DISCURSO DO SR. ALBERTO FARIA
MEUS senhores,
“O tirar do nome próprio da pessoa elogio, para seus louvores, é um dos tópicos que logo vão buscar os panegiristas”, di-lo o padre Manuel Bernardes em preâmbulo de exemplos concluintes.
Porém o panegírico, à grega – discurso laudatório em festa nacional (e que outro seja tanto como a rememorante de uma nacionalista por excelência?), de maneira alguma exclui a verdade.
Ora, tratando de quem, no superlativo de apelação a trouxe oracular: Verissimus nomem et, omen, quero-me verdadeiro apenas.
Assim lograrei talvez um aplauso mudo, bastante a minha ambição, o do mestre honrado, que se penetra da máxima Nomina nunima.
Nem cuideis jogo de vocábulo, ociosa e descabidamente; pois ele adotou a divisa “Pelo nome”, gravada no rosto dos primeiros livros.
De lá também, suponho, o votar-se desde a juventude à crítica e à história de nossas letras, convicto de ser o historiador e crítico literários um homem inteligente que ama a verdade, na definição de Sainte-Beuve.
Desde o fundador do gênero em França houve José Veríssimo a virtude social, mas Isenta do filoginismo vicioso.
Tinha a consciência da profissão, com que sempre se dignificou, dignificando a sociedade brasileira, cujo aperfeiçoamento era seu único ponto de mira de várias luzes.
Demonstrá-lo sem excursos ilusionistas, com simpleza cabal, redunda no melhor encômio, ou, como preferiria vosso colega passado já do século à eternidade, no mais justo.
Nesta crença e intuito, irei articulando-lhe à biobibliografia, de menos flores que frutos, notícias quase obscurecidas, senão de todo ignoradas, para recompor sua fisionomia de pioneiro da civilidade e do civismo no Brasil.
Frases de mero aparato servem antes a engenhosos e a eloqüentes, dos quais uns provam o que querem e outros sabem enfeitar a mentira de modo que agrade, ainda pela desconfiada verba do oratoriano.
Do fluminense Dr. José Veríssimo de Matos e da mineira Dona Ana Flora Dias, legitimamente conjugados, nasceu em primogenitura José Veríssimo Dias de Matos, aos 8 de abril de 1857, numa antiga colônia militar do Pará, onde o cabeça do casal estava por médico, havia poucos meses.
Essa colônia, oficialmente extinta em 1867, demorava na esquerda margem do rio-mar, a duas léguas da ex-aldeia dos Pauxis, sob a designação de Óbidos elevada a vila em 1758 e a cidade em 1854, quando lhe reconstruíram o forte acrescido de um fortim.
Que ali decorreu a meninice do novo pauxiuara, como a si chama o próprio obidense, no apego ao linguajar avito, consta de uma reminiscência, com mal aparada pena escrita no começo de 1877:
“Nunca, leitor, saíste de teu berço natal ainda criança e foste levado muito longe, por qualquer motivo?
Nunca passaste anos, sete por exemplo, sem voltar a ele?
E, depois, quando voltaste, não viste o torrão de teu nascimento em ruínas, as árvores que te acolhiam sob sua sombra mortas, ou cobertas de parasitas, aquelas que eram de teu tamanho crescidas e alterosas, caídos os muros em cujos buracos buscavas os ninhos dos pássaros; não viste derrocadas as paredes onde a trepadeira se enlaça muda, as aves que te acordavam com seu doce gorjeio pararem seu cantar e fugirem ao ver-te, e até a casa em que nasceste caída, o quarto em que abriste os olhos devastado pelas ervas crescidas?
Não te renovaste um momento, para ver-te correndo por essas praias, trepando por essas árvores, com a santa alegria da infância?
Pois, se nada disto te aconteceu, ignoras o que seja esse sentimento indefinível, tão agro e tão doce, esse delicioso pungir de acerbo espinho, no verso do poeta, – a saudade de um tempo que já foi e não mais virá, misturada no aperto do teu coração ante as ruínas do que conheceste edifícios.
Eu experimentei-o e uma lágrima borbulhou de meus olhos, que não caiu no chão.”
Garrett foi o primo e o último clássico da estimação de Veríssimo.
Todavia, imaginemo-lo em 1869, alongando-se no silencioso adeus às cordilheiras de Ererê e Tujuí, mediante palavras de Fr. Luís de Sousa, querido de seu queridíssimo: “enlevado na saudade que fazem as montanhas e serranias, vistas ao longe, que parece se juntam com as estrelas, e levam trás si o espírito”.
O franzino adolescente, cujos estudos primários se efetuaram de 1867 a 1868, em Manaus e Belém, vinha então para o Rio de Janeiro, onde aguardavam o teto e o zelo de um tio, Conselheiro Dr. Antônio Veríssimo de Matos, que o encaminharia nos secundários e superiores.
Até 1873 freqüentou os colégios D. Pedro II e Vitorio, matriculando-se em 1874 na Escola Central, logo transformada em Politécnica, na esperança de formatura, a despeito da compleição física.
Mas, presa de moléstia, grave, em meado de 1876 teve que abandonar o curso de Engenharia, por imposição médica, contrária a qualquer esforço mental.
Volvendo à província, em demanda de clima favorável, meses após entrava na vida prática, pela porta do jornalismo.
Dir-se-ia que o nascimento d’A Sentinela Obidense, primeiro órgão da imprensa na pequena mesopotâmia do Setentrião, coincidindo com o dele, lhe pressagiara o destino...
Estreou no Liberal do Pará, dando em folhetins as “Viagens no sertão”, vale a Monte Alegre e Óbidos, eleitas para a convalescença, de março a maio de 1877.
As emoções que experimentou, ao ver tais sítios e tratar sua gente, só se cristalizariam mais tarde n’A Sorte de Vicentina e n’O Boto; o estilo do jovem escritor era ainda indeciso e titubeante, qual se reflete na tradição em resumo:
“Não há muitos anos, contam, existia na ponta da barranca, que fica a O. da cidade (de Óbidos), prolongando-se com esta, uma árvore e um lugar a que o povo chama – Bota n’água.
Data da cabanagem o nome e a fama desse lugar.
A árvore desapareceu e o lugar está por pouco.
O barranco, aluído na base, caiu; a árvore foi levada juntamente com a terra, pela água do rio que tragara tantas vítimas, de cujas mortes fora cúmplice e testemunha inconsciente e impassível. Era daí que os cabanos arremessavam ao rio, vivos, atados costas com costas, os inimigos que lhes caíam às mãos. Era um suplício atroz, que só a perversidade hedionda podia lembrar!
Quando eram muitas as vítimas, amarravam-nas primeiramente à árvore, donde as iam tirando às duas para serem barbaramente assassinadas. E, no meio da noite, via-se um grande volume ser arrojado de uma altura de dez metros, aparecer por momentos no ar; ouvia-se um grito, em que havia dor, raiva e desespero, grito desses que para exprimi-lo a linguagem humana, sentindo-se pobre, pede sílabas (sic) às feras; o barulho de um corpo caindo n’água, que marulhava um pouco e quedava-se logo. Depois, a mesma cena, o mesmo grito, o mesmo barulho ainda, repetidos muitas vezes e por fim o silêncio. Esse silêncio, noturno, tétrico, povoado de fantasmas, manto imenso e lúgubre com que o crime se oculta.”
De pouco, os maximalistas, fizeram o mesmo que os cabanos, povoando submarinamente o Báltico, em sinistra repetição da história, a comprovar que a maldade humana é universal e eterna...
Inserida num desses folhetins, como resultante de leitura a bordo, por desfastio, depara-se-nos a análise d’O Selvagem, romance de Gomes de Amorim, cujos defeitos marca José Veríssimo, deixando-se entrever o crítico futuro, pela orientação e processo.
Destaco um trecho, com ponta de humorismo:
“Nas comparações, em que eram os selvagens tão ricos, o senhor Gomes de Amorim é paupérrimo. Faz até um índio, ao saber da morte do missionário, assassinado pelos cabanos, dizer do Padre Félix: Era tão bom como o fruto da pacoveira. Isto é grotesco. Um índio não faria uma comparação destas, salvo se, em sua qualidade de antropófago, o tivesse comido.”
Por influxo de Ferreira Pena, geógrafo de instituto e inclinado à Etnologia, escreveu As Raças Cruzadas no Pará, refundidas ampliativamente, sob o título As Populações Indígenas e Mestiças da Amazônia.
Em seguida publicou alguns dos Quadros Paraenses, de usos e costumes, sendo gracioso o de “O lundum”, em que a linguagem argüi melhoria, como no de “A lavadeira”, habilmente alargado com a lenda da Iara.
A fim de despertar o espírito nacional, num meio sufocado pela pressão do elemento estrangeiro, todo de puro mercantilismo, deu-nos ainda em 1877 A Literatura Brasileira, sua Formação e Destino.
No assunto, as idéias do autoditada, que nem de nome conhecia Sílvio Romero, casam-se com as deste, desenvolvidas na História da Literatura Brasileira, cujos primeiros capítulos saíram na Revista Brasileira, da 2.a fase, números de abril a dezembro de 1881 (a edição completa, em dois tomos, só aparecia sete anos transcursos).
Eis o fecho do artigo:
“Para compreender perfeitamente o espírito de um povo é necessário estudar bem os diferentes elementos que o compõem. É sobre este critério que assentamos o nosso modo de pensar de que é do estudo bem feito dos elementos étnicos e históricos de que se compõe o Brasil, da compreensão perfeita de nosso estado atual, de nossa índole, de nossas crenças, de nossos costumes e aspirações que pode sair uma literatura que se possa chamar conscientemente brasileira, à qual ficará reservado o glorioso destino de fazer entrar este país, pela forte reação de que falamos atrás, numa nova via de verdadeira civilização e progresso.”
