Filho e sobrinho-neto de acadêmicos que estiveram entre os escritores mais acatados do nosso País e cujo nome me honra haver herdado, devo confessar-vos que só há pouco a idéia de ingressar nesta Academia chegou à superfície das minhas aspirações conscientes. Digo-o desprevenidamente, com sincera modéstia. Primeiro, porque sempre julguei existirem, entre nós, outros mais merecedores da alta distinção. Depois, por não haver sido homem de letras com intenção deliberada, porém diplomata e político que sentiu o impulso de fixar, em livros, revistas e jornais, a experiência vária, testemunhada e vivida. Mas não tenho palavras para agradecer o apoio inestimável de todos os amigos que me estimularam e sustentaram a candidatura, pois é um raro privilégio ser membro da Academia Brasileira de Letras.
Desde os albores da minha formação, o quíntuplo destino familiar da diplomacia, da política, das letras, da história e do direito se me apresentou como horizonte incontornável, do qual nunca pretendi desviar-me, mas que, ao contrário, sempre me atraiu. Nossa casa, que era a casa do líder da oposição, foi meta habitual de reuniões políticas – inclusive conspiratórias – durante a ditadura do Estado Novo. Ali, só não se falava em dinheiro e negócios. Por outro lado, da infância à juventude, visitavam-nos com maior ou menor assiduidade, conforme residissem ou não no Rio, escritores nacionais e estrangeiros da mais alta estirpe. Georges Bernanos, por exemplo – contou-me Albert Béguin, seu biógrafo –, morreu sem saber que a fazendola em Cruz das Almas, subúrbio de Barbacena, de onde ele se deslocava para a granja de Virgílio de Melo Franco sempre que lá nos encontrávamos em férias, custara-lhe a terça parte do preço real, inteirado por Virgílio e mais dois amigos. Stefan Zweig escreveu a Afonso Arinos no dia em que se suicidou, deixando-lhe um rascunho, manuscrito e inacabado, de ensaio sobre Montaigne. Entre os mais próximos, estavam Carolina Nabuco, amável contraparente; minha prima Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarqüínio de Sousa, tão afetuosos, unidos pela vida, e que a morte não separou; Sérgio Buarque de Holanda, casado com outra prima, que me acolhia em São Paulo, disfarçando a erudição profunda com a familiaridade mais espontânea; Alceu Amoroso Lima; Abgar Renault, cuja casa freqüentei desde menino; Aníbal Machado, abrindo o lar hospitaleiro aos amigos de todas as idades; Pedro Nava, tratado como um tio adotivo, cúmplice e confidente; Manuel Bandeira, autointitulado “poeta oficial da família”; Gastão Cruls e Carlos Drummond de Andrade. Quando vinham de São Paulo, do Recife e de Porto Alegre, Mário e Oswald de Andrade, Gilberto Freyre e Érico Veríssimo apareciam-nos em casa. De José Lins do Rego fui, na adolescência, como que um filho futebolístico acompanhando-o, com freqüência, aos jogos do nosso clube. No Itamarati, desfrutei da companhia constante de Guimarães Rosa, que, ao almoçarmos juntos no famigerado Bife de Zinco, punha-me a par do andamento do seu romance e de seus contos; de Vinícius de Morais, a cujo lado me sentava na Comissão de Organismos Internacionais, donde saíamos para a boêmia das noites do Rio; de João Cabral de Melo Neto, divisor de águas na poesia brasileira, que viajou comigo para o Recife, hospedou-me na casa paterna e me desvendou o poema-diamante, liberto de qualquer ganga impura, filho da injustiça e da miséria, irmão da morte e pai de vidas severinas, agudo como a faca e áspero como a pedra, objetos da sua predileção; dos poetas Ribeiro Couto – quase sempre próximo de Afonso Arinos no tempo e distante no espaço, o que originou fecunda correspondência entre ambos – e Raul Bopp, meu chefe na Embaixada em Viena; do generoso e combativo José Guilherme Merquior (a propósito de quem Raymond Aron perguntou, um dia, a Afonso Arinos: “Qui est ce garçon qui a tout lu?”) lâmpada fulgurante, gastando cedo a resistência que tinha. Na mocidade, ao servir em Roma, freqüentei assiduamente o ilustre Magalhães de Azeredo – embaixador aposentado, que ali vivia e era o último fundador remanescente desta Casa (“fundador fundado”, acentuava, modesto, aludindo ao fato de ser um dos dez escolhidos pelos 30 que tomaram a iniciativa de criar a Academia, para completar 40 membros efetivos). Lá me tornei, também, muito próximo de Murilo Mendes, professor na Universidade local. Relembro, ainda, os saudosos acadêmicos Odilo Costa, filho, Carlos Castelo Branco e Oto Lara Resende, amigos tão queridos e profissionais de imprensa do mais alto nível, com dois dos quais pude colaborar quando dirigiam redações de importantes periódicos. Sem esquecer Rubem Braga, que Afonso Arinos enviou ao Marrocos como embaixador.
Assim, habituara-me, desde cedo, não apenas ao convívio de políticos e diplomatas, mas também ao de escritores e jornalistas eminentes. Mas só decidi pleitear o ingresso neste sodalício insigne quando da morte daquele formidável trabalhador, do funcionário exemplar, do professor admirável que foi Antônio Houaiss, a quem me ligava uma amizade de 45 anos. Antes, porém, de falar sobre ele, devo relembrar os que o antecederam. E aí veremos que, do patrono ao meu predecessor imediato, foram, sem exceção, homens públicos, devotados ao bem comum, propugnadores e defensores da civilização brasileira, da nossa língua e literatura. No dizer de Houaiss, “todos se puseram a serviço da política de seu país; todos viram na cultura nacional a sua razão maior de ser; todos agiram através de uma visão crítica do nosso meio; todos advogaram uma causa em que creram sem subterfúgios”.
