A reunião da Cúpula das Américas deixou um saldo insosso. Tanto falaram em fugir da retórica latina que os americanos aderiram a ela. Esse formato nasceu há 15 anos, quando foi fundado, em Acapulco, o Grupo dos Oito, através do qual os principais países da América do Sul e o México se dispuseram a construir uma cúpula para acertar uma política presidencial conjunta, face a problemas como a Nicarágua vir a ser uma nova Cuba.
Nesse quadro surge a idéia da Alca. Não há como esconder que é ela que está na base de tudo e para ela ser vendida criou-se esse pirotécnico cenário. O bonde está andando.
Sei bem das conseqüências e implicações que envolvem o projeto. Para os americanos é uma antecipação do futuro e a ocupação do mercado dos outros. Vem dos ingleses essa política colonial de abertura de mercados para dominar, herdada pelos americanos quando o império britânico soçobrou. É a tal política da gaiola. O passarinho fica solto, pode cantar e pular, mas a gaiola tem dono.
Em Monterrey, o presidente Bush declarou: ''Espero que aqueles que expressaram alguma oposição à Alca olhem os fatos, e os fatos são que o Nafta (a Alca de México, Canadá e EUA) melhorou a vida das pessoas e acabou (!) com a pobreza em partes de nossa vizinhança (México)''. Quero contestar Bush com palavras insuspeitas do The New York Times, que assim se referiu aos 10 anos do acordo: ''O Nafta reforçou o México para promover o crescimento das empresas americanas, porém não fez do próprio país uma economia produtiva e independente''.
Estrada Gallegos, diretor do Centro de Estudos Regionais Mexicanos, num trabalho sobre o Nafta, nos diz que ele é justamente um ''contra-exemplo paradigmático''. Ele afirma que o ''caso mexicano é um espelho quebrado''. Lembra que o México, sob o Nafta, tem renda per capita abaixo de países como Costa Rica e Chile. Cresceu a maquilagem industrial, toda ela com mão-de-obra barata e paraíso das multinacionais. Mesmo assim, a concorrência chinesa ameaça.
A vantagem do México, depois do Nafta, em relação à América Latina, foi um crescimento de 1%, inferior ao que teve entre 1948 e 1973, de 3,2%. Em contraste, mesmo com a crise asiática, sem Nafta, a Coréia cresceu 4,3% e a China, 7%. A vantagem foi dos norte-americanos: nos 10 anos de Nafta, cresceram seu poder de compra em 10% e os mexicanos, miseráveis 0,2%. Belo exemplo para a Alca! Esses números são do trabalho de Gallegos.
As barreiras alfandegárias americanas destroçaram a agricultura mexicana, e barraram com taxações o sorgo, tomates, feijão e outras commodities.
Houve - segundo Stiglitz, no The New York Times - um desequilíbrio descomunal da frágil economia mexicana em concorrência com a americana.
Não sei onde o presidente Bush foi buscar o exemplo Nafta para dizer que ele acabou com a pobreza mexicana. Os jornais mexicanos dizem o contrário: os tratados de livre comércio são ''uvas amargas''. Eu prefiro chamá-las de azedas. E uva azeda não é fruta para o Brasil correr atrás.
Jornal do Brasil - (Rio de Janeiro - RJ) em 16/01/2004