O critério de Veríssimo, aliás, como o de Romero, era o de Martins, em disputa de originalidade, irritante sobre inútil.
Isso explica o que escreveu ele de “O conto popular” e de “A poesia popular brasileira” no Litoral do Pará, de janeiro de 1879, antes portanto da publicação na Revista Brasileira de idênticos trabalhos do crítico sergipano.
De sua colaboração no Litoral do Pará em 1877, desprezada a política, de interesse transitório, constituíram-se em 1878 as Primeiras Páginas, livrinho esgotado faz muito.
No último destes anos, despedindo-se da Companhia de Navegação do Amazonas, em cujo escritório estivera empregado meses, iniciou-se no funcionalismo público.
Porém os encargos na secretaria do Governo, como oficial, mediante concurso, e chefe de seção, por acesso, não o desviariam da imprensa.
Continuando naquela folha, criou em 1879 a efêmera Gazeta do Norte, de um liberalismo adiantado.
Essa operosidade, combalindo-lhe de novo o organismo, reclamava pausa sedativa, pelo que empreendeu uma viagem transatlântica em 1880.
Aproveitando a estada em Lisboa, onde se reunia então o Congresso Literário Internacional, tratou de servir à causa de nossa intelectualidade, lá desconhecida, ou, pior, conhecida erradamente.
Não só expôs no seio da assembléia, embora num quadro sucinto, o movimento das letras no Brasil, como também lhes defendeu os representantes da acusação de “fazerem pirataria”.
Valeram os esforços do forasteiro ilustre, empenhado na obra confraternizadora, a comenda da Ordem de Cristo, com que o distinguiu o monarca lusitano.
Por essa espécie de pudor que nos afasta das pessoas admiradas e queridas, consoante expressão sua, esquivara-se ao contacto direto das de maior evidência.
Contudo, não pôde refugir ao de uma, Gonçalves Crespo, cujo extraordinário dom de simpatia – sabe-o vosso confrade Sr. Silva Ramos, que eu de relanço apenas o vi – quebrava desconfianças melindrosas.
Em breve estreitavam-se na benquerença os dois mestiços, distantes da pátria comum, não raro objeto de saudade conversada entre ambos.
A propósito dos formosos Sonetos e Rimas, que chegavam de Roma, com dedicatória autógrafa de Luís Guimarães ao “Benvenuto Cellini do verso português”, discorreram de arte e poesia brasileiras, no gabinete à Travessa de Santa Catarina.
Era sugestivo o ambiente desse gabinete microscópico, cheio de fotografias de artistas e poetas de vário clima, reprodução do quarto do estudante de Coimbra, a menos, o esvoaçar quimérico
Das virgens que invoquei por noites silenciosas.
como disse o boêmio egresso dos sinceirais que bordam o Mondego.
Um novênio havia que caracterizava seu rêve ambitieux,
Um sonho encantador de paz e de ventura,
tendo agora o horizonte da vida lindado pela sombra de uma única mulher, toda inteligência e meiguice,
...uma esposa adorada, envolta – à negligente! –
De um longo penteador na imaculada alvura...
conforme a idealização poética em que se enevoa e esfuma o sensualismo crioulo.
Certa ocasião, Gonçalves Crespo surdiu no palco do Trindade, em o duplo papel de autor e ator, recitando A Morte de Dom Quixote, a benefício da família do literato Santos Nazaré, morto sobre as ondas em retorno da Índia longínqua.
Na platéia deslumbrada estava José Veríssimo, em cujo cérebro se gravaria índelevelmente a impressão auditiva dessa noite.
E não hesito em afirmar ter sido ela que, dois anos rodados, lhe inspirou finíssima apreciação, da qual extraio:
“A esta suprema elegância na forma alia-se nos versos dos Noturnos uma delicada expressão de sentimentos, uma melancolia um pouco irônica, que nos deixa no espírito a mesma cisma, vaga e doce, em que nos quedamos quando ouvimos um dos Noturnos de Chopin. Rara é a poesia que acaba com o último verso; quase todos, ao contrário, parece prolongarem-se ainda, como o derradeiro som perdido de um instrumento que se afasta, como as últimas e expirantes vibrações da corda de uma harpa, que, prolongando-se, prolongam também, não já em nossos ouvidos, mas em nosso espírito, a melodia divina que acabou.
É assim a poesia de Gonçalves Crespo, e isso prova que ele atingiu o verdadeiro fim do poeta, impressionar a alma por meio do belo ao serviço de qualquer causa. Não se pode ler A Morte de D. Quixote sem repassar na lembrança toda a vida do ‘altivo herói manchego’, tanto aqueles versos inimitáveis no-la trazem à memória, com as suas peripécias, cuja alegria não exclui o pesar que nos infunde a doce loucura do tipo imortal criado por Cervantes.”
É exatamente a tecla que feriria, um lustro após, a alma viúva do bardo, cujos mais suaves noturnos se conceberam ao luar amoroso de seus olhos, a poetisa de Uma Primavera de Mulher e das Vozes do Êrmo.
Aludindo à atenuação produzida pela felicidade conjugal no íntimo da obra do poeta, a companheira das horas acatassoladas, a fada de Santa Catarina, deu-nos esta síntese comparativa dos livros em que se biparte aquela:
“É por isso que os Noturnos, de uma beleza de forma inimitável, tocados às vezes de um largo sopro da epopéia, não têm senão a espaços a música dolente, tão enternecida e lânguida, tão acariciadora das almas tristes, que se prolonga e vibra em longos ecos melancólicos nas páginas das Miniaturas.”
Mutatis levemente mutandis, na substância e na representação, parecem do mesmo cálamo os períodos confrontados; é que os traçaram escritores de igual capacidade de sentir e em perfeita comunhão de sentimentos.
Entretanto, José Veríssimo nunca perpetrara e jamais a perpetrar veio um único verso, singularidade no meio brasileiro, onde os versos têm sido e continuam a ser fatal sarampelo dos homens de letras.
Daí a iníqua matraca de insensível à poesia com que o afrontaram versejadores mecânicos, despeitados de sua crítica de restrições.
Sem embargo à desproporcionada zanga dos veleidosos, que acreditam torrente de sublimidades poéticas a metrorréia insignificativa, declarava ele já no pino da existência amargurada:
“E os poetas ainda me são uma leitura querida, porque sempre os tive como os melhores intérpretes de nossos sentimentos.”
Aliás, não deviam molestá-lo os invariáveis ataques de eternos descontentes da boa crítica, armados apenas da ignorância com que repetiam, pela vernaculização de Salvador de Mendonça em 1875, anátemas do célebre prefácio da Mademoiselle de Maupin, conteúdos nas ironias zoológicas do original, à “ ... antipathie naturelle du critique contre le poète, de celui qui ne fait rien contre celui qui fait, du frelon contre l’abeille, du cheval hongre contre l’étalon”.
Era a jornalistas medíocres, não a verdadeiros críticos, que em 1834 se dirigia o fulminador de tais negatividades: “Vous ne vous faites critique qu’après qu’il est bien constaté à vos propres yeux que vous ne pouvez être poete.”
Nem podia desenhar a arte da crítica em si mesma quem, ao tempo, publicava as Exhumations Littéraires, que deveriam ser dadas, em curso de Literatura, como exemplos de crítica inteligente, feita com o conhecimento de causa, justa sem arrogância e sábia sem pedantismo, na opinião de Estienne Pasquier.
Os indicados artigos de Théophile Gautier, em La France Littéraire, compaginaram-se com o nome de Les Grotesques, livro indubitàvelmente preciso.
Demais, no sentido etimológico de criador, manifesto no emprego dos lugares registrados, o vocábulo “poete” abrange tanto “celui qui fait” em verso como “celui qui fait” em prosa...
E José Veríssimo já havia feito, já criara as Cenas da Vida Amazônica, obra de prosador assaz distinto, numa época de transformação estilística no Brasil.
As novelas O Bôto, O Crime do Tapuio, O Volutário da Pátria e A Sorte de Vicentina, elaboradas ainda no Pará em 1880, são das melhores produções de nosso Naturalismo, inconfundíveis com serôdios arremedos zolistas, pela calcadura de Eça e Fialho.
Se impressas no Rio de Janeiro, onde a Gazeta de Notícias divulgava, entre pasmo e delícia dos assinantes, “Cândida, a Empanada” e outros belos contos de Hop?Frog, entenda-se Dr. Tomás Alves Filho (há trinta e sete anos em eclipse de modéstia, na sua e minha adotiva e querida Campinas), teria este que dividir com aquele os louros de introdutor da nova escola no país.
Infelizmente, a primeira publicação em livro foi a de 1886, que chegou à antiga Corte no ano imediato, estando as vistas concentradas n’O Homem, de Aluísio Azevedo, aliás seguidor de ambos com O Mulato (Maranhão, 1881).
Mas uma ádvena de tomo e autoridade, itinerante no sul do Império, mostrou-se encantado com a leitura do volume, que o acaso lhe proporcionara.
“Ramalho Ortigão, quando visitou S. Paulo em 1887 – refere-o o Sr: Alfredo Pujol, na era aluno da Faculdade Jurídica local – teceu os maiores elogios a esse livro, que descortinava a seus olhos maravilhados a magnificência daquela região de águas e florestas.”
O entusiasmo não seria apenas pelo descortino da natureza, coisa única que soem conceder-nos estrangeiros ironicamente amáveis; mas, sim, pela natureza vista através de um temperamento.
Lamentemos não lhe arquivassem os termos, quiçá tão significantes como os de seu sócio nas Farpas, relativos a Castro Alves.
