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Discurso de recepção

Discurso de recepção por José Sarney

Nossas saudações de chegada, em nome de todos, seus confrades. Agora, na expressão do Marquês de Abrantes, quando presidia o Senado vitalício do Império, podemos dizer a Affonso Arinos de Mello Franco: “Estamos condenados a viver juntos a vida inteira.”

Afrânio Peixoto, com ironia, afirmava que a glória acadêmica era constituída de dois discursos: um, no dia festivo da posse, que o acadêmico chegado ouve, envaidecido, em noite de felicidade e glória; outro, na sucessão, quando não ouve mais, no caminho da morte, eternizado na consagração de uma vida que se encerrou, mas permanece em sua obra.

Mas a Academia é muito mais. É o orgulho de pertencer a uma Casa que só tem deveres com a Cultura, com os valores do espírito, onde são intrusas a Política, ideologias, confissões.

Em nossa pluralidade e diversidade, reside a unidade. Não somos herdeiros nem temos herdeiros, só o dever da continuidade.

Quando tomei posse nesta Casa, há 20 anos – hoje já sou o oitavo mais antigo acadêmico –, contei a história do meu avô Assuéro, nordestino, rígido e rude, da Paraíba, homem castigado pelas secas, que ao saber de minha eleição para a Academia, soltou foguetes de alegria e vivas de felicidade e, indagado, pela sua vizinha da razão da festança e comemoração, respondeu: “Meu neto José entrou para a Academia.” “E o que é Academia, seu Assuéro?”, retrucou dona Tudinha – assim se chamava a amiga, que morava ao lado –, e ele fechou: “Não sei, minha comadre, mas sei que é coisa grande. Muito grande.”

Sr. Acadêmico Affonso Arinos,

A Academia Brasileira de Letras, ao preencher suas vagas, não faz julgamento: promove uma escolha. Às vezes, pela própria necessidade de preencher seus claros, é apontada como autora de injustiças.

Na verdade temos os nossos rituais, que compõem nossa imagem, aos quais não podemos jamais abandonar e, ao contrário, é nosso dever perpetuar.

Esta foi a diretriz que nos deram os fundadores, nas palavras inaugurais de Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Manter a tradição e a continuidade de nossas obrigações e deveres. Como relembrava Olavo Bilac: “Opiniões políticas não importam à Academia, aqui, como no Paraíso e no Inferno, por diversos caminhos se pode chegar.”

Para ser acadêmico, a primeira das vontades é desejar sê-lo. Formalizar a aspiração. Submeter-se ao penoso e insubstituível corredor da eleição, que já foi mais rígido e solene. Isto nos livra de grandes lacunas e erros, pois os que não têm essa aspiração nos eximem da acusação e censura de injustos e discriminatórios.

Quanto gostaríamos de ter tido em nossos quadros Gilberto Freyre, Carlos Drummond de Andrade, Sergio Buarque de Holanda, Erico Verissimo; e a Academia Francesa, Molière, Descartes, Pascal, La Rochefoucauld, Saint-Simon, Rousseau. Todos ocupam, lá e cá, aquilo que se convencionou chamar a Cadeira 41, a que nunca está vazia, porque de muitos assentos, sempre ocupados e lembrados.

Nesta noite, cumprimos o mais solene momento de nossas liturgias: receber o novo acadêmico com as luzes e pompas do instante e dar-lhe os louros de sua investidura: a simbologia inexplicável que nos enche a vida: ser acadêmico. Não ser nada e ser tudo.

Manda, também, o nosso costume que o discurso de recepção traga plantadas, em meio aos elogios, algumas farpas, para que a vaidade, bendita qualidade intrínseca de nossas vocações, não seja elevada a extremos e não nos faça perder rumo e cabeça.

Fique tranquilo, essa praxe não terá acolhida. Quebrarei a norma. Trago só louvores à sua chegada, que engrandece nosso quadro, com o seu talento, a sua obra, a sua vida.

Senhores acadêmicos,

Vivemos, hoje, um momento de alegria que tem origem na tristeza e na lembrança de Antônio Houaiss, o sucedido, que foi nosso Presidente e devotado guardião da Língua Portuguesa, preocupação maior de sua obra. Dizia Afrânio Peixoto: “Nossa vida vem de nossos mortos.”

