo no seu pecíolo, na sua haste, e a haste no ramo e o ramo no tronco.

Não é assim o vosso amador labor de folklorista?
Poucos ainda no Brasil se dedicam ao folklore, não porque seja nova essa ciência da curiosidade, e o seu batismo não conte ainda um século. Muitos a desdenham, como ocupação somenos do espírito, na qual parece não haver matéria para criar. Engano. O folklore tem a aparência fácil das coisas realmente difíceis. Não o cultiva quem quer, senão quem pode, porque possua um conjunto de qualidades peculiares, que se traduzem num instinto do passado, exercido por uma especial faculdade de conjetura e uma sensibilidade de ímã para objetos à vista insignificantes.

Não é o passado famoso, que todos estão a ouvir. Ao folklorista agrada a voz pequenina e obscura do povo na sua puerilidade ingênua: ingênua e por isso sábia, humilde e por isso grande, despresumida, e por isso perpétua. Essa voz popular todos a ouvimos desde o berço; mas nem todos somos capazes de discerni-la. Não nos chega o sentido mais que para o rumor das ondas intumescidas no movimento superficial das marés. Vós, os folkloristas, ao contrário, quase não escutais o que tumultua à tona das águas: tendes o olhar e o ouvido de mergulhador: atinais o ponto de imersão, e desceis à camada, onde não há ondas, senão as correntes silenciosas, que vão de uma terra a outra terra, tramando a radiculação da flora submarina, da qual só raras flores surgem à luz nos lugares remansosos das águas.
Quando retornais, trazeis as mãos cheias, e entre as algas, anêmonas eninféias, também algum ramo de coral, a semente da púrpura, às vezes a perfeição de uma pérola ainda no engaste nativo da madrepérola. E narrais com a singeleza de um habituado de maravilhas a maravilha do espetáculo e dos segredos encontrados e decifrados.

Poderíamos nós outros, sem o vosso sentido agudo, prever tanta cousa de significação e beleza no só indício do que era a nossos olhos apenas um sargaço, um balseiro, um filamento de limo flutuante? Aos nossos ouvidos desatentos e desdenhosos, que havia de valer o jogo do “Vilão do Carmo”, a lenda do macaco branco, uma simples serranilha popular e as fábulas meninescas, e as lendas, as pegas, os anexins e ditados, as cantigas de acalento, as nina-nanas, as histórias da carocha, as mais triviais de calar crianças, como a “História da baratinha”? Vós, escutando-as e registrando-as, mostrais o que tudo isso vale. Basta abrir o vosso livro Aérides, e esse outro recente O Folklore, do nosso João Ribeiro, professor de sabedoria e de encanto, a quem chamais de mestre, ainda que ele se diga vosso discípulo. Mestres, ou discípulos, companheiros sois nessa arte engenhosa da conjetura, nesse ofício de erudição airosa, que difere da outra erudição zangada, porque não se emperra, não usa antolhos, e é antes erradia e versátil, segundo a curiosidade vivaz dos olhos abertos e apontados para toda parte.

O vosso companheiro e mestre, numa das suas tentativas de achar a origem de um jogo popular de muitas variantes, confessou que “nada mais curioso nem mais enredado que esse labirinto de versões várias, entretecidas umas por dentro das outras, que é tão difícil quanto é agradável desdar e reduzir aos fios que as compõem. É esse talvez o único prazer e prêmio que se tem ao estudá-las”.
E assim definiu o folklore, e mostrou a sua maior vantagem, que é o ser uma ciência, ou arte, como queiram, desinteressada, sem outra finalidade que o exercício do amor curioso do passado. Mas como é próprio das coisas desinteressadas o serem fecundas, o folklore pelos seus confrontos e resultados constitui uma das bases principais da Filosofia, porque por ele se revela a psicologia coletiva, em que se tem a afirmar o estudo da psicologia individual.

Dá fruto de ciência, e dá também poesia, que a vai buscar na sua fonte mais pura, que é a alma anônima e espontânea do povo. Que muito que nessa pesquisa faça poetas? e já não seria fazer poesia esse labor de reconstruir e recriar os fragmentos esparsos da poesia?
O título do vosso livro tem a fragrância dela. Batizou-o a vosso pedido João Ribeiro, e expôs a razão da escolha em um dos seus lindos artigos d’O Imparcial:

...era o nome que mais convinha a essas páginas. Aérides, dizem os que o sabem, são orquídeas, cujas flores abotoam em púrpura e oiro e vivem do sol e do ar e sem quase nada dos troncos a que se acostam. Como Aérides, as páginas de erudição também florescem na púrpura e no oiro da poesia.

Assim é. E o título bem cabia ao vosso processo de criticar, o qual comparei há pouco ao ofício de jardinagem. Sempre em meio de plantas de flor. Podíeis, como outros, produzir as vossas, originais, ou de assimilação; mas o vosso gosto de admirar não vos deixa sobras, e mal o tempo vos chega para servir os olhos enlevados e vigilantes de toda flor de literatura estranha, ou nossa, que ainda caiba no vosso jardim e para o gozo sibarítico e laborioso do vosso cuidado.

Também desse ofício haverá quem diga ser fácil, e que fora mais útil definir as flores, classificá-las, ou desfolhar e rejeitar as imperfeitas. Se vos forrais ao trabalho da desfolha e rejeição, é porque não as admitis, essas flores são imperfeitas, junto às outras de vossa estima: deixai-as onde estejam, contente das vossas que vos deleitam. Que sabeis também definir e classificar, já o mostrastes algumas vezes e ides prová-lo em breve no vosso estudo da Vida e Obras de Gonzaga, ao qual já fizestes sagazmente que fossem restituídas as Cartas Chilenas. Mas vá que seja fácil a vossa crítica. Será dado a muitos possuir a delicada sensibilidade, a penetração inteligente, a soma de saber, o tato, o olfato, a visão, o carinho com que tratais a produção alheia, e que vos servem para revelar-nos a sua beleza, e às vezes reconstituir-lhe a perfeição e indicar-lhe o entendimento?