Estes, que ouvi ao Sr. Júlio Mesquita, coletor de fonte direta, andam agora envolvidos na luminosa Poeira da Estrada, do senhor Afrânio Peixoto:
“Contaram-me que um dia, a Eça de Queirós lera Eduardo Prado as "Aves de Arribação”:
Às vezes, quando o sol nas matas virgens
As fogueiras das tardes acendia...
O grande artista deteve o outro para exclamar: – Aí está, em dois versos, toda a poesia dos trópicos!”
O encarecimento íntimo, em desbordo, vai inteiro ao sugestivo talento do poeta que dera ao crítico precisa sensação do desconhecido.
Apontando à escultura de uma personagem meio lendária, disse alguém cujo nome não importa: “Parece-se com o original mais que o próprio original.”
Paradoxo? Verdade? Verdade paradoxa.
O lídimo artista, seja da pena, ou do pincel, como do escopro, bem pode fixar momentos de aspectos, algo intangível, fugitivo, e, contudo, essencial às pessoas e às coisas, tornando-as, na ficção, mais vivas que elas mesmas na realidade.
Tal o caso, não raras vezes, de José Veríssimo, quanto ao meio estranho a Ramalho Ortigão.
“Machado de Assis – acede o Sr. Alfredo Pujol – admirou principalmente as locuções da terra e a tecnologia de usos e costumes da vida amazônica, que opulentam o livro curioso...”
Aqui, rogo vênia para uma retificação, de pertinência clamante.
O que principalmente admirou o insigne aforador literário, esmerilhando-o, na segunda edição, de 1899, foi muito mais do que isso e muito acima disso.
Foram: a fina agudeza do observador; o dom de piedade e simpatia do narrador, evidenciado nos pequenos dramas completos das novelas; o oportunismo das descrições, breve, ou minuciosamente feitas, como convinha; cenas das mais vivas e sensacionais, páginas das mais belas e acabadas; tudo num estilo correntio e vernáculo, em que há uma nota de poesia, a graça e o vigor das imagens, que outra sorte de trabalhos não consente.
Afigura-se demasia... e é do sóbrio Machado.
O mesmo, havendo procedido ao respigo das imagens, adjetivou-lhe, em guisa de comento:
“Chateaubriand, escrevendo a Sainte-Beuve, em 1834, exatamente a propósito de Volupté, que acabava de sair do prelo, pergunta-lhe, admirado, como é que ele, René, não achara tantas outras. “Comment n’ai-je pas trouvé ces deux veillards et ces deux enfants entre lesquels une révolution a passé...” etc. Desculpe-se a pontinha de vaidade, é de Chateaubriand, e alguma coisa se há de perdoar ao gênio. Mas em verdade, mais de um de nós outros poderíamos dizer, com modéstia e sinceridade, como é que nos não acudiram tais e tais imagens do nosso autor, pois que elas trazem a feição das coisas antes saídas do tinteiro que compostas no papel.”
Com efeito, assim é. E apenas ponho por apêndice que uma delas já afluíra ao bico da pena de Théophile Gautier e outra afluiria mais tarde ao da de Raul Pompéia, de muito brio ambos nas louçanias do escrever.
Comparai-as:
“... une miserable rosse qui semblait s’être nourrie, au lieu de foin et avoine, avec des cercles de barriques, tant ses côtes étaient saillantes.” (Capitaine Fracasse)
“Cães magros, com as costelas salientes, como se houvessem engolido arcos de barris.” (Cenas da Vida Amazônica)
“Os urubus... andando com seu passo ritmado de anjos de procissão.” (Cenas da Vida Amazônica)
“Nearco... encaminhou-se para o trapézio com o passo medido das emas, com que sabe profundamente a técnica de marchar.” (Ateneu)
Ninguém contestará a superioridade expressiva das intermédias.
Para desenganar a maledicência parvoinha, com o ático Machado de Assis viria a concerto o esteta Sr. João Ribeiro.
Algures lançou este que José Veríssimo, nunca tendo feito versos, se elevou a grande altura nos gêneros de imaginação e ficção literária; que o esquecimento das respectivas novelas, devido a sua autoridade e glória, traduzia iniqüidade.
Mas cumpre-me soldar o fio à prática de cronólogo.
Voltando de Portugal, reassumiu o posto burocrático e inscreveu-se entre os redatores do Diário do Grão-Pará, que o teve como um dos mais solícitos, desde 1880 até 1884, não obstante haver criado a Revista Amazônica, no correr de 1883, ano que fundou a Sociedade Paraense Promotora da Instrução, nela realizando notável conferencia – O Movimento Intelectual do Brasil nos Últimos Dez Anos.
Homem de boa companhia, viu-se apoiado na Revista Amazônica por Barbosa Rodrigues, Ferreira Pena e Conselheiro Tito Franco de Almeida, presidente da Sociedade Paraense Promotora da Instrução.
A esse afanoso ciclo pertencem os opúsculos A Constituição da Nacionalidade Brasileira, conferência (1880), Emílio Littré, traços biográficos (1881) e Carlos Gomes, escorço (1882).
Dedicado à mocidade, o segundo compõe-se de artigos saídos na Gazeta de Notícias, de Belém, a respeito da filosofia positiva, importando em documento para a história das idéias modernas no Brasil, razão por que se lhes adjuntou um de réplica à Boa Nova, órgão de Teologia Católica.
Ficaram esparsos outros, firmados com o pseudônimo Lúcifer, contra os quais se levantou o clero, irritadiço e dizedor.
Em filosofia, como em ciência, manteve-se ele, vida a fora, entre o positivismo e o determinismo.
Por motivo de doença, fez uma excursão ao Amazonas, de setembro a novembro de 1882, visitando com o presidente da província, Dr. José Lustosa da Cunha Paranaguá, aldeamentos de índios em deplorável estado.
Das Malocas, descrevendo-as, tiro esta curiosidade quase arqueológica:
“Depois de Abacaxis, fomos a Canumã, cujos habitantes são mondurucus, sendo o tuxáua e sua mulher ainda pintados, ou mondurucú pinima... aí encontramos um velho índio ex-tuxáua de uma extinta malaca, e que, de envolta com sua patente de capitão, passada creio que ainda por Tenreiro Aranha, nos mostrou seu título de antigo votante. Este cidadão fala apenas a língua geral e só a custo compreende o que lhe dizem em português!”
Disso conservando recordação dolorosa, José Veríssimo, que em fins de 1883 deixou o funcionalismo publico, estabelecia em 1 de janeiro, e inaugurava em 23 de maio seguinte o Colégio Americano.
Em dezembro, ligado matrimonialmente a uma senhora de primor, D. Maria de Sousa Tavares, com esta dividiu a direção do instituto modelo.
Cai a ponto aqui um relevante documento de autopsicologia, cuja publicidade agora não considero indiscreta.
É uma carta de 30 de novembro de 1884, tendo por selos de afeto – “A minha Maria muito amada” – e – “Teu noivo amantíssimo” –.
Ei-la:
“Faz hoje dois meses, dia por dia, hora por hora, que a mesma lua que ali entra pela janela aberta em frente à mesa donde te escrevo, iluminava-te a cabeça pendida sobre meu peito no momento em que me juravas que, qualquer que fosse a oposição dos teus, tu serias minha. Felizmente, essa inconcebível oposição afrouxou e cedeu, e necessidade não houve de te servires dos teus direitos de maior. Amanhã, a esta hora, se nada houver em contrário, tu serás minha mulher, e esta é a minha ultima carta de noivo.
“Eu te havia prometido uma espécie de confissão escrita, que no mesmo tempo fosse um resumo do meu passado, e uma chave do meu caráter, para teu futuro governo. Infelizmente, razões valiosas obstaram a execução desse propósito; mas, para não falhar de todo a ele, aproveito o relativo descanso desta última noite de noivado, para confessar-me a ti, não contrito, porque na minha vida – posso dizê-lo bem alto e de cabeça erguida – nada há que mereça arrependimento sério; mas sincero e franco, como uso ser sempre.
“Dizer-te que eu próprio não me conheço perfeitamente, ou que, pelo menos, acho-me muitas vezes em contradições contigo mesmo, não é exagerar. No meu caráter, como aliás acontece nos mestiços, em que se reúnem tendências de raças diversas, e nos homens cuja vocação foi contrariada pelo encadeamento de circunstâncias a que uns chamam Providência, outros Acaso, há variações, flutuações, que muitas vezes me têm perturbado o espírito e desassossegado o coração. Em um ponto, porém, jamais senti, nem pressenti sequer, a menor hesitação: quanto à estrita honestidade do meu proceder e os meus sentimentos.
“Em mim, que não professo nenhuma religião positiva, a honestidade, a probidade, como a glória e a fé no Progresso, é um culto. Devo dizer-te que isto em mim é tanto mais fácil quanto na minha família – e orgulho-me disto – a honestidade é a regra comum. Meu pai é um dos homens mais honestos que eu tenho conhecido, e foi a sua honestidade, muitas vezes talvez descabida e pueril, que nunca o deixou enriquecer ou ‘arranjar-se”, segundo a gíria vulgar.