Afonso Arinos, filho, é o terceiro deste nome a pertencer à Academia Brasileira de Letras. Seu tio-avô, Afonso Arinos, foi o primeiro. Era o grande escritor de Pelo Sertão, livro que abriga uma das páginas mais belas da Literatura Brasileira, das mais gravadas, mais repetidas, mais recitadas, a “Ode ao Buriti Perdido”. Como recordo minha Profa. Maria Pinho, na escola da pequena vila de Pinheiro, cobrar a lição de decorá-la. E nós repetíamos: “ó epônimo dos campos” [...] “testemunha sobrevivente do drama da conquista”.

Escreveu o Mestre-de-Campo, Ouro! Ouro!, Lendas e Tradições Brasileiras. Tem lugar de honra na História da Literatura Brasileira pelo vigor de sua prosa, a temática da terra e dos costumes. Foi eleito para a Cadeira 40, sendo seu segundo ocupante.

Em 18 de setembro de 1903, ao recebê-lo, Olavo Bilac exaltou a importância da obra de Afonso Arinos para a nacionalidade: “O Brasil foi passado da periferia para o centro, a nacionalização do centro para a sua costa.” Afonso Arinos conseguia exprimir esse caminho recomposto da poderosa força do sertão como o mais autêntico chão da Literatura Brasileira.

A Cadeira 40, ocupada pelo primeiro Arinos, tem como patrono o Visconde do Rio Branco, escolha de Eduardo Prado para homenagear o Barão do Rio Branco, seu grande amigo. Escolhia o pai para lisonjear o filho. Essa cadeira traz, assim, a marca da Literatura e da Política; da interligação da figura do pai à do filho.

Sempre fui leitor compulsivo de velhos anais. Julgava o Visconde do Rio Branco maior do que o filho. Esse julgamento vinha do brilhantismo dos debates, da sua visão do país, de sua figura de estadista.

Depois, Presidente da República, fiz uma revisão dos meus conceitos. O Barão do Rio Branco foi o maior de todos os brasileiros, na visão estratégica do país. Ele resolveu os problemas do passado, assegurando a tranquilidade e a paz do futuro, que é hoje nosso presente, na consolidação das fronteiras, na definição e estratificação daquilo que é o Brasil que, sem ele, não existiria nos seus contornos e unidade atuais.

Caros confrades,

Depois do primeiro Arinos, veio o segundo, Afonso Arinos de Melo Franco, pai do novo acadêmico. Afonso!, o grande Afonso. Se tivermos de escolher os três maiores intelectuais brasileiros do século que finda, podemos vacilar em dois, mas certamente, nesta lista, um se chama Afonso. Escreveu mais de cem livros; percorreu, pela inteligência e cultura, todos os ramos do conhecimento. Não há tema de qualquer natureza – filosófico, histórico, jurídico, Ciências Políticas, Sociais, Exatas, literaturas e Arte – que não tenham sido tratados, e bem, por ele.

Escreveu biografias extraordinárias: Um Estadista da República – Afrânio de Melo Franco, seu pai; Rodrigues Alves, o avô de sua esposa Anah, extraordinária figura de mulher; os quatro volumes de memórias da Alma do Tempo, livros nos quais ele, ao falar sobre o passado, refletia sobre o presente e profetizava sobre o futuro.

Em Afonso Arinos, pai, o segundo, toda a sua obra foi de uma grandeza enriquecedora para a inteligência brasileira e para o país. Foi também o político combativo, presente, grande parlamentar que muitas vezes mudou a história do Brasil. Cidadão e patriota, vida edificante de amor à família, ao povo brasileiro, às minorias desprotegidas.

Presidente da República, quis prestar-lhe numa homenagem simbólica tudo que o Brasil lhe devia – mandei inscrever o seu nome no Livro do Tombo do Mérito Nacional, o verdadeiro Panteão da Pátria, e entreguei-lhe a condecoração maior, que poucos brasileiros possuem, e disse naquele momento:

“Afonso Arinos é a perpetuidade da inteligência brasileira, a grandeza do sábio, pilar da nacionalidade; a glória de sua vida é patrimônio do Brasil.”

Tenho, como relíquia, o seu livro Amor a Roma, do qual escrevi a contracapa, com esta dedicatória: “A José Sarney, cuja amizade é uma das alegrias da minha vida. Afonso Arinos.”