Em Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, nascido na Colônia do Sacramento, que morou e morreu na Inglaterra, o patrocínio intransigente do que julgava melhor convir à sua pátria constituiu a tônica da própria existência. No periódico mensal que fundara, o Correio Braziliense, publicado, de 1808 a 1823, em Londres – para onde fugira, acusado de pertencer à maçonaria, após ter-se evadido dos cárceres da Inquisição em Portugal –, ele revelou, conforme Oliveira Lima, “Uma inteligência ilustrada e perfeitamente convencida das suas preferências reformadoras”. “As notícias do Correio Braziliense – notou Varnhagen – tendiam sempre a um fim certo; giravam todas na órbita que o ilustrado redator havia assinado ao Brasil.” Para o Barão Homem de Melo, “pode-se dizer, com segurança, que a educação política da geração que, no Brasil, preparou e realizou a independência foi feita pelo Correio Braziliense”. E Varnhagen ajuntaria: “Não cremos que nenhum estadista concorresse mais para preparar a formação, no Brasil, de um império constitucional do que o ilustre redator do Correio Braziliense.” Lutou contra o absolutismo, em prol das instituições civis, encarnadas na monarquia constitucional; condenou a censura intelectual, a escravidão, a intolerância religiosa; defendeu a instituição do tribunal do júri, a liberdade de imprensa, a organização financeira; estimulou a imigração; bateu-se pelo desenvolvimento material, ao apoiar a abertura de estradas e a industrialização. Queria o progresso cultural do País, a fundação de uma universidade. Precursor de Brasília, propôs a transferência da capital para o interior e sua localização “nas cabeceiras do famoso rio São Francisco”. Morava em Londres, era protegido do Duque de Sussex, irmão do Rei Jorge IV, mas nem por isso sobrepunha os interesses britânicos aos nacionais, apesar de haver morrido como cidadão inglês naturalizado para escapar à repressão lusitana. Sua análise do Tratado de Comércio de 1810 resultou em denúncia implacável contra a subserviência luso-brasileira à diplomacia inglesa. Quando faleceu, já se encontrava a serviço do nosso governo, como auxiliar de legação e encarregado de negócios. José Bonifácio chegou a escrever-lhe, em 1823, informando que o Imperador “não duvidará conceder-lhe o Consulado Geral Brasiliense em Londres, o que fica dependendo da sua resposta”. A resposta seria positiva, mas condicional, “até que Sua Majestade Imperial se sirva empregar-me diplomaticamente”. Porém, a morte repentina cortou a nova carreira que se anunciava para Hipólito da Costa.
Como fundador, o sergipano Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero não desmereceu, na veia polêmica, o patrono que elegera. Adepto da Escola do Recife, tomou posição contra o Romantismo, denominando a própria postura “crítico-filosófica”. Com o “critério nacionalístico” que José Veríssimo atribuiu-lhe à crítica, freqüentemente agressiva e injusta, sua análise sociológica de autores e obras, eivada de preconceitos, aliás próprios da época, que ele julgava científicos, ressaltou as influências étnicas como base para o estudo dos escritores e das obras literárias, distinguindo entre raças “superiores” e “inferiores”, e, contraditoriamente, alertando para o “perigo alemão” no sul do Brasil. Denunciava o “socialismo bastardo”, identificado com a educação e a industrialização. Contudo, o autor da História da literatura brasileira, dos Estudos sobre a poesia popular no Brasil, da Etnografia brasileira, dos Ensaios de sociologia e literatura e de outras obras fixou, através de trabalhos eruditos e de grande fôlego, marcos de preservação e defesa da cultura nacional. Ao apontar a História da literatura brasileira como o zênite da obra de Sílvio Romero, Laudelino Freire atribuiu muito mais valor e importância ao historiador do que ao crítico. Wilson Martins qualificou-a como “o primeiro documento importante do nacionalismo como critério de grandeza em criação literária”. E Gilberto Amado, julgando-o “um temperamento hercúleo, um historiador avisado, às vezes profundo”, reconheceu naquele “livro desengonçado e admirável [...] a maior contribuição que ainda tivemos para a compreensão do problema brasileiro, em toda a sua complexidade”. Na escala dos valores intelectuais, Roquette-Pinto considerou-o “um dos mais altos, pela visão larguíssima dos nossos destinos, pelos quadros amplos e seguros da nossa evolução nacional, que ele soube definir à luz de uma cultura formidável”. É de justiça, ainda, assinalar o empenho do deputado federal Sílvio Romero na luta contra os excessos do federalismo, característicos da primeira República e situbolizados na “política dos governadores”.
Sucedeu-lhe o crítico e trovador fluminense Joaquim Osório Duque-Estrada, filho de um tenente-coronel, afilhado do Marquês do Herval, de quem herdou o nome glorioso, e que lutou, como jornalista, pela Abolição e pela República. Também servidor do Estado como encarregado de negócios no Paraguai, foi defensor estrênuo da identidade e da pureza lingüísticas. No discurso de posse, o autor de Crítica e polêmica reconheceu as próprias limitações: “A verdade é que não sou nem nunca tive, sequer, a veleidade ou a preocupação de ser crítico. Pelo que haja feito e pela influência que porventura tenha logrado exercer [...], limito-me a aceitar [...] o único título que com razão e justiça já certa vez me foi [...] conferido por um dos mais afiados escritores da nova geração: o de guarda-noturno da literatura brasileira.” E atribuiu os sufrágios recebidos “mais ao intuito de galardoar apenas uma existência de labor e de sacrifício, consagrada quase toda ao culto da língua e ao progresso intelectual da nossa terra, que ao de recompensar e aplaudir os minguados méritos do literato e do artista, tão desprovido de títulos quanto de ambições”. Mas Coelho Neto, que o recebeu aqui, temperou-lhe a modéstia, ao lembrar que “viestes polindo a língua, enriquecendo-a de formas cultas, renovando-a nos dizeres, escoimando-a de vícios [...] como escritor, e dos que com mais alinho redigem e com mais austeridade honram a nossa língua”. No magistério, na crítica, na imprensa, na Academia, Osório Duque-Estrada quis seguir, à risca, o propósito de Machado de Assis, quando fundou esta Casa, de “conservar, no meio da federação política, a unidade literária”, e pôde concentrar, tanto nas suas Noções de História do Brasil, n' A Abolição e nas Leituras militares quanto na letra do Hino Nacional, que o celebrizou, toda a força de um nativismo exaltado.