“A minha vocação única, que até hoje as circunstâncias de que atrás falei têm contrariado, eram as carreiras literárias, e tenho profunda fé que, se outras tivessem sido as condições da minha vida, e mais propícias ao pleno desenvolvimento das tendências do meu espírito, eu já me houvera feito um nome digno nas letras, ou nas ciências do meu país. Essa vocação contrariada, esse desejo, ou antes essa paixão não morta ainda, mas obrigada a conter-se tem concorrido, cuido eu, para as desigualdades que noto com pesar no meu gênio, que me fazem bom ou mau ao mesmo tempo, quando eu naturalmente sou bom até a fraqueza, e que me tornam covarde muitas vezes, quando eu me sinto um temperamento de luta, da boa e sã luta das idéias. Às vezes, como te disse de uma feita, bem antes de sermos noivos, vêm-me uns ímpetos de abrir caminho através dos obstáculos, de fazer um nome ilustre e glorioso, e de gritá-lo bem alto; outras apodera-se de mim um desânimo estúpido, um medo de tudo, vejo óbices invencíveis por toda a parte, fantasio conspiradores que na realidade talvez não existam, e a minha vontade, romântica e banal, fora retirar-me, ir viver para um sítio, ignorado e humilde.
“Uma mulher inteligente e dedicada pode corrigir, pelo menos modificar estas disposições encontradas, fortificando com seus conselhos, com seu exemplo, com o seu próprio amor as boas, e procurando aniquilar as más. Se tu fosses para mim essa mulher, como aliás espero, eu seria o mais feliz dos homens e tu terias feito uma obra obscura, porém mil vezes mais valiosa de que se houveras pintado um quadro de preço, ou escrito um livro de versos, ainda ótimos.
“As mulheres nenhuma influência tiveram até hoje na minha vida. Nunca amei e creio bem que nunca fui amado. Já te contei meu caso com a A. P., menina digna a todos os respeitos. Tive por ela uma leve afeição, antes efeito do desejo de realizar uma união vantajosa do que verdadeira inclinação amorosa. No dia, porém, que refleti que casar com uma mulher rica era, se não uma especulação torpe, ao menos alienar a minha liberdade e sujeitar-me a ser mal julgado, até pela minha própria mulher, resolvi acabar de uma vez com umas relações que me iam insensivelmente levando a uma indignidade, que aliás a sociedade não só aceita e não censura, como preconiza e louva.
“Fundando este Colégio, que abençôo porque nos reuniu, eu obedeci, não tanto a uma vocação pelo ensino, para o qual não me faltava todavia uma inclinação teórica, como o provam trabalhos meus anteriores, mas a uma necessidade em que estava de procurar um meio de vida que me desse pelo menos esperança de um melhor futuro, do que o meu precário emprego de Secretaria. Entretanto, tu o tens apreciado, não me achei deslocado, porque sem ser um gênio, nem mesmo um talento de primeira ordem tenho uma grande variedade de aptidões, e como sou brioso, ou orgulhoso, como quiseres, esforço-me por sair bem de tudo em que me meto.
“Hoje este estabelecimento deve resumir a minha vida, e para levar esta tarefa a bom fim conto com tua dedicação e com teu trabalho. Contudo, não abandonei ainda, e espero não abandonar nunca as minhas aspirações literárias, e fio que tu saberás conservar em mim este fogo sagrado do amor pelas elevadas coisas do espírito, que nos tornam melhores e superiores às pequenezas deste mundo.
“Como esta carta vai um pouco descosida, quero falar-te agora das tuas relações com a minha família. Das que hás de ter com a tua, não falo, porque me expliquei francamente em outra que te escrevi há alguns dias.
“Para não alongar, declaro-te simplesmente que eu exijo que tu tenhas pelos meus velhos pais a maior amizade e a máxima veneração, e que eu serei teu servo mais humilde e mais grato, se te vir uma boa filha deles. Não terias com isso, pois, senão a ganhar, do lado deles, a maior estima – e tu já os conheces suficientemente para saber quanto são extremosos – e do meu, maior soma de amor e de consideração.
“Que sou pobre, sabes tu perfeitamente; que tens de trabalhar não ignoras; que eu compreendo o casamento como união em que tudo, amor, trabalho, boa vontade, deve ser recíproco; disse-to muitas vezes.
“Podemos, minha querida amiga, ser muito infelizes, ou muito felizes; isso depende de mim e de ti. Precisamos, pois, ter ambos a ciência de fazermos da vida uma eterna lua-de-mel; carecemos conhecer-nos bem, amar-nos muito, respeitar-nos mais, corrigir os nossos defeitos particulares e perdoarmo-nos um ao outro, mutuamente.
“A vida, repito, vai ser para ambos nós uma vida de trabalho; mas trabalho é doce quando um fim superior o dirige e quando, feito a dois, o amor o preside. Eu tive o exemplo agora no arranjo de nosso quarto de dormir, todo feito por mim. Nunca trabalhei com mais gosto, nem mais amor. Amemo-nos e tenhamos coragem, minha amiga, e sobretudo, tenhamos perseverança e fé em nossa divisa: Amor e trabalho, Ordem e economia.”
Correspondendo plenamente a esses votos, a hoje viúva Dona Maria Veríssimo exerceu grade influência, tão grande como a sempre exercida por D. Ana Flora Dias de Matos, no ânimo do homem que os formulara.
As duas suaves mulheres, protótipos de esposa e mãe, muito fizeram e conseguiram não pouco, em ordem a modificar-lhe o impulsivismo nativo.
No Colégio Americano fervia o trabalho, amorosamente partilhado.
E as locuções de abertura, ou de encerramento dos anos letivos, reunidas num folheto em 1888, atestam a competência do novo pedagogo, a quem atraíram próceres da República, vem intencionados.
Digo bem intencionados, presumindo-os cientes do prefácio dos Estudos Brasileiros, 1.a série, contendo os de mais relevância insertos no Diário do Grão-Pará, RevistaBrasileira e Revista Amazônica, de 1878 a 1885; em tal prefácio, que tem a data de fevereiro de 1889, o autor expôs seu pensamento, no tocante a momentosos problemas políticos e sociais, com lucidez, franqueza e energia.
Neste ano foi a Paris, tomar parte no 10.o Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica, apresentando a memória O Homem de Marajó e a Antiga Civilização Amazônica; ainda mais, por incumbência do Governo do Pará, desempenhada gratuitamente, ali coligiu quanto do ensino constava na Exposição Universal.
Regresso aos caros penates, assistiu à implantação do regímen republicano, que desejava benefício ao país, mas temia falsificado, procedendo de quartéis.
Tanto como o padre, o soldado, sacrificando o dever à ambição, era-lhe antipático.
A instância do Dr. Pais de Carvalho, vice-governador do Estado, aceitou o cargo de diretor-geral da Instrução Publica no Pará, a fim de alterá-la de fond en comble, pelo que transferiu a outrem a propriedade do colégio.
Nomeado a 12, empossava-se a 17 de maio de 1890, tratando logo de sanear moralmente o campo de ação.
O relatório de 31 de dezembro ao governador do Estado, Dr. Justo Chermont, peça destoante das costumeiras no gênero, soma salutares reformas de serviços (V. A Instrução Pública no Estado do Pará em 1891, publ. of. 1891, 205 págs.).
Aquela espécie de trabalho de Hércules, no expurgo das cavalariças de Augias, descontentou o filhotismo tradicional.
De seu turno, aborreceu-se José Veríssimo, percebendo que o Dr. Lauro Sodré, assunto ao poder, não resistiria às injunções partidárias.
Licenciou-se a breve espaço, para exonerar-se depois sem escândalo.
Ainda uma vez, à quelque chose malheur est bon...
Sentindo completa sua formação, em meado de 1891 embarcou para o Rio de Janeiro, trazendo como carta de crença, valedora junto a espíritos de altura, obra recentíssima, otimamente inspirada.
Refiro-me à Educação Nacional, epigrafada com as palavras de Sílvio Romero: “Êste livro quero que seja um protesto, um grito de alarma de são brasileirismo, um brado de entusiasmo para melhor futuro.”
Teve ele uma segunda edição em 1906, quando ao Presidente da República aprouve dizer o ministro dos Negócios do Interior:
“O ensino chegou (no Brasil) a um estado de anarquia e descrédito, que ou faz-se a sua reforma radical, ou é preferível aboli-lo de vez.”
E, se acaso já não for inútil repetir protesto fundado em nacionalismo idealista, deveria ter tido uma terceira em 1919, quando o ensino anarquizado, tanto, ou mais, baixou à ignomínia dos exames por “grippe”!
Relevai-me, senhores, o insofrido gesto caipira, gesto de jornalista da roça que ainda não efetuou seu avatar em acadêmico...
Na Educação Nacional há este retrato do autor, retrato por letras cuja tinta imagino a de seu próprio sangue:
“Eu confesso, não tenho pela desmarcada e apregoadíssima civilização americana senão uma inveja medíocre. E no fundo do meu coração de brasileiro alguma coisa há que desdenha daquela nação, tão excessivamente egoísta e tão eminentemente, perdoe-se-me a expressão, strugforlifista. Essa civilização, sobretudo material, comercial, arrogante e reclamista, não a nego grande; admiro-a, mas não a estimo; esse país novo onde há riquezas que fazem fantásticas as lendárias dos nababos, quando o proletariado, com as suas justas reivindicações, já se lobriga através de uma grandeza desmedida, ofende a minha simpleza de matuto chão e honesto; essa política cruel que veda a um povo a entrada no país, persegue-o e lincha-o; que massacra toda uma raça; que tem uma habilidade especial, para adestrar cães contra outra, e que, de Bíblia na mão, discute, justifica, aplaude e exalta a escravidão, fere de frente a idéia que da eqüidade e da justiça tenho. Aquela corrupção política, que tanto impressionou a Spencer e quantos publicistas têm visitado e estudado os Estados Unidos, repugna a meu senso moral. Aquele puffismo, aquela charlatanice do jornalismo, com seus títulos enormes, extravagentes, mentirosos, de um reclamo disfarçado e insolente escandalizam a minha probidade literária.