Fui seu amigo e companheiro de lutas. Contra Vargas e nas fileiras da UDN. Mas nunca me senti senão como um devoto. Ele foi sempre para mim santo de altar, e devo-lhe gratidão eterna. Se eu fiz a carreira política nacional que fiz, recebi o impulso inicial de Odylo Costa, filho, que foi membro desta Casa, secretário de Virgílio de Melo Franco, jornalista e poeta dos maiores do seu tempo.

Foi ele quem me levou a Afonso, e Afonso me acolheu na segunda metade dos anos 1950 – eu, aos 29 anos – e me fez vice-líder da Banda de Música da UDN – onde, menor de todos, tocava reco-reco – ao lado de Carlos Lacerda, Adauto Lúcio Cardoso, Aliomar Baleeiro, Prado Kelly, Oscar Dias Corrêa, Bilac Pinto, Rondon Pacheco, João Agripino, Herbert Lévy, sob a vigilância de Otávio Mangabeira, Eduardo Gomes, Juarez Távora, Odilon Braga, Milton Campos, Júlio de Mesquita Filho, Pedro Aleixo.

Em casa de Odylo e Nazareth, em Santa Teresa, conheci Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Carlos Castello Branco, Austregésilo de Athayde, Rachel de Queiroz, Gilberto Amado, Prudente de Moraes Neto, Peregrino Júnior, Jorge Amado, Pedro Nava, Rodrigo Mello Franco de Andrade, António Alçada Baptista, Carlos Chagas Filho, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Aurélio Buarque, Francisco de Assis Barbosa, José Guilherme Merquior, João Cabral, Osório Borba, Di Cavalcanti, José Rubem Fonseca, Álvaro Pacheco, e tantos grandes nomes, e compartilhei com eles o gosto da convivência.

Por que evocar estes tempos nesta solenidade, coisas que falam de mim? Porque Odylo dizia numa lição de carinho: “Todos somos linha auxiliar da família Melo Franco, que se interliga aos Nabucos numa junção histórica dos que construíram as instituições e participarão das grandes causas nacionais.” Ali, também encontrava os filhos de Joaquim Nabuco, o Monsenhor Nabuco, Carolina, Maurício, José e nosso carinho se derramava avassaladoramente por Maria do Carmo, extraordinária mulher que sem fazer literatura fazia vida literária. Maria do Carmo, que grande criatura humana!

Talvez por esses enredos do destino esteja eu aqui nesta noite, recebendo Affonso Arinos, o Terceiro, com a memória destes meandros das relações e da afeição às pessoas.

Não fiz referência a Josué Montello, porque estou tratando das conexões humanas que me levaram a Affonso Arinos. Josué, para mim, é outra vertente, patrimônio intocável do querer-bem, árvore da amizade em cuja sombra, ao longo da vida inteira, recebi carinho e orgulho de nossas origens, pela sua obra extraordinária, das maiores da Literatura Brasileira.

Senhor Acadêmico Affonso Arinos,

A Academia é feita de luzes e de sombras.

As luzes do presente, as sombras do passado. Nestas noites, as almas dos nossos mortos não buscam a penumbra, não se escondem na escuridão das coisas eternas. Elas aparecem e se mostram sem metafísica na evocação dos fundadores, dos que passaram por todas as cadeiras, dos patronos, dos que fizeram a história do pensamento da Literatura Brasileira.

Portanto, eu vejo sem retórica, na realidade dos olhos, Afonso Arinos, seu pai, eternizado na sua glória, cumprindo a realização de um sonho que também era seu. A consagração de uma extraordinária obra sua, que é o filho, a quem legou o nome, a formação cultural, política e profissional.

Mas as noites da Academia não são frequentadas somente pelos autores. Elas são invadidas pelos personagens que todos criaram. É Vitorino Papa- Rabo, de José Lins, que Afonso Arinos, pai, no dia de sua posse, trouxe para nele fazer o elogio do grande romancista de Fogo Morto, a quem sucedia.

A mesma coisa fez Olavo Bilac quando recebeu o primeiro Arinos. Trouxe o Cuiabano, Manuel Alves, de Fatos da Alma Sertaneja, “arrieiro atrevido, farto de afrontar homens e feras, afrontando as almas penadas de uma tapera mal-assombrada”. Fez sentar no auditório o campeiro Manuel Lúcio, “moço bravo e apaixonado, mal ferido do amor ingrato pela filha de um guarda-mor”. Todos aqui estiveram em 1903, quando o primeiro Arinos tornou-se acadêmico.