Já o ilustre carioca Edgar Roquette-Pinto ofereceu, sobretudo no seu grande livro, Rondônia, contribuição notável à antropologia e à etnografia brasileiras. Obra-prima gerada pela integração de Roquette, em 1912, à missão fecunda com que o general Rondon desbravou e civilizou o Brasil central, Rondônia foi o ponto culminante de uma vasta bibliografia, em que se destacaram os Ensaios de antropologia brasiliana, os Ensaios brasilianos, Euclides da Cunha naturalista, a Antropologia, introdutória ao catálogo das coleções do Museu Nacional, dentre uma grande quantidade de trabalhos dispersos. Aluísio de Castro saudou em Roquette “aquele que no vivo criou aqui essa ciência, e o que determinou os elementos para a exata caracterização dos tipos antropológicos da população do Brasil”. Nesse contexto, ninguém batalhou mais do que ele, nos livros, nas aulas, em conferências, pela imprensa, através de experiências e demonstrações científicas, contra o preconceito racista. E foi então que Roquette divergiu do inspirador genial: “Eis aí a grande ilusão de Euclides: considerou inferior gente que só era atrasada; incapazes, homens que só eram ignorantes.” Euclides da Cunha fora o seu profeta, Os sertões a sua bíblia, o nacionalismo sua religião. Ao suceder-lhe nesta Academia, Álvaro Lins ressaltou o ideal nacionalista como “a chave principal da corrente, a princípio de influências, depois de comunicação, que fluiu incessantemente, durante pouco mais de 50 anos, das páginas dos livros de Euclides para o espírito de Roquette-Pinto”. Diretor do Museu Nacional, Roquette teve o polimorfismo da própria atividade científica reconhecido pela atribuição do seu nome a uma aranha e um cogumelo, a uma borboleta e um pássaro encontrados nas campinas e florestas do sertão. Na literatura, experimentaria a poesia e também o conto, através dos livros Samambaia e Vozes da minha terra, mas não era poeta nem ficcionista. Pioneiro do rádio e do cinema educativo, Roquette-Pinto fundou, na Academia Brasileira de Ciências, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, hoje Rádio Ministério da Educação, e, mais tarde, a Rádio Escola Municipal do Rio de Janeiro, que viria, posteriormente, a receber o seu nome. Criou também o Instituto Nacional do Cinema Educativo, do qual seria o primeiro diretor. Ele sentia a importância da educação das massas, e, pensando sempre nos menos favorecidos, buscava desenvolvê-la entre nós. No tocante ao cinema, narra Vinícius de Morais, desde 1910, Roquette “utilizava projeções em suas conferências do Museu Nacional, quando foi ali criado um serviço de assistência ao ensino das Ciências Naturais e uma filmoteca especializada. Dois anos mais tarde, abria caminho ao filme documentário brasileiro, trazendo de Rondônia as primeiras películas sobre os índios nhambiquaras, que foram projetadas, em 1913, no salão de conferências da Biblioteca Nacional”. Roquette- Pinto não ocultava sua preocupação absorvente e militante com a justiça. Mas nunca a dissociou da liberdade. No Credo professado em 1935, disse acreditar nas leis da sociologia positiva, e crer, em conseqüência, no “advento do proletariado”. Julgava, assim, “que a nobre missão dos intelectuais [...] é o ensino e a cultura dos proletários, preparando-os para quando chegar a sua hora”. Contudo, por ser tão “difícil conciliar os interesses da ordem com os do progresso, muitas vezes antagônicos”, só via “um meio de manter a ordem material: é garantir a mais ampla, absoluta e definitiva liberdade espiritual”. E nele incluiu uma bela profissão de fé nas “mulheres, que são a melhor parte de todas as pátrias”, e nas “crianças, que são a pátria do futuro”. João Neves da Fontoura referiu-se a Roquette como “a um dos maiores brasileiros de todas as épocas, a um dos homens cuja fama não viverá da nossa convencional imortalidade, mas da que ele mesmo conquistou com sua obra imperecível nos variados campos da literatura, da ciência, do magistério”.
Injusto e agressivo como Sílvio Romero foi também, por vezes, o pernambucano Álvaro de Barros Lins, em sua obra extensa, condensada no Jornal de Crítica, onde predominava o gosto pela análise moral e psicológica. Porém, desde cedo, nele despontaram os pendores pelo serviço ao bem comum, conforme testemunha o opúsculo que escreveu, ainda estudante, sobre a Universidade como escola de homens públicos. Antonio Candido já observara, em Álvaro Lins, o “equilíbrio e a imparcialidade entre o impressionismo estético, que ameaça os grandes individualistas, e a solicitação da atividade no mundo, que arrasta o intelectual para o turbilhão dos acontecimentos e das paixões políticas”. Nomeado embaixador em Lisboa, o excelente biógrafo de O Barão do Rio Branco bateu-se bravamente, embora com os excessos característicos do seu temperamento, pela preservação da generosa tradição brasileira do direito de asilo, concedido ao general Humberto Delgado. Essa defesa intransigente – que lhe custou afinal, pelas resistências despertadas, o próprio posto diplomático –, documentada no livro Missão em Portugal, cedo se revelaria tragicamente profética, com o assassinato, pelos sicários da ditadura, daquele chefe militar da oposição portuguesa e de sua secretária brasileira. Álvaro, escrevendo sobre Otto Maria Carpeaux, definiria a nobre missão do lutador em palavras plenamente aplicáveis a si próprio: “A certeza da inanidade da luta não significa nem desistência nem covardia. A luta, apesar de tudo, permanece como uma atitude, como uma afirmação, como um testemunho. A luta de um homem dentro do mundo independe do seu êxito ou da sua utilidade. Mesmo quando tudo estiver perdido, ficará como um exemplo, como uma semente, como um protesto.” Por isso, Houaiss curvou-se, reverente, diante do predecessor, “militante da sua verdade”. Que “dessa militância teve nítida consciência trágica. Tão crescentemente trágica, que num dado momento – o de seus últimos anos – se ilhou na impotência de apegar-se a qualquer valor circulável, o que o levou ao mutismo compulsório de quem, a dizer, diria o que os donos de outras verdades não permitiriam dissesse.”
