HISTÓRIA POLÍTICA E ADMINISTRATIVA DO BRASIL
O pau-brasil era encontrado no litoral de Pernambuco e Paraíba, nas vizinhanças do Rio Real, do Cabo Frio do Rio de Janeiro. Foram esses, certamente, os lugares da costa mais frequentados pelos navios dos contratantes naqueles primeiros tempos; só depois se encontrou a preciosa essência em outros pontos.
Para a facilidade dos carregamentos se criaram as feitorias, onde se juntava o pau e mais mercadorias que deviam ser embarcadas. Situavam-se as feitorias de ordinário em ilhas, enseadas e abras, de acessível abordagem aos navios. Não passavam de uma caiçara ou cerca para defesa contra os aborígenes hostis, alguns tejupares ou ranchos para abrigo da gente nelas ocupada; teriam algum armamento, ferramenta, canoas e mais utensis. Algumas sementes de além-mar podiam ser plantadas à roda, e soltos animais domésticos de fácil reprodução. Pelo menos no Rio de Janeiro a cana-de-açúcar foi cultivada. Nas feitorias viviam de dez a vinte portugueses, talvez mais, sob a chefia de um mandante ou feitor, no meio de uma população indígena, mais ou menos amiga a poder de trocas, fornecedora que era dos gêneros exportáveis. Da vida primitiva desses colonos há um depoimento interessante na carta de João de Melo da Câmara a D. João III, cerca de 1529, quando se propunha a fazer povoar o Brasil por “homem de muita sustância e pessoas mui abastadas, que podem consigo levar muitas éguas, cavalos, e gados, e todalas cousas necessárias pera o frutificamento da colônia”, ao contrário dos que cá permaneciam, que se contentavam “com terem quatro índias por mancebas e comerem do mantimento da terra”.
Dessas feitorias teve importância a de Pernambuco, que parece ter sido primitivamente o nome do canal que separa o continente da ilha de Itamaracá, então chamada da Ascensão. Já devia existir quando lá esteve Cristóvão Jaques na sua primeira expedição ainda no reinado de D. Manuel e a ela fazem referências as cartas de doação de Duarte Coelho e Pero Lopes de Sousa. Quando Sebastião Caboto com sua armada por ali passou, em 1526, encontrou treze ou catorze cristãos portugueses, que faziam o trato do brasil e eram dirigidos por um feitor, que se chamava Manuel de Braga. Foi esse feitor quem, durante os quatro meses de demora de Caboto em Pernambuco, o informou da existência de metais preciosos no Rio da Prata, o que o fez desistir de continuar viagem às Molucas para tomar aquele destino. A Manuel de Braga devia ter substituído Diogo Dias, que era o feitor quando a feitoria, cerca de 1529, foi saqueada por um galeão de França. Martim Afonso encontrou esse feitor na Bahia, em uma nau que ia para Sofala e que ele determinou incorporar à sua armada, depois de mandar lançar em terra os escravos que trazia. O galeão francês foi apresado na costa da Andaluzia pelas caravelas, que andavam na armada do Estreito, e foi levado para Lisboa com boa carga de pau-brasil; havia deixado em Pernambuco setenta homens para povoarem a terra, com os quais pouco depois Pero Lopes justou contas.
Na ilha da enseada do Cabo Frio existia outra feitoria, provavelmente a mesma que em 1504 fundara Américo Vespucci, segundo se viu. A essa feitoria refere-se o regimento da nau Bretoa, que determinava que os da tripulação não podiam, passar da ilha para o continente, a fim de não se deixarem ficar nele, “como algumas vezes haviam feito”.
Outra feitoria foi a do Rio de Janeiro, que se conservou por alguns anos, até ser destruída pelos naturais, indignados com o proceder do feitor e companheiros. Entre as plantações abandonadas entraria a cana-de-açúcar, que Fernão de Magalhães ainda encontrou em 1519, o que, de certo modo, inquina de exagerada a opinião de João de Melo da Câmara, antes citada.
Outras feitorias menos importantes deviam ter existido em diversos pontos do litoral brasileiro, de que os documentos não deixaram memória, meros estabelecimentos efêmeros para as trocas dos produtos da terra.