Tendes o talento de admirar e fazer admirar o que é admirável. E a vossa crítica é uma conversa amável, que não excede a medida da atenção, apesar de que exaure o tema, e passeia de tema em tema com a graça de uma borboleta vadia e a diligência de uma abelha operosa. Ensinais, sorrindo; algumas vezes, muito raras, picando de passagem, mas com ferrão que não faz doer. Brincos, ou irritações de abelha.
E parecendo produzir pouco, já produzistes muito. Para o nosso patrimônio acadêmico trazeis, além do volume de Aérides, o de Acendalhas, já no prelo, e prontos para o prelo mais seis volumes; e, em todos, há que estudar e aprender, sobre o que dizem, o vosso estilo lapidar, de escritor que sabe e pratica a arte de escrever e exerce na concisão pontilhosa e na clareza fluida a razão de comunicar idéias. Trazeis-nos ainda um grande saber de muita coisa; não direi que seja completo de todas as obras e autores, ciências e línguas, a que vos referis nos vossos escritos. Sabeis delas o suficiente que vos desse aquele efeito das trevas visíveis de Dante, que, no dizer de Renan, é a condição do entendimento e do amor. “Tous les contacts intellectuels vraiment fructueux s’opèrent de la sorte.

Trop bien savoir est un obstacle pour créer; on ne s’assimile que ce qu’on ne sait qu’à demi.” E seja isso a confusão dos que vos invejam. Não faltará quem vos inveje, apesar da vossa modéstia, e do desencarecimento de vós mesmo, com que atribuístes a vossa eleição ao favor da amizade. Não foi, mas que o fosse. A Academia Francesa também se formou na amizade; e foi o que teve de melhor na sua origem. A amizade é mais perspicaz que a indiferença e o desafeto, e a distância é como um telescópio que faz ver o valor verdadeiro. No vosso caso a amizade não serviu senão para esse efeito. Longe, numa cidade culta embora, mas provinciana, vivíeis alheio às nossas competições, e às nossas lutas. Não tínheis notoridade oficial, nem o desejo de notoridade nenhuma fora das letras. Fizestes-vos conhecido aqui dos escritores pelo que escrevíeis e sabíeis: o pensamento de que devíeis ser um dos nossos partiu, com surpresa para vós, dos que praticavam o vosso espírito.

A vossa escolha para essa Cadeira teve o cunho de um legado legítimo, pois o autor dela foi, ainda em vida, o vosso antecessor. Não a fizestes valer; e antecipou-se à vossa apresentação o renome encanecido do Barão de Homem de Melo, em que a Academia prestou a homenagem de respeito a uma vida de inteligência honesta e trabalhosa de publicista e historiador. A morte, porém, não consentiu que se desviasse da sua linha direita o legado de José Veríssimo, e que o recebeis agora com todos os títulos de sucessão, para conservá-la, e usá-la, com a independência do vosso espírito, como é próprio de um herdeiro maior. Não se interrompe nessa Cadeira a tradição do talento, da cultura, da probidade, e do amor das letras. E com o que nos trazeis, e é muito, dai-nos ainda o ensinamento e o consolo da vossa prática.

No livro Aérides contais a parábola da gota de mel, achada no Oriente por Gaston Paris. Era uma novidade para a França; para vós era uma velha conhecida, pois que a tínheis lido, incorporada à nossa língua, desde o século XVI, por Fr. Heitor Pinto na sua Imagem da Vida Cristã.

Era uma vez um homem que fugia perseguido por um rinoceronte furioso; aterrado pelos rugidos do animal, corria com quanta força tinha e caiu em um abismo que se lhe deparou na frente; mas ao cair pôde agarrar-se ao ramo de uma árvore que havia ali e ficou empoleirado nela.
Seu coração ia pouco a pouco serenando; ao debruçar-se, porém, sobre o precipício, viu dois ratos, um branco e outro preto, que roíam sem cessar a raiz da árvore e que dentro em breve teriam consumado a tarefa.

Mergulhou o olhar mais profundamente ainda e avistou um dragão que vomitava chamas e que abria fauces formidáveis para tragá-lo.
Passando com angústia olhares em torno de si, viu ainda quatro cabeças de serpentes que saíam de um rochedo, erguendo-se para ele. Mas como levantasse a fronte, eis que uma gota de mel, deixada pelas abelhas em um dos mais altos ramos da árvore, lhe caiu na boca entreaberta.
Não pensando nos perigos circundantes – monstro que o persegue, dragão que o espera, serpentes que o ameaçam, árvore que vai desabar, – o insensato dá-se todo inteiro à doçura desse prazer de um átimo.

Notastes as variantes e a interpretação de doutrina moral do frade Jerônimo para quem

a serpente é a morte, que nos segue; passageiros somos na terra, pouco há que aqui chegamos, e já partimos. A arvorezinha é a vida. O fundo da cova, o inferno; os leões, os demônios; os ratos, que pouco a pouco vão roendo o tronco da vida, uns brancos, outros pretos, são os dias e as noites, que vão consumindo a idade; o favo de mel é o vão contentamento do mundo.

Não destes a vossa interpretação; mas o teor do vosso trabalho intelectual, melhor que as vossas palavras, nos diz que a gota de mel é o doce contentamento da arte que faz esquecer a morte e vida.