O quinto ocupante dessa cadeira de combatentes foi Antônio Houaiss. E depois, conforme o divino poeta, piu d'onore ancora assai mi fenno, /ch'e sì mi fecer della loro schiera, /sì ch'io fui sesto tra cotanto senno. (Traduz Oscar Dias Corrêa: “E muito mais ainda honorável, /integraram-me à sua companhia: /o sexto da coorte respeitável.”).
Conheci Houaiss no princípio dos anos de 1950, quando regressou ao Brasil para defender-se, com quatro outros colegas, de suposto delito de opinião, insustentável perante as leis e regulamentos que regiam o funcionalismo público. O inquérito administrativo do Itamarati foi clandestino, sem que os acusados dele sequer tivessem conhecimento antes de terminado, e concluiu colocando-os em disponibilidade inativa não-remunerada, pena inexistente no direito brasileiro. Sancionou-o o presidente Getúlio Vargas, aprovando exposição de motivos do Conselho de Segurança Nacional. Evandro Lins e Silva foi um dos advogados da defesa no processo, através de mandado de segurança em que o Supremo Tribunal Federal dcu ganho de causa, por unanimidade, aos indiciados.
O oportunismo torvo dos que, às vezes, vicejam à sombra de Judas e de Caim, denunciando colegas com a intenção de beneficiar as próprias carreiras, ao se voltar contra Antônio Houaiss, encontrou presa fácil na fome e sede de justiça de quem foi sempre fiel a si mesmo, e assim se definiu, no discurso com que tomou posse nesta Casa: “Um homem de seu povo, esse em que nasci e a que pertenço e quero servir, sem [...] cultivar orgulho algum do que quer que seja. Salvo um: o de achar que esta vida humana devia ser digna de ser vivida por todos, sem discriminações.” Noutra ocasião, ele explicaria que “não se trata de mudar o sistema capitalista, mas de corrigir, enfim, seus terríveis e gritantes defeitos, quando se assanha em obter lucros e mais lucros sem ver a face trágica dos explorados – seres humanos, flora, fauna, clima, ambientes, em suma, a própria vivibilidade. É a voracidade na concentração de renda, independente e indiferente a quaisquer conseqüências sociais. Que, pelo menos, se dêem ao povo condições mínimas com que possa sobreviver de forma menos indecorosa. Não na fome, na miséria, nas favelas, nos mocambos, nos becos, nas sarjetas.”
Certa vez, Houaiss explicitou o que mais admirava no mundo: “A poesia, a escultura e a pintura são para mim as mais belas formas da sensibilidade e da inteligência humana. [...] Para mim, o ápice da humanidade são os artistas criadores. Não os artistas performáticos ou performânticos, os que executam, mas os que de fato concebem a obra de arte.” Daí, ao ver de Antonio Candido, “seu desejo de que os bens que considera tão elevados sejam compartilhados por todos, como propõe o socialismo. O corte humano da sua inteligência e da sua sensibilidade o leva a querer o fim dessa sociedade discriminadora, redutora, constritora, que torna privilégio de poucos o que deveria ser bem comum”.
Embora paralelos e de menor alcance do que a sua grande contribuição ao estudo da nossa língua e literatura, outros trabalhos publicados por Antônio Houaiss dão testemunho de sua permanente preocupação social, que nunca escondeu: Brasil – o fracasso do conservadorismo, Socialismo e liberdade, Variações em torno do conceito de democracia, Socialismo – vida, morte e ressurreição, A modernidade no Brasil – conciliação ou ruptura? Com o fim do autoritarismo militar em nosso País, ele assumiria a presidência da Comissão Organizadora do Partido Socialista Brasileiro, e seria, em seguida, o primeiro presidente na sua nova fase. Mas aquele homem livre repudiava toda forma de opressão. Moacir Félix lembra “a sua assinatura em 1968 e no número especial da Revista da Civilização Brasileira que publicamos sobre a Tchecoslováquia – em nosso manifesto, com a candente afirmação de que 'socialismo é liberdade', e expressamente em repulsa contra a intervenção soviética, e a favor, portanto, do amplo movimento econômico-político-cultural denominado 'a Primavera de Praga'.” Ele se ergueria sempre contra a predominância do ter sobre o ser, a adoração do bezerro de ouro, a teologia do mercado, as políticas indiferentes ao sofrimento humano que provocam.
Antônio era muito próximo da nossa família. Sobre sua cooperação funcional com Afonso Arinos, quando este encabeçava a Missão do Brasil junto às Nações Unidas, o chefe testemunhou sem rodeios, ao recebê-lo nesta colenda Academia: “Nunca encontrei, no exercício das funções, colaborador mais competente, mais devotado e mais dedicado aos interesses do Brasil e do nosso povo. Ali, também, vossos informes e relatórios eram lições.” E considerou-o “uma das mais lúcidas inteligências do Brasil contemporâneo, infatigável operário da cultura nacional”.