Senhores acadêmicos,

Affonso Arinos de Mello Franco é o terceiro a chegar a esta Casa. Traz a força de suas origens, de seus livros e de seus personagens que, na beleza de sua prosa evocativa, são pessoas de carne e osso que ele revive na criação da pena de escritor: seus antepassados, revoltas, gestos de bravura e gosto das coisas do espírito. Falar deles é acrescentar que o novo acadêmico representa esta linha que tanto tem engrandecido o Brasil, nas Letras e na Política: a memorialística.

Dizia Plutarco: “causa fuit, pater his.” Isto não diminui, aumenta a dimensão do homenageado. Não é com outra invocação, senão a de exaltar Affonso Arinos, que lembro Afonso Arinos, o tio-avô e o pai.

A Cadeira em que ele está tomando posse tem Hipólito José da Costa como patrono, o grande jornalista, prócer da campanha da Independência; traz como fundador Sílvio Romero, pensador, ensaísta, crítico, o primeiro historiador da Literatura Brasileira; e seus sucessores: Osório Duque-Estrada, poeta, professor emérito do Colégio Pedro II; Edgar Roquette-Pinto, antropólogo, desbravador do alto sertão do Mato Grosso com Rondon, pedagogo, pioneiro com a radiodifusão educativa; Álvaro Lins, crítico literário arguto, jornalista polêmico, embaixador em Portugal, biógrafo literário de Eça de Queirós; e Antônio Houaiss, enciclopedista, diplomata, nomes que ele tão bem retratou em seu primoroso discurso.

Continuar a linha desse clã é seu encargo.

É ele uma personalidade que se encaixa dentro das melhores e maiores tradições da Academia. Podemos analisar sua vida e obra por três grandes vertentes: o homem de estado, o político, o escritor.

Temos, no homem de estado, o servidor público, o diplomata, o embaixador, o negociador e operador de relações internacionais, marcando sua carreira não pela burocracia, a consumir-se no cotidiano de suas tarefas, mas com espírito público, com posições nítidas, defendendo políticas públicas, colocando ideias claras, voltadas sempre pela compreensão de que os interesses do Brasil não se esgotam nos assuntos específicos do país, mas na visão de sua inserção no mundo, no destino dos homens, na revisão das injustiças, a começar pelas desigualdades sociais.

Affonso Arinos diz no seu livro de memórias dos quarenta anos, Primo Canto: “É difícil que alguém, mais do que eu, possa dizer-se – e sentir-se – criado no colo da política, interna e internacional.”

Sua vida está marcada por esta poderosa gravitação de um passado familiar, forte nas duas linhas. Pelo lado materno, seus avós casaram-se na capela do Palácio do Catete (que ele lembra), “entre brocados vermelhos”, a avó filha do Presidente Rodrigues Alves. O mesmo Palácio do Catete onde o neto viria a ser auxiliar direto do Presidente Café Filho, quando teve de acompanhar os episódios dramáticos do 11 de novembro de 1955 e sentir que o Brasil mudara pouco nos seus costumes políticos do tempo da invasão do Catete, em 14 de novembro de 1907, para derrubar o Presidente Rodrigues Alves, na revolta da vacina, em que até Rui Barbosa, presidente da Academia por dez anos, essa figura solar do pensamento brasileiro, clamava cheio de indignação:

Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura, expondo-se voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar com a introdução, no meu sangue, de um vírus em cuja influência existem os mais fundados receios de que seja condutor da moléstia, ou da morte. O Estado mata, em nome da lei, os grandes criminosos. Mas não pode, em nome da saúde pública, impor o suicídio aos inocentes... Justa é a resistência popular ... além do apelo às armas.

Rui, contra a vacina.

Mas, se a política estava no seu sangue – oito Melo Franco parlamentares! –, a Literatura ficava no mesmo nível. Seu pai dizia:

De velhos sangues provinciais herdei o duplo destino da Política e das Letras. Não o escolhi, senão o encontrei aberto diante de mim [...] Nas salas do avô ou do pai, discutia-se Política. Nos quartos dos irmãos era Literatura que se debatia, entre efígies de Verlaine, Voltaire, Beethoven, Eça.

Senhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores,

Affonso Arinos de Mello Franco não fugiu a este destino. E o confirmou. Como servidor público, um simples funcionário do Estado, como se intitulava na diplomacia, compareceu desde cedo às grandes conferências internacionais convocadas a regular as normas de convivência internacional, em que se debatiam as teses fundamentais do direito internacional, soberania, autodeterminação, não intervenção; na agenda da modernidade, energia nuclear, direitos do mar, apartheid, sistema econômico e financeiro mundial, patrimônio cultural da humanidade em caso de conflito armado, justiça social.

Em todos esses fóruns, Affonso Arinos participava com o peso de grande bagagem intelectual, de sua formação e das ideias do estadista, numa linha de coerência com o seu passado e sua visão do mundo. É assim que se manifesta contra a subordinação das posições brasileiras à consulta à Embaixada Americana:

Quando entrei para o Itamaraty, era um comum embaixador do Brasil na ONU a inteirar-se sobre como deveria proceder consultando a missão americana [...]. Os nossos representantes recebiam [...] instruções no sentido de votar com a Delegação dos Estados Unidos [...]. Eu nunca fora antiamericano [...]. Mas sempre achei que o Brasil, fadado a ser grande potência mundial, não poderia atrelar-se aodestino de qualquer outra nação.

Defende posição independente na política externa e apoia a inclusão de Cuba no sistema pan-americano. Recusa apoiar o acordo nuclear que vedava ao Brasil dedicar-se à pesquisa atômica. Coerente com a linha histórica da família, condena a discriminação racial e enfaticamente defende posições fortes contra o regime do apartheid da África do Sul.

Como diplomata, percorre todos os postos da carreira e chega a seu ponto mais alto, embaixador, na Bolívia, na Venezuela, no Vaticano e na Holanda. Afonso Celso, ao receber Otávio Mangabeira, em 1934, falando das relações da Academia com a diplomacia, diz: “Viestes desse viveiro de estadistas que é o Ministério das Relações Exteriores, antigo dos Negócios Estrangeiros.” E acrescenta:

Haverdes vindo de lá, juntais a vantagem de possuir um nome de família caro às Letras, circunstância não despicienda, pois na Academia Francesa, modelo da nossa, sempre houve uma bancada que atende à linhagem do candidato.

Em Affonso Arinos de Mello Franco o diplomata, o político e o escritor fundem-se numa unidade que, não dispensando o extraordinário berço, não o faz um herdeiro, mas um continuador.

Em toda sua carreira, tem sempre essa preocupação de servir ao Brasil, pugnando por uma linha nacionalista, de independência, e atento na defesa dos interesses nacionais, não um alinhamento automático, mas uma aliança madura e altiva, sem submissões. Aliás, nessa direção, segue os passos do pai e do bisavô Rodrigues Alves, que, na crise do café, os Estados Unidos a confiscarem o produto brasileiro em Nova York, escreveu a Lauro Müller:

Desde que o governo americano fez-nos a afronta de um processo violento e injusto, para servir aos interesses comerciais do seu país [...] os incidentes ocorridos são de tal ordem, que pergunto às vezes a mim mesmo se teríamos acertado com a política que andamos desenvolvendo nos Estados Unidos [...] não se deve confiar demais no sentimentalismo dos nossos amigos, quando se torna intensa a pressão dos grandes interesses orçamentários e comerciais.

Affonso Arinos combate a participação do Brasil no episódio da República Dominicana, porque feríamos o princípio da “não-interferência em assuntos internos de outros países”.

Como embaixador na Bolívia, esse país sofrido, de instituições instáveis, Affonso Arinos realizou-se, pessoalmente, na carreira. De sua atividade intensa, resultou um livro importante para o continente, Tempestade no Altiplano.

Na missão da Bolívia, pôde ver em toda sua dramaticidade o drama latino-americano, o subdesenvolvimento político e a fragilidade dos ideais democráticos diante de uma sociedade dividida pela pobreza, pelo ódio, pela ambição, pelas lutas castrenses, pela ausência da mínima estrutura política para a existência da liberdade e da democracia, pelos ganhos ilícitos, a corrupção generalizada. Tudo sintetiza nestas palavras: “Testemunhei o pacto tácito de assistência mútua entre duas sociedades de celerados, a dos traficantes de cocaína e a dos torturadores e terroristas.”