De tudo quanto fica exposto, o que se pode concluir é que nesses primeiros tempos, Portugal, deslumbrado com o brilho das cousas do Oriente, nada quis ou pôde fazer na ordem administrativa a favor do Brasil, por isso que as feitorias nada mais representam do que interesses de particulares. Somente três décadas passadas depois do descobrimento, foi que a metrópole, menos pelo sentimento do que o Brasil valia, que pelo receio de vê-lo ocupado por inimigos e estrangeiros, determinou a intentar os primeiros ensaios de colonização estável.
Foram as capitanias hereditárias, objeto da lição seguinte.
Sabem todos o que foi que determinou o desapreço da coroa portuguesa pelas terras achadas por Pedro Álvares Cabral: foi a ausência de riquezas de qualquer sorte, metais ou pedras preciosas, especiarias, etc. Os primeiros exploradores encarregaram-se de propalar essa penúria da terra, ao mesmo passo que os que voltavam da Índia vinham abarrotados daquelas riquezas. Nem o próprio descobridor, que na mesma viagem em que descobriu o Brasil foi à Índia e de lá trouxe com que satisfazer a corte, se animou depois a voltar à sua ilha de Vera ou Santa Cruz, o que lhe seria fácil pelo prestígio que gozava junto ao rei, certamente convencido de que não valia a pena qualquer sacrifício. Rir-se-ia talvez do otimismo cor-de-rosa do escrivão Pero Vaz de Caminha, com a sua frase perpetuada no bronze do antigo Largo da Glória: “...esta terra... em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar dar-se-á nela tudo”... Cabral viveu ainda cerca de vinte anos depois de sua viagem afortunada; casou-se nesse intervalo com uma “donzela da rainha”; estava, portanto, válido para empreender a viagem, se quisesse, e pelos seus serviços ainda lhe pagavam, em 1516, de moradia, 2.437 réis por mês.
Caminha disse que não viu ouro na terra nem nada que se parecesse com metal; Vesppucci, que veio depois, também nada achou; João de Empoli, que por aqui passou, vai nas mesmas águas... O que havia com fartura, o que todos viram, era muito pau-de-brasa, muito lenho de tinturaria, que ainda assim não era cousa de desprezar naqueles tempos, quando a química ainda não havia descoberto os produtos da anilina.
Nos forais se conformavam as doações e privilégios feitos ao senhor da terra; estipulavam-se os foros dos solarengos que a haviam de habitar, e as pouquíssimas regalias, que a coroa se reservava, e que se reduziam aos direitos das alfândegas, ao monopólio das drogas e especiaria, ao quinto dos metais e pedras preciosas e ao dízimo devido a Deus.
A capitania doada era inalienável e só transmissível por herança ao filho varão mais velho do primeiro donatário e não partilhava com os demais herdeiros. Na ordem da sucessão, os descendentes varões, ainda de menor idade, precediam às fêmeas, salvo sendo o parentesco dessas em mais próximo grau. Os legítimos preferiam os bastardos, mas em falta daqueles sucediam estes, uma vez que fossem hábeis na forma da legislação. Entretanto, era permitido ao donatário nomear por sucessor, se lhe aprouvesse, qualquer parente legítimo, com exclusão de descendentes bastardos. Na falta de descendentes legítimos ou bastardos, sucediam em primeiro lugar os ascendentes e em segundo os colaterais, sempre guardadas as regras de preferência estabelecidas no primeiro grau de sucessão, a saber:legitimidade, parentesco mais próximo, sexo e idade.
São estas as principais disposições das cartas de doação e dos forais das capitanias.