Arinos foi ainda objeto da magistral introdução crítico-biográfica de Antônio Houaiss à segunda edição da biografia paterna que escrevera, Um estadista da República – Afrânio de Melo Franco e seu tempo. Na redação dos três volumes da História do povo brasileiro dedicados ao Brasil independente, Afonso voltou a receber importante cooperação de Antônio. A competência dedicada de Francisco de Melo Franco secundou Houaiss, então ministro da Cultura, à frente do Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural, e, anos depois, no Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa, onde está sendo concluído o grande dicionário lusofônico que levará seu nome. E eu tive o duplo privilégio de ocupar-lhe a vaga no Pen Club do Brasil, como sócio titular, quando foi alçado à dignidade de grande benemérito, e de ali saudá-lo pelos seus 80 anos, antes de suceder-lhe nesta Academia, que por ele chegou a ser tão dignamente presidida. “Aliás,” – pondera Jorge Amado – o termo dignidade parece feito para ser usado a propósito de Antônio Houaiss.”
Conhecendo-o por tantos anos, e informado, há mais tempo ainda, dos notáveis atributos profissionais e pessoais que o distinguiam, admirava suas qualidades privadas: a delicadeza no trato; a invariável cortesia; a atenção afetuosa; o interesse espontâneo e solidário pelos problemas e aspirações dos amigos e do próximo; a extraordinária capacidade de não demonstrar rancor ou ressentimento contra tantos que o feriram, gratuita e injustamente, por inveja ou vilania; o convívio cordial, sempre respeitoso, espontaneamente democrático, com pessoas de visões e objetivos tão diversos do que pensava e queria da vida; a amável boêmia gastronômica, geradora de livros sobre A magia da cozinha brasileira e A cerveja – seus mistérios e sua origem. Lêdo Ivo depõe: “Estamos num restaurante. Antônio Houaiss pede rã à provençal e escolhe, com minuciosidade de quem analisa um verbete enciclopédico, o vinho [...] que vamos beber. Nesse refletir, nesse examinar, nesse ponderar e nesse decidir está o segredo de sua vida, de quem nunca está sozinho. Nela, nesta vida, não deve haver momentos perdidos. A cada instante, cabe ser este interrogado como se contivesse toda a nossa existência: o bem e o mal de existir. Na dourada perninha de rã que Antônio Houaiss leva à sua boca de conhecedor do mundo está a resposta para tudo.” Antônio Callado via sob outro ângulo o mesmo “amigo que sabe tantas coisas e parece levitar por cima de todas elas sem esforço, enérgico mas espiritualizado como um colibri. [...] Mas uma coisa aprendi no meu longo trato com o amigo: ele sabe tanto sobre tantas coisas pelo simples fato de se haver apaixonado perdidamente por cada uma delas. Não foi por querer saber mais do que ninguém, e sim por saber amar com mais força do que nós”.
Porém, aqui e agora, é sobre o homem público que desejo discorrer. Homem público, Houaiss o foi pela vida inteira. Desconfio, mesmo, que nunca terá sido outra coisa, no afã constante de adotar e defender com unhas e dentes, como seus, os interesses a longo prazo do Brasil, da nossa cultura e da nossa língua, batendo-se por eles em todos os foros internos e internacionais onde era convocado a lutar, ou mesmo sem ser chamado. Aliás, essa vocação vinha de longe, pois ao fazer o curso primário em escola pública, o de perito-contador e o secundário de madureza em estabelecimentos oficiais, o superior em universidade estatal, ele teve toda a instrução desligada de influências privatistas. Preparou, assim, um espírito voltado para o bem comum.
Educado e formado pelo ensino público, ao qual forneceu, por sua vez, poderosa contribuição – foi professor concursado de Português aos 20 anos –, Antônio Houaiss manteve uma coerência implacável na luta para desprivatizar o Estado, em todas as áreas nas quais pôde atuar, como professor ou funcionário, em benefício do capital social por excelência que é o homem. E fez isso, inclusive, na diplomacia, atividade onde me sinto mais à vontade para testemunhar. Ali, segundo o Embaixador Saraiva Guerreiro, “em todos os períodos em que enriqueceu nosso serviço diplomático, encantou a chefes e companheiros por sua inteligência e cultura, sua competência e dedicação leal e incansável ao trabalho, sua generosidade e infalível disposição para cooperar e ajudar sempre que surgia a oportunidade. Marcou sempre sua presença como um dos melhores”.
Na vida errante de ciganos, característica da carreira diplomática, toda dedicada ao serviço da pátria, mas, quase sempre, longe dela, nunca tive a sorte de trabalhar diretamente com Houaiss, quer no Brasil, quer em postos no exterior. Porém, desde que ingressei na diplomacia, dei-me conta de que, se as nossas tarefas quotidianas fluíam escorreitas, isso se devia, em boa parte, ao seu labor profícuo. Da bibliografia monumental que deixou, provavelmente não constará o Manual de serviço do Itamarati. Mas era graças a ele, e àquela indispensável consolidação de 14 mil instruções, que a nossa rotina de trabalho emergia, sem tropeços, do caos dos calhamaços, bem antes que a informatização lhe houvesse imposto outro tipo de ordem, que não quer dizer, necessariamente, progresso. Mais tarde, durante o governo Kubitschek, Antônio trabalharia na montagem do Serviço de Documentação da Presidência da República, editorando discursos, mensagens, documentos em geral, e registrando todo o referente à construção e inauguração de Brasília.
Contudo, ele jamais sobrepôs profissão a biografia. E esta chegou ao apogeu no momento exato em que, aparentemente, deixava a vida pública, de novo vítima do arbítrio interno, e agora, também, de intolerável intromissão externa, para prestar os maiores serviços à nossa cultura, já que a atividade funcional lhe era, uma vez mais, injustamente vedada.