Affonso Arinos rompeu as camisas-de-força do formalismo das instruções ministeriais e limites da não-ingerência, para cumprir a fidelidade dos seus ideais cristãos e de humanidade.

Em La Paz, foi um abnegado defensor dos direitos humanos. Não na retórica e na teoria, mas na proteção às pessoas: concede asilo, negocia, protege, pondera e, em meio a explosões e revoltas, revela-se grande profissional. Assiste a quase uma dezena de quarteladas e observa o Palácio Queimado, sede da Presidência da República, cumprindo a sua delicada missão de embaixador.

Li, há alguns anos, um livro sobre este palácio. É ele imagem simbólica da história boliviana através das lutas para ocupá-lo. Os dramas, os assassinatos e as batalhas ali travadas pelo poder. Mais de cem golpes. A tragédia do Presidente Blanco Soto, que era assassinado no dia da posse e lançado à rua. Melgarejo, Agustin Morales, Federico Lafaye e tantos nomes da trágica história boliviana.

Senhores acadêmicos,

Falemos do político.

Desde os quatorze anos, entra na atividade partidária. É fundador da juventude udenista, partido criado na clandestinidade pelo seu tio Virgílio e cujo nome foi dado pelo seu pai, Afonso.

Ei-lo testemunha das conspirações, das prisões familiares, das perseguições do Estado Novo.

Na Política, destaca-se o parlamentar. O legislador constitucional da Guanabara e depois o deputado federal. Não se comporta, nessa atividade, na linha serena dos Melos de Paracatu. É mais Alvim.

Odylo Costa, filho, em carta a Carlos Castello Branco, diz os motivos por que vota nele: “Qualidades permanentes, dons literários, vocação política, criatura humana, vida familiar e espiritual exemplares”, para concluir:

um temperamento radical e generoso que nos lembra o nosso Virgílio de Melo Franco: é que este não tinha a paciência de Afonso, pai, mas o temperamento que o tempo não dissolve, dos ancestrais de Paracatu, daqueles que não levam ofensas para guardar.

Affonso Arinos teve logo o contraponto da prova de fogo. Tinha estreitas ligações com Carlos Lacerda, estreitas; mas este era daqueles cuja força extraordinária do talento político se alimentava de lutas e mesmo os companheiros aqueciam-se nele pelo calor, mas não podiam encostar, com medo de se queimarem.

Nosso acadêmico entra em confronto com Lacerda, separam-se, a luta verbal é das mais duras, e Affonso, sem espaço, abandona a UDN; vai para o PDC. Chega à Câmara Federal e, lá, revela-se o deputado combativo, independente. Vota contra a Revolução de 1964, não apoia a intervenção em Goiás e, no seu novo partido, enfrenta Juarez Távora.

De repente, numa dessas crises de escolha, abandona a Política e volta à Diplomacia. Dali, somente se afasta para vir, em devoção comovente, comandar a candidatura do pai, cuja presença eu considerava fundamental na Assembleia Nacional Constituinte. E foi.

A coisa melhor que tem na Constituição de 1988 é o capítulo dos Direitos Individuais, extraordinário texto político, dos melhores em todo o mundo. Ali está a mão, ou melhor, estão o talento e a cultura de Affonso Arinos de Mello Franco.

Vejamos o escritor. A obra de Affonso Arinos revela o escritor primoroso que se concentra em densos livros. Neles, o estilo foge às tentações do barroco, não permite invasão de adjetivos e afasta por métodos policiais os advérbios. Fica no substancial.

Quero destacar dois pontos altos: o memorialista e o ensaísta. A força inaugural de tudo que escreve é o desejo de fixar o passado, trabalhando e comparando com o presente e deixando meditações para o futuro. Todo memorialista tem que ter o gosto de eternizar fatos, de fixá-los, como se isso fosse a perpetuidade de sentimentos, emoções, ideias. Seu instrumento é a palavra. A palavra escrita, laboriosamente construída.

Um memorialista é um pintor que tem na palavra o pincel e o lápis. Desenha, projeta espaços, objetos, cores. No gênero, seus três livros, Primo Canto, Tempestade no Altiplano e Atrás do Espelho são Pontos Altos.