II
As três primeiras décadas após o descobrimento do Brasil foram assinaladas, como vimos, pela sua exploração comercial com relação ao produto que estava mais à mão - o pau-brasil, mediante contrato de arrendamento das terras. Assim, os atos positivos no sentido de colonizá-las a muito pouco se reduziam: algumas expedições mandadas a explorar as costas, alguns padrões colocados num ou noutro ponto para autenticar a posse, alguns degradados postos isoladamente na terra, as feitorias para facilitar o comércio do pau-brasil e drogas, e mais nada. Verdade seja - como acentuou João Francisco Lisboa - que Portugal, guiado pelos instintos de uma ambição vaga e pela intuição ainda confusa da futura importância do achado, travou discussões e celebrou tratados com a Espanha, para regular a partilha das vastas doações que às coroas peninsulares fizera a fácil liberalidade do Papa Alexandre VI, assim como concedeu avultados subsídios pecuniários à França para alcançar dela que coibisse seus armadores e corsários de infestarem as lusas possessões. Mas foi somente quando a ameaça se tornou mais premente, quando a coroa portuguesa se viu em risco de tudo perder, - que Portugal cuidou mais seriamente do Brasil. Nos últimos anos do reinado de D. Manuel os franceses levavam aqui grandes vantagens; com a ascensão de D. João III ao trono, a situação agravou-se ainda mais. Reconheceu-se então inanidade das embaixadas à corte de França, das promessas compradas a peso de ouro e jamais cumpridas; a Portugal cumpria tomar desforço, que lhe assegurasse o direito às suas possessões americanas, que varresse de seus mares os corsários.
Já salientei, quando tratei das viagens comerciais derivadas do contrato dos mercadores cristãos-novos, o grande vulto que logo nas primeiras décadas do descobrimento tomou o comércio do pau-brasil nos portos europeus.
A madeira vermelha, empregada na tinturaria até a descoberta, relativamente recente, dos derivados da anilina, provinha de uma árvore espalhada pelo Oriente, - na Índia, Indochina e arquipélogo - a Caesalpinia sappan, de Lineu.
Essa madeira tinha na Europa o nome de brasil, que geralmente se julga derivado de sua cor rubra, semelhante à brasa. Esse nome brasill, brasilly e ainda com outras grafias, já era conhecido na Itália no ano de 1193 e na Espanha no de 1221, como consta de vários documentos publicados por Muratori e Capmany, e citados por Humboldt, na Histoire de la Géographie du Nouveau Continent (vol. II, págs. 214 e segs.). Marco Polo, na relação francesa de sua viagem, - que parece ser a primitiva - dá-lhe mesmo o nome de brésil. Os italianos usaram da mesma designação na forma verzino, que se encontra, por exemplo, no livro comercial de Pegoloti, do ano de 1340, aproximadamente. E nós temos uma menção da madeira em um livro português, anterior ao descobrimento de Pedro Álvares Cabral, isto é, no Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, quando diz que em Tenacar - provavelmente Tenacerin – “há muito bom brasyll, o qual faz muito fino vermelho”. Por onde se vê que este nome foi bem conhecido dos navegadores portugueses antes de se descobrir a região, a que depois se aplicou.
Quando os viajantes europeus aportaram às praias do Novo Mundo, observaram espécies novas de Caesalpinia, cuja madeira tomaram por brasil, seu conhecido. Pedro Mártir de Anghiera, nas Oceânicas, citadas por Humblodt no mesmo lugar - conta que Colombo encontrou em Haiti grandes florestas das árvores que “mercatori Itali verzinum, Hispani brasilum appellant”.
É cousa sabidíssima que nas terras descobertas por Pedro Álvares, e por ele chamadas de Santa Cruz, havia muito brasil. Os habitantes da terra davam à árvore o nome de ibirapitanga, que quer dizer pau vermelho, como também todos sabem; mas os portugueses conservaram-lhe a antiga e bem conhecida designação. A mercadoria do Oriente continuou por algum tempo a ser conhecida, e Garcia da Orta, contemporâneo de Camões, (nos Colóquios), dá-lhe o velho nome de brasil, e a distingue bem do sândalo vermelho, mais corretamente mesmo do que supôs Humboldt, como assevera o Conde de Ficalho. Pouco a pouco, porém, foi perdendo seu nome, passando a ser conhecida pela designação malaia sappan, que ainda tem no comércio, ou sapão, como se lê no Glossário Luso-asiático, s. v., de Monsenhor Rodolfo Dalgado.
A nova mercadoria americana não só conservou o nome que havia usurpado, mas ainda deu-o à região donde agora vinha, que começou a ser chamada terra do Brasil, depois simplesmente Brasil.
