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Devemos ir à igreja

 

Há cerca de cinco anos, fui convidado pelas Nações Unidas para participar de uma reunião preparatória a uma conferência sobre tecnologia e os direitos individuais, em Bilbao, na Espanha.


Dela participavam grandes nomes da ciência política, como Manuel Castells, que teve brilhante intervenção sobre as conseqüências em nossas vidas da inesperada e transformadora tecnologia da informação. As descobertas ressuscitaram as tendas dos alquimistas e delas surgiram, em vez de poções mágicas, vozes que não se perdem, visões de tudo em todos os lugares e ao mesmo tempo, falar com todos em qualquer lugar do mundo e tudo em telinhas que cabem na palma das mãos.


A grande pergunta é o que acontecerá com a cabeça dessa geração que passou da cultura oral para visual. A privacidade, que era uma graça do homem liberto dentro de si mesmo, passou a ser devassada por tudo e por todos num mundo globalizado. Nos telefones não falamos mais entre duas pessoas, mas em simpósios, pois todos escutam tudo. A voz é uma impressão digital que pode ser capturada no ar pelos impulsos elétricos de máquinas cada vez mais sofisticadas. As câmeras podem ser embutidas num botão ou em qualquer lugar e captam as coisas mais íntimas. Há até um fato pitoresco no Japão, onde resolveram fazer vagões de metrôs separados para as mulheres se protegerem de câmeras que, colocadas no bico dos sapatos, bisbilhotavam o interior das saias e os mistérios ali contidos.


Foi o chegar da era - tida como loucura - imaginada por George Orwell, no seu livro 1984, onde criou a figura do Big Brother (não confundir com o programa de TV) que usava o Ministério da Verdade para espionar e dar ordens a todos os habitantes do seu país imaginário.


Cada vez mais nos sentimos sem direito à solidão e à privacidade, medrosos de estarmos sendo espionados, cercados de agentes eletrônicos. O homem acabará no dia em que ele descobrir a máquina de ler o pensamento. Aí, como ninguém pode deixar de pensar, nascerá o reino da infelicidade. Será o fim. Já não estarei mais vivo quando descobrirem essa, mas, como com o tempo descobrem tudo, e, dizia Vieira, com a saudade, tenho pena do futuro.


Tudo isso para dizer que o Denatran determinou mais um avanço na nossa privacidade: nosso carro será acompanhado dia e noite e dentro dele haverá caixas-pretas "para revelar acidentes".


Quem lucra com isso? As seguradoras, os produtores desses equipamentos e os bisbilhoteiros. Quem perde? Mais um pedaço de nossa liberdade e a descoberta de onde viemos e para onde vamos. Ainda bem que só vou à igreja. Mas os que vão a outros locais que se cuidem.


Jornal do Brasil (RJ) 10/8/2007