Depois, na mesma linha, surgem Três Faces da Liberdade e Ribeiro Couto e Afonso Arinos. Nada de exageros, nem de se perder nas minúcias nem na extensão das formas. Fixa o essencial e nestes textos torna-se um retratista exímio, com traços firmes e simples, como se fossem desenhos de Matisse, suaves, de curvas definidas, mas que não se concluem, apenas dão a visão da forma que deve ser completada pelos olhos de quem vê. No caso, de quem lê.

Nesse aspecto, lembra-nos os famosos retratos de Nabuco, quando, em seu Um Estadista do Império, fixou mais com palavras do que com tintas as figuras marcantes da época. São retratos que, em grande poder de síntese, reconstroem a forma física e invadem a alma e a psicologia das pessoas.

Vamos recolher alguns desses momentos.

Comecemos pela figura de Churchill. Em companhia de Moniz de Aragão, seu tio, embaixador em Londres, visita a Câmara dos Comuns, na abertura do Parlamento. Em lugar privilegiado, vê o grande homem do século, amargurado com a derrota para Clement Atlee, mas líder da oposição trabalhista, fazendo o discurso de censura!

Como o descreve:

O velho leão rugia... Depois acomodou-se pesadamente num espaço onde caberiam dois deputados. Olhava fixo, para frente e para baixo, como um touro cansado. À impressão de combatividade sucedera outra de quase abulia.

Sobre Juarez Távora:

Vinha de muito longe [...] a legenda desse homem alto e altivo, com um ar de Gengis Khan caboclo, explosivo e organizado, aventuroso e trabalhador, indisciplinado e disciplinador, conspirador e estudioso infatigável, desdenhoso, incorruptível, ambicioso. [...] Presença carismática, geradora de popularidade.

Antônio Houaiss:

[...] carregador de pedras com que ergueu pirâmides no deserto da Cultura Nacional...
[...] A delicadeza no trato, a invariável cortesia, a atenção afetuosa, o interesse solidário pelos problemas e aspirações de amigos e do próximo, a amável boêmia...

Sobre o tio, Virgílio de Melo Franco:

O menino Virgílio, cavalheiresco e irreprimível. Adolescente, apresentado a Pinheiro Machado, ao dizer-lhe que precisava estudar se quisesse ser alguém, retrucou ao caudilho: conhecia exemplos eloquentes em contrário. [...]

Jovem romântico e jogador. Bateu-se em duelo a tiros, às margens do Lago Leman. [...]

À beira do fogo, os ombros do tio Virgílio me chamaram atenção – estreitos e caídos [...] o homem de extrema bravura, combatividade e autoridade, dava a impressão de frágil força física. [...] Ficava horas a escutá-lo narrando caçadas de onça nas matas do rio Doce ou aventuras e episódios da Revolução de 1930.

E a descrição de sua morte, num texto conciso, despojado, sem emoção e de grande beleza trágica:

Acendeu a luz, apanhou o revólver na mesa de cabeceira e abriu a porta. Era o antigo criado... O bandido, na escada em curva que subia até o patamar para onde se abria o quarto, a silhueta contra o fundo luminoso, disparou com a espingarda de caça de tio Virgílio. Este cambaleou para frente e, quase às cegas, pegou o seu revólver, apoiando-se no corrimão, apertou repetidas vezes o gatilho... Uma delas perfurou o assaltante no ombro, matando-o... As outras se perderam pelas paredes. Virgílio foi sentando lentamente, apoiado por tia Dulce, e ela apoiou-lhe a cabeça no colo: “Você está ferido, Virgílio?” “Estou, minha filha...” Morreu varado por dezenas de chumbos de caça.

Carlos Lacerda:

O vigor de sua personalidade, a inteligência poderosa, a resposta pronta, imaginosa e contundente, a audácia na ação, a atenção que dava aos moços. [...] Ninguém teve tanta e tão continuada influência no destino da vida brasileira.

(Abro aqui um espaço pessoal para homenagear na saudade a figura extraordinária de Carlos Lacerda.)

Os livros de Affonso Arinos são essencialmente memórias. O instrumento que usa para exercer o ofício de escritor é a evocação. Mas não é só o relato frio dos fatos, o depoimento, a fixação de pessoas. Expõe ideias, comenta os acontecimentos, promove e desperta reflexões e faz Crítica Literária.

Memórias têm relação íntima com a História. Desde a Antiguidade, as primeiras e mais importantes raízes da Literatura Clássica encontram-se em memórias: lembremos Xenofonte e César.