Não é a mera satisfação de revelar meu sentimento sobre alguns aspectos da república que todos admiram, que todos invejam e que todos exalçam, que me faz assim escrever. É unicamente porque, parece-me, este sentimento é natural em todo o brasileiro. São estes antagonismos nacionais, não antipatias nacionais, que fazem a cada povo uma espécie de linha divisória que o distingue e diferença. Admiro grandemente aquele egrégio povo, mas não o invejo, e sobretudo – e isto é para nós o principal – não creio aplicável utilmente ao nosso Brasil quanto lhe fez o progresso admirável, nem quanto o desvanece a ele mesmo.”
Agrada a valia da obra, propriamente, o mérito da imparcialidade, pois nela tanto se indigita o que devemos imitar como o que não devemos imitar à famosa nação do Pacífico, em cujo manifesto do destino lateja a idéia de futuro alongamento de pólo a pólo.
No capitulo “Brasil e Estados Unidos” lê-se, em via de conclusão:
“Conservemos a nossa originalidade, o nosso caráter nacional, os nossos costumes, o nosso amor das nossas coisas. Estudemos os Estados Unidos, estudemo-los não superficialmente como tudo soímos fazer, mas fundamente. Não nos limitemos à aparência deslumbradora da sua grandeza, penetremos nos recônditos de suas instituições e de suas funções. Só assim veremos o que deles podemos criteriosamente adaptar e utilmente aproveitar. Muito, muitíssimo será o que nos poderão eles ensinar; mas, por amor de nossa pátria, não aprendamos senão o bem, e, sobretudo, não nos ponhamos a macaqueá-los sem discernimento, nem vergonha, fazendo-nos, nós que temos o direito de ser um astro soberano, satélite da república enorme.
[...]
Imitemo-la, porém, desde já, no amor que lhe mereceu sempre, desde o início de sua vida nacional, a educação popular. Foi essa a preocupação máxima dos patriotas daquela nação.”
Explica-se assim que José Veríssimo, não tendo a ilusão americana, mesmo antes do ruidoso panfleto de Eduardo Prado, houvesse estabelecido o Colégio Americano.
E não surpreende que, assim revelado na capital da República, adquirisse a espontânea estima de Rodolfo Dantas, sabidas as predileções deste ex-ministro do Império, que acabava de fundar o Jornal do Brasil.
“O espírito de Rodolfo Dantas tinha gravitado em política, desde as suas primeiras manifestações, para a educação nacional. Ele foi um dos que melhor compreenderam o dilema do Brasil; de resolver esse problema, ou desaparecer. Ora, a educação não é uma obra que possam ver a cornija, nem sequer o pavimento, os mesmos que trabalharam nos alicerces. Quando deve começar a educação da criança? perguntaram a Emerson; o grande americano, o maior espírito que o Novo Mundo até hoje produziu, respondeu: Cem anos antes de ela nascer. Muito mais que a educação da criança, a de um povo tem que ser preparada de um século atrás, e nessa tarefa de tão distante resultado e cujas primeiras colheitas hão de amadurecer quando não restar memória do semeador, é que a flor da inteligência, da dedicação e da coragem de cada uma das gerações preparadoras tem que ser consumida. Esse foi o pensamento cardeal, o objeto que da política Rodolfo Dantas transportou para a imprensa. Em sua esfera individual, porque a obra da educação é sem-número, multiforme, e no servi-la, cada um deve procurar a sua especialização, a sua missão será assim criar um grande jornal, que atravesse, auxiliando e centuplicando os esforços de todos, o longo período da preparação nacional.”
Essas palavras, já o tereis adivinhado, pela elevação e elegância, são de Joaquim Nabuco, que, por efeito das mesmas, chamou “jornal saído de um gabinete de estudos” ao de Rodolfo Dantas, com quem ele próprio, Sancho Pimentel, Aristides Spínola, Gusmão Lobo e Ulisses Viana se revezariam sob o “poderoso nós” redatorial.
À conta do C. (Constancio Alves) estava, ainda no dizer do cronista recorrido, que lhe equipara a graça à de Joaquim Serra n’A Reforma, da Monarquia, e n’O País, da República, “a vibração da nota efêmera do dia”, “fácil, matinal e sonora como um gorjeio de pássaro”.
Tinha a mais o Jornal do Brasil, sólida e fulgurante colaboração, peregrina e doméstica, de Emílio Laveleye, Paulo Leroy-Beaulieu, Edmundo de Amicis, Teófilo Braga, Fialho de Almeida, Barbosa Rodrigues, Rio Branco, Araripe Júnior e tantíssimos.
Para a redação da folha, imitante ao Journal des Debats e ao Temps, entrou José Veríssimo, exercitando preferencialmente a crítica literária, nos rodapés das segundas-feiras, com o prestígio de les rois du lundi em França.
Os trabalhos da espécie compendiaram-se nos Estudos Brasileiros, 2.a série, entre os quais figura um artigo, de 8 de dezembro de 1891, perfil do ex-imperante, cuja morte ocorrera no estrangeiro, três dias antes.
Esse e os de Joaquim Nabuco, em as datas de 9, 10 e 14, sobre o enterro do magnânimo velho destronado, todos polidos e saudosos, foram pretexto para o assalto dos jacobinos ao Jornal do Brasil, em a noite de 16-17.
Os que arremessavam pedras, contra a tabuleta do edifício, faziam-no gritando: Mata, mata Nabuco!
Do perigo físico livraram-no os ofícios de antigo abolicionista agora aparceirado com os demagogos, o Senador João Cordeiro; mas a afronta moral crestou-lhe a flor de uma ilusão, a da popularidade ingenuamente criada.
No dia 18, deixava ele, com Rodolfo Dantas e Sancho Pimentel, o Jornal do Brasil, em que permaneceria Ulisses Viana até maio seguinte, quando assumiu a chefia o Sr. Rui Barbosa, a quem os fados reservavam maior desgosto.
Aquele artigo de José Veríssimo foi celebrado pelo Sr. Carlos de Laet, um dos vexados na época ominosa, destarte abrindo a Década Republicana, da Imprensa (1889-1899):
Querendo elogiar Trajano, escreveu Tácito que no seu tempo houvera uma grande felicidade – a de poder cada qual pensar como lhe aprouvesse e falar como pensasse: Rara temporum felicitate, ubi sentire quae vellis et quae sentias dicere licet (Hist., 1, 12). Idêntico elogio relativo a D. Pedro II, muitos séculos depois, caia da pena de insuspeito republicano, o Sr. José Veríssimo:
“Quantos neste país têm a honra de empunhar uma pena convencida e honrada, por mais modesta e obscura que seja (escreve o festejado democrata), reconhecerão que jamais durante seu longo reinado tiveram de deixá-la cair por falta de liberdade, ou sequer iludir, ou velar o pensamento. Todos pensávamos o que queríamos e dizíamos o que pensávamos.”
A desmaliciosa aproximação de Veríssimo a Tácito – maxime feita por eminente adversário político, qual o sutil e tenaz redator d’O Brasil e d’A Liberdade – constitui, à vez, reconhecimento de seu espírito de independência e de justiça.
Em outro volume, sob o título A Amazônia, recolheram-se doze artigos, publicados na mesma folha de agosto a setembro de 1891, discutindo aspectos econômicos da região. Dito opúsculo encerra informes de monta e proveito, quanto à Geografia, à História, à Etnografia e à Lingüística, particularmente brasileirismos, como os posteriores A Pesca na Amazônia (1895), Pará e Amazônia, questão de limites (1899) e Interesses da Amazônia, coletânea de seis editoriais do Jornal do Commercio (1915). E, a despeito das respectivas datas, são todos atuais para gente de governo cuja orientação se anuncia de – rumo ao norte.
Tendo por sujeito a fauna ictiológica da bacia fluvial amazônica, a penúltima de tais monografias, 207 páginas de importância real, destinava-se originariamente, como as de Emílio Goeldi, Os Mamíferos do Brasil (1893) e As Aves do Brasil (1894), ao Livro do Quarto Centenário. Mudado o plano desta obra, comemorativa do descobrimento de nossa terra, o autor aí a substituiu pelas intituladas Instrução Pública e Imprensa.
(A propósito e em parêntese, convém frisar que, sem ridículos pruridos de provincianismo, José Veríssimo amou sempre a zona de sua procedência; jornalista de renome na capital do país, continuava a enaltecer-lhe a imprensa, escrevendo n’A Província do Pará, n’A República e n’O Comércio do Pará.)
No Jornal do Brasil ainda, primeiro semestre de 1892, sendo já reitor do Externato do Ginásio Nacional, abrangido pela reforma do ensino de Benjamin Constant, analisou com desassombro os defeitos desta, aliás, executada quase só na parte alentadora de vencimentos...
De inação jornalística, para José Veríssimo, alma refrangida ante a pátria convulsionada, foram os anos de 1893 e 1894, em que se deu inteiro ao magistério.
Ao estalar a revolta da armada, o Sr. Rui Barbosa, cujo derradeiro artigo no Jornal do Brasil apareceu em 6 de setembro, asilou-se numa legação americana, de onde breve passaria à República Argentina, para não ser preso, como seu secretário, Sr. Tobias Monteiro.
Dois dias após, quebrava a pena o Sr. Constâncio Alves; mas, sabedor de que também lhe andavam no encalço os janízaros da ditadura, fugiu para a Canaã, de Rodolfo Dantas, propriedade agrícola no município paulista de São Simão.
A 11 de outubro, José Veríssimo, escrevendo ao segundo, cujo infortúnio buscava suavizar, fala do seu, contra o qual procurava reagir.