Na Organização das Nações Unidas, Houaiss, entre muitas outras tarefas relevantes, participara da comissão então enviada às colônias belgas de Ruanda e Burundi para organizar o armistício e a anistia política que precederam a independência daqueles países centro-africanos. Além disso, fora ativa sua participação no Comitê sobre o Sudoeste Africano (a futura Namíbia) e no Comitê para Usos Pacíficos do Espaço Exterior. Dessas incursões africanas recordava, com freqüência, o churrasco de hipopótamo que um dia saboreou. Narra o Embaixador Vasco Mariz que, em 1960, ano de admissão dos novos Estados da África na ONU, viu “numerosas vezes Antônio Houaiss, no salão plenário da Assembléia Geral, completamente cercado por representantes africanos, que vinham buscar dele a orientação sobre como votar em complicados projetos de resolução, naquela intrincada organização da qual tão pouca experiência tinham”. Recorda comentários elogiosos, na sua comissão, sobre o papel importante que Houaiss estava desempenhando junto aos colegas daqueles países, e observa que esse esforço redundava em fator de prestígio para a diplomacia brasileira. Mais de uma vez conversaram a respeito, e Antônio contou-lhe “que os diplomatas africanos preferiam consultá-lo, insuspeito e neutro para eles, do que ter de abordar os delegados ingleses ou franceses, que os aconselhariam com interesse e parcialidade”. Porém, Houaiss estivera, também, entre os principais negociadores da resolução da Assembléia Geral intitulada Declaração de Outorga de Independência a Países e Povos Coloniais, através da qual a diplomacia brasileira se desatrelou da submissão política ao colonialismo da antiga metrópole, e que nos permitiu criar pontes para o relacionamento com os Estados surgidos na esteira da descolonização conseqüente à revolução democrática portuguesa de 1974. Ele defenderia energicamente a nova fase da nossa política externa na Comissão de Tutela e Territórios Não-autônomos, onde representava a Delegação do Brasil, cumprindo instruções expressas dos seus superiores hierárquicos. A cobrança dessa atuação, em seguida ao levante militar de 1964, por portugueses inconformados e brasileiros submissos, lhe encerraria compulsoriamente, para sempre, a carreira diplomática. O General Castelo Branco suspendeu-lhe os direitos políticos, mas a resposta irretorquível às acusações injustas e ineptas ficou gravada em trabalho magistral, intitulado A defesa, que Antônio Houaiss tivera seis dias para redigir. Suas razões – testemunha Evandro Lins – “se equiparam às mais brilhantes peças já escritas, ao longo da história, em processos de natureza política. São páginas antológicas, no fundo e na forma. A introdução, o vigor e a lógica da argumentação, a resposta elegante, e ao mesmo tempo demolidora, à afronta aos princípios constitucionais de preservação e respeito às convicções políticas, a fina ironia contra o ridículo de imputações pueris, a bravura e a dignidade como se comporta diante do arbítrio e do obscurantismo, a clareza da exposição, tudo faz lembrar o que escreveram os grandes advogados ao enfrentar regimes tirânicos e despóticos”. Antônio nunca teve ilusões quanto ao destino da defesa produzida, pois declarou, como preliminar, que, ao pronunciá-Ia, fazia-o “com a lúcida consciência de que: a) será ela absolutamente inútil, visto como minha situação foi prejulgada, prejulgamento que serviu de pretexto para a suspensão dos direitos políticos [...]; b) embora inútil esta defesa, sinto-me no dever moral de produzi-la, a fim de que – em vida minha ainda, se possível; post mortem, se não – se restabeleçam a Verdade e a Justiça”.
Ferreira Gullar lembra a época subseqüente, de “mobilização dos intelectuais e artistas em defesa da liberdade de expressão, em face da censura que estrangulava nosso teatro, nosso cinema, nossa música popular, nossa literatura. [...] As assembléias em que essas questões eram debatidas, e onde se tomavam decisões importantes, não eram fáceis de conduzir. Para fazê-lo, era necessário domínio das questões políticas; equilíbrio, isenção e autoridade perante as diversas correntes políticas. Não por acaso, Antônio Houaiss tornou-se o presidente quase que permanente dessas reuniões, que, graças a ele, conseguiam chegar às conclusões finais sem maiores tropeços”.
Voltemos, porém, ao depoimento de Afonso Arinos: “A súbita aposentadoria no serviço público restituiu-vos à exclusiva atividade intelectual da vossa juventude, e foi um bem para a cultura brasileira. E provável que, dedicado ao serviço público como éreis, só muito mais tarde vos sobrasse tempo para os esforços absorventes a que hoje vos entregais. E não sei se, entre uma carreira e um destino, não ganhastes, e, convosco, o Brasil.” Moacir Werneck concorda: “A diplomacia, a que se dedicava com zelo, correção e competência exemplares, é carreira atraente, mas cercada de cânones inibidores. Ele precisava de outros espaços.”