Esta etimologia é conhecida, aceita por todos, e expressamente afirmada por João de Barros (Décadas, 1ª , v. 2), onde diz que “o demônio, tanto que daquela terra começou de vir o pau vermelho chamado Brasil, trabalhou que este nome ficasse na boca do povo, e que se perdesse o de Santa Cruz, como que importava mais o nome de um pau que tinge panos, que o daquele pau, que deu tintura a todos os Sacramentos por que somos salvos”.
Mercadoria grandemente procurada pelos altos lucros que seu comércio deixava, era natural que despertasse a cobiça dos contrabandistas, dos entrelopos, em sua maioria normandos ou franceses, que desde cedo começaram a infestar as terras descobertas pelos portugueses, e aí faziam um largo comércio de resgate.
[...]
(Ensaio Sobre a História política e administrativa do Brasil, 1500-1810, 1956.)
EXOTISMOS FRANCESES ORIGINÁRIOS DA LÍNGUA TUPI
Que de mots des langues celtique et germanique nous auroient conservé Jules-César et Tacite, si les productions des pays septentrionaux visités par les Romains, avoient differé autant des productions de l’Italie et de l’Espagne que de celles de l’Amérique équinoxiale.
Alexandre de Humboldt, Voyage aux Régions Equinoxiales, III, 340. Paris,1817.
É fato sabido que a línguas americanas em alta escala contribuíram para o desenvolvimento do idioma dos descobridores ou conquistadores do Novo Mundo.
As narrativas e viagens do século XVI e parte do seguinte, encerrando as singularidades (para empregar a apropriada expressão da época) notadas na fauna e na flora das terras novamente achadas, estão inçadas dos termos designativos dos animais, plantas e mais objetos até então desconhecidos, que os autores viam e descreviam pela primeira vez.
O tupi foi dos maiores contribuintes nesse saqueio operado pela civilização ocidental, o que se explica pela circunstância de que os povos, que falavam a língua depois assim chamada, eram os ocupantes da extensão mais considerável do litoral sul-americano e foram os primeiros a entrar em contato ou em choque com os navegantes e traficantes europeus, os franceses em magna parte.
Dos livros de viagens passaram aqueles termos, mais ou menos alterados, para a literatura científica, para a linguagem corrente, e daí aos dicionários, incorporados ao patrimônio idiomático de cada povo. Sofreram naturalmente modificação gráfica, de acordo com a organização glótica dos indivíduos que os receberam; mas essa alteração não é tanta que a um exame mais atento se não denuncie a origem da palavra e lhe não permita a identificação quanto possível perfeita.
Não é de estranhar que de Hans Staden para Anthony Knivet, um alemão, outro inglês, as diferenças de grafia para as mesmas palavras brasílicas que registraram sejam mais sensíveis, ao passo que, entre franceses, como André Thévet, Jean de Léry, Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux, há de notar-se relativa homogeneidade de escrita. Mesmo assim, existe nesse particular alguma discordância em seus livros respectivos. Para exemplo, considerados aqui apenas os autores franceses, tome-se de seus escritos o conhecido vocábulo ibirapitanga, nome tupi da Caesalpinia echinata, e ver-se-á que para Thévet é oraboutan, para Léry araboutan, para d’Abbeville ouyrapouitan, e para d’Évreux ybouyra-poitan. Observar-se-á que a diferença de grafia entre os dois primeiros não é mais pronunciada do que a que ocorre entre os dois últimos; mas há que levar-se em conta que estes foram compartes na missão maranhense, sendo o livro de um complemento do livro do outro, além de que ambos tiveram uma fonte comum de informações, provadamente em Des Vaux e em David Migan, com os quais se acharam na sua chamada França Equinocial. E considere-se que Thévet e Léry se referem a tribos do Sul, enquanto d’Abbeville e d’Évreux se reportam às do Norte; em seus escritos, por isso mesmo, é natural que prevaleçam certas influências dialetais, que aparecem não só no vocábulo proposto como em muitíssimos outros.