Ouçam o homem íntimo, comovido e comovente, nesta carta-resposta de agonias e esperanças:
“Li-a e reli-a com lágrimas nos olhos, lágrimas de saudades, sempre constantes e fundas de minha mãe. Obrigada, muito obrigado, peloas boas palavras de amizade que me disse sobre minha querida mãe. Deixe-me, sem reparo, dizer a V., que infelizmente a não conheceu bastante, que ela merecia essa homenagem de um homem do seu coração e do seu espírito. E não preciso acrescentar que ela queria-lhe muito, que, opulenta de ternura, chorou a morte de seu irmão quando lhe contei e lhe disse o seu infortúnio, de irmão amantíssimo estreitamente unido ao que, em tal momento, imprevistamente, na flor da vida, o deixara. Essa morte todos nós a sentimos, e mais de uma vez em Jacarepaguá, para onde fomos e ela nos morreu, conversamos de seu pobre irmão, de V., de seu paradeiro incerto. No dia seguinte ao do enterro dele procurei-o a V. em Catumbi. Já o não encontrei. Deixei-lhe um cartão. Recebeu-o? Imagino as suas angustias, e as tristezas de sua vida desde ali. Desconfiava e hoje sei, com certeza e alegria que se acolheu a teto hospitaleiro de amigos, cuja elevada e verdadeiramente fidalga nobreza de coração conheço, aprecio e venero. Abençoados sejam eles.
A morte de minha mãe e os sucessos que pelo mesmo tempo se deram acabrunharam-me profundamente. Os três meses que se lhes seguiram vivi fisicamente doente, a ponto de recear eu próprio pela minha existência. Ela era o meu apoio e a minha força. Da inteireza do seu juízo e da retidão do seu caráter, da sua larga e generosa bondade tirava eu sempre, como de mina inesgotável, os alimentos de minha vida moral. Esta casa, que ela animava, ficou vazia, cheia apenas da sua lembrança, da sua imagem ideal, ainda hoje presente por toda a parte.
Depois a lembrança dos deveres de pai de família, conselhos e admoestações de amigos fizeram-me reagir contra o acabrunhamento da minha dor. Entrei a trabalhar e a estudar, procurei, sem conseguir, sair desse miserável inferno do funcionalismo publico, pelo qual tenho verdadeiro horror. Falharam-me até aqui essas tentativas, e eis-me ainda amarrado a este cepo. Falam hoje os jornais de novo em demissões. Sou pobre, muito pobre, com família; pois bem, se a minha fosse uma delas talvez a estimasse. É o caso de quem se atira ao mar para aprender a nadar, eu, entretanto, como lhe disse, pus-me a trabalhar. Em breve deve sair 2.a série dos Estudos Brasileiros. Além dos estudos publicados em o nosso querido Jornal do Brasil (refiro-me ao da 1.a fase), traz um prefácio e um estudo inéditos. Tenho também no prelo a Pesca na Amazônia, cujo título o fará sorrir, mas que será um livro querido, pois foi a escrevê-lo que distraí as minhas mágoas. Outros trabalhos ficam na gaveta.
Ultimamente resolvi publicar a Revista Brasileira, da qual lhe envio um prospecto. Quero ver se posso fazer dela uma coisa séria, capaz de libertar-me do grilhão burocrático, o que julgo conseguiria, se pudesse, como espero, montar uma tipografia. Creio que é como acabarei, como tipógrafo.”
Semelhante empresa, após conturbação grave, num momento de desmantelo geral, quando ninguém pensava em coisas intelectuais, era tentativa arriscadíssima, ato de coragem singular. Mas José Veríssimo queria realizar um sonho de mocidade, sonho longa e docemente sonhado... A Revista Amazônia, que teve êxito relativo dadas as condições de tempo e de espaço, já fora uma imitação da Revista Brasileira, 2.a fase, à qual se reportara em 1889, no prefácio dos Estudos Brasileiros, 1.a série:
“Essa publicação, que me traz a lembrança saudosíssima de um de seus valorosos diretores e eficazes colaboradores, um dos raros que neste país tem tido o santo e nobre entusiasmo das letras, – Franklin Távora, – marca, por assim dizer, o apogeu e o pronto declínio desse movimento (o espiritual, do decênio 1873-1883).
[...]
Dessa época e de sua influência são os escritos que constituem esta racolta.
[...]
O estudo da pátria brasileira, em todos os aspectos que no-la representam tal qual é, não como simples agremiação política, mas como uma nacionalidade consciente, pareceu-me sempre dever ser o ponto de partida para onde deviam convergir os esforços de todos os seus escritores, de todos os seus sábios e de todos os seus artistas, e a única base positiva para assentarmos uma cultura, como dizem os alemães, verdadeiramente nacional.
[...]
É esta a inspiração principal da minha obscuríssima vida literária e o espírito que dirige todos os meus trabalhos feitos, ou premeditados.”
Com o mesmo ideal, José Veríssimo fez ressurgir a Revista Brasileira, 3.a fase, a 1 de janeiro de 1895, dizendo no artigo programa:
“Aos seus fundadores parece que é propícia ocasião de dar ao pensamento brasileiro, em todas as suas variadas formas, um meio de expansão. Mais facilmente que o jornal, ou o livro, pode a revista recolher de todo o país e por todo ele disseminar as manifestações de sua vida espiritual, sendo ao mesmo tempo um centro de convergência e de irradiação de todas elas. E, assim, sem sair de sua esfera, viria, em nossa federação nascente, exercer uma função social cujo alcance não precisa encarecido, qual a de criar e estreitar entre os estudiosos e escritores de todo o país relações de confraternidade espiritual e levar por todo ele as vozes daqueles que nas letras, nas ciências, nas artes são os órgãos do sentir e do pensar nacionais.”
Nesse quinzenário, não menos fecundo e mais brilhante que o anterior, congregaram-se, em torno de José Veríssimo, para a obra patriótica, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay, Sílvio Romero, Araripe Júnior, Salvador de Mendonça, Barão de Loreto, Urbano Duarte, Valentim Magalhães, Inglês de Sousa, Garcia Redondo, Raimundo Correia, Artur Orlando, Almirante Jaceguai, Sousa Bandeira, Heráclito Graça, Afonso Arinos, Martins Júnior, Lúcio de Mendonça, Artur Azevedo, Coelho Neto, Afonso Celso, Oliveira Lima, Medeiros e Albuquerque, Alberto de Oliveira Magalhães de Azeredo, Rodrigo Octavio, Graça Aranha, Clóvis Beviláqua, Silva Ramos, Domício da Gama, João Ribeiro, Mário de Alencar, Raul Pompéia, Capistrano de Abreu, Ferreira de Araújo, Ramiz Galvão, Antônio Sales e Virgílio Várzea, homens de letras; J. M. Caminhoá, Nina Rodrigues, Fausto Cardoso, Domingos Freire, Orville Derby, Emílio Goeldi, Alberto Löfgren, Luís Cruls, Carlos Euler, H. von Ihering, Álvaro de Oliveira, Licínio Cardoso, Said-Ali e Pandiá Calógeras, homens de ciência.
Dos do primeiro grupo, 21 falecidos e 13 vivos, pela ordem do elenco, entraram na composição da Academia Brasileira de Letras, fundada por entusiástica iniciativa de Lúcio de Mendonça, mas da qual José Veríssimo foi não só o grande fator indireto, pois ela emanou do ambiente carinhoso de sua revista atrativa, como também sustentáculo em horas difíceis, exercendo com austeridade a presidência, quando secretário-geral.
Não tivesse ele, por similitude moral, escolhido para patrono d sua cadeira “o escritor maranhense, que soube manter bem alta a dignidade das letras, sem jamais se haver servido delas para cavar, segundo a pífia fraseológica de hoje, posições e vantagens”.
João Francisco Lisboa “fotografara-se, conforme José Veríssimo, a quem venho repetindo, nesta frase, que não é apenas mais uma de tantas que mentidamente fazem literatos, mas a mesma expressão de seus atos: Não há poder ante o qual a verdade deva curvar-se.”
Não sei de maior afinidade eletiva no seio da Academia, cujos membros a reconheciam.
De temperamento impulsivo e espírito pouco gregário, em 1912, o novo Timon afastou-se da ilustre companhia, supondo-a acurvada a outro poder que não o da verdade literária. Mas foi uma paixão nobre, sem eiva de interesse pessoal, a que o cegou no dissídio.
Em 31 de dezembro de 1898, quando acabou a benemérita Revista Brasileira, José Veríssimo, contra o desejo expresso ao recriá-la, ainda se achava preso ao “grilhão burocrático”, do qual só quebrara um elo, por motivo de dignidade.
Reitor do externato do Ginásio Nacional, desde 14 de janeiro de 1892, deixou o cargo a 24 de agosto de 1898, mediante exoneração solicitada, visto não querer sujeitar-se a um capricho do chefe da nação, que reputava nefasto à ordem administrativa do estabelecimento.
Outrem paliaria o caso por um trimestre, aguardando a sucessão presidencial, como justa esperança no acerto do novo governo; mas não ele, intransigente sempre no que considerasse ponto de honra.
Num longo e vibrante ineditorial do grande órgão de imprensa do Rio, datado de 28 daquele mês, tornou pública a razão por que se demitira, forrando-se à subserviência.
De sua correção absoluta, no desempenho da reitoria, ainda outro dissabor lhe adveio.