Desde então, não tem conta o que ficaram a dever-lhe todos aqueles que lêem, escrevem, trabalham e estudam em nosso País. Aqui, poderia incluir-se a poderosa empreitada que representou a tradução do Ulisses, de James Joyce, na qual Ivo Barroso definiu o seu mérito maior como “o de ter servido de [...] exemplo de que as tarefas impossíveis podem ser finalmente realizadas, se a elas nos atacamos com talento e amor”. Mas o Novo Dicionário Appleton das Línguas Inglesa e Portuguesa, por ele editado, já era instrumento obrigatório de trabalho na Embaixada do Brasil em Washington quando eu ali servia. A Enciclopédia Barsa, que dirigiu, a Grande Enciclopédia Delta-Larousse e a Enciclopédia Mirador Internacional, das quais foi editor-chefe, prestaram os serviços mais relevantes aos estudiosos ou simplesmente interessados em documentar-se sobre a realidade brasileira e universal. Ainda Ivo Barroso, testemunha pessoal do seu esforço, usa “a metáfora de Sísifo para representar aquele Houaiss-carregador-de-pedras-montanha-acima, trabalhando dia e noite, atolado atrás de montanhas de fichas que a nossa equipe lhe colocava sobre a mesa e ele ia triturando, emendando, sintetizando, enriquecendo com o escalpelo de sua crítica, o diamante de sua cultura, a sensibilidade de seu saber”. Sei que esse stakanovista da língua e da cultura revisou todos os verbetes dos 20 volumes da Enciclopédia Mirador. Além de editar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa para a Academia Brasileira de Letras, Houaiss publicou outras enciclopédias e dicionários - Pequeno, Básico, Míni, Ilustrado, Escolar – como preparação do futuro Grande Dicionário da Língua Portuguesa, destinado a ser a obra magna do excelso filólogo, que nele trabalhou até o fim da vida. Não conseguiu, infelizmente, vê-lo terminado, mas adiantou-o a ponto de o Instituto Antônio Houaiss, que fundara, e o Ministério da Cultura, poderem programá-lo, sob a orientação do respeitado lexicógrafo Mauro de Sales Vilar, seu sobrinho afim, como ponto expressivo das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. “Por sua dupla apresentação, impressa e eletrônica,” – disse Houaiss – “por sua armazenagem de banco de dados, por seu aprofundamento, deverá pôr a lexicografia da língua portuguesa próxima à altura das línguas de cultura modernas, isto é, gráficas e intercomunicantes entre mais de cem milhões de usuários.” Esta obra de vasta envergadura, que representa um avanço considerável no estudo da etimologia, morfologia e datação do nosso idioma, conta com o apoio de importantes órgãos públicos e entidades privadas de Portugal, onde também será editada.
Nesse ínterim, a roda do destino de Antônio Houaiss dera mais uma volta, e o grande servidor que, para o regime militar, não podia permanecer nos quadros do Itamarati, viu essa injustiça clamorosa ser reparada pelo gesto do Presidente Itamar Franco de elevá-lo à cúpula oficial da cultura brasileira, como titular do Ministério que dela se ocupa.
Aí, porém, as incompreensões continuaram. A quem tinha o encargo de zelar pela conservação e restauração do patrimônio histórico e artístico nacional negou-se a verba modesta que pedia, equivalente ao necessário para a construção de meio quilômetro do metrô de Brasília. Ao Patrimônio Cultural foram alocados sete milhões de dólares para cuidar de todo o Brasil, do Oiapoque ao Chuí, enquanto Portugal, um dos países mais pobres da União Européia e menor que Pernambuco, destinava, a tal fim, 200 milhões por ano. Sem desanimar, Houaiss lutou para estruturar racionalmente seu Ministério, reformar a lei de incentivos culturais, revigorar o cinema nacional, preservar o ameaçado plano piloto de Brasília, preparar a recuperação do prédio precursor que abriga o antigo Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Com os recursos ínfimos de que dispunha, fez o que pôde.
É difícil dizer-se qual o maior serviço prestado pelo homem público Antônio Houaiss à coletividade, representada pelos inúmeros discípulos que, durante décadas, receberam e transmitiram seus ensinamentos; pelos milhares de usuários que tiveram os próprios trabalhos fecundados por seus vocabulários, dicionários e enciclopédias; pelos povos africanos, que tanto se valeram da assistência dele recebida, nas Nações Unidas e fora delas, nos momentos decisivos da transição para a independência.
E, aqui, tornamos ao seu labor internacional, de que todos os cidadãos dos sete signatários do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e decerto, em futuro já não distante, Timor-Leste – se beneficiarão potencialmente, graças aos esforços empreendidos por este homem do seu povo, mas, também, cidadão do mundo, que foi o maior responsável pela parte brasileira da empreitada. Sergio Rouanet chamou-o “incansável batalhador da unidade ortográfica do português, contra todos os patriotas da língua [...], tanto os nossos, que até hoje levam a sério o projeto alencariano e modernista da constituição de uma língua brasileira, quanto os lusitanos, que pregam um Ipiranga às avessas, gritando 'aqui d'el rei' cada vez que uma telenovela de além-mar usa expressões desconhecidas por Castilho”. Em 1986, ele secretariou nossa delegação ao Encontro para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, efetuado no Rio de Janeiro, atuando como seu principal impulsionador e porta-voz. Revisto em Lisboa, em 1990, foi o texto daí resultante subscrito pelos representantes dos sete membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Sendo o português o único idioma culto com ortografia dupla, o Acordo pretende pôr termo a esta situação, por ver na unidade ortográfica condição essencial para que ele se afirme como língua de cultura internacional. Assim, no momento em que, na sua rica diversidade cultural, aquelas nações estiverem utilizando um idioma unificado pelo sistema comum das suas formas gramaticais, e mais de 200 milhões de cidadãos sul-americanos, africanos e europeus, que já falam a oitava língua mais utilizada no planeta, puderem escrevê-Ia numa ortografia única, eles o deverão, mais do que a qualquer outro, àquele saudoso confrade. A significação política, cultural e as normas decorrentes do Acordo foram demarcadas por Houaiss em trabalho que intitulou A nova ortografia da língua portuguesa.