Nos autores franceses, que são os que interessam ao caso presente, os vocábulos tupis vêm transcritos em forma puramente francesa ou afrancesada, algumas vezes arbitrária e caprichosa. A tarefa de sua restauração gráfica é fácil, relativamente, atendida a equivalência de som entre eles e seus correspondentes no tupi dos catequistas ibéricos.
Tem-se assim, grosso modo: eu, ei, u, ouyh, nos autores franceses, valendo por i ou y nos autores portugueses ou brasileiros; au, oi ou oy e ou, correspondendo da mesma forma e respectivamente a ou, oa e u. Os demais sons não apresentam diferenças maiores. Conhecida a correspondência fonética, também é fácil estabelecer a equivalência entre os respectivos temas. Assim, tem-se nos primeiros ouä, por guá ou uá, prefixo; nos segundos; oui ou ouy, por gui, prefixo; ap ou aue (u=v), por aba, sufixo nominal; ouassou ou oussou, por guaçu, açu ou uçu, sufixo aumentativo; miri, miry, y ou y por mirim, i ou im, sufixo diminutivo; été por etê, sufixo de superioridade; ran por rana, sufixo de semelhança; eum por eima, sufixo de negação; peuue (o segundo u = v) e pem, por péba e pema, chato, plano; catou por catú, bom; éen por eêm, doce; rup por róba, amargo, amargoso; teuue (o segundo u = v), por tiba, sufixo que indica abundância ou frequência de alguma coisa, correspondente ao latim etum e ao português al, e que aparece comumente nos topônimos, exprimindo o ubi; endaue (u=v) por endaba, lugar, sítio, pouso, etc. Os qualificativos de cor, como vêm transcritos nos autores franceses, pouca alteração oferecem; tem-se aí: piran, pouytan ou poytan, por piranga ou pitanga, vermelho; tin por tinga, branco; iou, youp ou iouue (o segundo u=v), por yú, jú ou jubá,, amarelo; aubouyh ou aubouih, por obi, azul ou verde; on por un ou una, negro; pinim ou pynim, por pinîma, pintado, pontuado, salpicado de pontos. O metaplasma mb é pouco frequente nos escritos franceses: os vocábulos que o deveriam conter, ora se apresentam com b, ora com m. O mesmo se nota com relação a nd, que ora leva uma, ora outra letra. A articulação b vem quase sempre mudada em v (u), e às vezes em p; o l vale por r muito brando; o c chiante vem com ch; o grupo nh é geralmente substituído por gn; o p inicial, quando vem precedido de gama nasal, muda-se em m, etc.
Passando dessas partículas, vistas sumariamente, aos vocábulos por elas formados, tem-se, conforme suas categorias:
a) para as denominações vegetais, que mais abundam nos autores citados: ouyra ou ouira e oua, por ibirá e suas corrutelas, árvore, pau; caa e ca, por caá, planta erva, mato; vue por yba, árvore em geral; vua por ybá, fruto; ove ou oue por oba, folha.
b) para os nomes de animais: só por çoó, animal em geral, o bicho, a caça; boy por mbói, cobra; pira e acara ou cara, peixe de pele ou couro, na primeira forma, ou de escama na segunda, por pirá e acará ou cará; ouyra, ave, pássaro, por guirá; ara, dos Psitacídeos, por ará; ourou, dos Galináceos, por urú; arou por arú ou guarú, sapo; berou ou merou, por mberú, mosca; eyre, por eira ou ira, abalha, mel; oussa, por uçá, caranguejo; usa por içá, formiga, etc.
Em relação aos nomes de instrumentos, utensílios e outros, bastante variados em razão da complexidade dos objetos que designavam ou ainda designam, nem por isso se torna mais difícil sua identificação, de acordo com os radicais acima expostos. Para exemplos dessa classe de nomes podem ser citados nas duas formas em que aparecem: boucan (mockaein, Hans Staden) por moquém, grelha para assar carne de peixe, por extensão a própria carne ou peixe; couy, por cúia, vasilha; ourou por urú, cesto; panacon, por panacum ou panacú, cesto grande, oblongo; patoua, por patuá, saco de couro, ou pano; pinda por pindá, anzol; puyssa por puçá, aparelho de pescar; tabacoura, por tapacurá, jarreteiras, ligas, ou axorcas feitas de fios de algodão, que usavam as donzelas núbeis , etc., sem contar muitos outros que permaneceram com a mesma grafia no francês e no português. Aliás, em grande parte, esses termos se acham incorporados ao léxico luso-brasileiro, ou recolhidos aos glossários tupis.
