Estou adquirindo uma má vontade comigo mesmo de citar "aquele" pregador que eu li tanto a vida inteira. Foi meu pai que me recomendou: "Se você quer aprender a escrever, leia Vieira". Pois não é que ele diz que os homens têm olhos feitos para ver e para chorar? E explica: "Os cegos não vêem e choram". É o que acontece agora com nós, brasileiros. Estamos vendo, estamos cegos e, vendo não vendo, temos vontade de chorar.
Muito ouvimos a canção "não chores por mim, Argentina". E eu, quando, há muitos anos, li "O Palácio Queimado" (sede do governo em La Paz), a trágica história da Bolívia, envolvida sempre em golpes, e o canto profundo dos índios andinos, condenados milenarmente ao sofrer, tive vontade de chorar pela Bolívia, que se renova, agora, e se estende ao que se fala sobre o Brasil.
Nosso país não merece. Chegamos ao fim do ciclo republicano, encerrado com a vida desse operário, Lula da Silva -patrimônio do país-, que cumpriu todos os sofrimentos da pobreza para chegar à Presidência da República, mostrando que o Brasil fez pelo voto aquilo que ninguém no mundo fez pelas armas: um operário no poder. Todos as classes brasileiras tiveram a oportunidade de governar o país.
Desabam nessa dura caminhada, hoje, a desmoralização do Congresso, o trucidamento de reputações, a generalização das suspeitas e a tragédia de um momento de impasses. Não é uma crise. São várias crises dentro de uma só, que é múltipla.
Há alguns anos, a democracia representativa, que os ingleses sistematizaram, vem sofrendo um declínio permanente com a erosão de suas práticas. Pareciam ciclos, como no século 19, com Napoleão 3º, no século 20, com Mussolini, Hitler e os Estados concentracionários. Hoje, esse desgaste nos parece acelerado com a sociedade de comunicação, que faz com que todas as coisas sejam vividas e acompanhadas por todos ao mesmo tempo e hora.
O que representa, hoje, um deputado? -é a pergunta da mídia. A opinião pública desloca-se, então, para ser exercida pelos meios de comunicação. E inicia-se um doloroso processo de purgação, necessário e saneador.
Em 1997, eu não tinha nenhum relacionamento com Lula, era seu adversário, sem nenhum contato. Ele, àquele tempo, sofreu verdadeiro trucidamento e, diante de tanta injustiça, submetido a um interrogatório numa reunião do diretório do PT, foi às lágrimas. Fiquei indignado e aqui, nesta coluna, escrevi um artigo "A Lula o que é de Lula". Disse que "o país tem de aprender a preservar os seus homens públicos". Volto, hoje, conhecendo-o de perto, admirando sua inteligência e devoção ao trabalho pelo país, para dizer que ele não merece o que está acontecendo. Afastemos dele esse cálice. Ele não tem nada a ver com decomposição das instituições representativas. Na Argentina, para não sermos sós nessa galáxia de horrores, deputados são acusados de receber "sobresueldos", o "mensalão" em castelhano.
Lá, como cá, devemos lancetar o tumor. Que não fique pedra sobre pedra, mas que dessas pedras partidas saia reconstruída, em pureza, a maior das instituições democráticas: o Parlamento. Sem ele não há democracia e, sem ela, valha-nos Deus!
Como há oito anos, repito que dêem a Lula o que é de Lula e não lhe entreguem o que a ele não pertence.
Folha de São Paulo (São Paulo) 17/06/2005