Nunca lha perdoaram certos catedráticos visados em relatórios oficiais, embora discretamente, como neste passo do de 1897 ao ministro da Justiça e Negócios Interiores:
“Por causas múltiplas, que fora longo declarar, e, por força de minha posição oficial, eu não teria talvez tido a isenção para dizer, pode-se afirmar, sem erro, ou exagero sequer, que o ensino é aqui, de anos a esta parte, bastante fraco e não corresponde acaso, nem aos sacrifício que faz o país com a manutenção deste estabelecimento, nem ao juízo público. O atual regulamento é talvez parte neste estado de coisas, menos, entretanto, pelo seu espírito geral, pela sua organização das diversas disciplinas do curso, como pelas partes secundárias, que programas explicativos, minuciosos e circunstanciados deviam esclarecer e corrigir, e mais ainda por faltar ao corpo docente como que essa unidade de vistas, essa convergência de esforços e vontades para que uma obra de educação se transforme em uma obra de educação, pelo menos intelectual. Os exames, como aliás parece por toda a parte entre nós suceder, têm-se tornado fracos, sendo para notar que nos anos superiores, 5.o, 6.o e 7.o, não há reprovações, não obstante as notas do ano não abonarem o aproveitamento dos alunos desses anos.”
Mesquinha vingança explodiu em outubro de 1906, por ocasião do concurso para provimento da cadeira de História, no qual se inscrevera o ex-reitor.
Classificado em 1.o lugar pela mesa examinadora, composta de notabilidades, Srs. Capistrano de Abreu, João Ribeiro e Raja Gabaglia, baixou-o para o 5.o uma congregação movida por inimigo acérrimo.
E nessa congregação, de maioria acidental, tomaram parte uma lente que não assistira a todas as provas e um professor sem direito de voto.
O escândalo foi muito discutido, mas triunfou o ódio velho.
Deixando o Externato do Ginásio Nacional, José Veríssimo entregara-se ao magistério particular, pois não lhe bastavam ganhos menores para garantir a subsistência da família, já então numerosa.
A 18 de outubro de 1898 foi nomeado professor de Português do 2.o ano do curso diurno da Escola Normal, onde era regente da 2.a turma de Pedagogia desde 2 de julho de 1892. E transferido, em 19 de março de 1901, daquela cadeira para a de História Geral e da América, lecionou esta disciplina (tendo escrito e publicado um compêndio da mesma) até a véspera de sua morte.
Três vezes, 30 de março de 1909, 28 de fevereiro de 1910 e 15 de maio de 1912, colocaram-no na vice-diretoria do instituto, havendo na última exercido a diretoria, em razão de impedimento do Dr. Tomás Delfino.
No Pedagogium, criado pelo Governo Federal, dec. de 8 de novembro de 1890, professora José Veríssimo a Pedagogia, de 15 de março de 1895 a julho de 1897; sua lição inaugural, que ocupa 8 páginas da Revista Brasileira, fasc. de 1 de junho de 1895, termina assim:
“Todos os países cultos dão à Pedagogia no seu ensino oficial, ou particular, um digno lugar. Nos Estados Unidos como na Alemanha, ela não é só ensinada nos estabelecimentos destinados especialmente ao preparo profissional dos mestres, mas professada nas universidades. A França, que a tinha já nas suas escolas normais, criou há poucos anos cadeiras de Pedagogia nas suas faculdades de letras. E, se países tais – e de todos os países de alta cultura se poderia dizer a mesma coisa, – que possuem uma longa tradição pedagógica, que têm como que derramada em seu ambiente a preocupação da Educação e de seus métodos, julgam útil e proveitoso sistematizar nas escolas, nas faculdades e nas universidades a arte da Educação, parece-me que errados andamos tratando-a nós, que nada daquilo temos, com a desconsideração com que a tratamos.”
Entretanto, passado o estabelecimento ao governo municipal, este o suprimiu, como “inutilidade custosa”, dizendo o prefeito, no dec. de 6 de julho de 1899:
“...a razão determinativa do Pedagogium foi a de constituí-lo um centro popular de ensino, fim que não conseguiu, porquanto é notório que nas raras conferências que, a princípio, ali se realizaram, mesmo entre os professores poucos compareceram.”
A chalaça indígena, emanada talvez dos próprios professores relapsos, crismara-o em Petalogium.
Restabelecido, porém, a ele voltou em 1911 José Veríssimo para reger a cadeira de História da Instrução no Brasil (curso contratado).
Para isto concorreria um de seus trabalhos no Livro do Centenário, a que já me referi.
Especialista no assunto, de crédito firmado apenas chegara do Pará, pertenceu ao Conselho Superior do Ensino por nomeação de 14 de janeiro de 1892.
Foi designado em 20 de maio de 1907 membro do Conselho Superior de Instrução Pública, em 4 de junho de 1908, para nele ter exercício em 19 de outubro do mesmo ano, seu membro livre e em 28 de fevereiro de 1910, seu membro nato.
Representou a Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal no Congresso de Geografia, que em setembro de 1910 se reuniu em São Paulo e compareceu a uma sessão do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas.
No desempenho de tais cargos e mandatos, José Veríssimo prestou grandes serviços à causa do ensino, que mereciam largo e carinhoso estudo, qual o faria o venerando Barão Homem de Melo, também lustre do magistério público.
Colhendo o honrado paulista, antes que o houvesse substituído na Academia, a morte privou-vos de ouvir, em legítima consagração, o elogio de um mestre por outro.
A mim apenas é dado, como a todos que sabiam as virtudes do primeiro, imaginar quanto ele, pelo exemplo constante, ainda mais que pela palavra persuasiva, teria influído, junto à mocidade, para a regeneração dos costumes.
Todo seu esforço de educacionista, no livro e na cátedra, em mais de 30 anos, teve como juro de glória – conferirem-lhe o nome a um dos primeiros grupos escolares na capital do Pará e a uma escola primária na do Brasil.
É o prêmio que, nesta república, auferem coronéis da Guarda Nacional, pelo êxito de tranquibérnias eleitorais.
Prevendo-o talvez, queria ele “acabar como tipógrafo”, no sentido comum; mas acabou como tipógrafo, no que ao vocábulo emprestava o Guerra sapateiro, de burlesca memória.
E, acabando como principiara, isto é, como jornalista, acabou bem; não acabaria melhor na carreira diplomática, se houvesse aceitado o convite de Joaquim Nabuco, para secretariá-lo na missão da Guiana inglesa.
As duas últimas campanhas, que sustentou n’O Imparcial, contra caudilhos brasileiros e imperialistas alemães, foram enérgicas e brilhantes, dando a completa medida de seu sentimento patriótico e seu sentimento humanitário.
Adverso ao Partido Republicano Conservador, apenas viu o começo da respectiva derrocada; presidente de fato da Liga pró-Aliados, mal pôde entrever o fim da guerra; porque de tanto vibrar, pela liberdade e pela justiça, estalaram-se as cordas da vida, em 16 de fevereiro de 1916.
Dos anteriores trabalhos de José Veríssimo, no jornalismo do Rio, não inventariados ainda, constituem a parte efêmera – artigos ligeiros quando secretariava A Imprensa, do Sr. Rui Barbosa; “Casos da Semana”, crônicas às vezes humorísticas, sob o pseudônimo Cândido n’O Debate, de Severino Vieira; “Exterior”, seção de política alienígena com a assinatura V., em A Notícia, de Manuel da Rocha. E nela pode-se incluir “O Século XIX”, retrospecto do movimento universal, na Gazeta de Notícias, também do último, que cogitou de prolongar-lhe a existência, editando-o numa brochura (esgotada).
A parte duradoura está representada por sua colaboração, anos seguidos, no Jornal do Commercio, no Correio da Manhã, n’O Imparcial, na Kosmos, na Revista da Academia, na Revista Americana e outras, de que se formavam vários livros, impressos e a imprimir, todos de bom senso e bom gosto, qualidades intrínsecas do escritor.
As coletâneas dadas à estampa intitulam-se Estudos de Literatura Brasileira (6 vols.), Homens e Coisas Estrangeiras (3 vols.) e Que É Literatura? e outros escritos (1 vol.), participante da natureza dos precedentes.
Algumas dessas recopilações, de interesse contemporâneo, pela crítica de individualidades, fatos e doutrinas, em artigos desconcatenados, mas com espírito imparcial e progressivo, merecem justa apreciação de Lopes de Mendonça e Teixeira de Queiros, no parecer de 27 de outubro de 1910, para que o autor fosse admitido como sócio correspondente na Academia das Ciências de Lisboa.
Os inquéritos literários, escrupulosamente relatados, do primeiro grupo, bem como cinco tomos da mesma espécie, a publicar, são fontes para a história de nossa produção literária nos últimos decênios. Sem eles, difícil seria fazê-la completa, ou sequer aproximada, pela carência de resenhas bibliográficas, até as mais simples, no Brasil atual.
A História da Literatura Brasileira, de Bento Teixeira (1601) e Machado de Assis (1908), conjunto de ensaios elaborados em momentos diversos, ressente-se de certa diferença de tons, não de falta de unidade interna, além de pecar no desenho de uma das figuras centrais, cuja força de ideal nas letras pátrias tanto encarecera outrora o próprio José Veríssimo, parecendo que este não lhe examinou de novo as páginas sinceras e magníficas.
Como quer que seja, essa obra póstuma, segura nas linhas gerais, a espaços arquitetada admiravelmente, encerrando capítulos de alta valia, não correspondeu à expectativa de todos os leitores ou pelo menos não correspondeu de todo à expectativa de leitores críticos, aliás contra o ambicionado pelo autor, o qual a traçou com pureza de intuitos, fiado no juízo dos sobreviventes, extintas as paixões em torvelinho.
Disso dou testemunho documental, citando-lhe rápidas passagens de duas cartas, de 26 de agosto de 1912 e de 9 de abril de 1915:
“A respeito de meu artigo sobre Gonçalves de Magalhães, eu quisera que, em vez das amáveis referências que lhe fez, me dissesse qualquer defeito que lhe haja achado e que devia ter. Realmente, é parte de minha futura História da Literatura Brasileira, como suspeitou. Diga-me o que lhe pareceu o tom geral e se pensa corresponder a meu desejo de fazer obra legível, sem tom didático, ou dogmático, nem pretensões a filosofias.