Não é demais observar que numerosas palavras americanas de procedência outra que não o tupi aparecem nas relações de viagens referentes ao Brasil e chegaram mesmo a penetrar no dicionário brasileiro. Nesse sentido o contingente das línguas das Grandes Antilhas, onde primeiro aportaram os descobridores, é dos mais copiosos. Segundo Humboldt, podem ser apontados, como de interesse para a botânica descritiva, os vocábulos seguintes; ahi (Capsicum baccatum); batata (Convolvulus batatas); bilhao (Heliconia bihai); caimito (Chrysophyllum caimito); cahoba (Swietenia mahagoni); a palavra casabi ou cassave não se usa senão para o pão feito das raízes de Maniot; o nome da planta juca foi assim ouvido por Américo Vespucci na costa de Paria, Lettera a Saderini; age ou ajes (Dioscorea alata); copei (Clusia alba) guyacan (Guajacum officinale); guajaba (Psidium pyreferum); guanavano (Anona muricata); mani (Arachis hypogoea); guama (Inga laurina); henequen (Agave antillarum, A. americana), originariamente uma erva, com a qual, segundo as narrativas dos primitivos viajantes, os haitianos cortavam os metais, hoje todo fio resistente; hicaco (Chysobolanus iaco); maghei ou maguey (Agave americana, e Lucuma mammosa); mahiz, maiz (Zea mays); mangle (Rhizophora mangle); pitahaja (Cereus pitahaya); ceiba (Bambox ceiba); tuna (Opuntia tuna); ainda nomes relativos à fauna, como hicotea (quelônio); iguana (Lacerta iguana) manati (Manatus americanus ou australis); nigua (Pulex, hoje Tunga penetrans); cocujo, espécie de vaga-lume (Eclater noctilucus); nomes de utensílios, instrumentos e outros, como hamaca (leito pênsil, rede); barbacoa (jirau formado de paus sobre forquetas para secar carnes e tassalhos de animais, as folhas do mate, etc.); canei ou buhio (casa redonda, cabana); chicha ou tschischa (bebida fermentada); macana (porrete ou maça de madeira pesada, geralmente da palmeira Guilielma macna); tabaco (não a erva, mas o canudo de que se serviam para aspirar a fumaça do tabaco); cacique (chefe), etc. Outras palavras americanas, não originárias da língua do Haiti, mas vozes árabes assimiladas ao castelhano, ainda hoje se usam na América espanhola, por exemplo: caiman (crocodilo); piragua (embarcação); papaja (Carica); aguacate (Persea); tarabita (aparelho de transporte entre as margens de um rio); páramo (campo deserto, raso, aberto a todos os ventos, nos planaltos das montanhas); e mais banana (Musas), da língua Mbaiá, do Grande Chaco; arepa (espécie de torta ou pão feito de milho); curiava (canoa alongada); guayuco (peça da vestimenta); tutuma (fruto da Crescentia cujete, ou vaso para líquido); e inúmeras outras palavras.
Arrolando neste ensaio os principais exotismos franceses que têm origem no tupi, procurou-se estabelecer, de conformidade com a lição dos antigos autores, a época de sua incorporação ao léxico francês, e, quando possível, a da sua admissão pela Academia Francesa. Para isso foram utilizadas as oito edições do Dicionário da Academia, o de Boiste, que é o verdadeiro pan lexicon francês, como o qualificou Charles Nodier, e mais os de Bescherelle, de Littré e de Hatzfeld e Darmesteter. Algumas dessas palavras não foram registradas nos dicionários; figuram, no entanto, nos tratados de Laet, Piso, Marcgrave e outros, com foros na ciência, e por essa razão foram incluídas aqui.
O glossário a seguir não pretende ser completo; encerra, em todo caso, a maioria dos termos mais importantes do gênero, numa tentativa que não tem precedentes.