Esta língua, como para Fernando Pessoa, era a sua pátria. Menino ainda, quando passei do curso primário ao ginasial, no colégio onde estudava, um primo mais velho e adiantado advertiu-me: “Que pena, o nosso melhor professor foi-se embora, logo agora que você chegou. Ele ensinava Português, chama-se Antônio Houaiss.” Lecionou Português, Latim e Literatura no magistério secundário oficial do então Distrito Federal; foi membro examinador de Português em vários concursos promovidos pelo Departamento Administrativo do Serviço Público para preenchimento de cargos oficiais; colaborador permanente do DASP na elaboração de provas de português; professor contratado pela Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, a fim de ensinar o nosso idioma e dar cursos sobre questões culturais brasileiras no Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, de Montevidéu; secretário-geral do Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, para o qual apresentou tese, tornada base das conclusões, sobre normas do idioma culto usado no Brasil; secretário-geral do Primeiro Congresso Brasileiro de Dialetologia e Etnografia; relator da Comissão Nacional para o Estabelecimento de Diretrizes que Promovam o Aperfeiçoamento do Ensino/Aprendizagem da Língua Portuguesa; membro da Academia Brasileira de Filologia. No campo dos estudos lingüísticos, publicou ainda uma Tentativa de descrição do sistema vocálico português culto na área dita carioca, Sugestões para uma política da língua, Introdução filológica às Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, A crise de nossa língua de cultura, O Português no Brasil. Com vistas à interpretação literária de obras clássicas brasileiras, o autor de Crítica avulsa e de Seis poetas e um problema trabalhou intensamente sobre textos de Silva Alvarenga, Lima Barreto, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Cardoso e João Cabral de Melo Neto. E o fez com tal competência que Eduardo Portella não hesitou em julgar que “o crítico literário Antônio Houaiss pode assim figurar, destacadamente, na galeria dos fundadores de nossa crítica, entre aqueles que souberam ver sem desfigurar, entre os que alcançaram compreender o jogo tenso de língua e linguagem [...]”. Isto para não falar nos seus alentados Elementos de bibliologia, dois volumes dedicados à ecdótica, ou seja, à difícil “arte de descobrir e corrigir os erros de um texto transmitido, preparando-lhe a edição que se diz edição crítica”, conforme ensina o Aurélio enquanto esperamos pelo Houaiss.
No decorrer da sua extensa travessia, quero crer que a primeira virtude de Antônio Houaiss a saltar aos olhos foi a da esperança. Ele esperou, incansavelmente, a vida inteira. Esperou, jovem filho de imigrantes libaneses nascido no Rio de Janeiro, escalar, pelo próprio esforço e talento, os degraus do saber e da excelência na variedade profícua das atividades que abraçou, e fê-lo plenamente. Nunca, porém, para alimentar, com as cintilaçães do êxito, os louros cedo perecíveis de uma vaidade vazia, e sim cônscio de que sua obra aproveitaria ao próximo, à comunidade nacional em que se inseria. Seus dicionários, suas enciclopédias, a incessante atividade docente, os compromissos com a política interna e internacional sempre denotaram essa esperança no livre acesso de todos à cultura, na justa distribuição do progresso e na prosperidade do povo brasileiro em geral.
E a esperança sempre renovada nas melhores qualidades do ser humano conduziu-o, naturalmente, à caridade para com o próximo. Como me propus limitar esta saudação ao homem público, passo ao largo, sem ignorá-lo, do amor intenso e profundo pela família, pelos amigos. Fico com a dedicação aos alunos, de que é emblemático o episódio, narrado por Saraiva Guerreiro, do professor dando explicações de última hora aos candidatos a concurso no qual, daí a pouco, ele passaria de mestre a concorrente, e poderia ser ultrapassado pelos beneficiários dos esclarecimentos prestados minutos antes. Testemunho a solidariedade para com todos os colegas de ofício e profissão, que amparou e estimulou no labor comum; com os ouvintes, que poderiam valer-se de suas preleções; com os leitores capazes de utilizar, em proveito próprio e de terceiros, as lições e a documentação de sua obra extensa. Lembro, enfim, a devoção por aquela humanidade anônima e multiforme dos países subdesenvolvidos, à qual dedicou, sempre que pôde, o desvelo constante das suas ocupações e preocupações funcionais, e, no Brasil, a essência do seu engajamento intelectual e político. A luta de uma vida inteira em defesa da dignidade e dos direitos do próximo tornou-o um humanista na mais pura acepção da palavra.
A esperança e a caridade, somadas, desembocam na fé, pela lógica inerente às virtudes teologais. Certa vez, Houaiss confidenciou-me, na saudosa lembrança de Ruth, a companheira querida, estar ficando místico. Já próximo ao fim, definia-se como um pós-agnóstico e um pré-cristão. Mas não é que saísse dizendo “Senhor! Senhor!” sem cumprir os seus preceitos, como se queixa Jesus no Evangelho. Nunca o fez. Seria a fé sem as obras. Ele preferiu inverter os fatores. Sua obra de uma vida inteira – enorme, sofrida, tantas vezes impessoal, de quem escolheu omitir a si mesmo, as referências próprias, a auto-imagem refletida no espelho de Narciso, para dar ao outro condições de se afirmar –, essa obra faz resplender a fé fraterna no próximo. E não se pode crer na criatura a esse ponto sem que a elevação espiritual para isso necessária, consciente ou não, roce as fímbrias da Transcendência.
Permitam-me encerrar falando ao velho amigo. Não foi minha intenção resumir, aqui, a vida de um novo santo Antônio. Nem os santos escapam das imperfeições do criado, que eles conhecem muito melhor do que nós. Quis, apenas, salientar alguns aspetos de uma existência longa e fecunda, exemplar na coerência, na dignidade, no trabalho, na integridade, na dedicação, na simplicidade, na abnegação, na tolerância, na lealdade, podendo servir de modelo, quer aos desejosos de aperfeiçoar-se nas virtudes do humanismo Laico, quer aos aspirantes a trilhar as veredas íngremes que demandam a porta estreita da fé religiosa. Seu exemplo serve aos viandantes dessas trajetórias paralelas, que se encontrarão no infinito. Por ele, somos-lhe todos devedores. A você, humano e humanista Antônio, ninguém poderá perguntar o que fez dos seus talentos.