A guerra (ao menos é o pretexto) veio dificultar o aparecimento de meu Basílio da Gama, quase na última impressão, e o de minha História da Literatura Brasileira, já pronta para o prelo. Assim, esta permanece na gaveta, com mais três, ou quatro volumes (que horror!) de ensaios e artigos. Sorri-me, aliás, a idéia de uma publicação póstuma... Talvez depois de morto me achem algum merecimento.”
O Basílio da Gama, vida e obra, entregue à Livraria Garnier, continua inédito. E é pena, porque vinha completar a coleção dos clássicos mineiros. Nele entram as poesias que José Veríssimo, sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aí descobrira em uma pasta de Joaquim Norberto, e as que Lúcio de Azevedo lhe remetera de Lisboa, onde as encontrara entre manuscritos da biblioteca pombalina. O estudo preambular, cuidadosamente feito, sobreleva ao de sua edição literária de Marília de Dirceu, de 1910, em que repetiu muitos erros do Sr. Teófilo Braga.
Até aqui me escusei, deliberadamente, não só de discutir teorias da crítica, mas também de comparar críticos, que pertenceram a este cenáculo egrégio por fugir a quanto parecesse indiscrição.
Sem quebra da conduta que me pré-tracei, devo, porém, salientar agora a lealdade de José Veríssimo, em relação aos oficiais do mesmo ofício.
E bastará o excerto de uma epístola, datada de 19 de junho de 1910.
“Li penhoradíssimo, o artigo do Sr. Antão de Morais, “Briga de Críticos”. Embora suspeita, a minha opinião, dita ao ouvido do amigo, é que é uma boa página humorística e cheia, de parte o que me é pessoal, de razão. Desagreadou-me, porém, a referência, talvez demasiado pesada, ao Araripe Júnior, conquanto ou sempre pensei que o seu escrito sobre Rui não lhe fazia, a ele, honra alguma, antes pelo contrário. Nem o Araripe, com todos os seus dotes intelectuais, que são notáveis, tem uma só das qualidades que um escrito como aquele requeria. Era bem o caso de repetir-lhe o conselho ne forcez jamais votre talent, máxime quando se já passou a idade em que ele pode ser ainda maleável. Aliás, não sabia que o Araripe Júnior tivesse tirado em livro esses artigos (referia-se aos Diálogos das Novas Grandezas do Brasil), que li no Jornal do Commercio e que desde logo me pareceram verdadeiramente ruins – como inspiração, como estilo e como língua, e de todo sem nenhuma das qualidades que deviam e, certamente, presumiam ter.
Mas como pessoal e literariamente estimo muito o Araripe, e acho que ele, sem embargo da sua má língua, é um dos nossos melhores literatos, escandalizou-me a referência do Sr. Antão de Morais, nos termos em que a fez.
Quanto a todo o bem que a sua generosidade lhe inspirou a meu respeito, não posso senão agradecer-lhe sinceramente penhorado. Não li as Zeverissimações; mas, pelo que tenho ouvido e lido de insuspeitos e capazes, o libelo me prejudicará menos do que ao autor, ao menos aos olhos da gente cujo conceito merece estimado. O dos meus desafetos, porque eu não acho que eles sejam uns gênios, esse não o levo em conta.”
Agredido iníquia e violentamente por Sílvio Romero, a quem tanto enaltecera e estimara, calava sua mágoa profunda, confiando talvez no arrependimento daquele.
E esse arrependimento – diga-se também por honra do arrependido – verificou-se completo.
Dias antes de expirar, o impetuoso lutador, que era um ótimo coração, confessou-o ao Sr. Alberto de Oliveira, declarando reputar “José Veríssimo um homem digno do maior respeito – pelo caráter, pelo talento, pelo estudo e pelo trabalho”.
Quando morreu o segundo, – circunstância comovedora! – achou-se-lhe na carteira uma nota recente, de seu próprio punho, para beneficiar gentil criatura, que o outro quisera com amor de pai.
José Veríssimo, embora severo até com os velhos escritores, nunca se mostrou infenso aos novos, se dotados de merecimento real, aos quais logo se afeiçoava, como apuro de extensa correspondência.
Em 19 de julho de 1909 escrevia-me:
“...muito obrigado por ter-me feito conhecer um escritor de tanto estudo e talento, de tanta capacidade, como o Sr. Raul Soares. A amostra que me fez o favor de enviar de seu futuro trabalho (3 folhas impressas) basta para dar dela a mais lisonjeira idéia, e fico realmente ansioso pela obra acabada. Já ontem conversei dele com o Alberto de Oliveira, que, além de ser o magnífico poeta que sabe, é dos nossos raros homens de letras que conhece a história das nossas e das portuguesas. Ele já havia lido o livro de Delfim Guimarães e discordado dele, de sorte que vai já ler as folhas d’O Poeta Crisfal, do Sr. Raul Soares, desejando conhecer breve o resto.”
E a 4 de agosto de 1909:
“Aceite meus agradecimentos por ter-me posto em comunicação com o Sr. Raul Soares, assim como pela nova remessa das últimas folhas d’O Poeta Crisfal.
Não acredite, porém, que eu seja sem defeitos e que aos meus inimigos e desafetos, e os tenho numerosos, falte de todo razão para malquerer-me. Confesso, entre outros, dois defeitos graves, uma absoluta incapacidade de mentir, de esconder, ou sequer disfarçar meu pensamento, e uma incapacidade igual para as fáceis camaradagens, fáceis e falsas, tão comuns na vida literária. Isto vai ao ponto de ter-me sempre impedido de tutear pessoa alguma, e haver adotado, espontânea e naturalmente, o hábito de nos meus escritos tratar os autores, ainda os mais íntimos e queridos amigos, pelo – Sr. A familiaridade em público, com quem quer que seja, sempre me pareceu de mau gosto e má educação.
A seu espírito atilado esta confidência, que, benévolo como é, há de perdoar-me, explicará o motivo das desafeições que carrego, aliás sem me dar grande coisa delas.”
O Alberto de Oliveira está entusiasmado, é o termo, pelo livro do nosso amigo.
E ainda em novembro do mesmo ano (s.d.):
“Que tristeza o que aconteceu ao nosso Raul Soares, e como me sinto em simpatia, em amizade de longos anos com ele neste cruel transe por que passa.
Felizmente que na sua desgraça ele teve aí amigos, verdadeiros amigos, como V., para o não desampararem, nela, acompanharem-no, confortarem-no. O meu pesar aumentou com as sentidas palavras do Correio de Campinas, certamente suas. Muito obrigado pela remessa do exemplar.
Abrace por mim ao Raul, repetindo-lhe o que aqui lhe digo sem chegar a exprimir toda a minha dor.”
Detestando as camaradagens fáceis e falsas, comuns na vida literária, como disse, prezava aos verdadeiros homens de letras, ainda, que distanciados na penumbra da província, e punha-os em contato com quantos soubessem prezá-los igualmente.
Assim foi com os Srs. Lúcio de Azevedo e Xavier Marques, com o saudoso Alfredo de Carvalho e muitos outros.
Certo estou de que, apenas iludido por sua generosidade, errou quanto um, único, para quem granjeou a vossa.
***
Eis chegado o instante difícil, em que o sentimento, por profundo em demasia, escapa à superfície visível da expressão.
Seriam vozes perdidas as de falar para dentro, sem esperança de um eco mais apreensível aos vossos ouvidos.
Que vos dirá meu coração agradecido? Onde achar o ritmo mais conveniente à vossa grandeza?
Fez Chateaubriand um epigrama de meter inveja a todas as antologias helênicas.
Dizia aquele gênio que uma vez a Glória, o Amor e a Amizade baixaram do Olimpo para peregrinar sobre a terra. Intentaram essas divindades traçar a história de tal jornada, notando os nomes dos que lhes dessem hospitalidade. Muniu-se a Glória de um pedaço de mármore, o Amor de tabuinhas enceradas e a Amizade de um livro em branco – variada ferramenta com que gravassem, pedaço de mármore, o Amor de tabuinhas enceradas e a Amizade noite, chegaram até mim, espantado da boa fortuna de receber tamanhos deuses sob meu teto. Na seguinte manhã, ao partirem, vi que a Glória não logrou insculpir meu nome no duro e refratário mármore; o Amor escreveu-o nas tabuinhas mas a cera fundiu apagando-o logo; somente a Amizade alcançou o milagre de fixá-lo perpetuamente no livro em branco.
O epigrama admirável dá a medida do nada que me consedera a Glória, do pouco que me concedeu o Amor e da eterna juventude com que aprouve à Amizade florir meus dias.
Hoje, pois, tenho por explicada minha ventura. Não necessita sábios intérpretes essa hospitalidade, límpida e amiga, que galardoou o forasteiro inútil.
Desde algum tempo a ciência (desta vez alheia à vaidade) achou que tudo se deve às forças mínimas e infinitesimais da natureza.
E eis que, enfim, a seu turno, agora a humanidade descobriu para si própria a mesma fórmula – adquirindo a consciência celular, reconhecendo no obreiro humilde o fundamento de suas fundações giganteias.
E eu sou como esse operário imbele, mas significativo, inútil e todavia indispensável, obscuro e apagado, mas tendo em qualquer maneira o mesmo lume de vida que enaltece e acende as constelações.
Agradeço-vos de toda a alma essa benção de amizade, que me parece tão grande como a da Glória e do amor, e certamente menos vã do que a deles.