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"Tira nós da Aldeinha"

 

DOM MIGUEL de Unamuno foi um dos pensadores mais populares da minha geração. Seus livros eram lidos, aprendidos e meditados quando éramos moços. Um deles, na minha primeira mocidade, ginasiano, causou-me grande impressão e maior influência. Chama-se "O Sentimento Trágico da Vida". Ele fala sobre a busca humana da imortalidade, de ser eterno, em como fugir da morte, dos sistemas teológicos e filosóficos que nos apontam para a imortalidade da alma, até a ressurreição cristã, de voltar "com as próprias vestes". Desse livro, ficou na minha memória sua afirmação de que a pergunta mais profunda do Novo Testamento é a de Pilatos: "O que é a verdade?".


Pois, nesta semana, em meio ao noticiário de Paquistão, Chávez, CPMF e assaltos, vi, na coluna da Mônica Bergamo, uma foto meio imprensada com uma frase que para mim teve o mesmo impacto que a de Unamuno. É um diálogo do Prefeito de São Paulo com dois jovens abandonados que vão lhe pedir esmolas. Ele respondeu ao primeiro: "Não dou esmolas"; e, à segunda, uma menina que pediu, "tira nós da favela da Aldeinha", ele não respondeu. Só o pedido dói. A favela, com seu mundo de drogas e medo, a prostituição infantil, os tiroteios diários, a falta de perspectiva de vida, não pede mais esmola.


Pede, como se fosse um grito de misericórdia: "Tira nós da Aldeinha". A outra solução é a morte nas calçadas da Candelária, tragédia-fuzilamento, hoje esquecida. Aí está a pergunta não respondida de Pilatos: "O que é a verdade?".


Era o que a igreja pensava responder na regência moral da sociedade, especialmente das áreas pobres, com os dez mandamentos de Moisés e a idéia de caridade. Hoje, sumiram os missionários, sumiram os que dão esmolas, e os poucos que existem, de tão raros, são considerados heróis. Os púlpitos passaram pelos temas políticos e perderam o discurso dos excluídos.


Então não há como estranhar o fenômeno das seitas. Essas crianças não pedem esmola porque querem, não vendem chicletes nem param os nossos carros porque são vadias. Elas vêm das Aldeinhas. De lá saem para a guerra suja das ruas, do crack e do roubo. Falta ao poder público dar suporte à infância: condições de ter família, de estudar, de viver e, sobretudo, de ter esperança. O mundo mudou, mas a denúncia do "David Cooperfield" e do "Capitães da Areia" continua atual. Este mundo das conquistas tecnológicas precisa saber que a vida começa na infância. E nada diz tanto sobre toda a extensão desse problema do que o pedido de Dayane, esta outra que não brilha na ginástica olímpica: "Prefeito, tira nós da Aldeinha". O direito à liberdade de viver.


Folha de S. Paulo (SP) 9/11/2007