No caminho da humanidade, grandes marcas estão em memórias. Épocas, séculos, dias, acontecimentos, todos guardados em memórias. Richelieu, Mirabeau, Lafayette e tantos outros fizeram Literatura em Memórias.

Um dos maiores monumentos da inteligência humana é o Mémoire d’Autre-Tombe, de Chateaubriand, cujas comoventes páginas sobre a infância raramente serão alcançadas na Literatura Universal.

Vi o mar cercar, nas altas marés de Saint-Malo, o túmulo de Chateaubriand, e o que me vinha à mente não era o mar nem ele, eram as suas extraordinárias memórias, gênero literário difícil e eterno, que navega entre o sonho, a história e o difuso lembrar.

Sobre a obra de Affonso Arinos, recolho o abono de Otto Lara Resende, Antônio Carlos Villaça e Carlos Castello Branco. Otto louva-lhe o estilo e a precisão. Vilaça diz textualmente:

Política e Literatura estão harmoniosamente unidas no destino de Afonso Arinos. Diplomacia, Política e Letras lhe compuseram a vida... Desde o livro de estreia, Primo Canto, Afonso Arinos, filho, ia do memorialismo à pura reflexão política.

E Carlos Castello Branco:

Afonso Arinos, pai, e Afonso Arinos, filho, têm temperamentos tão distintos que as obras respectivas se afirmam, normalmente autônomas. [...] Um depoimento pessoal rigorosamente honesto de um homem público que exerce suas missões sempre em estado de consciência.

Mas sua obra, caro confrade, não se esgota aí, embora sua fascinação seja a memorialística.

Eu tenho, no mesmo nível, a avaliação dos seus ensaios históricos, sínteses primorosas de quem conhece a História do Brasil, a formação nacional. São trabalhos de substância. Destaco os ensaios sobre Juarez Távora, Rodrigo Mello Franco de Andrade, A política externa do Chanceler Afonso Arinos, Houaiss nos 80 anos, Virgílio de Melo Franco, Rodrigues Alves, e o primoroso estudo sobre o seu pai, Afonso Arinos, o parlamentar, obra de pesquisa e de estudo, na qual analisa a faceta mais visível do grande orador parlamentar, trabalho que tece com meticulosa isenção, selecionando, num universo incomensurável, Cem Discursos. Não são somente discursos, são retalhos da História do Brasil, que Afonso Arinos, filho, pesquisa, redescobre e revela com grande talento.

Acadêmico Affonso Arinos,

Mudo o tratamento. Saio da terceira pessoa e utilizo a segunda. Vós estais aqui acompanhado dos vossos livros, da vossa vida, da vossa obra, dos filhos e de Bia, aquela que a lenda conta ter infligido uma definitiva derrota a Marta Rocha.

Por maior que seja a glória do vosso pai, não é ela que vos traz à Academia. Ele participa desta noite pelo sangue, pelo amor que vos devotava, pelo orgulho do filho. Mas, também, não podemos esquecê-lo. Ele tem que estar conosco, para vos receber, vaidoso e feliz.

Vejo Affonso, chamo Afonso, convoco Afonso nesta noite que seria a maior alegria de sua vida, para estar aqui, ao meu lado.

Mas não é a ele que invoco para terminar esta saudação de chegada.

São duas figuras femininas: uma, Anah, exemplar apascentadora de vocações. A do marido, pela devoção; a do filho, pelo amor.

A outra mulher, aquela que é tão cara ao Brasil e aos troncos históricos das famílias que construíram a glória e o exemplo dessas montanhas: Minas Gerais. Quando Minas se enfraquece, o Brasil definha. Minas é a união, é a liga inquebrantável que une as fissuras dos Brasis: o do Norte, sertão agreste, e o do Sul. Minas não tem mar, porque o mar é salgado. Minas é doce. Suas águas são as águas da unidade nacional.

Assim vos recebo, trazido por Minas e Anah, e tendo ao meu lado, na soleira da chegada, com a força totêmica das montanhas mineiras, Afonso Arinos, seu pai, mas vestido sem fardão, com a roupa dos Melos, revólver na cinta e de chapéu caído, para dizer que eles são o princípio, no sentimento do amor a Minas, com as marcas da lendária Paracatu.

Bem-vindo!

Muito obrigado.

26 de novembro de 1999