Ao chegar à Presidência, muito refleti sobre os sonhos e ferramentas que trazia para exercer um mandato à altura dos votos fraternais recebidos dos companheiros acadêmicos.
Sonho e ferramenta se impuseram para mim como ecos do vivido e sonoridades a serem entoadas, condensando-se na palavra cultura, desdobrando-se em outra: humanidades. Elas me predispõem à ação, e muito se ajustaram, então, ao que significa aquele frágil portãozinho da Avenida Presidente Wilson querendo se abrir mais e mais. Não apenas para os integrantes da Casa e para um compreensivo público já fiel, mas para urgentes expectativas da nossa sociedade.
Sabemos quanta resposta daqui emanou ao longo de quase onze décadas. Mas por que não ampliar horizontes? Por que não somar ao trabalho em favor da literatura e da língua uma obstinada busca de enlaces, precisamente pelos caminhos da língua que é a mais complexa produção da cultura humana?
Linguagem e vida são uma coisa só.
Tríplice aliança se delineou: a primeira naturalmente a mais fundamental, inter pares; a segunda, com os detentores de outros saberes; a terceira, com a conquista de recursos materiais e tecnológicos capazes de viabilizar sonhos, de azeitar ferramentas.
Já disse, e repito, que a cultura é herança e trabalho, exigindo cabeça para pensar e braço para agir. Se a Academia é a elite do pensamento, também ela precisa usar a destreza de seu braço, a amplitude de seus espaços, com o mais alto sentido de hospitalidade ao outro que a complementa. Não pode se esgotar em contemplação. Não pode aceitar espartilhos conservadoristas. Não pode se intimidar ao desfazer limites. Não pode desconhecer o espetáculo da criação, em nome de um modo de ser composto daquele sentimento de que sempre “foi assim”.
Transposto o umbral, o outro se configurou nos dispostos a atender nosso convite. Nada impede a agregação de vozes de modo a formar-se um grande coro. Esse projeto, idealizado com esperança, inquietação e surpresa, agora é audível – por que não saboreável? — com imenso prazer. Nada foi banalizado. Nada foi vulgarizado. Zelamos pelas tradições, mas sabemos que o tempo é tríbio.
Não é necessário tensionar a tradição por enlaçar o moderno. Mais modernidade não quer dizer menos tradição. Ademais não se deve fazer da crendice uma crença.
Convergências e divergências, impasses e acertos, insurgências e ressurgências devem se animar para, com a contribuição de todos, melhor situar a Academia e melhor estar no Brasil. Atravessar fronteiras em busca da compreensão, dialogar com a razão e a espiritualidade, revisitar o continente da filosofia, afinar laços com a história, acionar ignições, eis o nosso papel.
Trabalhamos para um Brasil feito de gente, como diz Celso Lafer, aberta ao sincretismo da diversidade.
Sem dizer da totalidade dos esforços e sem necessidade de declinar todos os nomes daqueles a quem somos infinitamente gratos, o que se procurou entoar no grande coro ouvido em 2006, sempre a buscar o equilíbrio entre os graves da tradição e a aguda tessitura da modernidade, foi um canto novo. Houve a recolha do passado e a imaginação do futuro.
Nossa composição soou bem. O público convergiu para aquele portãozinho fronteiro à estátua de Machado. Aos distantes ou aos impedidos de comparecer, tudo se transmitia e transmite através da Internet – ferramenta do presente e do futuro. A Academia não é artesanal.
Há um ano, eu me declarava insistente na esperança. Expus sonhos. Nomeei algumas ferramentas. Agora verifico que, como disse Borges em “Ruínas circulares”, no sonho do homem que sonhava o sonhado despertou.
Seguindo o conto borgeano, onde o sonhado desperto é um novo homem, peço licença para chamá-lo de Humanidades, renovando o convite para sua permanência em nossa Casa. Declaro-me convencido do acerto em fazer com que sejamos cada vez mais uma Academia de Letras não apenas literárias, mas decididamente voltada para as humanidades.
A Academia deve trabalhar com parâmetros aquecidos, que sugerem vida. Viver é desenvolver, não é engessar. A Academia não pode ser monocultural. Sua composição assim o determina. Nem deve desaprumar a mão, errar o gesto ou desprezar o sopro do sonho. A Academia tem consciência de que é o ativo cultural mais destacado do País.
Confrade, Senhoras, Senhores:
Ninguém me peça para dizer o que fiz. Não fiz nada. Quem fez foi a Diretoria. Quem fez foi o plenário. Quem nos ajudou a fazer foram muitos. Os muitos amigos da Casa e os dedicados funcionários.
Nem me peçam para mencionar se fiz bem ou mal, pois no Quincas Borba, Machado disse que a vida não é completamente boa, nem completamente má.
Só tenho certeza de que passou longe da Diretoria a acédia, para usar a palavra de origem grega. Isso não.
Em termos da equipe gestora, este ano que vem encontrará Antonio Carlos Secchin e José Murilo de Carvalho a tratar de questões difíceis e do interesse acadêmico, apenas formalmente fora da Diretoria. Confiamos a eles tarefas nas relações com o meio universitário no Brasil e no Exterior, além de maior ênfase nos assuntos editoriais. Com isso trouxemos para o corpo diretivo Domício Proença e obrigamos Evanildo Bechara a retornar. Deles esperamos tudo. Tudo mesmo, pois eles podem muito.
Está posta a minha gratidão aos impecáveis colegas de Diretoria, destacando a obstinada cooperação de Cícero Sandroni e os sábios conselhos de Ana Maria Machado, aos Confrades — de quem só recebo confiança a se renovar, estimulo e carinho — aos servidores, aos colaboradores externos, às esposas dos Confrades. É muito grande o meu reconhecimento. A Maria do Carmo, essa minha N. S. da Paciência, e aos familiares só peço que se mantenham no mesmo ponto de apoio e tolerância.
Afora isso, em relação à Academia, prosseguirei achando que Mário de Andrade tem razão ao versejar: “Nós somos na Terra o grande milagre do amor! / E embora tão diversa a nossa vida / Dançamos juntos no carnaval das gentes / Bloco Pachola do Custa mas vai”.
É isso. Custa, mas vai.
Marcos Vinicios Vilaça
Discurso de Posse na Presidência da Academia Brasileira de Letras
14 de dezembro de 2006